REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202509151247
Marcio Silva Donha1
Resumo
A apicultura é uma importante atividade produtiva em assentamentos rurais, proporcionando geração de renda de forma sustentável. No entanto, seu desenvolvimento está sujeito a diversos desafios, entre eles a interação com o tatu-canastra. Prejuízos causados pela espécie podem promover conflitos que podem levar pessoas a adotar atitudes de retaliação, aumentando a vulnerabilidade da espécie. O presente artigo tem o objetivo de compreender os impactos do tatu-canastra sobre a apicultura nos assentamentos Mutum e Avaré, identificar estratégias de mitigação já utilizadas e levantar sugestões que favoreçam a convivência entre conservação e produção. Os resultados mostram que é possível transformar esse cenário de conflito por meio de soluções sustentáveis que conciliem produção e conservação. Valorizar a apicultura como atividade econômica e ambientalmente responsável exige um compromisso real com a realidade dos produtores rurais e com a conservação da biodiversidade.
Palavras-chave: Apicultura sustentável; Conflitos fauna-humana; Medidas mitigatórias; Conservação da biodiversidade; Priodontes maximus.
Introdução
A apicultura é uma importante atividade produtiva em assentamentos rurais, proporcionando geração de renda, inclusão social e estimulo à conservação ambiental. No entanto, seu desenvolvimento está sujeito a diversos desafios, entre eles a interação com a fauna silvestre.
O tatu-canastra (Priodontes maximus), maior representante da ordem Cingulata, pode atingir até 60 kg e apresenta hábitos noturnos, solitários e escavadores. É uma espécie especializada na alimentação de invertebrados, como cupins e formigas (Desbiez & Attias 2021). Contudo, em áreas com apiários, foi observado que o animal também é atraído pelo cheiro das larvas de abelha, destruindo caixas na tentativa de acesso ao alimento (Catapani et al. 2021).
Além de sua força e comportamento escavador, uma característica importante do tatu-canastra é sua reprodução lenta (Desbiez & Aƫas 2021). As fêmeas costumam ter apenas um filhote por gestação, que dura cerca de 120 dias (cercam de 4 meses). e atingem a maturidade sexual somente aos 8 ou 9 anos de idade. Essa baixa taxa reprodutiva torna a recuperação populacional extremamente lenta em caso de perdas, reforçando a necessidade de estratégias de conservação (Desbiez & Attias 2021).
Ecologicamente, o tatu-canastra desempenha um papel fundamental no ecossistema. Suas escavações promovem a criação de micro-habitats utilizados por diversas espécies, sendo considerado uma espécie engenheira do ecossistema, essencial para a manutenção da biodiversidade (Desbiez & Kluyber 2013).
Estudos desenvolvidos pelo Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS) mostram que 73% dos apiários inventariados no Mato Grosso do Sul tiveram danos causados por tatus canastra em um período de 5 anos e 46% em apenas um ano (Desbiez et al. 2020). O ICAS iniciou suas pesquisas com a espécie nos anos 2000, com o objetivo de compreender sua ecologia, ameaças e promover sua conservação, utilizando tecnologias como telemetria, armadilhas fotográficas e coleta de dados em campo.
O problema ocorre porque os apicultores instalam suas colmeias em áreas de vegetação nativa, que também são habitat essencial para os tatus-canastra. Com o avanço do desmatamento e a redução da oferta natural de alimento, o tatu tem recorrido às colmeias, causando prejuízos significativos à produção de mel e derivados. Esses impactos podem promover conflitos entre pessoas e fauna silvestre, levando à retaliação e aumentando a vulnerabilidade da espécie.
Diante da recorrência dos conflitos, o ICAS identificou a necessidade de criação do Projeto Canastras e Colmeias em 2015, inicialmente como complemento de uma pesquisa para mapear a ocorrência do tatu-canastra no Cerrado de Mato Grosso do Sul.
O presente artigo tem como objetivo compreender os impactos do tatu-canastra sobre a apicultura nos assentamentos Mutum e Avaré, identificar estratégias de mitigação já utilizadas e levantar sugestões que favoreçam a convivência entre conservação e produção.
Metodologia
Através do uso de questionários e entrevistas semiestruturadas (Castro & Oliveira 2022), foram coletadas informações sobre os apicultores e suas atividades profissionais, além de evidências sobre a interação entre eles e o tatu-canastra, em busca de uma convivência pacífica entre ambos.
