(IN) CONSTITUCIONALIDADE DA APLICAÇÃO EXTENSIVA DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS À UNIÃO ESTÁVEL PARA MAIORES DE 70 ANOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7295138


Estefany Samara da Silva de Paula1
Graziele Aparecida Oliveira Azevedo2
Higor Fonseca Carvalho3


RESUMO

O diploma civil pátrio prevê que, caso um dos nubentes possua mais de 70 anos de idade, é obrigatória a adoção da separação obrigatória de bens. Embora esse regramento seja expressamente previsto para o casamento, tem-se feito uma aplicação extensiva de forma a aplicá-lo à união estável. Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo a discussão a respeito da (in) constitucionalidade da aplicação extensiva do regime de separação obrigatória à união estável. Constatou-se, portanto, que a extensão da separação obrigatória ao nubente idoso reveste-se de inconstitucionalidade, por ferir a dignidade humana e ser incompatível com a ordem constitucional vigente uma generalização de incapacidade após a terceira idade.

Palavras chaves: Valores constitucionais. Casamento, União estável. Idoso, Regime de bens.

1 INTRODUÇÃO

Inicialmente, importa destacar que a Constituição Federal de 1988 se erigiu ao ápice do ordenamento jurídico brasileiro, dela decorrendo a interpretação de todas os demais códigos nacionais. Sendo assim, até mesmo a jurisprudência deve observar a Carta Magna, não podendo, ao proferir decisões, ferir seus mandamentos.

Lado outro, é de forma principal da jurisprudência que tem vindo decisões que, ao interpretar a legislação, garante direitos que a letra fria da lei não confere.

Desde a edição da Constituição e mais tarde com a égide do Código Civil de 2002, o patrimônio passou de elemento essencial às relações humanas para ocupar um lugar bem abaixo da dignidade da pessoa. Nesse sentido, o Código Civil de 2002, que havia previsto a obrigatoriedade do regime da separação de bens obrigatório para maiores de 60 anos, foi substituído, posteriormente, pela Lei nº 12.344, de 9 de dezembro de 2010, que alterou o dispositivo, majorando para 70 anos a idade a partir da qual se torna obrigatório o regime da separação de bens no casamento.

O motivo que leva à discussão a respeito da (in) constitucionalidade da imposição da separação obrigatória de bens após os 70 anos é que uma imposição do Estado sobre a família, logo o mais humano de todos os ramos do direito, conforme os ensinamentos de Gonçalves (2022), além de ferir um dos subprincipios da dignidade humana, conflita com as próprias disposições do Código Civil atinente à capacidade Civil.

Dessa forma, a partir dessa discussão, pode-se visualizar que existem dois lados dessa mesma moeda: a menor intervenção do Estado na sociedade e a maior intervenção do Estado no âmbito da família

A (in) constitucionalidade da imposição obrigatória do regime da separação de bens está longe de ser um assunto pacífico na doutrina, havendo diversos autores, tais como Dias (2015), Gagliano e Pamplona Filho (2019) e Madaleno (2020) que são contra tal disposição legal.

Nessa esteira, bem mais nebulosa é a aplicação desse regime à união estável, uma vez que não há previsão expressa da incidência do regime de separação obrigatória de bens à união estável, instituto marcado pela informalidade. Nessa linha de pensamento, Gagliano e Pamplona Filho (2019) consideram que não pode haver interpretação extensiva para restringir direitos.

Assim, a partir das discussões que este tema apresenta, este estudo tem como objetivo geral analisar a (in) constitucionalidade da imposição do regime de separação obrigatória de bens para os nubentes que possuam mais de 70 anos. Como objetivos específicos, este trabalho irá analisar a evolução do ordenamento jurídico brasileiro a partir dos valores da Constituição Federal 1988 e discorrer a respeito do impasse existente entre a menor intervenção do Estado na sociedade e a necessidade de proteção estatal no âmbito da família.

Tendo em vista tais objetivos, esta pesquisa justifica-se pela necessidade de constante atualização da posição legislativa diante da evolução da sociedade. Vale ainda salientar que a imposição de um regime de separação obrigatória para a terceira idade surgiu em um momento histórico em que era o patrimônio que pautava as relações jurídicas entre particulares, não havendo, à época, valores constitucionais que protegessem a dignidade humana com a abrangência de hoje. No entanto, com a evolução do ordenamento jurídico, o legislador limitou-se a aumentar de 60 para 70 a idade em que a separação obrigatória torna-se necessária.

