HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR EM BREVES, MARAJÓ DAS FLORESTAS – PARÁ

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10241161623


Pureza, Enil Do Socorro De Sousa[1]


RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar a história da educação de uma Escola Municipal localizada em Breves, no Arquipélago do Marajó estado do Pará na década de 1970, a partir das memórias de um ex-professor e ex-alunos. A pesquisa se concentrou em três questões principais: o percurso dos sujeitos até a escola, as memórias sobre o prédio escolar e as práticas pedagógicas da época. A metodologia incluiu análise documental, entrevistas semiestruturadas e o uso de imagens. Os resultados indicaram que os caminhos percorridos pelos interlocutores foram diversos, mas todos com o mesmo propósito: a educação formal como ascensão social, transformação pessoal e possibilidade de melhoria de vida, permitindo o acesso a novas oportunidades e perspectivas. O estudo também revelou que as memórias escolares, especialmente em relação à arquitetura da escola, resgatam momentos de um prédio repleto de detalhes, vivências e mudanças estruturais ao longo do tempo. Quanto às práticas pedagógicas, estas foram influenciadas pelas diretrizes que cerceavam a liberdade, sem espaço para inovações, refletindo uma educação com bases conservadoras e tradicionais, com forte ênfase na disciplina e no controle, restringindo a autonomia dos professores e alunos. Por fim, a pesquisa mostrou que a educação ofertada pela escola influenciou nas trajetórias profissionais dos sujeitos da pesquisa, gerando preferência pelas metodologias da educação da época, quando comparadas às metodologias da atualidade.

Palavras-chave: Memória; Escola; Práticas Pedagógicas; Ensino.

SUMMARY

This article aims to analyze the history of education at a municipal school located in Breves, in the Marajó Archipelago, state of Pará, during the 1970s, based on the recollections of a former teacher and former students. The research focused on three main areas: the participants’ paths to the school, memories of the school building, and the pedagogical practices of the time. The methodology included documentary analysis, semi-structured interviews, and the use of visual materials. The findings indicated that, while the participants’ paths were diverse, they all shared the same underlying objective: to use formal education as a means of social ascension, personal transformation, and an opportunity for improved quality of life, which provided access to new perspectives and opportunities. The study further revealed that the memories of the school, particularly with regard to its architecture, evoke moments associated with a building rich in details, experiences, and structural changes over time. Regarding pedagogical practices, these were shaped by the restrictive guidelines of the era, with little room for innovation, reflecting an education rooted in conservative and traditional values, with a strong emphasis on discipline and control, thereby limiting the autonomy of both teachers and students. Finally, the research demonstrated that the education offered by the school significantly influenced the participants’ life trajectories, fostering a preference for the methodologies of the past when compared to contemporary formal education.

Keywords: Memory. School. Pedagogical Practices. Education.

INTRODUÇÃO

Entender o presente à luz das contribuições do passado tem sido um exercício constante na pesquisa acadêmica, revelando como a sociedade foi construída, tecida e pensada ao longo do tempo. Esses achados ao serem acessados, oferecem caminhos para compreender como as gerações de diferentes épocas conceberam a economia, a política, a ciência e a educação. Compreender essa tecitura e seus entrelaçamentos que conferem sentido às ações humanas em um dado momento histórico é fundamental.

No contexto atual, em que a microhistória e as histórias dos lugares têm ganhado maior destaque, devido à pesquisa acadêmica ter se tornado mais cotidiana, a educação formal passou a assumir uma nova importância; consequentemente, a escola passou a ser vista como um espaço de saberes, de vida, de pesquisas, de memórias. Esses espaços, ao serem acessados, possibilitaram entendê-los nas suas diversas fases e faces no decorrer das suas histórias.

Neste contexto adentramos na Escola Municipal de Ensino Fundamental Emerentina Moreira de Souza, inaugurada na década de 1970 que é parte da história da educação de Breves no arquipélago do Marajó-Pará. Ao mesmo tempo, ela representa um todo que, ao ser conjugada com as histórias de outros espaços – como o Grupo Escolar Dr. Lauro Sodré (em 1943), o Internato Evangélico Amazonas (em 1949), o Colégio Santo Agostinho (em 1964) e o Ginásio Miguel Bitar (em 1967) – contribuí para a compreensão do processo de constituição da educação institucional de Breves (Pureza, 2023).

Nesse contar narrativo, encontra-se o objetivo deste trabalho que está em analisar os percursos realizados por alunos e professores para chegarem à escola, assim como, se atém as memórias desses sujeitos a partir de seus olhares sobre o prédio escolar e as práticas pedagógicas desenvolvidas pelos professores no processo de ensinar e aprender. A partir desses relatos, busca-se compreender as relações estabelecidas entre os sujeitos e o ambiente escolar, além de identificar como as metodologias de ensino contribuíram para a formação dos alunos. Essa análise visa revelar, também, como as experiências individuais desses sujeitos ajudam a construir a memória coletiva da escola e da educação local.

A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa, com base em relatos orais e entrevistas semiestruturadas com ex-professores e ex-alunos da Escola Emerentina. A história oral foi a técnica central de coleta de dados, permitindo que as memórias e experiências dos sujeitos fossem analisadas dentro de um contexto histórico mais amplo. Além disso, adotou-se uma abordagem histórica para compreender as transformações das práticas pedagógicas ao longo do tempo, conforme sugerido por Santos (2020), e como essas práticas se refletiram na formação dos alunos da escola.

O referencial teórico se apoia em autores que discutem cidade e educação, deslocamentos, memórias e as práticas de ensino, como Halbwachs (2006), Le Goff, (1990), Lefebvre (2001), Veiga (1992), Libâneo (1985), Gadotti (1998) e Paulo Freire (1999). Esses autores fornecem a base para compreender como a educação brasileira foi impactada pelas transformações sociais, políticas e educacionais da época, incluindo as tensões entre tradição e inovação.

