IDENTIDADE PROFISSIONAL DOCENTE: UMA CONSTRUÇÃO NARRATIVA AUTOBIOGRÁFICA

PROFESSIONAL TEACHING IDENTITY: AN AUTOBIOGRAPHICAL NARRATIVE CONSTRUCTION

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11445172


Leila Patrícia Alves Dantas¹;
Maria da Conceição Magalhães Batista Costa².


Resumo

Este trabalho insere-se no âmbito dos estudos da pesquisa qualitativa e lança o olhar para as narrativas autobiográficas como importante dispositivo metodológico de investigação na constituição da identidade profissional, durante o processo de formação docente, delimitando como objetivo discutir sobre a importância das narrativas (auto)biográficas escritas na construção da identidade profissional docente.   Fundamenta-se teoricamente nos pressupostos da Teoria Social de Identidade(s) como construção social fragmentada(s) e descentralizada(s) (Hall, 2006), as quais “não estão nos indivíduos, mas são construídas nas interações com as pessoas” (Moita-Lopes, 2002, p.47), por meio das narrativas de si (Ricoeur, 1997), inseridas nas relações de ordem intrapessoal, interpessoal e institucional, por isso, sempre em constantes mudanças. Nesse sentido, consideram-se as narrativas (auto)biográficas um eficaz instrumento de mediação na revelação das identidades, fruto de reflexões de vida dos próprios sujeitos, de acordo com Passegi (2013) e Josso (2010). A revisão aponta resultados relevantes do ponto de vista sociocultural e acadêmico-científico, evidenciando a constituição de uma identidade docente construída nas diversas esferas e contextos sociais, negociada com as experiências realizadas durante toda a trajetória de vida dos sujeitos, memórias e lembranças, em diferentes tempos-espaços.  Nesse sentido, as narrativas autobiográficas são consideradas importantes espaços de (re)configuração da (auto)imagem dos sujeitos e de (re)construção de suas identidades profissionais docentes.

Palavras-chave: Identidade Profissional Docente. Formação Inicial. Narrativas Autobiográficas.

Abstract

This work falls within the scope of qualitative research studies and looks at autobiographical narratives as an important methodological device for investigating the constitution of professional identity during the teacher training process, with the aim of discussing the importance of written (auto)biographical narratives in the construction of professional teacher identity.   It is theoretically based on the assumptions of the Social Theory of Identity(ies) as a fragmented and decentralized social construction (HALL, 2006), which “are not in individuals, but are constructed in interactions with people” (MOITA-LOPES, 2002, p.47), through self-narratives (RICOEUR, 1997), inserted in intrapersonal, interpersonal and institutional relationships, and therefore always in constant change. In this sense, (auto)biographical narratives are considered to be an effective mediation tool in revealing identities, the result of the subjects’ own life reflections, according to Passegi (2013), Josso (2010) and Warschauer (2017). The review points to relevant results from a sociocultural and academic-scientific point of view, highlighting the constitution of a teaching identity constructed in various social spheres and contexts, negotiated with experiences throughout the subjects’ lives, memories and recollections, in different times and spaces.  In this sense, autobiographical narratives are considered important spaces for (re)configuring subjects’ (self)images and (re)constructing their professional teaching identities.

Keywords: Professional Teacher Identity. Initial Training. Autobiographical Narratives.

1 INTRODUÇÃO

O envolvimento direto com o processo de formação inicial de graduandos em licenciaturas, por meio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – Pibid, despertou-nos o interesse em entendermos melhor como ocorre esse processo e em que momento os estudantes de graduação em licenciatura se reconhecem como futuros docentes. No entanto, o recorte dado a este estudo limitou-se a olhar para o método de investigação científica capaz de construir esse processo formativo, tanto teórico quanto metodologicamente.

Nesse caso, a própria vivência e experiência como docente nos reativaram memórias e histórias de vida que estiveram diretamente ligadas à construção de nossa identidade docente, o que nos fez compreender que as narrativas autobiográficas são fontes inesgotáveis de reflexões fundamentais para o desenvolvimento humano, em diferentes fases da vida, especialmente, na formação profissional.

