REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7111984
Autor:
Jorge Bernardo Oliveira da Silva1
1Pós-Graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS, Pós-Graduado em Direito Público pela PUC/MG, Bacharel em Direito pela UnB.
1.INTRODUÇÃO
A responsabilidade dos agentes públicos constitui elemento central do Estado Democrático de Direito, na medida em que as esferas de controle social, judicial e política podem prevenir, reprimir e exigir a reparação pela malversação do interesse público.
Atentos ao preceito ontológico de servir e à exigência democrática de prestação de contas, os constituintes estabeleceram no art. 37, §4º, da Constituição da República, a previsão de sanções aos agentes públicos que praticarem atos de improbidade administrativa, posteriormente, regulamentadas pela Lei 8.429/92.
Além de dispor sobre a responsabilização pelos atos de improbidade administrativa, a Constituição da República prevê hipóteses de apuração de crime de responsabilidade, cuja regulamentação consta no Decreto-Lei 201/67, para Prefeitos e Vereadores, e na Lei 1.079/50, para Presidente da República, Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal, Procurador Geral da República, Governadores e Secretários de Estado.
Nesse contexto, a responsabilidade dos agentes políticos sobressai diante da responsabilidade dos demais agentes públicos, pois àqueles o poder de administrar, legislar ou julgar foi investido diretamente pela Constituição da República e, por sua natureza, comporta escopo ampliado na condução do país, merecendo a apuração de sua responsabilidade político-administrativa (crime de responsabilidade) e de sua responsabilidade civil-administrativa (improbidade administrativa).
Ademais, em decorrência do princípio da independência de instâncias, os agentes públicos podem responder de forma concorrente a ações civis, administrativas e penais. Sendo certo que a Constituição restringiu a prerrogativa
especial de foro às infrações penais, prevalece o entendimento de que ações populares e ações civis públicas devem ser ajuizadas na primeira instância.
Em que pese a inegável superação de privilégios outrora estabelecidos em favor dos altos cargos públicos, permanece no âmbito jurisprudencial uma exceção peculiar na fixação da competência para a ação de improbidade administrativa: Ministros do Supremo Tribunal Federal não devem ser processados e julgados por magistrado de primeira instância em ação de improbidade administrativa. Conforme se nota da ementa1 a seguir.
Questão de ordem. Ação civil pública. Ato de improbidade administrativa. Ministro do Supremo Tribunal Federal. Impossibilidade. Competência da Corte para processar e julgar seus membros apenas nas infrações penais comuns.
1. Compete ao Supremo Tribunal Federal julgar ação de improbidade contra seus membros.
2. Arquivamento da ação quanto ao Ministro da Suprema Corte e remessa dos autos ao Juízo de 1º grau de jurisdição no tocante aos demais.
Tal entendimento tem origem no acórdão de 13/03/2008 (PET 3211/DF QO), em que o STF analisou a competência para julgamento de ação civil pública ajuizada perante a 9ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal para apuração de irregularidades no provimento de cargos públicos na Advocacia Geral da União. No caso, constava entre os acusados, atual Ministro do STF, que na época dos fatos ocupava o cargo de Advogado Geral da União.
O Relator, Ministro Marco Aurélio, aduziu que a Constituição da República não prevê foro especial para o caso, não sendo admissível interpretação extensiva para o art. 102 da Constituição, de maneira a ampliar a competência do STF.
Abrindo a divergência, o Ministro Menezes Direito defendeu que, em decorrência da lógica que precede o sistema judiciário, não é possível um Ministro do STF ser julgado por juiz de primeira instância. Nesse sentido entenderam os demais Ministros que compunham o Plenário, em alguns casos, acrescentando outros argumentos que serão analisados no decorrer deste estudo.
A partir desse precedente, algumas questões surgem. Primeiro, acerca da abrangência da ratio decidendi: a vedação de julgamento por magistrado de instância inferior abarca Ministros de Tribunais Superiores e Desembargadores? Segundo, o julgamento originado na primeira instância comprometeria o sistema judiciário? Terceiro, o precedente em análise é coerente com as recentes decisões do STF sobre a apuração de atos de improbidade administrativa de agentes políticos?