O presente artigo encontra-se estruturado em três seções. A primeira apresenta o contexto histórico da Escola Emerentina e o cenário educacional da década de 1970, destacando a migração para Breves, impulsionada pela busca por melhores condições de vida e acesso à educação, que representava uma oportunidade de ascensão social. A segunda se dedica a explorar as memórias dos ex-alunos, a estrutura física, as carteiras escolares e as mudanças sofridas pela escola. Por fim, a terceira seção aborda as metodologias de ensino adotadas e suas implicações na formação escolar.

O CAMINHO DA ESCOLA: EDUCAÇÃO, MIGRAÇÃO E A LUTA POR MELHORES CONDIÇÕES DE VIDA

Os deslocamentos entre o meio rural e a cidade envolvem diferentes razões, que variam de acordo com as necessidades e expectativas das pessoas. Entre essas motivações, destacam-se o casamento, o trabalho e o acesso à educação. No conjunto desses fatores, as migrações impulsionadas pelo estudo, em particular, tornaram-se mais frequentes a partir da década de 1970, devido a mudanças sociais e econômicas que levaram famílias do campo a buscarem melhores oportunidades educacionais para seus filhos nas áreas urbanas. Nas observações de Milton Santos a migração é mais do que um simples deslocamento espacial, é uma resposta do indivíduo ou do grupo a uma necessidade de sobrevivência e de melhoria das condições de vida” (SANTOS, 2006).

No Arquipélago do Marajó Ocidental, as migrações para a cidade de Breves aconteceram por diversas razões, incluindo a necessidade de prover educação escolar aos filhos. Conforme Almeida, “a Amazônia é historicamente uma região de mobilidade, onde os deslocamentos humanos respondem às dinâmicas econômicas, que, por sua vez, transformam e reestruturam as relações sociais e culturais” (ALMEIDA, 2008, p. 13). Ao mesmo tempo, o desenvolvimento econômico local, com a produção de arroz e a extração de palmito e madeira, gerava empregos que atraíam essas famílias em busca de condições de vida mais favoráveis.

Nesse contexto histórico, emergem as histórias de vida de pessoas que nos anos 1970, migraram para Breves em busca de melhores condições de vida e oportunidades educacionais para suas famílias. Esse movimento evidencia a importância crescente da educação formal como um caminho para o progresso e a ascensão social.

A situação educacional na década de 1970, porém, era desafiadora para a maioria dos brasileiros, marcada pela falta de oferta de ensino acessível. Esse cenário é ilustrado pela Imagem 1, que organiza dados do Relatório Estatístico da Educação Básica no Brasil, do INEP, e da PNAD Contínua, do IBGE. Os dados retratam o percentual de crianças e jovens matriculados na escola, conforme apresentados pelo site Brasil de Fato[2] e utilizados nesta pesquisa.

Imagem – 1. Percentual de crianças e jovens frequentando a escola

Dados: Relatório Estatísticos da Educação Básica no Brasil, do INEP e PNAD contínua, do IBGE.

O gráfico apresenta dados sobre o percentual de crianças e jovens frequentando a escola no Brasil em diferentes faixas etárias, revelando um cenário de baixa escolarização infantil. Na faixa de 4 a 6 anos, apenas 9% das crianças estavam matriculadas, indicando que a educação infantil não era prioridade no Brasil naquela época, devido à ausência de políticas públicas voltadas para essa faixa etária e à falta de infraestrutura adequada. Esse cenário reflete uma cultura em que a escolarização ainda não era garantida para todas as idades. Na faixa etária de 7 a 14 anos, o percentual de crianças frequentando a escola era maior, 67%; mesmo assim, ainda deixava aproximadamente um terço das crianças fora do sistema escolar. Isso evidencia barreiras econômicas, geográficas e sociais que limitavam o acesso à educação básica, principalmente em regiões mais afastadas, como o Arquipélago do Marajó, onde a oferta de ensino era ainda mais restrita ou inexistente nos espaços rurais.

Essa dificuldade no acesso à educação para parte da população é reforçada nas histórias de José e Antônio, que relatam a necessidade de sair de onde moravam para estudar na cidade. Apesar de suas trajetórias distintas, ambos compartilham o desejo de seus pais de proporcionar uma educação escolarizada, algo que eles próprios não tiveram a oportunidade de vivenciar. Como Paulo Freire reflete, “a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem” (Freire, 1999, p. 33), e essa coragem levou às famílias a enfrentarem os desafios da migração em busca de melhores oportunidades.

José descreve sua jornada até a Escola Emerentina, recordando as mudanças de residência e os desafios enfrentados. Seu percurso revela as dificuldades de acesso à educação e a determinação de sua mãe em garantir que os filhos tivessem oportunidades de estudo, algo que a família considerava essencial para um futuro melhor.

Eu nasci em Curralinho. Meus pais moravam em um Rio chamado Samanajós, interior do Município de Curralinho. Meus pais resolveram mudar de município e viemos para o Rio Caruáca. O Rio Caruáca é a divisa entre Breves e Curralinho. Do lado esquerdo do Rio Caruáca é Curralinho, e do lado direito é Breves. Lá, meu pai arrumou uma locação, um lugar para ele, e lá nós ficamos (José, 2024).

A minha mãe era semianalfabeta, mas uma mulher com visão de futuro para os filhos. Ela conversava com o meu pai e dizia: Antônio, eu não quero que meus filhos se criem burros como nós – na época se falava burro -. Então, temos que procurar um lugar mais próximo da cidade para que eles possam estudar, porque naquela época, 1970, não tinha escola onde morávamos (José, 2024).

Em 1970 mudamos um assentamento chamado Santa Tereza. Nesse terreno existiam várias famílias. Então, sabe… de lá a gente vinha remando para cá para estudar. A mãe da gente nos matriculou. Nós éramos vários amigos, umas dez famílias que vinham no rio remando. Alguém saía às quatro horas da manhã, aí ia batendo na casa de um, na casa de outro, e o certo era que todos íamos chegar a Breves, em fileira de canoas (José, 2024).