Permitimo-nos, então, realizar uma revisão das principais fontes teórico-metodológicas que se debruçam sobre as narrativas autobiográficas, com o objetivo de discutir sobre a importância das narrativas (auto)biográficas escritas na constituição de identidade profissionais docentes.

Quanto à estrutura organizacional do trabalho, dividimo-lo em introdução, referencial teórico e considerações finais. Na introdução, mostramos a motivação para a realização do trabalho, objetivo e organização didática. Em seguida, na seção de aporte téorico, trouxemos um recorte dos principais nomes ligados às narrativas autobiográficas como método investigativo, buscando associar esse embasamento teórico-metodológico à categoria da identidade profissional docente. Por fim, realizamos uma breve discussão em torno dos achados teóricos e concluímos, destacando as lacunas e limitações do objeto de estudo que ora apresentamos.     

2 ABORDAGEM NARRATIVAAUTOBIOGRÁFICA (ESCRITA): MAIS DO QUE UM MÉTODO; UM APORTE TEÓRICO

Se as rodas de conversa, memorial de formação, grupos de reflexão e diários de acompanhamento proporcionaram momentos de interação, diálogo e partilha de experiências, nos quais os sujeitos revelam suas opiniões e refletem sobre suas ações, as narrativas autobiográficas escritas confirmaram todo esse processo, de maneira mais sistematizada. A narrativa escrita, segundo Josso (2010, p. 92), remete os sujeitos a um momento solitário, mas largamente habitado pelo diálogo com outras narrativas ouvidas e lidas, e da partilha com as aprendizagens ao longo de todas as fases da vida.

A narrativa autobiográfica escrita, à qual nos referimos, aparece sob a forma de relatos e, quase sempre é destinada a um propósito específico de investigação científica, constituindo-se

[…] como uma perspectiva fértil de investigação, permitindo romper com o antigo paradigma entre o cientista e o objeto estudado, e, do mesmo modo, capturar, compreender e interpretar experiências humanas, inscritas numa realidade subjetiva, no sentido daquele que escreve olhar para si, e intersubjetiva, na relação com o contexto (Souza; Meireles, 2018, p. 21 – grifos da autora).

Inserida no campo da pesquisa qualitativa, em meados do século XXI, “a escrita de si” surge como uma forte ferramenta ligada a questões de natureza ideológica. Ao escrever, o sujeito faz “surgir a materialidade dinâmica da palavra, constituindo suas experiências, memória e identidade”, conforme nos assegura Bolivar (2018, p. 14).

Lindner e Peres (2018, p. 77) afirmam que “o exercício de voltar para si mesmo conduz o sujeito a olhar para o que faz a diferença em sua vida”. De forma semelhante, lançando o olhar para a aborgadem narrativa autobiográfica e sua relação com a constituição da identidade docente, Josso (2010) também afirma que:

as práticas de reflexão sobre si, oferecidas pelos relatos de vida escritos, centrados na formação, apresentam-se como laboratórios de compreensão de nossa aprendizagem do ofício de viver um mundo em movimento, não controlado globalmente e, portanto, parcialmente controlável na escala das individualidades, que se desfaz incessantemente e que coloca em xeque a crença numa ‘identidade por vir’ em proveito de uma existencialidade incessantemente em operação e em construção (Josso, 2010, p. 81).

É nessa perspectiva que destacamos a narrativa autobiográfica escrita não somente como dispositivo de procedimento de coleta de dados, mas como um importante método de investigação científica no processo de formação e identidade docente.

Por acreditarmos que as identidades, ainda que apareçam reveladas numa concepção isolada, as construções feitas nas narrativas, sejam orais sejam escritas, são significados construídos e ancorados no coletivo e nas diversas esferas sociais nas quais os sujeitos estão inseridos.

No campo da investigação científica, a pesquisa cujo método utiliza as narrativas autobiográficas, atua, em grande parte, mas não exclusivamente, na educação e se estrutura em torno de dois eixos já consagrados. Um utiliza as fontes escritas como método de investigação; o outro recorre às narrativas como prática de formação e intervenção educativa (Passegi, 2011, p. 30). Em ambos os casos, a narrativa é empregada na produção de relevantes dados para a produção de conhecimento.  

