REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11550973
Matheus Macedo do Nascimento[1]
RESUMO
O presente artigo volta-se para a investigação dos signos que operam a partir das relações de semelhança entre o cartaz do filme Matou a família e foi ao cinema (1969), dirigido por Júlio Bressane, e os documentos de acusação utilizados durante a ditadura civil-militar brasileira, observando novas possibilidades interpretativas para a obra e para esse momento histórico. Esse estreitamento entre objeto e representação possui peculiaridades delimitadas que se revelavam a partir dos limites da relação de iconicidade. Nela, como vai apontar Peirce (2005), ambos compartilham um certo grau de semelhança. Me interesso, então, em esclarecer os limites desse fenômeno comunicativo, tendo em vista a distinção utilitária de ambos, elucidando essa questão através da conceituação das características da imagem e a forma como ela atua enquanto uma possibilidade narrativa comovente, que aponta para os esquecimentos políticos propositais acerca do período supracitado.
PALAVRAS-CHAVE: Cinema; Ditadura Civil-Militar Brasileira; Semiótica.
ABSTRACT
The present academic work is focused on investigating the operating signs based on the similarity between the poster of the movie Matou a Família e Foi ao Cinema, directed by Júlio Bressane, and the indictment used during the Brazilian civil-military dictatorship, exploring new interpretative possibilities for the work and for this historical moment. This compressing between object and representation has defined characteristic that are revealed due to the limits of the iconicity relationship, in which, as Peirce points out, both share a certain degree of resemblance, I am interested in elucidating the limits of this communicative phenomenon, in view of the utilitarian distinction between the two. I will demonstrate this subject by conceptualising the characteristics of the image and how it acts as a poignant narrative possibility that displays the deliberate political neglect that surrounds the memories of the people tortured by the regime.
KEYWORDS: Cinema, Brazilian Civil-Military Dictatorship, Semiotics.
Quando penso na confecção desse artigo, lembro de um comentário que compara a escrita de Buckhardt, à confecção de um quadro impressionista (WHITE, 2006), pensar que a escrita da História pode ter tamanho poder de inventividade e, mais ainda, de sugestão, me mobilizou profundamente. Barthes (1984), ao pensar na fotografia, encontra esse mesmo poder e pelo que acredito ser o mesmo motivo que me alegra. A fotografia carrega consigo um valor existencial, o artista seleciona uma pequena porção do real e a reinventa, como uma forma de dizer que esteve ali e espera que sua criatividade dê conta de tocar na experiência, independente de conhecer ou não os paradigmas da fotografia (BARTHES, 1984) – o mais significativo desse momento não é a complexidade da representação, é o potencial de escolha, selecionar afetos e os dar sentido narrativo.
Pois não cabe à representação dar conta do real, mesmo narrando infinitamente, ainda não o alcançaria, o que cabe a ela, porém, nas suas multiplicidades de formas, é assim como na História, a invenção (BARTHES, 1953). Quando criamos, incomodamos timidamente o enorme silêncio do real com nosso potencial criativo, damos novas formas à experiência através de signos, de modo a construir uma operação que nos alcance no presente.
É a partir dessa intencionalidade que operamos, escolhemos uma imagem e seguimos um rastro indexical (WHITE, 2006) – há em toda forma de expressão esse potencial sugestivo que parece conectá-la conosco na sua confecção e também quando recebemos a criação de outrem. Não me excluo dessa operação, esse trabalho tem ponto de partida numa questão que me surgiu durante a pesquisa em arquivo, pesquisa esta que só existiu porque amo o Cinema Marginal Brasileiro, sobretudo o filme Matou a família e foi ao cinema.