O relato de José sobre a sua jornada até a Escola Emerentina revela a força da memória coletiva em preservar as experiências vividas pela comunidade, refletindo o conceito de Maurice Halbwachs de que “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva” (HALBWACHS, 2006, p. 69). Ao compartilhar as dificuldades enfrentadas por sua família para garantir acesso à educação, José não apenas traz à tona suas próprias lembranças, mas também revigora a memória coletiva de um grupo social que, ao longo do tempo, se mobilizou em busca de um futuro melhor para as novas gerações. Nesse sentido, a memória individual ganha um valor histórico maior, que, como afirma Le Goff (1990), transforma-se em um instrumento de luta e resistência ao relembrar as batalhas cotidianas travadas pela educação e pela ascensão social. As águas marajoaras, como José descreve, representam mais do que um simples caminho; são o elo vital entre a comunidade e o acesso ao saber. Afinal, “As águas marajoaras gestam, então, relações de extrema dependência homem e meio ambiente, […] A água é a grande metáfora da vida, pois dela, nela ou por ela emanam, correm e podem ser concretizadas todas as necessidades humanas, intelectuais, espirituais” (SARRAF-PACHECO, 2009, p. 62)​

Antônio também narra sua experiência, mostrando que o interesse em melhorar a qualidade de vida e o acesso à educação o levou ao espaço urbano. A história de sua família reflete as dificuldades de moradia e as mudanças constantes até que pudessem se estabelecer em Breves, onde o pai conseguiu trabalho e a família passou a viver com maior estabilidade.

Nós morávamos no interior, no Rio Macacos, só que o terreno que a gente morava não era nosso. Era de um comerciante, e esse comerciante vendeu para outra pessoa, e nós tivemos que sair de lá. Diante desse fato, papai reuniu meus irmãos, que eram os maiores, e decidiram vir para Breves. Na época, a ENASA[3] ainda funcionava, e eles conseguiram emprego lá, em Corcovado[4], e nós viemos para Breves, por volta de 1972 ou 1973. Tínhamos parentes que já moravam na cidade, e isso nos deu certa orientação. Na cidade, tinha emprego, e o papai decidiu vir com a família. (Antônio, 2024)

Inicialmente, ficamos na casa de um tio, hoje já falecido, que morava atrás do campo do Santana, onde hoje é a Rua Justo Chermont. Naquela época, não tinha rua, e a gente ia por um caminhozinho. Não havia ligação, era igapó, só um torrão de terra. Depois, nos mudamos para a Rua Curica, numa casa alugada. Depois, fomos morar na Beira da Vala. Nesse período, eu estava na Escola Emerentina, até que o papai construiu nossa casa na Capitão Assis, que ainda existe até hoje, perto do Icó, que usávamos como referência de localização. Foi lá que moramos até quando eu me casei. Sou o oitavo filho de uma família de dez filhos, além de um irmão de criação, que era irmão da mamãe e morou com a gente. Nesse tempo, meu irmão mais velho e esse irmão de criação eram os que trabalhavam para ajudar o papai. (Antônio, 2024)

Os fragmentos relatados sobre a migração para Breves destacam a busca por uma vida mais estável e melhores condições de trabalho, um movimento que, segundo Lefebvre, reflete “o direito à cidade […] à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar” (Lefebvre, 2001, p. 134). A experiência da família exemplifica como o espaço urbano se torna uma promessa de novas oportunidades, mesmo quando exige sacrifícios e adaptações. Para muitos migrantes como eles, esse deslocamento não se trata apenas de uma mudança geográfica, mas de uma necessidade de sobrevivência e busca por dignidade, uma realidade que Blay descreve ao afirmar que, “premido a abandonar o campo […] o indivíduo migra para os grandes centros urbanos buscando a liberdade de vender sua força de trabalho para poder sobreviver” (Blay, 1978, p. 15). Assim, a história reflete tanto a luta pela inserção na cidade quanto o exercício do direito de se apropriar de um espaço que possa chamar de seu.

Para essas famílias, chegar à cidade representou vencer a primeira etapa de suas jornadas: encontrar um local onde pudessem dar início aos seus sonhos de uma vida mais próspera. Na cidade, onde havia trabalho e escolas, as possibilidades de planejar um futuro eram mais concretas. Enquanto para Antônio o espaço urbano se consolidou como seu destino, para José, o percurso continuou, entre as margens dos rios, agora a do Rio Parauaú, um caminho que o levava à escola e que, para ele, se tornava um trajeto repleto de experiências e desafios. 

O nosso casco ficava amarrado no Igarapé Goiabal, no Igarapé do Curro, ao lado do Bar do Amiraldo (esse bar é atual). Lá tinha aquela ponte que se passava para o internato, uma ponte de madeira, e era um igarapé com águas limpas. Lá, deixávamos nossos cascos. Perto da casa da Orquídea morava o titio Miguel Castro e a titia Miroca, e era lá que a gente mudava de roupa para ir para a escola. Eu gostava muito de jogar bola e tomar banho. Quando terminava, eu sempre tomava banho no trapiche do seu Genésio ou no trapiche da EIDAI. Minha irmã chamava: “Bora, mano, para casa…” Eu chegava em casa quase duas horas da tarde, pulando na água como outros colegas, ou então jogando bola. Eram essas as coisas que eu fazia, né? Nunca gostei de peteca, pipa, todas essas brincadeiras. O que eu gostava era de jogar bola e tomar banho (José, 2024).

Quando terminava a aula na Escola Emerentina, a gente encontrava os moleques jogando bola na rua. Tirava a roupa todinha e jogava bola só de cueca, para não sujar o uniforme. Jogávamos bola na avenida perto do Cine Yeda, e quando dava meio-dia, tínhamos que ir embora. Vestíamos a roupa e íamos (José, 2024).