Mota (2013, p. 50) corrobora essa mesma ideia, ao declarar que “a escrita de si se configura numa atividade autoformadora quando o autor toma consciência de suas vivências” e por meio dessa consciência, transforma essas vivências “em experiências existenciais que nos fornecem elementos para compreender as diversas etapas vividas como experiências de aprendizagem”. Essa nova tomada de consciência leva, na grande maioria das vezes, o sujeito (autor da narrativa) a conduzir “novos patamares de autonomia, no sentido de delinear projetos de transformação de si diante do que se propõe a ser”.

Nesse sentido, por meio das narrativas escritas autobiográficas que identificamos pistas, as quais “trazem reflexões relevantes sobre aspectos fundamentais do desenvolvimento humano, vivenciados em diferentes etapas da vida, cada uma delas com suas especificidades e desafios” (Passeggi; Vicenti; Souza, 2013, p. 18). Essas reflexões constituíram os dados sobre os quais o pesquisador debruça o seu olhar e a sua interpretação.

Diante das narrativas (auto)biográficas escritas, temos dados que revelam como a identidade profissional docente foi se construindo ao longo da vida, e não apenas durante a formação profissional, como costuma ser associada. Silva (2013, p. 83) vai além, afirmando que

[..] a oportunidade da escrita de memórias de si é muito mais do que apenas a revisitação em suas experiências escolares, de ensino e de docência; é a possibilidade de reinvenção de si no professor que está se construindo no curso de formação inicial […] ao narrarem sua própria história, os sujeitos procuram dar sentido às suas experiências e nesse percurso constroem uma representação de si, reinventam-se (Silva, 2013, p. 83).

Desse modo, a narrativa (auto)biográfica escrita funciona como importante dispositivo do método de pesquisa qualitativa que, aliado a demais procedimentos da abordagem interpretativa, permite-nos “visualizar nossos itinerários de vida, nossos investimentos e nossos objetivos” (Josso, 2010, p. 65). Assim, compreendemos a pluralidade e as diferenças que constituem as nossas identidades, a partir dos episódios que marcam(ram) nossa formação e nossa vida.         

2.1 IDENTIDADES E NARRATIVAS (AUTO)BIOGRÁFICAS: (RE)CONSTRUÇÕES FORMATIVAS

Se não há nada fora do texto, como afirma Derrida (2000), a palavra, oral ou escrita, é a principal forma de acesso aos fatos históricos, culturais, sociais, enfim, ao mundo, e as narrativas autobiográficas são extremamente relevantes para materializar as vivências, as experiências, as identidades que buscamos constituir ao longo de nossa vida. Mesmo diante das contradições, dos paradoxos e da incompletude dos textos (Derrida, 2000) e da linguagem, é por meio dela que o sujeito se inscreve no tempo e nos diferentes espaços, construindo suas identidades.

Essa “possibilidade abstrata de(se) dizer ‘eu’, ilusão de (se) definir como UM pela e na linguagem, de ser reconhecido e de legitimar sua existência”, ou a sua inexistência, e que “se faz pela narração ou relato (récíf) e, consequentemente, pela memória” (Coracini, 2007, p.51), é construída na relação com os outros, nas suas semelhanças e diferenças. Nesse sentido, não podemos pensar em uma identidade, mas identidades, que são (des)construídas a partir do olhar do outro sobre aquilo que dizemos (ou escrevemos).

Falamos em identidades porque consideramos, como Hall (2006), Bauman (2005), Dubar (2009, 2020) e outros estudiosos, que elas não são fixas. Elas mudam dependendo do contexto sociocultural, dos papéis e eventos sociais. Desse modo, os sujeitos, como agentes de transformação social, constroem as suas identidades de acordo com os contextos em que se encontram e as funções sociais que assumem; e o fazem por meio de suas histórias, a partir de suas experiências.

A questão da identidade, no entanto, não é demarcada de forma tão simples assim. Por ser formulada a partir de diferentes olhares, que vêm de diversas áreas do conhecimento, como a Psicologia, a Antropologia, Filosofia e Sociologia, por exemplo, é “equívoca”, como pontua Ricoeur (1990), e complexa, haja vista a sua associação a vários termos, que não a traduzem literalmente, como subjetividade, personalidade, individualidade, pertencimento, alteridade, socialização, entre outros.   