Procurando por críticas sobre ele na sessão de Jornais e Revistas da Hemeroteca Digital, notei uma postura muito curiosa nos comentários que o tocam, na maioria dos casos o descrevem indiretamente, através de comparativos, evitando sobretudo o seu enredo – que se trata de uma denúncia à violência da ditadura civil-militar brasileira, representando cinematograficamente práticas de tortura e desumanização dos corpos (SARAMAGO, 2023). Essa ousadia da equipe responsável pelo longa resultou na censura da obra, sendo recolhida dos cinemas cariocas no dia 21 de março de 1970, após duas semanas de exibição (RIBEIRO, 1970).
Quando retorna para o circuito de exibições através de festivais e da televisão, parece passar por uma segunda camada de censuras que eu desconhecia, sendo essa ainda mais precisa que a primeira, dado seu grau de sedução. As menções ao longa são acompanhadas na maioria das vezes por justificativas, como se não fosse uma obra apropriada para ser vista, ou mesmo expressasse algo que não devia ser dito. Então, se elaboram argumentos para justificar sua exibição, como por exemplo: sanar a curiosidade quanto a obras do movimento marginal, que era constantemente narrado como uma proposta repulsiva de cinema ou ressaltando a excentricidade extrema da obra, uma forma eufêmica de alertar e desencorajar o público a essa experiência, estratégias utilizadas pelos periódicos Diário do Pará e Correio Braziliense em suas abordagens.
Associo essa postura sobretudo ao receio de abordar o cerne do longa, a violência ditatorial. Devido à turbulenta redemocratização brasileira, responsável por anistiar os militares, os dispensando do julgamento por seus múltiplos atentados aos direitos humanos, deu origem a um esquecimento forçado, um trauma social não elaborado adequadamente pela frágil democracia brasileira (GAGNEBIN, 2010), dando origem a uma série de signos a serem investigados sob diferentes abordagens.
Tendo como ponto de partida esses discursos pensados para a repulsa com relação à obra, pretendo analisar o cartaz do filme Matou a família e foi ao cinema, observando de que maneira esse signo, enquanto uma imagem, reitera memórias ligadas à desumanização e à violência durante a ditadura civil-militar brasileira. Seja através das suas decisões gráficas mais evidentes, ou mesmo através daquelas que não se mostram com clareza, mas ainda assim, conotam elementos da experiência (ECO, 1997), compartilhados sutilmente durante sua confecção.
Tomo como provocação a proposta de Umberto Eco em A Estrutura Ausente, onde aponta que a comunicação artística se dá num relacionamento íntimo entre um determinado objeto, aqui, os documentos de acusação a perseguidos durante a ditadura civil-militar brasileira e um signo, especificamente uma imagem, o cartaz de um filme censurado. Esse seu estreitamento, se dá nos limites da relação de iconicidade (ECO, 1997), nela, como vai apontar Peirce, ambos compartilham um certo grau de semelhança (PEIRCE, 2005), contudo, em que se assemelham? Visto que, até na mais banal comparação material, ontológica ou mesmo utilitária, diferem-se entre si.
Até que ponto essa documentação, fruto da funesta burocracia biopolítica brasileira, arauto da desumanização dos corpos através da tortura (ROSA, 2012), pode se assemelhar, mesmo que idealmente, através da cognição, ao curioso cartaz de uma obra que denuncia criticamente a violência ditatorial? Busco elucidar essa questão através desse artigo a partir das especificidades da relação do signo para com seus objetos, conceituando nesse processo o que percebo enquanto imagem e a forma como ela atua enquanto uma possibilidade narrativa. Apesar dele estar diretamente relacionado para com o filme, me ausento de uma análise mais aprofundada do longa, pois se trata de outro campo de análise semiótico. Outrossim, busco trazer apontamentos sobre os esquecimentos políticos que cercam as narrativas sobre a ditadura militar brasileira, uma constante do presente em que escrevo esse trabalho.