Resultados e Discussão
1. Perfil dos Apicultores e Contexto Local
Foram entrevistados dez apicultores entre setembro de 2024 e julho de 2025 nos assentamentos Mutum e Avaré, em Ribas do Rio Pardo/MS, sendo nove homens e uma mulher. Todos os entrevistados são pequenos apicultores, possuindo em média 10 caixas cada. Observou-se que todos possuem outra fonte de renda além da apicultura, o que demonstra que a atividade ainda não é suficiente para garantir o sustento familiar, seja pela baixa escala produtiva ou pelas perdas recorrentes ocasionadas por diferentes fatores, principalmente pelos ataques do tatu-canastra.
Outro aspecto destacado foi a opção por manter os apiários em áreas privadas permanentes, próprias ou cedidas por terceiros. Os assentamentos Mutum e Avaré localizam-se a aproximadamente 84 km de Campo Grande/MS.
A Figura 1 – apresenta a localização dos assentamentos Mutum e Avaré no município de Ribas do Rio Pardo/MS.

2. Impactos do Tatu-Canastra Sobre a Apicultura
Dos apicultores entrevistados nos assentamentos Mutum e Avaré, quatro apontaram o tatu canastra como a principal causa de prejuízos nos apiários, mas todos já tiveram algum nível de prejuízo causado pela espécie. Os relatos variam desde perdas pontuais até a destruição de 75 colmeias em um único episódio. Além da perda material, os ataques causam desmotivação, descontinuidade da atividade e impacto econômico considerável, especialmente em contextos de baixa escala produtiva.
Essas perdas se agravam pela dificuldade de obtenção de recursos para reposição das caixas destruídas e pela ausência de apoio técnico contínuo. A recorrência dos ataques gera insegurança produtiva, o que contribui para que nenhum dos apicultores da região possa contar exclusivamente com a apicultura como fonte de renda. Ressalta-se ainda que quatro dos dez apicultores entrevistados relataram já ter visto o tatu-canastra durante suas atividades no campo, reforçando a proximidade da espécie com os apiários locais.
O Gráfico 01 representa a quantidade de apicultores dos assentamentos Mutum e Avaré que adotam medidas mitigatórias contra os ataques de tatu-canastra. Dos dez apicultores entrevistados entre setembro de 2024 e julho de 2025, sete afirmaram utilizar algum tipo de proteção, como cavaletes ou estruturas elevadas. Três apicultores, no entanto, ainda não adotam nenhuma medida.
Grafico 01 – Quantidade de apicultores que adotavam medidas mitigatórias para os ataques de tatu canastra no momento das entrevistas.

3. Medidas de Mitigação Empregadas
Conforme observado, mesmo diante da gravidade dos prejuízos apenas 7 dos 10 apicultores entrevistados adotaram medidas mitigatórias. Entre as medidas mais utilizadas pelos apicultores, temos que o cavalete individual com 1,30m é a escolha da maioria.
Gráfico 2 – Medidas de mitigação adotadas pelos apicultores entrevistados.

Essas práticas mostram-se parcialmente eficazes, dificultando o acesso do tatu às colmeias, mas ainda são insuficientes para garantir proteção total, especialmente em áreas de maior presença do animal. A ausência de assistência técnica especializada e a falta de padronização nas estratégias dificultam a adoção de soluções mais eficazes. O uso de estruturas mais robustas, o reforço na fixação das colmeias e o monitoramento da fauna podem potencializar a segurança dos apiários.
4. Propostas para Convivência Sustentável
Considerando que o tatu-canastra é uma espécie legalmente protegida e de grande importância ecológica, a solução para os conflitos com a apicultura não está na exclusão do animal, mas na busca de estratégias integradas e sustentáveis de convivência. As principais propostas incluem:
- Guia de manejo prático: publicação com orientações acessíveis aos apicultores, apresentando medidas mitigatórias eficazes para evitar o acesso do tatu-canastra às colmeias. O guia destaca soluções como o uso de cavaletes elevados, cercas de contenção e a escolha adequada da localização dos apiários.
- Monitoramento da fauna: utilização de câmeras de armadilhas fotográficas para identificar os padrões de atividade do tatu-canastra nos apiários. Esses registros permitem entender o comportamento da fauna local e planejar ações preventivas com maior precisão.
- Capacitação técnica: realização de oficinas, palestras e treinamentos para apicultores e comunidades locais, abordando tanto técnicas de mitigação quanto informações sobre a importância ecológica do tatu-canastra e outras espécies do Cerrado.
- Incentivos à adoção de práticas sustentáveis: fornecimento de benefícios, como o Selo “Amigo do Tatu-Canastra” e acesso ao Programa Rainhas para apicultores que implementam medidas de manejo sustentável, fortalecendo o compromisso com a conservação.