Seja do ponto de vista filosófico, antropológico, psicológico ou sociológico, o estudo sobre a identidade dos sujeitos passa por diferentes abordagens, as quais vão desde a noção de identidade marcada pela unicidade e individualidade à pluralidade do ser, constituída social, histórica e culturalmente, por instituições e memórias individuais e coletivas (Castells, 2008).

Nesse sentido, com o intuito de construir uma abordagem teórica delimitada, mas interdisciplinar, buscamos elementos das diversas vertentes no que diz respeito à identidade do sujeito, recortando da perspectiva filosófica as noções de agente, tempo e ação, para a construção de uma identidade narrativa (Ricoeur, 1997) e da perspectiva sociológica, a construção de identidade(s) a partir das diferenças, enquanto construção linguística, social e histórica (Hall, 2000; 2006), resultado de sucessivas socializações (Dubar, 2020), fluidas e sempre em movimento (Bauman, 2005).

Hall (2006) destaca, nesse contexto, o caráter de mudança pelo qual tem passado a concepção de identidade, ao longo dos tempos, e destaca três: a primeira delas, que associa a identidade a um sujeito do Iluminismo; a segunda, ligada a um sujeito sociológico, e a terceira concepção, voltada para a construção da identidade de um sujeito pós-moderno.

A ideia de pessoa como um indivíduo totalmente centrado e unificado, que marca o período iluminista, cede espaço, no novo (agora já antigo) contexto social moderno, às discussões em torno de um sujeito que constrói a sua identidade não de forma autônoma e individual, mas na relação com as outras pessoas ao seu redor, na interação entre o “eu” e a sociedade (Hall, 2006, p. 11), alinhando-se aos anseios de um novo sujeito sociológico. 

A construção de identidade desse novo sujeito sociológico, entretanto, não preenche as lacunas do mundo pós-moderno. É necessário partir do ponto de vista de um sujeito com diferentes identidades, em diferentes momentos, as quais são formadas e transformadas continuamente em torno de um “eu”, nem sempre, coerente. É partindo, portanto, dessa noção de sujeito sempre em construção, aliada a outros aspectos importantes trazidos por Bauman (2005) e Dubar (2009; 2020), por exemplo, que direcionamos as discussões teóricas a seguir.

Bauman (2005) situa-se no contexto da modernidade, melhor dizendo, da pós-modernidade, para trazer à tona a concepção de identidade como uma construção líquida e fluida, de constantes mudanças. Segundo o autor, acompanha o cerne da questão das identidades o fato de que “nada na condição humana é dado de uma vez por todas ou imposto sem direito a apelo ou reforma” (Bauman, op. cit., p.90), admitindo, portanto, que o sujeito está sempre (re)fazendo os seus próprios significados e os significados ao seu redor, ou seja, do ponto de vista individual ou social.

Nesse cenário, “a construção da identidade assumiu a forma de uma experimentação infindável” (Bauman, op. cit., p. 91), trazendo à questão dilemas e incertezas constantes. Com isso, o sujeito assume uma identidade, em determinado momento, mas há muitas outras, seja em busca da sua constituição pessoal, social e/ou profissional, em diferentes contextos, à sua espera.

Segundo o autor, as pessoas não nascem com identidades pré-definidas, prontas e imutáveis, como uma característica genética. Os sujeitos constroem as suas identidades e tornam-se os próprios atores de suas ações nessa construção. É nisso que consiste a teoria das identidades sociais modernas, e com a qual dialogam diversos teóricos da área. 

Para Hall (2006, p. 13), a identidade é “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”, envolvendo, dessa forma, momentos, pessoas e contextos historicamente diferentes na constituição dessas identidades. O autor acrescenta que, se construímos a mesma identidade, desde que nascemos até morrermos, é porque não queremos ver o que nos cerca; não estamos (re)construindo a nossa narrativa de vida.

Nesse sentido, podemos afirmar que as identidades, mesmo que haja a individualização e subjetividade, se constituem a partir das imagens que o sujeito constrói de si em relação aos outros, muitas vezes, em constantes confrontos e tensões, resultando diferentes identidades, em diferentes momentos e contextos. Dessa forma, 

em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é preenchida a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros (Hall, 2006, p. 39).  