Sabe-se que com o crescimento da evolução social, a cada dia, aumenta o quantitativo de pessoas na terceira idade que desejam envolver-se em novas relações conjugais. Dessa maneira, com a derrogada das normas que reconheciam apenas o casamento como legítimo constituidor da família, a união estável tem sido o modelo de instituto mais escolhido para a legitimação dessas relações.

Sendo assim, são de importância inquestionável novos estudos no sentido de questionar a legitimidade de uma imposição de tal nível a essa parcela social que diariamente se mostra mais dona da própria autonomia.

Como metodologia a ser seguida, será utilizada a doutrina e a jurisprudência, além de diversos periódicos e artigos científicos disponíveis na rede mundial de computadores, considerando-se aqueles com datas mais afastadas até os mais novos estudos a respeito do tema, de modo a acompanhar como se tem tratado tal assunto nos mais diversos âmbitos.

Assim, este estudo se dividirá em três capítulos de modo a melhor tratar do assunto. O primeiro tratará a respeito da égide da Constituição Federal de 1988 e das mudanças que com ela se operaram no sistema jurídico; o segundo discorrerá a respeito da imposição legal da separação obrigatória ao casamento e o terceiro analisará a aplicação extensiva da regra prevista para o casamento à união estável.

2 DIGRESSÃO HISTÓRICA E CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

Os valores sociais brasileiros passam, ao longo do tempo, por evoluções contantes e, o direito, como instrumento que busca a convivência harmônica entre os jurisdicionados deve acompanhar esse progresso.

Conforme destaca Dias (2015, p. 27), “o direito é a mais eficaz técnica para o Estado cumprir sua importante função de organizar a vida em sociedade. Para isso impõe pautas de condutas, nada mais do que regras de comportamento para serem respeitadas por todos”.

Atualmente, vislumbra-se o ordenamento jurídico como defensor das minorias e promotor da justiça social, contudo, é necessário atentar-se para o fato de que em tempos não tão remotos a dignidade humana não exista para todos.

A sociedade contemporânea deriva do império patriarcal, sistema dominante em um período não muito distante, no qual a superioridade do homem, subalternidade da mulher e rejeição do diferente eram amparados pelo próprio ordenamento jurídico. À época, o direito preocupava-se substancialmente com a tutela do patrimônio e não restava tempo ao legislador para pensar na guarida das minorias, aliás, não havia sequer interesse nessa proteção.

Conforme aludem Gagliano e Pamplona Filho (2019, p. 83), “na época de sua elaboração, vivia o Brasil o período de República Velha, marcado pelo domínio político das elites agrárias. Nesse contexto, o Código Civil traduzia a ideologia dessa sociedade, que se preocupava muito mais com o ter do que com o ser”.

O Código Civil de 1916, além de consistir em uma norma essencialmente patrimonialista, era detentor de maior força normativa do que o atual Código. Isso porque, à sua época, o diploma civil era considerado como a lei maior que regia as relações entre particulares, enquanto a Constituição que então vigorava era vista essencialmente como reguladora do direito público.

Com a égide da Constituição Federal de 1988, que atentou o legislador constituinte para a necessidade de promover uma releitura do direito pátrio, por meio da harmonização do direito privado com o direito público, os preceitos da nova Carta Magna passaram a se aplicar também às relações entre particulares.

A partir desse período, surgiram as primeiras ideias atinentes à dignidade humana, no entanto, a solidariedade e igualdade entre os povos haviam ainda obstáculos a superar, pois o Diploma Civil ocupava uma posição substancialmente oposta aos novos valores constitucionais.

Foi, sobretudo, com o advento do Código Civil de 2002, cujos ideais trouxeram luz às convicções eminentemente individualistas em que se pautavam as relações sociais, que se pôde discutir concretamente a necessidade de irradiar novas concepções para o âmbito do direito privado. Foi também nesse período que efetivamente iniciou-se a desconstrução das ideologias patrimonialistas que dominavam a sociedade do século XX.