Nessa narrativa encontra-se os espaços de transição e como influenciaram a formação dos jovens ribeirinhos, revelando o impacto das vivências entre o ambiente natural e o urbano. Essas experiências não se limitavam ao destino final na cidade; elas se manifestavam também no percurso, nas margens dos rios e igarapés, que funcionavam como refúgios e pontos de encontro. Como observa Leão, esses portos e rampas “palpitavam com algo de uma vida […] onde sentiam-se à vontade para aportarem e satisfazerem diferentes necessidades, espécie de local público” (Leão, 2014, p.31). Nesses espaços, os jovens reconfiguram o ambiente ao seu redor, transformando-o em símbolos carregados de significados culturais e sociais.

Para essas famílias, o acesso à cidade e à educação é um avanço, mas preservar práticas tradicionais equilibra o novo com o familiar. As atividades no igarapé e as brincadeiras com amigos constroem uma rotina de resistência e reafirmação cultural. Até a década de 1970, as ruas centrais, ainda sem pavimentação, “ficavam cobertas por uma fina areia, facilitando muitas brincadeiras por toda a cidade” (Leão, 2014, p.110), tornando esses espaços urbanos locais de vivência diária. Como aponta Leal, “a rua não é um fim, mas um meio […] é apenas um dos espaços indiferenciados” (Leal, 2008, p.133), oferecendo aos jovens interações ricas com o ambiente. Assim, a experiência urbana se revela uma construção ativa, onde o espaço físico e simbólico se entrelaça para formar uma narrativa de autodescoberta.

Esse percurso pela educação não apenas conduz a novos caminhos, mas também inspira o desejo de retribuir a comunidade. É o que expressa Jolenas ao relatar sua trajetória: após concluir o curso ginasial, ele começou a ensinar. Em seu relato, ele descreve o início de sua carreira como professor, a passagem por várias escolas e o longo compromisso com a Escola Emerentina. Assim como José e Antônio, sua história reflete a busca por oportunidades e o desejo de construir um futuro melhor, dessa vez ajudando a formar novas pessoas.

A trajetória do professor representa um percurso gradual de inserção no espaço escolar, enfrentando desafios próprios de contextos periféricos. Como afirma Freire (1999, p. 38), “ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando”, refletindo o processo de adaptação que ele vivência até se estabelecer como educador. Tardif (2002) complementa ao enfatizar que a formação docente se constrói ao longo do percurso profissional, incorporando saberes derivados das experiências vividas e do contexto social. A chegada à Escola Emerentina, após experiências temporárias, simboliza não apenas a estabilidade conquistada, mas também o fortalecimento de seu compromisso com a comunidade.

A trajetória de José, Antônio e Jolenas representa o movimento histórico das populações ribeirinhas e rurais em direção ao urbano, impulsionado pelas transformações sociais e econômicas das décadas de 1970. Nesse contexto, a educação emerge como símbolo de esperança e de mobilidade social, refletindo os desafios e aspirações dessas pessoas em busca de uma vida melhor. Conforme Del Priore (2001), a escola funcionava como uma “porta de entrada” para a cidadania e para novas oportunidades de ascensão social, tornando-se um espaço no qual projetavam seus desejos de futuro. Assim, o trajeto educativo desses sujeitos não foi apenas uma mudança espacial, mas também um processo de construção identitária e de adaptação à nova realidade urbana.

MEMÓRIAS DO PRÉDIO ESCOLAR

A Escola desperta lembranças em seus ex-alunos, memórias de um espaço de aprendizado, convivência e transformação. A estrutura física da escola e o cotidiano vivido em suas dependências fazem parte da memória coletiva dos estudantes que por lá passaram, e as recordações de José e Antônio revelam aspectos únicos dessas vivências. Conforme Halbwachs (2006), a memória coletiva não é uma simples coleção de lembranças individuais, mas uma rede de significados compartilhados que conecta experiências pessoais a um contexto social mais amplo.

José destaca as transformações físicas da escola ao longo do tempo. Ele recorda que a fachada da escola – (imagem 02) – era voltada para a Travessa Sete de Setembro e que, antigamente, a entrada ficava onde hoje está o Ginásio de Esporte Ferdinando Costa e Silva. Essa foto guarda o tempo em que a Escola Emerentina era Grupo Escolar. Os Grupos Escolares começaram a ser extintos com a implementação com a Lei 5692/71 de 11 de agosto de 1971, fixou Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2º graus como uma das ações do governo militar durante a administração de Emílio Médici.

Imagem 02 – Grupo Escola Profa. Emerentina

Fonte: Biblioteca Pública de Breves

Os grupos escolares no Brasil surgiram no início do século XX para modernizar e organizar a educação pública, substituindo o antigo sistema de aulas isoladas por um modelo seriado e progressivo. Segundo Souza (1998), o surgimento desses formatos de escolas no Brasil foi uma tentativa de modernizar a educação pública e atender ao aumento da demanda educacional de forma ordenada e progressiva, inspirados por modelos europeus e norte-americanos, implementados inicialmente em São Paulo e logo se espalharam pelo país, trazendo uma estrutura uniforme para o crescimento do sistema escolar. Um ensino em séries, estabelecendo uma organização mais rígida e disciplinada que garantia a continuidade e o controle do aprendizado (Sposito, 2004).

Os grupos escolares desaparecem no Brasil na década de 1970, com a promulgação da Lei nº 5.692/71, que instituiu o ensino de 1º e 2º graus. Essa legislação promoveu a unificação do ciclo básico em oito anos de escolarização obrigatória, marcando uma nova etapa no sistema educacional brasileiro. Nesse sentido, Romanelli (1986) aponta que a reforma tinha como objetivo principal oferecer um ensino obrigatório de oito anos e atender às demandas de uma sociedade em transformação. Além disso, Saviani (2008) destaca que a reforma também pretendia preparar os alunos para o mercado de trabalho, conferindo ao ensino um caráter mais prático. Assim, a transição visava não apenas modernizar, mas também produzir um ensino ajustando às necessidades de uma sociedade industrial e de cerceamento de liberdade em rápida expansão.