Para o enfrentamento desses quesitos, serão analisados os votos do precedente paradigma (PET 3211/DF QO), teses firmadas em outros precedentes do STF e do STJ, bem como, serão confrontados argumentos de administrativistas, constitucionalistas e processualistas da doutrina de escol, dada a transversalidade do tema.
2. REVISÃO DA JURISPRUDÊNCIA
Para compreender as questões suscitadas serão abordadas duas viradas jurisprudenciais que orbitam o tema central do presente trabalho, a saber: a distinção entre improbidade administrativa e crime de responsabilidade; e a inaplicabilidade do foro por prerrogativa de função às ações de improbidade administrativa. A seguir, serão analisados os principais argumentos do precedente objeto deste estudo sob a perspectiva dos dois paradigmas mencionados.
Em relação ao primeiro ponto, insta observar que, por muito tempo, discutiuse a natureza jurídica do ato de improbidade e do crime de responsabilidade, revelando verdadeira confusão entre os institutos e a superada natureza criminal, que remonta às primeiras Constituições brasileiras.
Entendeu-se, no julgamento da Rcl 2138 DF2, que os agentes políticos se submetiam a regime especial de responsabilidade e, por isso, a eles não se aplicaria o regramento da Lei 8.429/92, sob pena de incorrer em bis in idem. Pois não se admitiria a concorrência de dois regimes de responsabilidade político-administrativa.
Contudo, posteriormente, notou-se que se tratam de institutos com natureza jurídica distinta. Enquanto a ação de improbidade administrativa tem natureza civil-
administrativa, o crime de responsabilidade tem natureza político-administrativa. Desta feita, no julgamento da Pet 3240 DF3, o STF concluiu que os agentes políticos se submetem ao duplo regime sancionatório4 nas situações em que o fato se amolda às hipóteses normativas de crime de responsabilidade e de ato de improbidade administrativa, excepcionando apenas o Presidente da República, que dispõe de regras específicas dispostas nos art. 85, V, e art. 86 da Constituição da República.
Compreendida a atual interpretação do STF, de aplicação do duplo regime sancionatório aos agentes políticos, um de julgamento político submetido ao órgão definido pela Constituição, conforme o cargo ocupado, e o outro de julgamento no âmbito do Poder Judiciário, mediante ação civil pública, proposta pelo Ministério Público competente, passa-se a análise da questão referente à fixação de competência e ao foro por prerrogativa de função.
Inicialmente, cumpre observar que o foro especial está intimamente ligado à natureza jurídica da infração, pois desde a sua origem, no Direito Romano, apenas se referiu à esfera criminal. Assim, durante o período em que o crime de responsabilidade e a ação de improbidade eram concebidas como de natureza criminal, coerente era a aplicação do foro especial.
Com o nítido objetivo de encerrar a discussão, mediante a positivação de foro especial nas ações de improbidade, recentemente, o legislador ordinário acrescentou, por meio da Lei 10.628/2002, o §2º ao art. 84 do Código de Processo Penal (CPP), dispondo que:
A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.
Contudo, instado por meio da ADI 2797, o STF5 declarou inconstitucional a referida reforma do Código de Processo Penal, sob o argumento de que a lei
ordinária não está autorizada a criar hipótese de foro por prerrogativa de função, quando a Constituição não estabeleceu o foro especial para as ações de improbidade administrativa. Em suma, o fundamento da declaração de inconstitucionalidade foi de natureza formal, não se adentrando na questão material, que à época estava pendente de julgamento na Rcl 2138, supramencionada.