Conforme aduz Fachin (2015, p. 44-45), “o Código Civil de 2002 é produto do pensamento jurídico sistematizado na década de 70 de um Brasil que restou sepultado, em boa parte, pela Constituição de 1988”. O autor ainda relata que, após a sua égide, o Diploma Civil perdeu a posição de centralidade do ordenamento jurídico, lugar que passou a ser ocupado pela Carta Magna.

A nova Carta sobreveio no pós-Segunda Guerra, momento em que, as nações, primordialmente as que se encontravam destruídas pelas mazelas dos combates, buscavam a paz social, a igualdade entre os povos e a dignidade das pessoas. É importante lembrar que, nesse momento da cronologia, o Brasil já tinha deixado para trás a escravatura, mas nunca haviam os operadores do direito se atentado para a necessidade de promover uma aproximação real de seu povo.

A partir desse período, o operador do Direito passou a interpretar as leis e, principalmente. o Código Civil, com base na nova Constituição, de modo a promover a verdadeira justiça para todos. Conforme lembrado por Terra et al. (2016), com a constitucionalização do direito privado “o papel do intérprete se transforma radicalmente: deixa de ser la bouche da la loi (a boca da lei) para passar a exercer uma atividade essencialmente ‘criadora’” (TERRA et al., 2016, p. 16).

É assim que deve ser, não há dúvidas de que o direito deve ser constantemente reinventado, pois, uma vez que alteram-se os valores fundamentais da sociedade, surgem aos jurisdicionados novas necessidades, demandando a reinterpretação das normas de acordo com a ordem social e os princípios constitucionalmente tutelados.

3 A FAMÍLIA

Notadamente, o tipo de entidade familiar que precede o século XXI era, senão dirigida por regras desarrazoadas e repletas de injustiça, no mínimo discrepante de todos os valores sociais pregados pelo ordenamento jurídico vigente. Conforme salienta Fachin (2015, p. 14-15), “o patrimonialismo do espaço privado — que, nessa fase, não cogita como valor maior a dignidade da pessoa humana —acabou por se refletir nas codificações do século XIX e início do século XX”.

Conforme considera Dias (2015, p.29):

Manter vínculos afetivos não é uma prerrogativa da espécie humana. O acasalamento sempre existiu entre os seres vivos, seja em decorrência do instinto de perpetuação da espécie, seja pela verdadeira aversão que todos têm à solidão. Parece que as pessoas só são felizes quando têm alguém para amar (DIAS, 2015, p. 29).

A autora lembra que, uma vez que a norma sempre vem após o fato, procurando regular o futuro, reveste-se de viés conservador, razão pela qual a família, tal qual regulada pela lei, nunca consegue corresponder à família natural.

Dias (2015) relata ainda sobre os aspectos históricos da família diante da feição rural da sociedade, que exigia a implementação da mão de obra para viabilizar o trabalho nos campos. Não há dificuldade em compreender que, à época, a família tinha como objetivo a procriação, sendo os filhos apresentados ao trabalho braçal muito cedo e a força de trabalho era pressuposto da subsistência do núcleo familiar.

Devido ao trabalho extenuante e a parca ciência, a perspectiva de vida girava em torno de 50 ou 60 anos de idade e muito pouco ou nada se discutia a respeito de relacionamentos amorosos entre pessoas mais velhas, que já haviam cumprido com o objetivo de criar seus filhos e agora apenas desejavam encontrar um par para ser amor e companhia, aliás, não havia relevância jurídica, considerando que eram poucos os que na terceira idade ainda possuíam saúde ou disposição para pensar em novos relacionamentos.

Hoje, conforme alude Dias (2015, p.662), “o aumento da perspectiva de vida provocou alterações também na formatação da família. Os idosos não mais podem ser desconsiderados no universo das relações familiares”.

Para Hironaka (2017, p. 366), “dentre os aspectos a se considerar para que uma pessoa seja feliz, o seu envolvimento com sua família é um dos mais importantes”. Diante de tal consideração da doutrinadora, não há dificuldade em compreender a relevância da preocupação exarada com a atualização deste ramo do direito de forma a não obstar a liberdade de seus membros.