O Grupo Escolar, cuja fachada pode ser observada na imagem 03, encerrou suas últimas turmas do ensino primário em 1978, sete anos após a implementação da reforma do ensino de 1º e 2º graus. A partir de 1979, todas as turmas passaram a ser das séries iniciais do primeiro grau, marcando a transição para o novo modelo educacional. Essa mudança também é visível na imagem 02, que identifica a instituição como escola de primeiro grau, refletindo a nova nomenclatura adotada após a reforma.

Imagem 03 – Escola Estadual de Primeiro Grau

Fonte: Arquivo da Escola Emerentina

Além das alterações legais, curriculares e organizacionais, a Escola Emerentina enfrentou mudanças em sua estrutura física e de endereço, demonstrando a adaptação às novas demandas. Essas transformações incluem alterações na entrada e na disposição de seus espaços, como descrito na narrativa abaixo:

Antes a entrada da Escola Emerentina era pela Rua José Rodrigues da Fonseca. A secretaria ficava no lado esquerdo da entrada, e a sala dos professores, no lado direito. Ao seguir pelo corredor, chegava-se ao prédio de trás, onde estavam localizadas as salas de aula. A copa, no entanto, permanece no mesmo local até hoje. Com o tempo, a escola passou por diversas alterações estruturais, incluindo a mudança de entrada pela Rua José Rodrigues da Fonseca, que ocorreu após a construção do Ginásio de Esporte Municipal (José, 2024).

Essas mudanças no espaço físico refletem o conceito de Lefebvre (2001) sobre o direito à cidade, segundo o qual as transformações urbanas representam adaptações necessárias para atender às demandas da comunidade. Na imagem 01, José relembra a cerca de madeira que delimitava o prédio como um marco importante, oferecendo uma sensação de proteção e acolhimento. Já Antônio, ao recordar o mesmo cercado, traz uma perspectiva diferente: ele relata, com humor, uma tentativa frustrada de a cerca para escapar de uma vacina. Essas vivências mostram como elementos do espaço escolar evocam diferentes significados para cada sujeito, evidenciando a singularidade de cada memória e sua contribuição para a memória coletiva.

Nesse processo de revelação do espaço, diversas lembranças emergem, e uma delas, que se destaca nas narrativas dos interlocutores, são as carteiras escolares. Esses artefatos, que desempenharam um papel fundamental no ensino e na aprendizagem formal, tornaram-se ainda mais presentes com a introdução do ensino da escrita na escola. Como afirmam Castro e Silva (2011, p. 210-211), “[…] passou a ser fundamental ter-se um apoio para colocar a lousa, a ardósia ou o papel para escrever. A mesa ou a carteira foram ganhando espaço nas salas de aula, acompanhando métodos de ensino e se estabeleceram como objetos potencializadores da escrita”.

Essa organização escolar acaba desaguando para o Brasil e na escola objeto de análise, as cadeiras escolares serviram para conforto dos corpos, para colocar o caderno e escrever os conteúdos como descreve José

As carteiras eram de madeira. Nas carteiras se sentavam dois. Na parte que ficava o caderno, tinha a ‘valinha’ para colocar o lápis. A mesa era inclinada para o lado de quem estava sentado, que era exatamente para que o caderno ficasse numa posição boa para a gente escrever. Assim eram as cadeiras e, tradicionalmente, uma atrás da outra (José, 2024).

Para além do conforto de estar e realizar as atividades escolares, as cadeiras geravam posturas de comportamento e suas localizações. Sua organização no processo de ensino estava diretamente relacionada à postura de aprender, com os corpos assumindo posições determinadas e delimitadas. As cadeiras, portanto, não apenas organizavam o espaço físico, mas também estabeleciam as reais disposições de espacialidade, reforçando as passividades esperadas dos estudantes, nas palavras de Sousa, uma estratégia para modelar as classes menos abastadas, conforme ele afirma.

Assim, observou-se que o mobiliário escolar passou a estar no centro dos debates e a se articular com um projeto político-educativo que objetivava fazer da escola um aparelho modelar, capaz de instruir as classes menos abastadas e ensinar hábitos e condutas que estivessem de acordo com a civilidade almejada (Sousa, 2019, p. 15).

O ato de ensinar, em toda sua estrutura, estava baseado em um ensino tradicional e substanciado nas tradições transmitidas de geração para geração. Questionar conteúdos, expressar dificuldades ao professor, pensar ou agir de maneira diferente das normas estabelecidas provocava descontentamentos. Eventualmente, punições poderiam ocorrer, uma vez que posicionamentos fora dos padrões eram rejeitados pela sociedade e pela escola.

Esse modelo visava manter a ordem social e adaptar os sujeitos às normas da sociedade. Dessa forma, a educação não apenas transmitia conhecimentos, mas reforçava valores e estruturas sociais dominantes, pouco estimulando o pensamento crítico ou a autonomia. Analisar essas práticas é fundamental para construir uma educação que valorize o diálogo e a ressignificação dos processos educativos.

O ensino desempenha um papel essencial na formação dos alunos, sendo um tema central nas discussões educacionais. Ao longo do tempo, educadores têm desenvolvido suas práticas pedagógicas com base nos contextos históricos, sociais e culturais em que estão inseridos, refletindo as transformações da sociedade. Nesse processo, a prática docente se destaca como um agente de continuidade e adaptação, influenciando diretamente a formação dos estudantes e sustentando a dinâmica de ensino-aprendizagem.