Reconhecendo a possibilidade de aplicação da Lei 8.429/92 a agentes políticos, o STJ, no Resp 1.216.168 RS6, definiu que o Juízo de primeira instância não tem competência para aplicar sanção de perda de cargo em julgamento de ação de improbidade proposta contra Governador. O fundamento da decisão referendou que as hipóteses de perda de cargo de Governador estão definidas na Constituição da República e são atribuídas a julgamento perante o STJ (crimes comuns) ou perante Tribunal Especial (crimes de responsabilidade), de forma que não se admite que lei infraconstitucional (Lei 8.429/92) atribua a Juízo de primeira instância a competência para impor sanção de perda de cargo. No mesmo sentido, diversos precedentes do STJ indicaram que, apesar de não se estender o foro por prerrogativa de função às ações de improbidade administrativa, a aplicação de sanções deve respeitar o foro especial.
Colocando fim à discussão, o STF7 reconheceu, na Pet 3240 DF, que não há foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade, tendo em vista que sua natureza é civil, aduzindo, ainda, que:
(…) a fixação de competência para julgar a ação de improbidade no 1º grau de jurisdição, além de constituir fórmula mais republicana, é atenta às capacidades institucionais dos diferentes graus de jurisdição para a realização da instrução processual, de modo a promover maior eficiência no combate à corrupção e na proteção à moralidade administrativa.
Assim, além de os agentes políticos serem submetidos ao duplo regime sancionatório, as ações de improbidade serão processadas e julgadas no Juízo de primeira instância, com exceção do Presidente da República, que tem definido na
Constituição o Senado Federal como órgão julgador no caso de atos atentatórios contra a probidade na administração.
Entendeu-se que a ampliação da prerrogativa de foro às ações de improbidade, de fato, conduzia a uma espécie de imunidade. Como bem observou o Ministro Relator da Pet 3240, Luís Roberto Barroso, “jamais um Ministro de Estado foi condenado por crime de responsabilidade perante o STF” 8 e, na esfera criminal, desde a promulgação da Constituição de 1988 apenas 16 dos mais de 500 parlamentares investigados por crimes contra a Administração Pública foram condenados9.
Diante dessas mudanças jurisprudenciais, cabe analisar, doravante, se os fundamentos expostos no julgamento da Pet 3211 se sustentam, de maneira a admitir outra exceção para o processamento de ações de improbidade na primeira instância, em especial, aos magistrados de segunda instância e aos ministros dos Tribunais Superiores e do próprio STF.
A partir dos argumentos trazidos aos autos da Pet 3211 pelo Relator, Ministro Marco Aurélio10, é possível notar a coerência e a semelhança com a jurisprudência atual. O eminente Ministro, em seu voto, ressaltou que, mesmo diante da sanção de perda da função pública, a natureza da ação de improbidade é civil, não podendo ser compreendida como ação penal; asseverou a independência entre as instâncias civil, administrativa e penal; rememorou que a prerrogativa de foro se destina à esfera criminal e que se converteria em repugnante privilégio se fosse estendido à esfera civil; defendeu a constitucionalidade da Lei 8.429/99, com fundamento no art. 37, §4º, da Constituição, e propugnou que a sanção da perda da função pública constitui efeito da sentença condenatória em primeira instância (art. 92 do Código Penal); fez referência à taxatividade da competência deferida pela Constituição ao STF, o que impede a interpretação extensiva para incluir novo caso de competência originária, concluindo que compete à primeira instância processar e julgar Ministro do STF em ação de improbidade administrativa.
Apesar da visão republicana exposta pelo Ministro Marco Aurélio, tanto na Pet 3211, quanto na Rcl 2138, sua tese foi vencida no Tribunal Pleno do STF. O Ministro Menezes Direito, Relator para o Acórdão, afirmou que “distribuir competência ao Juiz de 1º grau para julgamento de Ministro da Suprema Corte quebraria (…) o sistema judiciário como um todo.”11
A Ministra Carmen Lúcia, o Ministro Eros Grau e a Ministra Ellen Gracie seguiram seu voto, assim como os demais Ministros, porém, estes acrescentaram algumas observações, a seguir expostas. O Ministro Ricardo Lewandowski12 asseverou que:
(…) não se coaduna com a sistemática adotada pela nossa Constituição o julgamento de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, para fim da perda de cargo, por juiz de primeiro grau.