- Apoio à estruturação dos apiários: oferta de materiais ou apoio técnico para a instalação de cavaletes, cercas ou outros equipamentos que protejam os apiários de forma eficaz, especialmente para pequenos produtores com recursos limitados.
- Estimulo à pesquisa e inovação: incentivo ao desenvolvimento de novas tecnologias e soluções adaptadas às diferentes realidades dos territórios, como sensores de presença, modelos de cercamento inteligente e alternativas sustentáveis de produção apícola.
Essas propostas visam construir um modelo de convivência onde a proteção da biodiversidade caminha lado a lado com o fortalecimento da apicultura, garantindo segurança produtiva aos apicultores e contribuindo para a preservação do tatu-canastra e de seu habitat natural.
Conclusão
A presença do tatu-canastra nos assentamentos Mutum e Avaré revela um paradoxo: ao mesmo tempo em que sinaliza a boa qualidade ambiental da região, impõe sérios desafios ao desenvolvimento da apicultura local. Os danos recorrentes às colmeias geram prejuízos materiais expressivos para os apicultores, especialmente diante da escassez de apoio técnico e da ausência de políticas públicas voltadas ao apoio da apicultura e à mitigação desse tipo de conflito.
Entretanto, é possível transformar esse cenário por meio de soluções sustentáveis que conciliem produção e conservação. A adoção de medidas, como a elevação das colmeias, o cercamento seletivo dos apiários e a capacitação técnica dos produtores, tem se mostrado eficaz na prevenção de ataques, ao mesmo tempo em que preserva o hábitat do tatu-canastra.
Valorizar a apicultura como atividade econômica e ambientalmente responsável exige um compromisso real com a realidade dos produtores rurais e com a conservação da biodiversidade. Neste contexto, a continuidade dos estudos e ações promovidos por instituições como o ICAS é essencial. Mais do que propor soluções pontuais, é preciso construir caminhos integrados que assegurem o fortalecimento da apicultura e a proteção de espécies ameaçadas em territórios onde a produção depende diretamente do equilíbrio ecológico.
Referências
O selo Amigo do Tatu-Canastra foi criado para reconhecer os apicultores que adotam práticas de manejo sustentável, capazes de proteger tanto as colmeias quanto o tatu-canastra. Os produtos (mel e derivados) desses apicultores recebem a certificação do selo, identificando que a produção ocorre em harmonia com a preservação ambiental. Fonte: https://www.icasconservation.org.br/projetos/canastras-e-colmeias/ (Acesso em 04 de setembro de 2025)
O Programa Rainhas foi desenvolvido para apoiar os apicultores que sofreram grandes perdas devido aos ataques do tatu-canastra. A iniciativa oferece abelhas rainha de linhagem selecionada e alta qualidade para os apicultores parceiros, possibilitando a recomposição dos enxames afetados e garantindo o retorno da produtividade nos apiários. Fonte: https://www.icasconservation.org.br/projetos/canastras-ecolmeias/ (Acesso em 04 de setembro de 2025)
Castro E, Oliveira UTV. A entrevista semiestruturada na pesquisa qualitativa-interpretativa: um guia de análise processual. Entretextos 22 (3): jul/dez, 2022
Catapani M, Morsello C, Oliveira B, Desbiez A (2021) Using a Conflict Framework Analysis to Help Beekeepers and Giant Armadillos (Priodontes maximus) Coexist. Frontiers in Conservation Science 2:. https://doi.org/10.3389/fcosc.2021.696435
Desbiez ALJ, Attias N (2021) The Imperiled Giant Armadillo: Ecology and Conservation. In: Reference Module in Earth Systems and Environmental Sciences. Elsevier, p B9780128211397002166
Desbiez ALJ, Kluyber D (2013) The Role of Giant Armadillos ( Priodontes maximus ) as Physical Ecosystem Engineers. Biotropica 45:537–540. https://doi.org/10.1111/btp.1205
Desbiez AL, Oliveira B, Labão Catapani M (2020) Bee careful! Conflict between beekeepers and giant armadillos (Priodontes maximus) and potential ways to coexist. Edentata: The Newsletter of the IUCN/SSC Anteater, Sloth and Armadillo Specialist Group 1–12. https://doi.org/10.2305/IUCN.CH.2020.Edentata-20- 1.2.en
Aluno de Pós-Graduação em Apicultura e Meliponicultura, Universidade de Taubaté (UNITAU), SP.