Nesse contexto, considerando as mudanças que se operaram no plano social, no âmbito da família, a relevância de se discutir a respeito das consequências jurídicas da união entre idosos assume relevância ímpar. Contudo, não se pode olvidar que a dignidade humana é inata a todas as pessoas e deve ser observada em todos os ramos da vida.

Assim, é imprescindível deixar de lado os preconceitos referentes à terceira idade, sem deslembrar que os seres humanos possuem cada qual, suas peculiaridades e seus desejos, não sendo juridicamente correta a imposição de restrições à liberdade com base em presunções gerais.

A seguir far-se-á uma análise mais detida acerca da terceira idade e da desconfiança legislativa que assombra a sua capacidade, resultando em presunções generalizadas e infundadas que lhes ferem a dignidade humana.

4 O CASAMENTO E A DISCRIMINAÇÃO COM A TERCEIRA IDADE

É comum, nos tempos atuais, que o casamento seja enxergado pela sociedade como forma de oficializar um vínculo de afeto entre duas pessoas sob a promessa recíproca de fidelidade e comunhão de vida.

A maior parte dos institutos, não só pertencentes ao direito civil, mas ao ordenamento em geral, varia com o tempo e com a cultura dominante de acordo com o período histórico. Nesse sentido, o casamento já assumiu diversas feições no sistema civil brasileiro, consistindo desde uma união direcionada exclusivamente para a perpetuação de riquezas entre as famílias mais abastadas até em um instituto direcionado exclusivamente para a procriação.

Como observa Sílvio Venosa (2003) apud Gagliano e Pamplona Filho (2021), “por muito tempo na história, inclusive durante a Idade Média, nas classes mais nobres, o casamento esteve longe de qualquer conotação afetiva. A instituição do casamento sagrado era um dogma da religião doméstica”.

Atualmente, como conceitua Tartuce (2022 p. 1222), o casamento é “a união de duas pessoas, reconhecida e regulamentada pelo Estado, formada com o objetivo de construção de uma família e baseado em um vínculo de afeto”.

Em que pese as definições doutrinárias, faz-se imperioso lembrar que a realidade geralmente destoa das previsões legais. Como prova disso, têm-se as discriminações no tocante ao casamento entre maiores de 70 anos.

Quando se trata do casamento entre idosos, ou quando se tem um dos nubentes na terceira idade surgem repercussões que, aquém da consagração da afetividade como elemento substancial do enlace matrimonial, carregam um viés preconceituoso, geralmente amparado na impossibilidade de gerar filhos próprios. Alguns dos conceitos traçados por doutrinadores clássicos, considerando a procriação um dos elementos existenciais da relação, são utilizados até os dias atuais para justificar essa posição.

A exemplo, para Bevilaqua (2001) apud Gonçalves (2022):

O casamento é um contrato bilateral e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvelmente, legalizando por ele suas relações sexuais, estabelecendo a mais estreita comunhão de vida e de interesses, e comprometendo-se a criar e a educar a prole, que de ambos nascer (BEVILAQUA, 2001 apud GONÇALVES, 2022, p. 38).

Diniz (2022), em sentido contrário, pontua que:

A procriação dos filhos é uma consequência lógico-natural e não essencial do matrimônio (CF/88, art. 226, § 7º; Lei n. 9.263/96). A falta de filhos não afeta o casamento, uma vez que não são raros os casais sem filhos por vontade própria ou não. A lei permite planejamento familiar, uniões de pessoas que, pela idade avançada ou por questões de saúde, não têm condições de procriar (DINIZ, 2022, p. 23).

Entre as formas de preconceito utilizadas para diferenciar o casamento entre pessoas na terceira idade, atine ao regime diferenciado imposto pela legislação infraconstitucional, assunto que se passa a abordar.

Como explicam Gagliano e Pamplona Filho (2019), o matrimônio gera importantes efeitos, tais como a fidelidade recíproca e o dever de assistência, os quais traduzem efeitos de cunho eminentemente não patrimonial. Contudo, existem também os efeitos patrimoniais, regidos pelo regime de bens.

Os autores afirmam que

Em regra, os nubentes podem, de acordo com a sua autonomia privada e liberdade de opção, escolher o regime que bem lhes aprouver. Não deve o Estado, salvo quando houver relevante motivo amparado em norma específica, intervir coativamente na relação matrimonial, impondo este ou aquele regime (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2019, p.348).