O Ministro Carlos Britto iniciou seu voto distinguindo infração penal e crime de responsabilidade do ato de improbidade administrativa, revelando sua natureza sui generis. Entretanto, seguiu o voto do Ministro Menezes Direito sob fundamento que merece atenta análise. Inicialmente, observou que a Constituição não alberga hierarquia entre os membros do Poder Judiciário, tendo em vista que há autonomia funcional no exercício da magistratura. Assim, um Ministro ou um Desembargador, por exemplo, não são superiores hierárquicos de um Juiz de primeira instância. Por outro lado, referendando Hans Kelsen, o Ministro Carlos Britto observou que a jurisdição é escalonada e hierarquizada, fundamentando sua conclusão de que “(…) submeter um Ministro do Supremo à jurisdição de um juiz de Vara efetivamente subverte essa lógica de jurisdições subsuperpostas.”13
Entretanto, observa-se que esse constitui um bom argumento para fixar a competência recursal, mas de forma alguma justifica a competência originária, cuja previsão necessariamente deriva da Constituição. Dessa forma, o Ministro Carlos Britto enfrentou a questão constitucional, conferindo interpretação extensiva ao art. 102, I, b, da CR/88. Afirmou que o art. 52 da Constituição atribui ao Senado Federal a competência para julgar os Ministros do STF nos crimes de responsabilidade e que o art. 102 atribui ao próprio STF a competência para julgar seus membros nos crimes comuns. Segundo o Ministro, tais artigos visam apenas à distinção entre crime comum e crime de responsabilidade, sendo que a Constituição não precisou deixar expresso que quaisquer outras infrações devem ser apreciadas pelo STF.
Por fim, o Ministro Cesar Peluso reforçou a posição dos demais Ministros, defendendo que a perda de cargo de Ministro do STF apenas pode ser declarada pelo Senado Federal ou pelo próprio STF. Por isso seria inadmissível processamento de ação de improbidade contra membro do STF na primeira instância.
Quando comparado com o precedente mais recente, Pet 3240, o qual promoveu uma virada jurisprudencial, observa-se extrema similaridade entre os casos. Inclusive, neste último, houve expressa menção ao precedente ora analisado. Apesar de se reconhecer a inaplicabilidade do foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade, restou em aberto a questão da competência para julgamento de Ministro do STF. De fato, a divergência permanece, especialmente por se admitir “competência implícita”14 no texto constitucional, como ocorreu no caso da Pet 3211.
Insta ressaltar que o Ministro Relator da Pet 3240, Roberto Barroso15, em seu voto, delineou um sistema considerado por ele ideal, externando mais uma vez a controvérsia que persevera no tema:
(…) somente um número reduzido de autoridades conservaria o foro especial, como o Presidente da República e o Vice, os Presidentes do Senado, da Câmara e do STF, bem como o Procurador-Geral da República. Para os demais agentes públicos que hoje detêm foro por prerrogativa junto ao STF seria criada uma Vara Especializada em Brasília, no primeiro grau de jurisdição.
De maneira a ampliar a exceção criada na Pet 3211, o STJ16, fazendo referência a esse precedente do STF, consignou que compete ao STJ processar e julgar ação de improbidade ajuizada contra magistrado de 2ª instância de Tribunal Regional do Trabalho. Assim, em que pese a superação do paradigma de privilégio na apuração da improbidade administrativa de agentes políticos, ainda há resquícios dessa blindagem no âmbito do Poder Judiciário.
3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Segundo José Afonso da Silva, “a probidade administrativa é uma forma de moralidade administrativa”17. Para o autor18, o ato de improbidade constitui ato imoral que causa dano ao erário, admitindo a ação popular como remédio para a postulação da anulação do ato.
Contudo, diferentemente da ação popular, que visa à anulação ou a correção do ato viciado, a ação de improbidade possibilita a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário19. Dessa forma, enquanto a ação popular busca o retorno à legalidade, a ação de improbidade visa, além da reparação do dano, à sanção do agente público.