OS SIGNOS
Ao passo que o século XIX é marcado pelos passos que deu em direção à formação de uma base científica para uma série de disciplinas, seu sucessor, o século XX, possui outra preocupação – com a linguagem. Apreender de que maneira funciona o aparelho da comunicação e, mais tarde, o reconhecimento da pluralidade dessa expressão, “linguagens” no plural, divididas em diversos campos de análise. Mudando o rumo de áreas como a linguística, a teoria crítica literária e até o cinema. Esse fenômeno não é isolado, vai desde as considerações de Ferdinand Saussure, em Genebra, a Marr e Eisenstein na União Soviética e Charles Sanders Perice, nos Estados Unidos (SANTAELLA, 2017).
O que ambos enxergam em comum, apesar de suas divergências teórico-metodológicas, é a necessidade do estudo dos signos enquanto uma propriedade desses elementos da comunicação, o que não pode ser desconsiderado na historiografia, sobretudo diante da complexa operação de verbalização do passado. Quando às possibilidades de um estreitamento entre das áreas, destaco dois teóricos que se debruçaram na complexa operação de escrita da História a partir de propriedades dos signos: Roland Barthes e Hayden White. O primeiro, a partir da análise da Linguística Estrutural e da Semiologia (BARTHES, 2004), e o segundo, a partir da Teoria Crítica Literária (WHITE, 2006).
Barthes, ao observar a historiografia, retoma a noção de shifter, para Jakobson (1963 apud BARTHES, 2004), com o intuito de observar de que maneira os enunciados colhidos através da pesquisa passavam para o processo de enunciação. Nesse momento, pontua a natureza referencial dessa construção, o historiador a partir da verbalização daquelas narrativas, opera uma porção de recursos da linguagem numa complexa operação de atrito entre as temporalidades, o da enunciação e o daquilo que está sendo enunciado. Em meio a isso, a linearidade discursiva, ou tempo-papel, precisa dar conta de um tempo não linear que se interconecta de forma profunda com outros momentos (JAKOBSON, 1963 apud BARTHES, 2004), buscando deixar claro que essa escrita não se desliga de quem a confecciona.
Dessa forma, aponta que o real não basta a si mesmo, precisa antes ser reinventado linguisticamente (BARTHES, 2004), trabalha seus objetos até alcançar a significação (SANTAELLA, 2017). Portanto, há aí na escolha daquele determinado objeto, ou mesmo objetos, uma porção de significados, desde o afeto, afinidade teórica, signos, fatores incalculáveis que repercutem em decisões estéticas e dêiticas, não sendo elas, seria impossível delimitar um recorte na descrição, narrando interminavelmente (BARTHES, 1972).
Já White opta por ressaltar as imagens inevitavelmente construídas no leitor a partir da leitura do texto histórico, a familiaridade dele para com o tema, se dará a partir dessa mediação entre o significante e o ícone elencado a partir de uma estrutura que o historiador enxerga como culturalmente apreensível (WHITE, 2006). Para ele, a escrita da história é uma mediação entre a pesquisa e um enredo pré-genérico, chamado Mythoi, dentro da teoria literária de Norhrop Frye (2000 apud WHITE, 2006).
A partir dessa perspectiva estruturalista, dá apontamentos para uma paulatina aproximação entre a literatura e a pessoa que enuncia. Assumindo que a narrativa histórica precisa estar localizada num conjunto de signos que façam sentido a ele e seus enunciatários, sejam eles metafóricos ou não, na tradição literária que os envolve (WHITE, 2006). Apesar da beleza dessa proposição e da proximidade que traz à semiótica, não pode deixar de ser criticada, devido sua proximidade para com as estruturas de enredo propostas por Frye (2000). Visto que é indispensável destacar a multiplicidade de enredos, inclusive não verbais, que alcançam a historiografia enquanto fonte, objeto ou mesmo inspiração.