Na mesma vertente de identidade em processo de construção, Dubar (2020, p. 135) afirma que “a identidade nunca é dada, ela sempre é construída e deverá ser (re)construída em uma incerteza maior ou menor e mais ou menos duradoura”, isso porque a identidade depende não apenas da forma como nos revelamos ao mundo, mas como os outros nos veem no mundo. Para ele, a identidade nada mais é que o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições (Dubar, op. cit., p. 136).

Com isso, o autor quer dizer que a identidade de si, considerada aqui a individualização que o sujeito tem de si, é a identidade reivindicada pelo sujeito; no entanto, ela só é construída na e pela atividade com os outros, de maneira que o indivíduo endossa, recusa e/ou reconstrói as identidades constituídas pelos outros e pelas instituições. Essas identidades, construídas, portanto, na relação com os outros e com as instituições, são legitimadas por meio das trajetórias de vida, nas quais os sujeitos reconstroem subjetivamente os acontecimentos significativos de suas vidas.   

A respeito dessa construção identitária, realizada a partir das trajetórias de vida dos sujeitos, Dubar (2020, p. 143) destaca que não se trata de um processo arbitrário e “feito à revelia, no entanto, não podemos prescindir dos outros para forjar nossa própria identidade”. Afinal, somos seres sociais, culturais e estamos o tempo todo em relação de interação e troca com as outras pessoas e com as instituições.

As instituições de que trata o autor dizem respeito à família, à igreja, à escola, à instituição do trabalho e diversas outras com as quais convivemos ao longo da nossa vida e nas quais reconhecemos traços das identidades sociais para a constituição da nossa própria identidade. Nesse contexto, o trabalho, sendo ferramenta particularmente importante nas sociedades modernas, está ligado à formação dos sujeitos e, juntos, colaboram para a construção desse processo identitário.

Dessa relação construída entre a identidade para o outro e a identidade para si, há um campo de significados que se desenvolve na infância, na adolescência, na família, nas vivências escolares e no decorrer de toda a vida, como estratégias identitárias (Dubar, 2020) para a construção das diferentes identidades do sujeito, inclusive a identidade profissional.

Dubar (2020) traz para o cerne da discussão das identidades profissionais a reflexão de que muitos dos conflitos e tensões que entram na constituição dessas identidades ligadas à área de atuação profissional nascem no mercado de trabalho, mas não são construídas exclusivamente nessa esfera. Desde a primeira infância, no contato com a família, com a escola, a influência dos professores, dos amigos (da mídia e diversas outras instituições) até a formação profissional, o sujeito cria projeções de si, as quais são confrontadas e/ou confirmadas com as projeções dos outros, na constituição de suas identidades profissionais, seja a profissão docente ou qualquer outra.

No tocante à identidade profissional, Dubar (op. cit., p. 117 e 118) esclarece que “são maneiras, socialmente reconhecidas, de os indivíduos se identificarem uns aos outros no campo do trabalho e do emprego”, mesmo que essa identificação seja construída em diferentes esferas e momentos da vida. Para ele, assim como as identidades sociais, as identidades profissionais passam por diferentes contextos de ordem social, política, econômica e cultural, os quais podem provocar, em “uma atividade que se tornou incerta, mal-reconhecida e problemática” (Dubar, 2009, p. 143), uma crise de identidade profissional. 

A esse respeito, Nóvoa (199) ressalta que, no caso da atividade profissional docente, a crise de identidade se dá em função da separação entre as esferas profissional e pessoal. Para o autor, a identidade profissional é construída durante o processo de formação, mas não se desvincula de uma perspectiva crítico-reflexiva em relação aos seus projetos e suas trajetórias de vida. Não se trata apenas de “acumulação de cursos, conhecimentos ou técnicas, mas de um trabalho de reflexividade crítica sobre suas práticas e da (re)construção permanente de uma identidade pessoal” (Nóvoa, 1997, p. 25). Quando essa reconstrução pessoal deixa de existir, a identidade profissional também entra em crise.  

Dessa forma, entendemos que a identidade profissional docente se dá numa construção individual, mas também coletiva e duradoura, a qual perpassa toda a história de vida e de formação do sujeito, afinal “é nas e pelas categorizações dos outros – e principalmente dos parceiros da escola (professores e colegas) – que a criança vive a experiência de sua primeira identidade social” (Dubar, 2020, p. 147), e profissional, uma vez que a identidade profissional está ligada, ainda que não obrigatoriamente, à social. E é no enredo da vida, através das narrativas autobiográficas, que percebemos essa construção.