Devido à previsão da sanção de perda da função pública, há na jurisprudência e na doutrina divergência sobre a aplicação ou não do foro por prerrogativa de função na ação de improbidade ajuizada contra agente que ocupa cargo cuja destituição possua regramento na Constituição da República.
Nesse sentido, José dos Santos Carvalho Filho20 assevera que a sanção da perda de função pública se submete ao regime jurídico-político específico do cargo público, como ocorre com os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, Ministros do STF, membros dos Conselhos Nacionais do Ministério Público e de Justiça, Procurador Geral da República, Advogado Geral da União, Deputados Federais, Senadores da República, bem como Ministros de Estado e Comandantes da Marinha, da Aeronáutica e do Exército, nos crimes conexos com os do Presidente. Assim, o autor22 leciona que:
Embora não haja perfeita identidade entre atos de improbidade e crimes de responsabilidade, é de considerar-se que, em tais hipóteses, a Carta preferiu adotar regime de caráter mais político que jurídico, razão por que (sic), recorrendo-se a uma interpretação sistemática, não devem aquelas autoridades sujeitar-se à perda de função pública decretada pelo juiz singular.
Adicionalmente, Carvalho Filho21 aplica tal interpretação sistemática para os cargos vitalícios, incluindo magistrados, membros do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, justificando que as leis específicas das respectivas carreiras preveem que o procedimento judicial de perda de cargo seja iniciado no Tribunal a que estejam vinculados.
Insta ressaltar que o autor24 atribui a excepcionalidade supra apenas para a aplicação da sanção da perda da função pública, admitindo-se a propositura da ação de improbidade perante o Juízo de primeira instância para as demais sanções.
De maneira similar, Renato Brasileiro22 compreende que a evolução jurisprudencial tem indicado que a regra é o processamento da ação de improbidade na primeira instância, como ocorre com prefeitos e vereadores, permitindo-se estender a prerrogativa de foro por crime de responsabilidade aos atos de improbidade apenas em alguns casos.
Por outro lado, Adriano Andrade, Cleber Masson e Landolfo Andrade23 concebem interpretação mais restritiva, admitindo, na primeira instância, a aplicação da sanção de perda da função pública para os agentes públicos vitalícios (magistrados, membros dos Tribunais de Contas e do Ministério Público), desde que haja trânsito em julgado. Mas excepcionam, da mesma forma que Carvalho Filho, a aplicação da sanção de perda da função pública para os cargos de Presidente da República, Deputados Federais, Senadores e Deputados Estaduais aos respectivos órgãos designados pela Constituição para apuração de crime de responsabilidade.
Interessante notar que, defendendo a criação de Tribunal Superior da Probidade Administrativa para a aplicação da lei de improbidade aos agentes políticos, Ferreira e Gill24 justificam a impossibilidade de aplicação da sanção de perda da função pública por juiz de primeira instância, considerando que:
(…) a pena de perda do cargo político não deve ser aplicada pelo juiz de primeira instância, porque se trata de cargo estruturante à organização do Estado, logo, configuraria incompatibilização da lógica do sistema e fator de desestabilização político-institucional, para a qual a lei de improbidade não é vocacionada.
Em que pese não adotar posicionamento peremptório sobre a questão ora debatida, Luciano Rolim25 problematiza a adoção de foro especial para a aplicação da pena de perda da função de cargo de Ministro do STF por ato de improbidade, relevando que o processamento no Juízo de primeira instância privilegiaria o devido processo legal, a imparcialidade e a instrução processual, de outro lado, o processamento da ação de improbidade no âmbito interno do STF privilegiaria o julgamento político.
Ao analisar a jurisprudência do STF e do STJ, Márcio Cavalcante26 conclui que é atribuição do Juízo de primeira instância o processamento e julgamento das ações de improbidade, com exceção apenas do Presidente da República e dos Ministros do STF, que devem ser julgados perante o Senado Federal e perante o STF, respectivamente.