Apesar disso, o que me comove na trajetória de ambos teóricos é o esforço para o desmantelamento do que o White chama de ilusão referencial, a confusão entre referente e significante no enunciado histórico, sobretudo quando seu interlocutor se faz ausente (BARTHES, 1972). Uma problemática epistemológica alimentada pelo distanciamento para com os traços poéticos que tocam a tessitura da historiografia, ressaltados desde a Antiguidade (WHITE, 2006), esse relacionamento ambíguo, marcado por essa cisão, aponta antes para um inteligível estrutural, do que para uma representação do contato entre temporalidades distintas, empobrecendo o discurso histórico e minando suas possibilidades criativas (BARTHES, 2004).
Por isso, opto por me aproximar da investigação semiótica, sobretudo a partir dos métodos de Peirce (2005), na qual, um signo, em uma determinada circunstância ou aspecto, é, através de um enunciado, seja fotográfico, literário, cinematográfico, performático, ou em qualquer outra forma possível da comunicação, capaz de criar um outro signo equivalente, ou mesmo, ainda mais complexo na cognição de um determinado receptor da mensagem. (PEIRCE, 2005), visto que convida a cognição do enunciatário ao fazer analítico conforme a familiarização dele para com os objetos elencados durante a mensagem (GREIMAS; COURTÊS, 1983).
Através desse processo ele representa algo, seu objeto, que não é possível de ser materializado na maioria das vezes e, nem mesmo traduzido na totalidade de seu sentido, mas atua através da possibilidade da criação de signos durante a comunicação, valorizando múltiplas experiências. Quanto a esse relacionamento do signo para com seu objeto, pode, inclusive, se dar mesmo quando forem distintos entre si, sendo ligados através de um pensamento, uma expressão, lei, um contexto qualquer que apresente a possibilidade de seu elo. Ele se torna cada vez mais complexo à medida que se observa a possibilidade de análise de objetos perceptíveis, imagináveis ou mesmo inimagináveis dentro dessa lógica perceptiva da comunicação (PEIRCE, 2005), podendo ser uma ferramenta útil à historiografia.
Apesar da possuir um campo de abrangência vasto, dando suporte a áreas distintas, desde a Linguística, a Psicanálise, Filosofia e tantas outras áreas, a Semiótica possui um objetivo claro e pode ser uma ferramenta de grande apoio à historiografia – a descrição e análise dos fenômenos e sua constituição enquanto linguagem (SANTAELLA, 2017), dando luz a novas interpretações de fontes ou mesmo análises mais densas dos discursos historiográficos, abrindo espaço para novos caminhos não só para a metodologia, como também à Teoria da História (WHITE, 2006).
A ICONICIDADE
Uma questão não elucidada por White e Barthes nessa proximidade entre a historiografia e a investigação dos signos é de que forma se deve abordar as imagens na narrativa histórica. Esse vazio, deve-se, sobretudo, a uma discussão há pouco elucidada sobre qual seria o espaço dos fatos visuais enquanto enunciado. A princípio, duas hipóteses são levantadas, a de que somente comunicação verbal possui valor de signo, posteriormente, surge uma segunda proposta, a de que podem ser interpretados dessa forma, desde que se utilizasse conceitos linguísticos (ECO, 1997), negando suas peculiaridades enquanto outra possibilidade de linguagem distante da linguística, sendo só mais tarde observado isoladamente.
A interpretação dos fenômenos visuais a partir de paradigmas próprios dentro das possibilidades semióticas, remontam a dois conceitos, o de signo e o de representação, que se revelam a partir da observação da imagem a partir de sua fração perceptível e também aquela que se monta apenas mentalmente, unificando ambos, assumem essas instâncias (SANTAELLA, 1997). Quanto à representação, é para Peirce, a operação do signo, ou mesmo com o objeto analisado para quem o interpreta (PEIRCE, 2005), já a imagem, apresenta uma relação mais complexa, podendo se revelar na forma de todos os signos (ECO, 2005), tendo, inclusive, várias possibilidades de interpretação, que levam em conta desde aspectos materiais dessa criação, suas relações existenciais e outras porções de variáveis. Para Barthes (1984), por exemplo, era uma janela para as relações de índice.