Pode-se dizer que o regime de bens consiste em um acordo a que devem chegar os nubentes a respeito de como se regerá a relação do casal em relação ao seu patrimônio, tanto o que já existia antes do matrimônio, quanto o que sobrevirá à união.

Conforme explica Pereira (2022, p. 222), “as relações econômicas entre cônjuges tomam como base o fato de se comunicarem ou não os patrimônios dos cônjuges. A rigor, portanto, somente existem duas modalidades de regimes de bens: “comunhão” e “separação”. A comunhão pode ser parcial ou universal e se caracteriza pela comunicabilidade dos bens dos nubentes. Já a separação, caracteriza-se pela incomunicabilidade, ou seja, quando cada nubente conserva seu próprio patrimônio. Esse regime pode ser convencional, quando os próprios nubentes escolhem que querem que seus patrimônios não se misturem, ou legal, quando a própria lei impõe a incomunicabilidade.

Segundo Madaleno (2022, p. 954), na separação de bens inexiste “qualquer expectativa de ganho ou de disposição sobre os bens do parceiro”. Ainda de acordo com o autor, em regra, o regime a ser adotado pode ser livremente escolhido pelo casal, inclusive, nesse sentido, a dicção do artigo 1.639 do Código Civil pátrio aponta que “é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver” (BRASIL, 2002).

Apesar da geral, como relata Pereira (2022), em determinadas situações, a legislação civil impõe a obrigatoriedade do regime da separação de bens, encaixando-se nesta restrição os casamentos que se realizarem quando qualquer dos nubentes contar com idade superior a setenta anos.

A regra claramente consiste em um paradoxo, uma vez que ao procurar proteger o idoso de eventuais “golpes do baú” fere de morte sua autonomia e liberdade, valores tutelados pelo ordenamento jurídico pátrio.

Interessa destacar, como lembra Pereira (2022), que o legislador constitucional direcionou especial proteção à terceira idade, sendo que o art. 230 da Carta Magna garante a proteção do idoso e inclusive assegura a sua participação na comunidade, de modo a reafirmar que a idade, por si só, não implica na perda da capacidade. Tendo isso em vista, o autor argumenta:

O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo de sua proteção integral, sendo asseguradas todas as oportunidades e facilidades para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade (PEREIRA, 2022, p. 60).

Além disso, a incidência dos valores constitucionais ao ordenamento jurídico confirmam a posição inicialmente disposta, no sentido de que o legislador insiste em fechar os seus olhos para certas realidades sociais.

Para Pereira (2022, p. 231), “a limitação da vontade, em razão da idade, impondo regime de separação obrigatória de bens, longe de se constituir uma precaução (norma protetiva), constitui-se em verdadeira incoerência”.

É de grande importância lembrar que a regra que impõe a separação obrigatória de bens ao casamento de pessoas que atingiram os 70 anos de idade surgiu em uma sociedade cuja cultura e realidade social dominantes eram diversas da atual. Nesse sentido, Dias (2015) reflete que “a imposição deste regime teria surgido para evitar que o cônjuge varão venha a sofrer um ‘golpe do baú’”.

Conforme já mencionado, boa parte da doutrina é contrária à manutenção da regra, considerando a realidade social vivenciada hoje em nosso país. De acordo com Madaleno (2020):

Decisão pioneira partiu da intelecção do então desembargador paulista Cezar Peluso ao afirmar ser incompatível com a dignidade humana a restrição de capacidade na escolha do regime de bens para casamentos de homens e mulheres que atingissem certo ciclo biológico de suas vidas; justamente quando estariam atualizando suas virtudes e sua capacidade, acabavam sendo comparadas a adolescentes desvairados e neuróticos obsessivos, que só se guiam por suas emoções (MADALENO, 2020, p 154-155)

Considerando as repercussões acerca dessa limitação da vontade dos nubentes, que veio com o advento da Carta Magna de 1988, propôs-se o Projeto de Lei 108, de 2007, que alterou o inciso II do art. 1.641 do Código Civil, aumentando para 70 anos a idade com a qual passa a ser uma imposição o regime da separação de bens no casamento.