4. POSICIONAMENTO CRÍTICO FUNDAMENTADO:
Em decorrência dos princípios republicano e democrático, não se admite a criação de castas no serviço público capazes de imunizar o efetivo combate à improbidade, sob pena de minar a tutela da moralidade administrativa.
Nesse sentido, verificou-se que na doutrina e na jurisprudência predomina o entendimento de que, em regra, o processamento e julgamento dos agentes políticos ocorre como o dos demais agentes públicos, iniciando-se na primeira instância.
Contudo, persiste a divergência em relação a algumas exceções, que mereceram a atenção do presente estudo, cujo ponto de partida residiu no precedente do STF, a Pet 3211/DF.
O referido precedente atribuiu ao STF a competência para julgar seus próprios ministros em ações de improbidade, que, posteriormente teve escopo ampliado pelo STJ, na Rcl 4927, atribuindo foro especial nas ações de improbidade aos magistrados de 2ª instância, que são julgados perante o STJ.
Dessa forma, responde-se a primeira pergunta formulada no início desta pesquisa, indicando que a jurisprudência, a partir da ratio decidendi da Pet 3211, ampliou para diversos cargos do Poder Judiciário a vedação do julgamento da ação de improbidade por magistrado de primeira instância.
Conforme discutido, tal entendimento não foi superado pelo novo paradigma, encampado no julgamento da Rcl 3240, que obiter dictum admitiu existirem casos de competência implícita na Constituição, compreendendo que a sanção da perda do cargo é de extrema gravidade e apenas poderia ocorrer perante os órgão definidos na Constituição, sob pena de comprometer o sistema judiciário.
Entretanto, respondendo à segunda pergunta proposta incialmente, esse argumento não deve prosperar diante dos princípios republicano e democrático que exigem a prestação de contas dos agentes políticos e do princípio da isonomia que não admite privilégios tendentes a imunizar determinada categoria de agentes públicos.
Em verdade, a submissão de Desembargadores e Ministros do STJ e do STF ao julgamento de ação de improbidade iniciado perante a primeira instância reforça a integridade do sistema judiciário, pois assim se reconhece a imparcialidade, a isonomia e a devida aplicação do direito. De outra forma, afirmar que o juízo de primeira instância não poderia apreciar as denúncias contra atos de improbidade de magistrados alçados a graus jurisdicionais superiores constitui flagrante descrédito ao sistema judiciário brasileiro.
É fato inconteste que o STF não possui capacidade de processamento, comprometendo a qualidade da instrução processual e a efetividade do julgamento.
Conforme lembrado pelo Ministro Barroso27 na Rcl 3240, não houve no STF sequer uma condenação de Ministro de Estado por crime de responsabilidade e existiram pouquíssimas condenações por crimes contra administração pública.
Ademais, já adentrando na terceira pergunta disposta introdutoriamente, esse modelo de julgamento pelos seus pares remonta uma atmosfera aristocrática, sendo incoerente com a natureza jurídica da ação de improbidade (civil-administrativa).
O entendimento mais escorreito foi apresentado pelo Ministro Marco Aurélio, vencido na Pet 3211, que atribuiu aos magistrados de primeira instância a competência para julgar Ministros do STF nas ações de improbidade.
Ressalta-se, que o raciocínio esposado pelo Ministro Marco Aurélio é coerente com as decisões recentes do STF, pois o próprio STF vem aplicando interpretação restritiva para limitar a abrangência do foro por prerrogativa de função, inclusive nas ações penais.
Noutro giro, admitir competências implícitas na Constituição para julgamentos de natureza civil-administrativa atenta contra a moralidade administrativa, a democracia, a República e a Constituição.
Não é razoável justificar que cargos estruturantes do Estado mereceriam salvaguarda para ações de improbidade, sob pena de desestabilizar as instituições. Primeiro, porque o julgamento perante a primeira instância do Poder Judiciário fornece todas as garantias do devido processo legal, incluindo contraditório, ampla defesa e imparcialidade. Segundo, porque a prestação de contas deve ocorrer perante o povo, nos termos da Constituição, exigindo-se a interpretação que confira a maior efetividade à Constituição, de forma a garantir um julgamento imparcial, afastando qualquer possibilidade de julgamento político em ação de improbidade.