Esse fazer pedagógico deveria ir além da simples aplicação de conteúdos, uma vez que, envolve um conjunto de ações intencionais que o educador realiza em sala de aula com o objetivo de promover a aprendizagem de forma significativa. Além disso, a prática docente está permeada por uma constante reflexão sobre os métodos de ensino e suas adequações, à medida que o professor ajusta suas abordagens de acordo com as necessidades e os desafios do grupo de alunos. Assim, o educador não apenas trabalha conteúdos, mas também se adapta continuamente para atender às diversas demandas dos estudantes, criando um ambiente de aprendizagem, muitas vezes dinâmico e inclusivo.

De acordo com Veiga (1992),

Na sala de aula, o professor faz o que sabe, o que sente e se posiciona quanto à concepção de sociedade, de homem, de educação, de escola, de aluno e de seu próprio papel. […] é na sala de aula que o professor cria e recria as possibilidades de sua prática docente, toma decisões, revê seus procedimentos, avalia o que fez (Veiga. 1992, p. 201).

Essa educação que vislumbra o diálogo e uma construção ativa entre sujeitos, não estava disponível na década de 1970 na escolarização dos sujeitos desta pesquisa. A prática de ensinar e aprender nas memórias de José, Antônio e Jolenas revela nuances da prática pedagógica, mostrando como as tradições de ensino se perpetuaram e se adaptaram aos desafios contemporâneos. José compartilha sua experiência como professor, defendendo a metodologia tradicional de cópias e ditados, que, segundo ele, melhoram a caligrafia e promovem leitura rápida e escrita correta. Após mais de trinta anos de carreira, continua a usar essas técnicas, quando aprendeu como aluno, considerando-as eficazes e um reflexo de sua formação na Escola Emerentina.

Hoje, como professor, eu uso essa técnica com meus alunos e, até aqui… só um parêntese… eu trabalho há trinta e quatro anos usando essa metodologia tradicional. Eu gosto de fazer cópia com meus alunos, fazer ditados com eles, porque a cópia tem quatro objetivos: não é a cópia pela cópia, tu tens que ler a palavra que tu vais escrever primeiro, depois tu escreves, depois que tu escreveste a palavra, tu olhas para ver se a palavra está ortograficamente correta. Ela melhora tua letra, tua caligrafia, tu aprendes a ler rápido e a escrever rápido. Então, são esses quatro objetivos que a cópia tem. Eu não abro mão do meu tradicional para o meu moderno. Fui ensinado desse jeito como aluno na Escola Emerentina e, como professor, uso a mesma prática para ensinar meus alunos. Se vocês virem a letra dos meus alunos de quarto ano, vocês não acreditam, mas é através disso (José, 2024).

Os professores dessa época valorizavam a prática tradicional, utilizando metodologias como cópias e ditados, baseadas na repetição e correção rigorosa, acreditando em sua eficácia para o desenvolvimento das habilidades básicas de leitura e escrita. No entanto, Segundo Veiga (1992), a prática pedagógica deve ser um processo contínuo de adaptação, no qual o professor facilita o conhecimento, não apenas transmite conteúdos. Assim, o apego a essas práticas podem ser vistas como resistência ou falta de entendimento às transformações pedagógicas que buscavam envolver os alunos ativamente no processo de aprendizagem.

Nesse recorte histórico da década de 1970, a pedagogia libertadora de Paulo Freire, a crítica social dos conteúdos de Saviani e as orientações da pedagogia nova estavam no campo educacional formal buscando espaços. Entretanto, como se sabe, o Brasil vivia sob as rédeas da ditadura civil-militar, e entre essas tendências educacionais, a que teve espaços na instrução inicial foi a de bases psicológicas e sociais, colocando o aluno como centro do processo educacional e os professores como mediadores da aprendizagem. A Escola Nova deslocou o foco do ensino do professor para o aluno, enfatizando métodos ativos e centrados nas necessidades individuais, mas frequentemente ignorou os condicionantes sociais que limitavam o acesso à educação de qualidade (Gadotti, 1998). Assim, os alunos iriam aprender os conteúdos, como matemática e leitura, mas o aprender estava distante da reflexão e da contextualização societária.

Com a concepção da Escola Nova, passou-se a valorizar a interação entre professores e alunos, como destaca Antônio:

As professoras mais criativas faziam círculos, grupos de estudos. Quando havia uma aluna melhor, a professora dizia: “Fulano fica contigo aqui”, e dividia: aquele que sabia ajudava quem não sabia. (Antônio, 2024)

As professoras passavam atividades para serem feitas em duplas, principalmente em matemática. Pegava-se aquele que já sabia com aquele que não sabia. Como eu já sabia… sempre gostei de matemática, eu ficava num grupo para ajudar aquela turma. Assim era feito. Não eram todos os professores que usavam essa dinâmica. (Antônio, 2024)

A ideia de aprender fazendo está sempre presente na Escola Nova. Valorizavam-se as tentativas experimentais, a pesquisa, a descoberta e o método de solução de problemas. Segundo Libâneo:

Na maioria delas, acentua-se a importância do trabalho em grupo não apenas como técnica, mas como condição básica do desenvolvimento mental. Os passos básicos do método ativo são: a) colocar o aluno numa situação de experiência que tenha um interesse por si mesma; b) o problema deve ser desafiante, como estímulo à reflexão; c) o aluno deve dispor de informações e instruções que lhe permitam pesquisar a descoberta de soluções; d) soluções provisórias devem ser incentivadas e ordenadas, com a ajuda discreta do professor; e) deve-se garantir a oportunidade de colocar as soluções à prova, a fim de determinar sua utilidade para a vida (LIBÂNEO, 1985, p. 25-26).

Essas práticas buscaram implementar o trabalho em grupo e a mediação do professor de forma distinta das orientações tradicionais, mas ainda preservavam elementos hierárquicos que limitavam a autonomia dos alunos. Apesar dos esforços para se ajustar às demandas contemporâneas, essas estratégias seguiam métodos que priorizavam objetivos específicos, sem promover uma análise mais profunda do que era ensinado. Como aponta Gadotti (1998, p. 45), uma “[…] educação libertadora exige a superação do autoritarismo pedagógico, permitindo que o aluno seja protagonista de sua própria aprendizagem.”