Segundo a justificativa do PL:

Nos primórdios do Século XX, a expectativa de vida média do brasileiro variava entre 50 e 60 anos de idade, a Lei nº. 3.071, de 1º. de janeiro de 1916, o que condicionou o legislador a estabelecer que nos casamentos envolvendo cônjuge varão maior de 60 anos e cônjuge virago maior de 50 anos deveria ser observado o Regime de Separação Obrigatória de Bens, norma expressa no inciso II do Art. 258 daquele Estatuto (BRASIL, 2007).

Com o avanço da ciência e da medicina, o ser humano passou a desfrutar de melhor qualidade de vida e, em decorrência disso, passou a viver mais. Assim, ainda segundo o PL:

Tais mudanças induziram o legislador a aperfeiçoar o Código Civil de 1916, por intermédio da redação que substituiu o antigo Art. 256 pelo inciso II do Art. 1.641, que trata do Regime de Bens entre os cônjuges. Tal alteração estipulou que homens e mulheres, quando maiores de 60 anos, teriam, obrigatoriamente, de casar-se segundo o Regime de Separação de Bens (BRASIL, 2007).

Mesmo com a mudança legislativa que aumenta a idade em que passa a incidir a lei, a regra continua sendo infundada. Para Dias (2015, p. 105), “nada justifica a mantença dessa capitis deminutio, que gera presunção de incapacidade, sem atentar para o fato de que vem aumentando a longevidade e a qualidade de vida das pessoas”. A autora ainda complementa:
Pelo jeito, tanto homens quanto mulheres, além de não terem a possibilidade de despertar o amor sincero de alguém, perdem o discernimento e, por isso, o Estado resolve tutelá-los. Ainda que possam livremente dispor de seu patrimônio, paradoxalmente, se resolverem casar, o casamento não autoriza envolvimento de ordem patrimonial (DIAS, 2015, p. 105).

Conforme Gagliano e Pamplona Filho (2022, p.118), “esse dispositivo, posto informado por uma suposta boa intenção legislativa, culmina, na prática, por chancelar situações de inegável injustiça e constitucionalidade duvidosa”.

Madaleno (2020), nesta esteira, entende que essa imposição acaba por criar uma nova modalidade de incapacidade relativa, a despeito das já previstas no artigo 4° do Diploma Civil e reflete o peso atinente a essa regra que, unicamente em razão da idade do nubente, limita seu direito de escolha, criando uma presunção de que somente em razão da idade o septuagenário teria uma redução automática do discernimento, como se isso fosse algo inerente ao ser humano de forma que ao atingir a sétima década adviria inevitavelmente à redução da lucidez.

No mesmo sentido que pontuam os doutrinadores acima citados, os autores deste estudo entendem que a imposição de um regime de bens considerando unicamente a idade do nubente traz uma presunção equivocada de que todos os seres humanos envelheceriam de igual forma. Ao contrário de tal conjectura, vale lembrar que a mente humana é um mistério até então não totalmente desvendado pela ciência.

Assim, não se sabe se e quando alguém terá seu discernimento reduzido. Não são necessários estudos científicos para concluir que há indivíduos com bem menos de 70 anos que foram atingidos pela redução do discernimento e tantos que passam dessa marca etária e continuam com as faculdades mentais em perfeito estado.

Feitas essas considerações, passaremos à análise da aplicação extensiva da separação obrigatória à união estável. Ademais, como já pontuado, reforçamos que concordamos com a doutrina de Madaleno (2020) e, portanto, entendemos que é descabida a imposição de um regime de bens com base unicamente na idade dos noivos. Quando se trata de fazer uma interpretação extensiva dessa regra, o cenário torna-se ainda mais nebuloso.

5 A INCONSTITUCIONALIDADE

Não resta dúvida de que a família sofreu mudanças estruturais ao longo dos anos e, conforme Lôbo (2018, p. 18), “a repersonalização contemporânea das relações de família retoma o itinerário da afirmação da pessoa humana como objetivo central do direito”.

Aquém da atualização principiológica vivenciada pelo ordenamento jurídico, ainda hoje, vigoram na sociedade, disposições basilares que consolidam a primazia de certas constituições familiares em detrimento de outras. A despeito do viés preconceituoso que incide sobre o casamento que envolve o nubente idoso, quando se trata da união estável entre pessoas na terceira idade a situação se reveste ainda mais de repercussões.

