IMUNIZAÇÃO CONTRA A COVID-19 À LUZ DA ABORDAGEM DO DIREITO E POLÍTICA PÚBLICA: COORDENAÇÃO E COMPLEXIDADE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202409081455


Carolina Loureiro de Alves Pereira


Resumo

O presente artigo aplica a abordagem metodológica do Direito e Política Pública ao estudo do caso da imunização contra a Covid-19 no Brasil, durante a pandemia do coronavírus, no início desta década. Abordam-se os conceitos de política pública, coordenação e complexidade ao contexto da vacinação, que demandou – mais do que nunca – a articulação de diversos atores políticos – agentes governamentais e não governamentais –, no exercício das competências constitucionais e legais relativas ao Sistema Único de Saúde.

Palavras-chave: PANDEMIA. IMUNIZAÇÃO. DIREITO. POLÍTICA PÚBLICA. COORDENAÇÃO. COMPLEXIDADE.

Política pública consiste em uma ação governamental coordenada e em escala ampla, direcionada à solução ou mitigação de problemas complexos, a partir de uma estratégia informada por elementos jurídicos e não jurídicos (BUCCI, 2019, p. 792). Embora essa não seja a única definição possível (MARQUES, 2013, p. 24), ela é suficiente para o escopo do presente artigo, na medida em que ilumina duas características das políticas públicas: coordenação e complexidade.

Com o advento da pandemia da Covid-19, muito se discutiu sobre a complexidade dos problemas dela decorrentes e a melhor forma de coordenar as ações governamentais para o seu enfrentamento. Nesse cenário quase apocalíptico, o S.U.S. despontou-se como solução e parte do problema. Enquanto política pública distributiva institucionalizada pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), graças à sua universalidade e gratuidade, muitos brasileiros puderam ter acesso ao tratamento médico contra a doença. Contudo, a falta de investimentos na ampliação e no aperfeiçoamento do S.U.S. contribuíram para o colapso do sistema em alguns Estados e Municípios.

Ao S.U.S., compete, dentre outras atribuições, “controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos”, assim como “executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador” (art. 200, I e II, da CF/88). Ou seja, nele se insere o Programa Nacional de Imunizações, instituído pela Lei nº. 6.259/75, no qual se incluem, por sua vez, as medidas de imunização contra o coronavírus.

No tocante à vacinação contra a Covid-19, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi instado a se manifestar, em especial, acerca da atuação coordenada de Estados e Municípios, bem como de seu caráter compulsório. Os acórdãos proferidos nos julgamentos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº. 6.586/DF e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 770 revelam elementos importantes a toda política pública, mas que ganham ainda mais relevância em meio a uma pandemia sem precedentes. É o que se passa a demonstrar.

Como cediço, as políticas públicas se assentam sobre elementos jurídicos, razão pela qual a literatura especializada propõe a abordagem Direito e Política Pública, com metodologia própria. Em outras palavras, devem ser considerados, como elementos de uma análise sistemática de políticas públicas, a base normativa e o desenho jurídico-institucional (BUCCI, 2019).

Pois bem, é dever irrenunciável do Estado Brasileiro zelar pela saúde de todos aqueles sob a sua jurisdição, o que se consubstancia, no plano objetivo e institucional, pelo S.U.S., concebido como rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços públicos, qualificada pela descentralização, pelo atendimento integral e pela participação da comunidade em sua gestão e controle (art. 198, I, II e III, da CF/88). Trata-se de sistema compatível com o federalismo cooperativo, adotado pelo constituinte de 1988, dada a previsão de competências federativas materiais e legislativas entrecruzadas com proeminência no espectro da saúde (arts. 23, II, e 24, XII, ambos da CF/88).

Esse compartilhamento de competências entre os entes federados, por um lado, não exime a União de exercer a coordenação geral dessa atuação conjunta, sobretudo, por meio do planejamento e da promoção da defesa permanente contra calamidades públicas, tal como prevê o art. 21, XVIII, da CF/88. Por outro lado, a coordenação promovida pela União não deve inibir ou subjugar a atuação coordenada de Estados e Municípios, sob pena de vilipendiar a autonomia federativa dos entes subnacionais, consagrada pelo caput do art. 18 da CF/88.