Delimito, porém, para esse trabalho, a noção de imagem artística para Umberto Eco, na qual pontua uma intimidade entre os objetos e seu signo icônico, de forma que não consegue reproduzi-lo com perfeição, mas o comunica com maestria. Essa semelhança lhe dá valor semântico, através de uma articulação de sensações e discursos que se manifestam a partir de suas interpretações, da mais complexa à mais banal (ECO, 2005).
Nessa forma, atua como um signo chamado sema, visto que constitui um enunciado icônico complexo, constituindo o contexto que permite ser reconhecido. Para isso, se valem de representações culturalizadas de forma ostensiva. Diferente de um signo verbal, que consegue ser reconhecido sem um enunciado que o acompanhe, como, por exemplo, a pronúncia de uma palavra já internalizada no falante de uma determinada língua, imagens dependem de um contexto maior (ECO, 2005).
Tomando como exemplo o cartaz analisado, para que se chegue a descrevê-lo seria necessário um enunciando como – “adota o formato de uma nota de culpa registrada em delegacia” (DAEH, 2003), descrição utilizada pelo jornalista Ricardo Daehn, para descrever o cartaz no anúncio da Mostra Viva o Cinema Brasileiro, de 2003, noticiada através do Correio Braziliense. É curiosa a forma como o cartaz apesar do claro distanciamento utilitário para com os papeis de uma nota de culpa, ainda remete por semelhança a esta.
Figura 01 – Cartaz do filme Matou a Família e foi ao Cinema
Fonte: https://filmow.com/matou-a-familia-e-foi-ao-cinema-t10829/. Acesso em: 25 out. 2023.
Assume, assim, o aspecto de ícone, para Peirce (2005), referindo-se ao objeto que denota, em virtude de seus caracteres próprios, que compartilha com um objeto, ele existindo ou não, contudo, essa definição é problemática, ou melhor, incompleta, visto que na maioria dos casos, especialmente nas imagens, os signos não possuem todas as propriedades daquilo que representa, mas reproduzem condições comuns de percepção, baseadas nos códigos perceptivos, delimitados a partir da seleção de estímulos que melhor se adequem ao resultado desejado ao significado da experiência denotada (ECO, 2005).
Como aponta Eco (2005), o maior desafio dessa relação se encontra em delimitar de que forma os códigos perceptivos vão se adequar a fim de atingir os estímulos desejados, já que, do contrário, as relações de iconicidade seriam delimitadas a partir do acaso. Portanto, utilizam da convenção gráfica para se expressar. Sobretudo levando em conta que não são claros, tendem a representar um elemento não específico, como no caso do cartaz, representa as notas de culpa, mas não necessariamente uma específica, logo, para alcançar a significação, precisa escolher bem de que maneira pretende elencar os códigos perceptivos.
Já quanto às propriedades que compartilha, podem ser ópticas, elementos visíveis que estão culturalmente associados a um determinado objeto, as ontológicas, elementos relacionados à forma como será veiculada a representação e as convencionadas, que são sabidamente inexistentes, mas denotam com perfeição um determinado aspecto do objeto (ECO, 2005). A relação entre esses elementos é imprevisível, ainda mais por não sofrer das mesmas limitações da língua, que se faz compreensível somente àqueles que compartilham de seus códigos. Como pontua Peirce, durante a comunicação, o interpretante irá compreender somente os objetos do signo que é familiarizado (PEIRCE, 2005).
Fazendo então uma análise do cartaz, seu objeto dinâmico são as notas de culpa, não tendo uma específica em referência, pode ser tomada como ícone a partir da generalidade de compartilhar certos elementos. Opticamente, mantém uma forma semelhante, mantendo o enunciado de acusação, as marcas da burocracia, representadas pelos símbolos do estado do Rio de Janeiro, onde o filme estaria sendo exibido, a fim de atribuir uma impressão de proximidade precisa e irônica de seu objeto de representação, mantendo seus elementos basilares, ao mesmo tempo que apresenta elementos relativos ao longa – o carimbo com título do filme e o nome do elenco, junto do suposto acusado e sua foto.