Nesse sentido, mesmo que tenham sido conferidos efeitos jurídicos à união estável, instituto que até 1988 era denominado concubinato e não recebia tutela do estado, não se nega que o casamento ainda é enxergado pela sociedade como a principal forma de constituição da família. Tendo isso em vista, Diniz (2022, p. 23) argumenta que “é o casamento a mais importante e poderosa de todas as instituições de direito privado, por ser uma das bases da família, que é a pedra angular da sociedade”.

A despeito disso, Gagliano e Pamplona Filho (2019, p. 131) pontuam que “todas as manifestações de família, ou seja, todos os arranjos de afeto são válidos, devem ser socialmente respeitados, mormente por conta do sistema aberto e inclusivo consagrado pela nossa Constituição Federal”. No entanto, como consequência das reminescências da cultura patriarcal, a sociedade tende a marginalizar ainda a união estável e os próprios tribunais pátrios, por vezes, demonstram que o preconceito arraigado ainda domina nosso país.

A título de exemplo, pode-se citar decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, proferida em 2015, a qual entendeu pela não configuração da união estável entre um casal, pelo simples fato de os conviventes serem idosos. O tribunal mineiro justificou seu posicionamento no fato de que o casal não poderia mais gerar filhos e utilizou a expressão “caricatura” para demonimar aquele tipo de relacionamento.

Em que pese o Supremo Tribunal Federal – guardião da Constituição – tenha posteriormente cassado a decisão e reconhecido a união estável, constata-se que os próprios juízes, que têm o dever de aplicar a lei de modo a lhe conferir maior efetividade no caso concreto, por vezes ferem de morte os princípios constitucionais em razão de entendimentos pessoais discriminatórios.

À época, o relator do caso, Ministro Luiz Edson Fachin, posicionou-se no seguinte sentido:

Partindo das premissas fáticas adotadas pela decisão recorrida, a conclusão a que chegou o juízo a quo diverge da jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal Federal, a qual não faz restrição quanto à idade, nem ao sexo, dos companheiros para fins de reconhecimento da união estável.

No que tange ao casamento, embora sejamos também contrários à regra que limita a liberdade de escolha dos nubentes, há disposição legal, enquanto para a união estável unicamente sustenta-se a obrigatoriedade de aplicação da separação de bens com base na idade, sendo esta uma interpertação extensiva conferida pela jurisprudência.

É relevante esclarecer que o Código Civil de 2022, ao estabelecer regras a respeito do regime de bens, limita-se a tratar do casamento, sendo omisso quanto à união estável. O ordenamneto jurídico aplica os regimes matrimonias previstos para o casamento para a união estável, abrangendo a separação obrigatória para o nubente que conta com 70 anos de idade, importando em interpretação extensiva.

Nesse prisma, doutrinadores diversos entendem que a restrição quanto à livre escolha de bens não pode ser aplicada extensivamente à união estável, uma vez que, se fosse da intenção do casal que incidisse tal óbice, teriam optado pelo casamento.

A exemplo, Gagliano e Pamplona Filho (2019) pontuam sobre a imposição do regime da separação obrigatória:

Por traduzir restrição à autonomia privada, não comporta interpretação extensiva, ampliativa ou analógica. Aliás, com fundamento nessa comezinha diretriz hermenêutica, concluímos, firmemente, no sentido da completa impossibilidade de se pretender estender esse regime restritivo à união estável, dada a inequívoca ausência de previsão legal nesse sentido. O regime de separação obrigatória, portanto, em nosso sentir, fora previsto e regulado para o casamento, e não para a união estável. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2019, p. 364).

Conforme o contexto apresentado, não resta dúvida de que é inconstitucional a aplicação extensiva do regime da separação obrigatória de bens, prevista legalmente para o casamento, à união estável, um vez que implica em desvirtuação dos valores constitucionais e viola a autonomia privada da pessoa idosa. Ainda que a própria previsão da separação obrigatória para a união estável destoe da dignidade da pessoa humana e demais valores da república Federativa, há de se respeitar a previsão legal, que prevê expressamente o regime para o matrimônio.