Desta feita, conclui-se que a interpretação mais republicana e democrática da Constituição exige que a ação de improbidade atinja igualmente todos os agentes públicos, especialmente os agentes políticos, incluindo magistrados de todas as instâncias, ministros, deputados, senadores, governadores e tantos outros, que merecem o processamento da ação judicial iniciada na primeira instância, com todas as garantias do devido processo legal para o agente e, para a sociedade, a certeza da efetiva análise jurídica, e não política, do fato denunciado.
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2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 2138 DF. Relator: Min. Nelson Jobim, Relator para o Acórdão: Min. Gilmar Mendes. Brasília, 13 jun. 2007. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2044010 >. Acesso em 13 abr. 2019.
3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet 3240 DF AgR, Relator: Min. Teori Zavascki, Relator para o Acórdão: Min. Roberto Barroso. Brasília, 10 mai. 2018. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748003291>. Acesso em 16 abr. 2019.
4 No mesmo sentido, a 1ª Tuma do STJ no AgRg no REsp 1099900/MG, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 16 nov. 2010.
5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2797 DF. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence. Brasília 15 set. 2005. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2082833>. Acesso em 13 abr. 2019.
6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp 1.216.168 RS. Relator: Ministro Humberto Martins. Brasília, 17 dez. 2010. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPes quisaGenerica&num_registro=201001893049>. Acesso em 13 abr. 2019.
7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet 3240 DF AgR, Relator: Min. Teori Zavascki, Relator para o Acórdão: Min. Roberto Barroso. Brasília, 10 mai. 2018. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748003291>. Acesso em 16 abr. 2019.
8 Idem.
9 Idem.
10 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet. 3211-0 DF QO. Relator: Ministro Marco Aurélio. Relator para o Acórdão: Ministro Menezes Direito. Brasília, 13 mar. 2008. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=535803>. Acesso em 12 abr. 2019.
11 Idem.
12 Idem.
13 Idem.
14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet 3240 DF AgR, Relator: Min. Teori Zavascki, Relator para o Acórdão: Min. Roberto Barroso. Brasília, 10 mai. 2018. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748003291>. Acesso em 16 abr. 2019.
15 Idem.
16 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Rcl 4927 (2010/0194991-0). Relator: Ministro Felix Fischer. Brasília, 22 mar. 2011. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/monocraticas/decisoes/?num_registro=201001949910&dt_publicacao =22/03/2011>. Acesso em 18 abr. 2019.
17 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. ed. 38. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 680.
18 Idem.
19 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988, art. 37, §4º.
20 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. ed. 28. São Paulo: Atlas, 2015, p. 1136-1137. 22 Idem.
21 Idem. 24 Idem.
22 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. v.único. ed. 6. Salvador: Juspodivum, 2018, p. 493.
23 ANDRADE, Adriano; MASSON, Cleber; ANDRADE, Landolfo. Interesses difusos e coletivos. v1. ed. 8. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2018, p. 891-893.
24 FERREIRA, Allan Martins; GILL, Pedro Fonseca. Improbidade administrativa e o foro privilegiado: ofensa constitucional. Revista Esmat. Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. Palmas, v. 1. n. 1. p. 27-53. 2009. Disponível em: <http://esmat.tjto.jus.br/publicacoes/index.php/revista_esmat/article/view/173/162>. Acesso em 18 abr. 2019.
25 ROLIM, Luciano. Limitações constitucionais intangíveis ao foro privilegiado. Revista Eletrônica PRPE, 2005, p. 25.
26 CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Vade mecum de jurisprudência dizer o direito. ed. 4. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 216.
27 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Pet 3240 DF AgR, Relator: Min. Teori Zavascki, Relator para o
Acórdão: Min. Roberto Barroso. Brasília, 10 mai. 2018. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748003291>. Acesso em 16 abr. 2019.