Mas diferencia-se ontologicamente: o cartaz assume outras funções utilitárias, antes denuncia a violência da ditadura, do que acusa uma figura que está resistindo a ela. Ao abordar essa memória, apresenta a indivíduos de diferentes temporalidades o terror das perseguições, a incerteza do status quo, à medida que esses documentos eram falseados para forjar acusações (DIAS, FILHO, KEHL, et al., 2014). Assim, sugere outras narrativas a partir da análise dessa primeira, que podem se manifestar na forma de índices, despertando memórias e criando sugestões (PEIRCE, 2005), nos conectando de forma profunda com esse momento a partir das relações semióticas, sobretudo quando pensamos nas possíveis ligações do signo visual – essa imagem pode ligar-se enquanto um instrumento de comunicação, com a cognição produzida e ainda com objetos terceiros (PEIRCE, 2005). Agindo como um convite à memória dos corpos torturados.
O FILME
Matou a família e foi ao cinema, dirigido por Júlio Bressane, possui um enredo labiríntico, conta duas histórias paralelas, uma estrelada por Antero de Oliveira e outra por Márcia Rodrigues e Renata Sorrah, ambas emblemáticas, entrelaçadas por um sentimento em comum, o embraço familiar, ocorrendo de forma sobreposta. A primeira, narra um crime brutal, após uma discussão com os pais, um jovem os assassina e se dirige ao cinema, sendo mais tarde capturado e torturado por militares, já a segunda, sobre uma dupla de mulheres, que resistem a uma série de tensões a partir do afeto. As histórias se misturam, apelando sobretudo à sensação para elaboração do sentimento motivador da obra.
O que me chama atenção, porém, é a forma sutil como seus anúncios parecem dar novos sentidos a ambas as histórias, dialogando entre si para a construção de narrativas terceiras ou indexicais.
Sua estreia, por exemplo, veiculada no jornal carioca, tinha um anúncio intimista, seguia o padrão do periódico carioca Jornal dos Sports – uma espécie de moldura retangular pequena, enfileirada junto dos outros filmes em exibição, informando seu título, o nome de atores de sucesso presentes no longa, as salas onde seria exibido e uma imagem, acompanhada de uma logline, que informasse minimamente do que se trata a obra. Contudo, diferente do cartaz, que protagoniza Antero de Oliveira, o anúncio de jornal, opta por destacar as personagens Márcia e Regina através de uma fotografia das personagens (RIBEIRO, 1970, p. 08), como se sugerisse um grau profundo de intimidade das duas, através do efeito de indexicalidade (BERGER, 1984 apud SANTAELLA, 1998), falando indiretamente que há uma relação profunda de afeto.
Figura 02 – Anúncio de jornal
Fonte: Jornal dos Sports (1970)
Aspectos indexicais são um dos elementos do signo fotográfico, narram enunciados que não se apresentam de forma evidente, não denotam por semelhança ao objeto dinâmico, ou mesmo através de uma convenção racional, denota, por outro lado, sendo afetado e/ou afetando, sugerindo algo que na maioria das vezes não está presente (PEIRCE, 2005). A fotografia sugere uma força de existência, um espaço, um conjunto de indivíduos, escolhas e uma narrativa, independente da complexidade da representação (BARTHES, 1984), assim, atribui uma espécie de vivência às personagens, onde se imagina o afeto, o que no longa metragem é a força que movimenta a resistência das personagens ditadura e às questões interseccionais que as cercam. Atuando como uma primeira sinopse da obra, enfatizando essa porção do enredo.