Para a união estável, não havendo previsão legal, a aplicação extensiva de uma regra que importa em restrição à autonomia privada não pode ser reputada constitucional.

Por fim, resta consignar que a discussão já chegou ao Supremo Tribunal Federal e que teve a repercussão geral reconhecida. Dessa forma, ela será objeto de análise em breve, restando aguardar somente que a Corte Suprema de fato exerça seu papel de guardiã da Constituição e repute inconstitucional o inciso II do artigo 1641 do Código Civil, de modo a conferir dignidade à pessoa idosa, conforme manda a ordem constitucional vigente.

6 CONCLUSÃO

Conforme buscou-se demonstrar ao longo deste estudo, o ordenamento jurídico brasileiro passou por mudanças substanciais advindas com a égide da Constituição Federal de 1988 e com a irradiação de seus valores ao sistema privado.

Inegavelmente, o direito de família foi um dos ramos mais afetados. Antes do que se convencionou chamar de constitucionalização do direito civil, o núcleo familiar era uma instituição complementarmente patriarcal e patrimonializada, pautada pelos valores do Código Civil de 1916.

Não obstante em 1988 iniciasse um novo cenário, que proclamava a igualdade e dignidade humana, foi apenas um pouco mais tarde, com a derrocada no Código de Bevilaqua1, que se passou a ter uma nova visão do direito.

De lá para cá, o ordenamento jurídico muito se modificou, e são notórias as intenções do legislador em constitucionalizar os ditames da sociedade, contudo, a dignidade não tem sido reconhecida para todos os tipos de família, isso porque, até os dias atuais, permanece como obrigatória a separação de bens para os nubentes que, possuindo mais de 70 anos, desejem se unir em matrimônio.

Dessa maneira, ainda que nós entendamos, na mesma linha que a doutrina majoritária, que a aplicação da regra ao casamento é descabida, quando se trata da aplicação extensiva dessa restrição ao casamento, tem-se um cenário ainda mais nebuloso.

Esta pesquisa buscou, em suma, analisar se a aplicação extensiva da obrigatoriedade do regime de bens nas condições do artigo 1641, inciso II, do Código Civil à união estável reveste-se ou não de inconstitucionalidade. Como hipótese ao questionamento proposto, optamos pela sua inconstitucionalidade, uma vez que uma imposição de igual monta vai ao encontro aos valores fundamentais da República e fere a liberdade de escolha garantida aos idosos, em especial pela disposição constitucional que veda todas as formas de discriminação.

A presente hipótese se confirmou, de modo que para estes autores não há como reputar compatível com o ordenamento jurídico vigente uma restrição de tal ordem, claramente preconceituosa.

Contudo, conforme já posto, o tema será, em breve, objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal e, dessa forma, espera-se que o guardião da Carta Magna repute inconstitucional ao inciso II do artigo 1641 do Código Civil, impedindo que se continue a fazer interpretações extensivas que restrinjam a liberdade de expressão da pessoa idosa.

(In) Constitutionality of the extensive application of the mandatory separation of assets to the stable union for people over 70 years old

ABSTRACT

The country’s civil law provides that, if one of the spouses is over 70 years of age, the adoption of mandatory separation of property is mandatory. Although this rule is expressly provided for marriage, an extensive application has been made in order to apply it to the stable union. In this context, this article aims to discuss the (in) constitutionality of the extensive application of the mandatory separation regime to the stable union.

Keywords: Constitutional values. Marriage. Stable union. Elderly, Property regime.

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Altera a redação do inciso II do art. 1.641 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para aumentar para 70 (setenta) anos a idade a partir da qual se torna obrigatório o regime da separação de bens no casamento. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12344.htm. Acesso em: 04 nov. de 2022.

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1 Forma pela qual é conhecido o Código Civil de 1916, em homenagem ao jurista Clóvis Bevilaqua, responsável pela elaboração de seu projeto. A norma detinha caráter essencialmente individualista e conservador.


1 Acadêmica do décimo período do Curso de Direito da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Alto São Francisco (FASF).

2 Acadêmica do décimo período do Curso de Direito da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Alto São Francisco (FASF).

3 Acadêmico do décimo período do Curso de Direito da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Alto São Francisco (FASF).