Ocorre que, na prática, o exercício compartilhado dessas competências cria certas disfunções que podem comprometer a implementação efetiva de políticas públicas. No caso do Covid-19, as medidas de enfrentamento, dentre as quais, o programa de vacinação, foram atardadas e prejudicadas pela falta de diálogo político entre os diferentes agentes governamentais. Não à toa, a maior parte das decisões proferidas pelo Supremo sobre a pandemia tangenciam, em algum grau, o reforço da necessidade de coordenação federativa quanto à formulação e implementação de políticas públicas de saúde.

Aqui, o desenho jurídico-institucional da política pública influi diretamente nos conflitos políticos, tal como Michel Löwy, precursor do neoinstitucionalismo, já descrevia. Vale anotar que o neoconstitucionalismo histórico, perspectiva teórica com influência mais recente sobre o debate brasileiro, explora de modo intenso a relação entre o federalismo e políticas públicas, o que se quer modestamente aqui demonstrar (MARQUES, 2013, pp. 30 e 39).

Retomando os acórdãos do STF, a Corte conferiu interpretação conforme a Constituição ao art. 3º, III, “d”, da Lei nº. 13.979/2020, considerando que vacinação compulsória não é sinônimo de forçada. Aquela exige sempre o consentimento do usuário, muito embora admita o emprego de medidas coercitivas indiretas que visem à vacinação de rebanho e, com isso, a redução efetiva do número de casos graves de infecção. Para a fixação de tais medidas, foram estipuladas algumas condições, dentre elas, ter por base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes.

Nota-se que, no ciclo de política pública, o Supremo e o Judiciário de um modo geral costumam estar atrelados à fase de controle. Apesar de sua importância metodológica, é preciso reconhecer, no entanto, que o ciclo consiste em uma simplificação didática, que nem sempre guarda correlação com a realidade. Por isso, é possível – e até comum – que as fases se sobreponham no mundo dos fatos, tal como ocorre quando uma decisão judicial molda a formulação e a implementação da política pública, com a previsão, por exemplo, de determinados critérios e condições de validade.

Não é a primeira vez que o Supremo faz referência a evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, como condição de validade para a formulação e a implementação de políticas públicas, em especial, às voltadas ao enfrentamento da pandemia. Além de podermos dizer que a atuação estatal se legitima também pela ciência e pela tecnocracia, trata-se de uma forma de assegurar um mínimo de racionalidade, previsibilidade e efetividade à política pública, mormente na seara da saúde.

Nesse sentido, destaca-se o papel de agentes não governamentais na formulação, implementação e avaliação dessas políticas. Sobre o papel particular das comunidades epistêmicas, o autor Ernst Haas aponta que a complexidade crescente das questões que são objeto de políticas públicas demanda conhecimentos e informações especializados, motivo pelo qual comunidades de especialistas são chamadas para fornecer esse conhecimento, acabando por institucionalizar participação e poder (MARQUES, 2013, p. 42).

Em conclusão, o presente artigo buscou trazer uma breve análise, sob a abordagem do Direito e Política Pública, das medidas de imunização contra a Covid-19. Para tanto, alguns de seus principais elementos foram destacados à luz de precedentes recentes da Suprema Corte, para demonstrar, inclusive, como a coordenação estatal e a complexidade integram o conceito de política pública não só na teoria, mas também na prática, sobretudo jurídica, sendo determinantes para a efetividade de sua implementação.

Referências bibliográficas

BUCCI, Maria Paula Dallari. Método e aplicações da abordagem Direito e Políticas Públicas. Revista Estudos Institucionais, v. 5, n. 3, pp. 791-832, set./dez. 2019.

MARQUES, Eduardo. As políticas públicas na Ciência Política. In: A política pública como campo multidisciplinar. Eduardo Marques e Carlos Aurélio Pimenta de Faria [Orgs.], São Paulo, Rio de Janeiro: Ed. Unesp e Ed. Fiocruz, 2013, pp. 23-46.