Essa decisão é curiosa, parece mascarar o aspecto experimental do filme, como se convidasse uma parcela maior do público de forma desavisada a assistir um ‘filme militante’, nos termos do Marc Ferro (1992), um discurso cinematograficamente elaborado na contramão das instituições do estado, como uma forma de conscientização social. E pensado para ser amplamente distribuído, tendo em vista a elaboração de seu anúncio, que desperta curiosidade através da proposta de afetos, ressaltada pela fotografia.
Já o seu cartaz, que compartilha características com a nota de culpa, parece ser propositalmente elaborado para gerar uma série de perguntas – afinal, alguém seria capaz de matar a própria família e em seguida ir ao cinema? Ou essa família estava sendo perseguida pela ditadura civil-militar brasileira e o cartaz, seria uma referência à prática de forja de documentos de acusação, como relatado com frequência na Comissão Nacional da Verdade? (DIAS, FILHO, KEHL, et al., 2014). A porção da narrativa que dá nome à obra tome então um novo sentido – as propriedades que compartilha com a burocracia funesta, abre através das propriedades de ícone essa possibilidade. O protagonista sem nome passaria então de assassino para um assassinado e, mais do que isso, a representação dessa violência. Alertando ao público carioca que pôde assistir ao longa antes de ser censurado a fragilidade de seu status quo, já que qualquer um ali da sala poderia ser o próximo ‘assassino’.
Infelizmente, não tardou a ser censurado, sendo exibido somente por duas semanas. É possível, inclusive, observar atentamente suas poucas exibições com precisão na sessão chamada “Roteiro dos cinemas”, do periódico carioca, Jornal dos Sports, organizada por Luiz Severiano Ribeiro (RIBEIRO, 1970). Foi exibido nas seguintes casas de exibição: Vitória, Leblon, Comodoro e Santa Alice, nos horários: 14, 15:40, 17:20. 19, 20:40 e 22hs, tendo uma excepcionalidade na última sala, que exibiria cinquenta minutos atrasada. Contudo, na sexta-feira da semana seguinte, passa a ser exibido somente em uma sala, a do Cine Capitólio em novos horários, indicando uma possível rejeição dos expectadores quanto ao seu teor experimental, dada a sua saída da maioria das outras salas, mas permanência no Capitólio, concomitantemente, pode apontar para uma falha na censura, incapaz de alcançar todas exibições, fazendo com que permanecesse somente lá, sendo descontinuado somente no dia 21 de março de 1970, com a tomada de todos negativos (RIBEIRO, 1970), o que condiz com a narrativa a respeito da brevidade de exibição da obra, presente no Correio Braziliense, ao anunciar um festival de transmissão dos filmes de Bressane na televisão aberta, afirmando que a maioria eram inéditos na televisão e que a censura proibiu as exibições de Matou a família e foi ao cinema duas semanas após sua estreia, em 1970, não detalhando, porém, as datas (HENRIQUE, 2002), então tomo como referência sua última aparição no Jornal dos Sports.
Essa postura de censura permanece de forma velada mesmo após a redemocratização, a exemplo da sessão de cinema regida por Acyr Castro, no Diário do Pará, pouco antes da reexibição do longa na segunda edição da mostra Noventa Anos de Cinema Brasileiro em Belém, no ano de 1989, trouxe uma crítica extremamente dura do crítico Rafael Costa a respeito do filme, desencorajando os leitores por apresentar o filme como um sinônimo de estranheza, desarranjo e desdramatização, devido seu caráter experimental (COSTA, 1989).
Ademais, a presença dele no festival soava tão incômoda a Castro que justifica a presença da obra, com a justificativa de ser necessário conhecer aquilo que é criado dentro do nosso cenário de cinema, dizendo ser tão necessário quanto obras como São Bernardo, de Leon Hirszman, essa, tida por ele como um filme excepcional (CASTRO, 1989). Apesar do suposto incentivo ao consumo da obra, é sempre de forma resguardada, distante e propositada, nunca espontânea.