Giddens (2002) traz importantes considerações acerca da constituição das identidades contemporâneas, especialmente no que diz respeito à individualização reflexiva nesse processo de construção. Para o autor,

O eu não é uma entidade passiva, determinada por influências externas; ao forjar suas autoidentidades, independente de quão locais sejam os contextos específicos da ação, os indivíduos contribuem para (e promovem diretamente) as influências sociais que são globais em suas consequências e implicações (Giddens, 2002, p. 9).

Com isso, o autor considera que o processo de constituição da identidade do sujeito passa por um “empreendimento reflexivamente organizado”, o qual “consiste em manter narrativas (auto)biográficas coerentes” (Giddens, 2002, p. 12) na constituição do indivíduo. Não obstante às narrativas coerentes, o sujeito, no percurso de suas histórias, está sempre influenciado por questões de ordem política, cultural, econômica, as quais vêm de diferentes grupos e instituições, nesse processo de construção da identidade, mas está nele, no sujeito, a tarefa de constituir-se como ser.

“Ser uma ‘pessoa’ não é apenas ser um ator reflexivo, mas ter o conceito de uma pessoa (enquanto aplicável ao eu e aos outros)”, o qual “está mesclado com a natureza frágil da biografia que o indivíduo “fornece” de si mesmo” (Giddens, op. cit., p. 55), porque, quando o sujeito (re)constrói a sua história de vida, ele confirma ou faz rupturas com seu passado, enfrenta dilemas, se abre para novas possibilidades. Nisso, o autor destaca o propósito da criação e recriação das narrativas (auto)biográficas no processo de constituição das identidades do sujeito.   

As narrativas autobiográficas não são apenas escritos subjetivos de memórias. De acordo com Giddens (2002, p. 56), empregamo-las “a fim de ter um sentido de quem somos, precisamos ter uma noção de como nos transformamos e para onde vamos”. Desse modo, à medida que escrevemos sobre os episódios que marcaram nossa vida, por meio dessas narrativas, elas nos ajudam a construir as nossas identidades, na perspectiva de nos fazer retomar o sentido de como nos vemos e como queremos ser vistos pelos outros.

Passegi (2011, p. 29), importante nome ligado às narrativas autobiográficas como fonte de construção da formação humana e, portanto, da identidade, afirma que a narrativa autobiográfica se refere ao fato de o narrador “se apropriar de um instrumento semiótico (nesse caso, referindo-se à narrativa escrita, mas não exclusivamente em relação a essa modalidade) para se colocar e colocar o outro no centro da narrativa”. Nesse caso, busca compreender “como os indivíduos (criança, jovem, adulto) ou os grupos (familiares, profissionais, religiosos) atribuem sentido à vida, no itinerário de sua formação humana, no decorrer de sua vida” e, nesse percurso, constituírem suas identidades.

Sem se restringir à narrativa literal, mas referindo-se à biografia ou autobiografia (narrativa de uma vida), Bakhtin (1997, p.165) a destaca como “uma forma tão imediata quanto possível, transcendente, mediante a qual se pode objetivar o ‘meu eu’ e a ‘minha vida’”, reiterando a ideia de que, por meio das (auto)biografias, é possível revelar a construção do mundo que nos cerca, incluindo a própria construção de quem somos, ou de como queremos ser vistos.

De acordo com o mesmo autor, “toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro” (Bakhtin, 2006, p. 115), pontuando que a construção da identidade é revelada por meio da linguagem, na relação com o outro, à medida em que eu só revelo aquilo que me constitui, da forma como eu quero que o outro me veja.

Passegi e Cunha (2013) acrescentam que a construção de si, por meio das narrativas, ocorre pela linguagem e por processos sócio-históricos, uma vez que o autor usa de suas experiências e memórias, vivenciadas em diferentes etapas da vida, as quais deixam marcas relevantes sobre aspectos da identidade, tanto social quanto profissional. Referindo-se à identidade profissional docente, “a escrita de si configura-se numa atividade (auto)formadora” (Mota, 2013, p. 50), desde que essa escrita nos forneça elementos capazes de provocar reflexão e transformação daquilo que somos diante do que nos propomos a ser.