Ao revisitar as memórias e tentar identificar as ações, emergem diversos momentos significativos vivenciados durante o fazer pedagógico. Esse processo revela não apenas a visão do professor sobre sua prática, mas também como ele era percebido pelos alunos. Esse duplo olhar – o professor na condição de docente e o professor sob a ótica dos estudantes – amplia a compreensão sobre as práticas pedagógicas e as dinâmicas de ensino.

As narrativas dos sujeitos da pesquisa realizada destacam experiências que transcendem o conteúdo formal, os métodos utilizados, os desafios enfrentados e os impactos deixados. Por meio dessas histórias, é possível compreender como se desenvolveu o cotidiano da sala de aula e como ele foi moldado pelas necessidades e contextos específicos. Tais fatores permitem ao sujeito registrar sua experiência em quadros coletivos de memória, nos quais compartilha com membros de seu grupo os eventos vividos (Blondel, 1966).

Naquela época, eu fazia uma atividade com os alunos para despertar o gosto pela leitura e, por meio de questões que estavam no livro didático, eu oferecia um prêmio para quem encontrasse a resposta mais interessante e completa. Dessa forma, eu sempre procurava despertar o interesse dos alunos pela leitura, a vontade de saber mais, e ajudava a desenvolver a prática pedagógica (Jolenas, 2024).

Como suporte didático na prática pedagógica,

[…] usávamos as práticas. Eu usava como ferramenta de apoio, por exemplo, livros, textos, o material didático que tínhamos. Na prática pedagógica, usávamos um livro chamado Princípios Gerais de Didática. O livro foi utilizado em 1978. Eu ficava pensando: Se isso for usado hoje, será que vai dar certo? (Jolenas, 2024).

A experiência de Jolenas ao utilizar atividades para despertar o gosto pela leitura e sua reflexão sobre os métodos de ensino, como o uso de livros didáticos e práticas estabelecidas, ilustra uma tentativa de engajamento e motivação dos alunos. Contudo, o questionamento sobre a continuidade dessas práticas revela um amadurecimento sobre a necessidade de adaptação diante das mudanças na educação e na sociedade. Como Veiga destaca, “a prática pedagógica deve estar alinhada aos princípios éticos e políticos que norteiam a educação, visando à formação de cidadãos críticos e participativos” (Veiga, 1992, p. 200). A utilização de métodos tradicionais, como o Princípios Gerais de Didática, pode ter sido eficaz para os professores da época, mas hoje, essas práticas precisam ser refletidas e reconfiguradas à luz de novos desafios educacionais.

            Essa reflexão sobre a adequação das práticas pedagógicas também se entrelaça com as memórias e percepções dos ex-alunos sobre as estratégias de seus professores em sala de aula. Durante os diálogos, emergiram conjuntos de memórias que destacam…

A professora passava de carteira em carteira, olhando o que a gente estava fazendo. Havia uma vigilância muito séria. Depois, ela pedia para ir um por um à banca, à mesa da professora, mostrar a atividade e ver tudo, fazer a correção, se estava certo ou não, de forma organizada. Não era bagunçado, era bem-organizado. Tinha que ir lá, cada um por vez, levar e voltar para a carteira e ficar sentadinho. Não podia sair de lá enquanto ela verificava, ou ela passava de carteira em carteira olhando o que estava sendo feito (Antônio, 2024).

Essas memórias revelam práticas pedagógicas marcadas por uma estruturação rigorosa e metodológica, que enfatizava tanto a vigilância e a organização no momento da execução das atividades quanto a progressão entre teoria e prática como estratégia de aprendizado. Enquanto Antônio destaca o controle e a organização no acompanhamento das tarefas, José ressalta a abordagem sequencial e didática que buscava garantir a assimilação do conteúdo pelos alunos, evidenciando diferentes dimensões de uma mesma lógica educacional.

O professor dava aula teórica. Os professores falavam sobre o assunto: “Hoje é sílaba tônica”. Ele explicava tudo sobre sílaba tônica, dava exemplos e tal, e dizia: Tudo o que eu estou fazendo aqui vocês vão fazer, mas já vão memorizando aqui, vão aprendendo…. Então, primeiro ele dava uma aula teórica e, depois, os alunos iam para a prática. Da prática, iam para a atividade. O aluno tinha três maneiras de aprender: o professor explicava a aula antes, falava o que ia ser naquele dia, o conteúdo que ele ia trabalhar, passava o assunto, explicava o assunto ao aluno, e depois vinha a atividade. Assim era. E eu aprendi assim. A atividade servia para ver se a gente tinha aprendido o assunto (José, 2024).

Assim, a prática pedagógica não é um conjunto fixo de ações, mas um processo em constante transformação, que deve ser revisitado e adaptado, considerando tanto as necessidades dos alunos quanto as transformações da sociedade e da educação ao longo do tempo. Nesse sentido, pode-se compreender com a afirmação de Pollak (1992) que as preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória, influenciando diretamente as práticas e os discursos que emergem dessas experiências. Além disso, “as narrativas históricas escolares devem considerar as múltiplas memórias presentes na sociedade,” (Bittencourt, 2004, p. 58), evidenciando a necessidade de incorporar diferentes perspectivas para enriquecer a compreensão histórica e social.

A escola, como parte ativa do processo de construção social, influencia a vida daqueles que dela participam, moldando suas memórias, atos e posições. Os momentos vividos e construídos nesse ambiente escolar ficam arraigados nas lembranças e se refletem em diversas esferas da vida, como no lar, na convivência social e no trabalho. Por isso, muitos acabam levando consigo os mesmos formatos e práticas para essas áreas. Nesse contexto, destaca-se a visão de Jolenas, que expressa um saudosismo em relação à tipologia educacional tradicional, especialmente ao contrastá-la com as mudanças nas habilidades e hábitos dos estudantes contemporâneos.