Observo essa mesma postura em certo comentário de Risoleta Miranda, também crítica de cinema do mesmo jornal, apesar de ceder um maior espaço para obras experimentais, inclusive com comentários positivos, a exemplo da publicação de um elogio a obra, feito pelo crítico Raimundo Bezerra, membro da Associação Paraense de Críticos Cinematográficos (MIRANDA, 1988), ainda coloca em certos momentos justificativas semelhantes para convidar o público para exibição da obra. Como o reforço do filme enquanto apenas um representante do cinema underground (MIRANDA, 1988).
Esse enquadramento da obra enquanto um fruto do movimento, rouba do filme a possibilidade de um destaque individual, é antes uma caricatura dos extremos do movimento, que não raramente era chamado de ‘udigrudi’, título pejorativo dado por diretores que encabeçavam o cinema novo brasileiro, nas matérias que o tocavam no periódico. Fomentando diretamente ou indiretamente uma censura sedutora em relação a obra para a maioria do público, sobretudo levando em conta a proposição de Kishimoto (2020), ao abordar a centralidade do jornal como um elemento definidor para o cinema ao longo do século XX aqui no Brasil. Enquanto um elemento de ampla divulgação, era o primeiro contato do público para com a obra, sendo um fator de grande peso na escolha do que assistir.
Assim, diretamente ou indiretamente um indiretamente um imaginário de estranheza é relacionado com o filme, uma postura mantida também no periódico Correio Braziliense. Nesse jornal, podemos observar também o descaso quanto ao longa nos horários que é exibido na televisão, sistematicamente nos últimos horários da programação, tarde da madrugada, para não ser visto – em emissoras como a Nacional ou a Band, aparece como na sexta, 23 de agosto de 2004, às duas horas e meia da manhã (TORRES, 2003). É evidente o compromisso com uma censura velada, abrindo espaço para se questionar o motivo de tamanho recalque das memórias da ditadura civil-militar brasileira, o porquê do choque diante de uma obra que retrata a desumanização vivenciada naquele momento, numa realidade histórica tão próxima temporalmente da ditadura civil-militar brasileira. A não elaboração dessas memórias trouxe como consequência essa postura de negação, o apagamento propositado das memórias dos corpos torturados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os signos icônicos aproximam-se de seus objetos de representação através de semelhanças limitadas, mesmo que seus projetos utilitários se difiram entre si, há um caminho de semelhança que os unam a partir de elementos gráficos internalizadas culturalmente (ECO, 1997). É essa semelhança entre o cartaz do longa e os documentos de acusação da ditadura civil-militar brasileira, que abre novos caminhos interpretativos para a obra, apontando a fragilidade do status quo do público consumidor da obra, alertando a todos que poderiam ser os próximos perseguidos.
Essa mensagem, por mais que não se apresenta de forma óbvia, ainda carrega consigo a denúncia das práticas de tortura empregadas pelos militares, o que levou a rápida censura da obra, passando apenas duas semanas em exibição. Contudo, essa saga de censuras parece se estender até o nosso presente, não mais de forma clara através da proibição, mas através do desencorajamento e na construção de signos que nos distanciem do filme.
E um dos principais responsáveis por esse movimento é a não elaboração das memórias da ditadura civil-militar brasileira, vivemos uma negação, ou mesmo, num profundo eufemismo do acontecido (GAGNEBIN, 2010), desrespeitando a memória das resistências, das pessoas perseguidas, torturadas e de todas elas que compartilharam desse trauma social, infelizmente evitando os passos para a reparação desse momento que vem sendo alvo das mais variadas disputas narrativas. Cabendo a nós que escrevemos história investigarmos ativamente esses signos.
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[1] Graduado em Licenciatura Plena em História na Universidade Estadual da Paraíba, Campus III. E-mail: nascimentomatheusmacedo@gmail.com