Tornar-se docente; ou seja, assumir a identidade docente não se limita a ter uma formação de nível superior em licenciatura, tampouco está restrita a uma determinada trajetória profissional. Gavira e Monteiro (2018, p. 203) destacam que “redescobrir como se constrói o processo daquilo que dizemos ser” é mais significativo do ponto de vista da construção da nossa identidade profissional do que pensarmos nesse processo como um produto acabado.

Os autores acrescentam que

Narrar é a ação do sujeito em formação que se mantém na tensão da vida, supõe um trabalho necessariamente de reflexividade, que completa e simultaneamente potencializa novas reconfigurações da experiência formativa. Assim, é também um mistério o que nos conduz a ser o que somos, professores(as); uma experiência formativa é uma viagem cheia de movimentos e linhas de fuga que potencializam um devir, movimentos que precisam ser contados e significados (Gavira e Monteiro, 2018, p. 204).

Por esse motivo, o processo de (re)descoberta de quem somos só é possível na (re)criação de nossas trajetórias de vida, de modo que sejamos capazes de enxergar e reinterpretar os fatos ao nosso redor, para nos constituir enquanto um ser individual, social e profissional, sem, no entanto, que essas dimensões estejam separadas.

Ainda nessa mesma vertente da identidade profissional como uma construção a partir das trajetórias de vida, os autores reforçam que as narrativas ultrapassam os fatos da vida real, uma vez que coloca o sujeito em contato com as experiências formativas, “possibilitando a ressignificação e reinvenção de sentidos implicados no processo de fazer-se professor” (Gavira e Monteiro, op. cit., p. 212). Dito de outra forma, o sujeito seleciona, escolhe, descarta, insere o que pode servir (ou não) para constituir o seu ser e fazer profissional.

Identificamos, nesse sentido, uma vertente que se preocupa com a construção das identidades, com ênfase na identidade profissional docente, como um fenômeno individual, mas social, coletivo e historicamente construído. Um processo, e como tal, nunca dado como pronto e acabado, mas em constante construção, articulado com tensões e conflitos sociais, realizado por meio das narrativas (auto)biográficas, por isso, uma construção simbólica na/pela linguagem.

3 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS

A revisitação aos textos que tratam das narrativas autobiográficas escritas como notável dispositivo metodológico na investigação da identidade profissional docente não constitui um recorte dado por suficiente, diante de tanto aparato teórico publicado. A tímida intenção aqui foi a de destacar tal dispositivo, em relação a tantos outros igualmente produtivos na pesquisa (auto)biográfica, como processo tanto formativo quanto de autoconhecimento e identidade profissional.

Pesquisas e discussões até aqui travadas sobre as narrativas (auto)biográficas sustentam que a constituição do sujeito, seja enquanto ser social, cultural e/ou profissional, passa por um processo construtivo de linguagem, a qual engloba a palavra, mas também memórias, subjetividades, histórias vividas durante diferentes fases da vida.

São, portanto, as narrativas (auto)biográficas escritas importantes mediadoras na constituição identitária do ser, bem como relevante dispositivo no aparato metodológico investigativo, especialmente nas ciências humanas.

Por se apresentarem de forma subjetiva, mas sobretudo, dialógica e coletiva, as narrativas são dispositivos de reflexão e construção de identidades sociais e profissionais, por meio das quais o sujeito revisita diferentes tempos-espaços que o ajudam no autorreconhecimento.  Dessa forma, reiteramos que a pesquisa com narrativa autobiográfica escrita, produzida no tempo-espaço de formação profissional, revela-se importante e relevante método investigativo, capaz de, como uma atividade autoformadora, segundo Mota (2013), compreender as diversas etapas vividas como experiências de aprendizagem, que nos constituem pessoal, social, cultural e profissionalmente.     

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¹Doutora em Letras pela Universidade Federal do Piauí. Professora Efetiva do Instituto Federal do Piauí – campus Teresina Central. E-mail: leila@ifpi.edu.
²Mestra em Letras pela Universidade Federal do Piauí. Professora da Rede Estadual do Piauí. E-mail: conceicaombc@yahoo.com.br