Além da composição, havia a continha de matemática armada. Todo mundo sabia uma continha de cabeça. Hoje, pergunta: “Três vezes quatro?” E o aluno levanta e pega o celular… desculpa, mas não tem graça – risos –. Teu cérebro fica limitado a uma máquina. Você não tem mais desenvolvimento cerebral. A maior parte de nossos alunos de oitavo e nono anos não sabe mais fazer contas. Só se tiver o celular ou a calculadora. O celular veio acabar com tudo, o celular se tornou uma máquina. Acabou com tudo (Jolenas, 2024).

Esse apego às metodologias tradicionais pode ser compreendido, à luz de Bourdieu (2021), como um habitus, ou seja, disposições internalizadas que estruturam a percepção e a prática dos agentes sociais. No entanto, como apontam autores como Freire (1999) e Gadotti (1998), a prática pedagógica precisa transcender a reprodução de métodos preestabelecidos, incorporando uma postura crítica e reflexiva que considere as transformações culturais, tecnológicas e sociais. Assim, a análise das memórias pedagógicas deve ser um convite não à nostalgia, mas à problematização das condições históricas que sustentaram essas práticas, permitindo construir uma educação mais inclusiva, dialógica e alinhada às demandas contemporâneas.

As reflexões apresentadas mostram que a prática pedagógica reflete os contextos históricos e sociais em que está inserida, equilibrando tradição e inovação. Em conformidade com Veiga (1992) pode-se afirmar que, o professor cria e recria possibilidades de sua prática docente. Nesse sentido, a memória, como aponta Le Goff (1990), é uma construção do presente, o que reforça a necessidade de revisitar criticamente as práticas pedagógicas ao longo do tempo.

Embora práticas tradicionais tenham sido relevantes em seu contexto, elas não devem ser tomadas como imutáveis. Nas palavras de Freire (1999) ensinar exige reflexão crítica sobre a prática. Essa reflexão permite integrar saberes acumulados e demandas atuais, em busca de uma educação que dialogue com a realidade contemporânea. Lefebvre (2001) complementa: a transformação depende da ressignificação de espaços e relações.

Reconhecer a prática pedagógica como uma construção em transformação é essencial. Para além de reproduzir métodos tradicionais ou aderir a modismos, é necessário construir um ensino capaz de dialogar com a diversidade de contextos culturais e demandas dos educandos. Só assim é possível consolidar uma educação significativa, crítica e transformadora, alinhada aos desafios do presente.

As práticas pedagógicas tradicionais e contemporâneas, analisadas a partir das narrativas de José, Antônio e Jolenas, refletem a complexa interação entre memórias, experiências individuais e coletivas, bem como os contextos históricos em que se inserem. Os resultados evidenciam que essas práticas, mesmo fundamentadas em metodologias estruturadas e frequentemente controladoras, têm sido ressignificadas para enfrentar os desafios educacionais atuais. Essas experiências ilustram o impacto do fazer pedagógico não apenas no aprendizado, mas também na construção de memórias e identidades, demonstrando como o ensino é capaz de moldar as percepções de alunos e educadores ao longo do tempo.

Os achados do estudo ressaltam a importância de revisitar criticamente as práticas pedagógicas, promovendo um diálogo entre tradição e inovação. Tal abordagem contribui para o desenvolvimento de uma educação inclusiva e reflexiva, que privilegie a formação de cidadãos críticos e participativos. Ao trazer à tona as vozes e as memórias de ex-alunos, estudantes da década de 70, reforça-se a necessidade de se pensar em uma pedagogia que considere as experiências individuais e coletivas como elementos essenciais para um ensino significativo, levando em consideração o contexto vivente, as condições de ensino e as práticas pedagógicas. Essa perspectiva vai ao encontro de estudiosos da educação, como Freire e Gadotti, que destacam a educação como um espaço de transformação social.

Apesar das contribuições, o estudo apresenta algumas limitações, como a ausência de uma análise mais detalhada sobre as interações contemporâneas entre professores e alunos, especialmente em cenários marcados pelo avanço das tecnologias digitais. Além disso, as narrativas se concentram em experiências individuais, que embora ricas em detalhes, podem não abarcar a diversidade de práticas pedagógicas existentes em diferentes contextos sociais e culturais.

Futuras pesquisas podem aprofundar a análise das influências tecnológicas nas práticas pedagógicas e nas memórias escolares, explorando também as percepções de estudantes de diversas realidades socioeconômicas e culturais. Investigações sobre a formação continuada de professores e o impacto dessas formações na ressignificação das metodologias educacionais também são caminhos promissores para ampliar o entendimento sobre o tema.

Por fim, esta pesquisa contribui para o campo da educação ao oferecer uma reflexão crítica sobre as práticas pedagógicas ao longo do tempo, articulando memórias e discursos que evidenciam a relevância de um ensino que conecta passado, presente e futuro. Ao ampliar o entendimento sobre a relação entre educação, memória e contexto histórico, o estudo aponta caminhos para uma prática educacional mais consciente e transformadora, que se apropria dos aprendizados do passado sem perder de vista as demandas do presente.

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[1] Universidade Federal do Pará – UFPA. enilpureza@yahoo.com.br Orcid: 0000-0003-4444-9742

[2] https://www.brasildefato.com.br/2019/04/03/epoca-aurea-menos-da-metade-dos-jovens-tinham-acesso-a-educacao-na-ditadura

[3] Empresa de Navegação da Amazônia S/A.

[4] PUREZA, E. S. S. CIDADE E EDUCAÇÃO: Memórias e Experiências do Ensino Primário e Ginasial em Breves – Marajó das Florestas (1943-1985). Doutorado (Tese em História). Universidade Federal do Pará, Belém, 2023.