REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10515073
Lucas Cavalcante de Lima[1]
RESUMO: O Direito Europeu está atualmente comprometido com a proteção dos direitos fundamentais graças, em grande parte, a atuação do Tribunal de Justiça da União Europeia que, mesmo quando não havia normas protetivas desses direitos, já cuidava desse tema em sua jurisprudência inovadora. Conhecer a hermenêutica comunitária é compreender o percurso histórico da proteção dos direitos fundamentais no seio europeu, bem como visualizar na jurisprudência do Tribunal de Justiça a principal fonte de direito humanitário da União Europeia.
Palavras-Chave: Direitos Fundamentais. Hermenêutica. Direito Comunitário.
I. Introdução
Aqui tratar o sentido dos termos hermenêutica, direito comunitário e direitos fundamentais.
II. Jurisdição Comunitária e Concretização do Direito
Etimologicamente o termo “jurisdição[2]” indica a presença de duas palavras unidas:
júris (direito) e dictio (dizer). Portanto, a jurisdição é o poder (ou a competência) do Estado de “dizer o direito”, de aplicá-lo ao caso concreto através de seus órgãos investidos. É, ainda, a realização do Direito por um terceiro imparcial em uma situação concreta. A jurisdição comunitária[3] diz respeito à operação de aplicar o direito a nível transnacional[4] através dos tribunais comunitários. Assim dispõe o direito originário europeu: “O Tribunal de Justiça da União Europeia garante o respeito do direito na interpretação e aplicação dos Tratados” (Art. 19º TUE).
O Tribunal de Justiça da União Europeia é uma instituição comunitária (Art. 13º TUE) com dupla personalidade porque é constituída por dois tribunais: o Tribunal de Justiça (em sentido estrito), e o Tribunal Geral, antes denominado de Tribunal de Primeira Instância5. O Tribunal de Justiça é composto de um juiz por cada Estado-Membro e assistido por oito advogados-gerais. Já a composição do Tribunal Geral não está fixada precisamente nos Tratados. Há apenas uma referência à sua composição mínima, que é, pelo menos, um juiz por cada Estado-Membro. Cabe ao Estatuto do Tribunal Geral estabelecer o número exato de juízes e ainda prever sobre a assistência de advogados-gerais. Além destes, todos os tribunais nacionais dos Estados-Membros são tribunais comunitários quando aplicam ou interpretam qualquer norma de direito comunitário. São os chamados “tribunais comuns de direito comunitário”. É claro que o Tribunal nacional continuará sendo instituição jurisdicional do seu Estado, mas quando ele aplica o direito da União torna-se funcionalmente tribunal comunitário. O direito da União tem vocação à uniformidade, daí porque são princípios jurídicos fundamentais a aplicação uniforme e a interpretação conforme, que buscam garantir “a interpretação do direito nacional à luz do teor e finalidade das normas comunitárias, ainda que anteriores e de direito derivado” (GORJÃO-HENRIQUES: 2008, p. 300). Um instrumento que busca este fim é o chamado reenvio prejudicial. Por este o juiz nacional, perante uma dúvida na interpretação ou validade de uma norma comunitária, pode “consultar” o tribunal sobre qual o sentido desta norma e sobre sua validade e em que condições é válida. O Tribunal comunitário propriamente dito esclarece sobre a questão e não sobre o processo, num trabalho de colaboração interpretativa. Esclarece-nos Gorjão-Henriques, ilustre Professor da Universidade de Coimbra, que:
O reenvio prejudicial é um instrumento com uma dualidade fundamental de objectivos, exprimindo duas dimensões tendencialmente conflituantes. Por um lado, o objectivo da sua instituição foi o de estabelecer um mecanismo de cooperação judiciária entre o Tribunal de Justiça e os tribunais nacionais que permitisse ao primeiro colaborar com os segundos para a plena realização do princípio de boa administração da justiça. Por outro lado, o seu desenho e modo de implementação qual a ação a nível da União só se dará quando a questão não for melhor resolvida a nível nacional (Art. 5º, n. 3 TUE).
5 Criado após o Ato Único Europeu (1986), através da Decisão 88/591/CEE, de 14 de Outubro de 1988.
cedo o configuraram como instrumento privilegiado de garantia da uniformidade na aplicação do direito comunitário. E com uma importância acrescida, dado o princípio da administração indirecta do direito comunitário e a diversidade de culturas e sistemas jurídicos entre os Estados membros. O reenvio prejudicial visa garantir que, em todo e em cada um dos processos que decorrem diante dos órgãos jurisdicionais nacionais e onde se suscitem questões de direito comunitário, a uniformidade da aplicação das normas comunitárias [e da apreciação que da sua validade aí se faça] seja garantida, em último termo, pelo Tribunal de Justiça (Ibidem, p. 389-390).
Essa competência jurisdicional partilhada é de substancial importância para se garantir maior eficácia às normas e atos de direito europeu. Quando uma questão for melhor respondida a nível da União, esta intervirá na forma e proporção necessárias a atingir o fim, conforme os princípios da subsidiariedade (Art. 5º, n. 3 TUE), atribuição (Art. 5º, n. 2 supra) e proporcionalidade (Art. 5º, n. 4 supra). O diálogo entre os tribunais é necessário em especial quando se trata de direitos fundamentais, visto a variada forma de abordá-los e compreendêlos. O recurso aos costumes constitucionais dos Estados-Membros é, decerto, uma forma de ampliar a abordagem dando o maior grau de proteção jurídica aos direitos fundamentais, a partir de olhares diferentes de ponto de partida mas para alcançarem o mesmo ponto de chegada.
São três os níveis de proteção aos direitos fundamentais na União Europeia: nacional, transnacional e internacional. Nacional porque é dever constitucional de todo Estado assegurar o respeito ao Direito no seu território. A sociedade, e o Estado em específico, têm dever político-jurídico de oferecer aos cidadãos todos os direitos, especialmente aqueles sem os quais sequer é possível falar em vida digna, constituintes do mínimo existencial[5]. Na esfera nacional[6] cabe aos tribunais nacionais a tarefa de “dizer o direito”, assegurá-lo e efetivá-lo. O nível transnacional de proteção, por sua vez, refere-se ao âmbito da União Europeia[7]. O
Artigo 2º do TUE diz que “A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem”. No Artigo 6º, n. 1 está escrito que “A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Cata dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de
Dezembro de 2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de Dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados”[8]. Como já dissemos, cabe ao Tribunal de Justiça da União Europeia (em regra) o dever de fiscalizar a aplicação das normas e atos de direito comunitário, assim como garantir a proteção dos direitos fundamentais em toda sua extensão, ou aos tribunais nacionais quando aplicam o direito da União. Por fim, o nível internacional compreende os compromissos que cada Estado assume quando assina tratados internacionais de proteção de direitos, bem como os acordos internacionais assumidos em nome da União Europeia.
“Não mais apenas sob o prisma moral e político, mas também sob o prisma jurídico, torna-se possível a proteção e a defesa dos direitos humanos no plano internacional, mediante a consolidação de uma arquitetura protetiva internacional, que compreende instituições, procedimentos e mecanismos vocacionados à salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos afetos à dignidade humana” (PIOVESAN: 2008, p. 309).
O cidadão da União tem, portanto, um sistema triplo de proteção de direitos fundamentais. Mas antes mesmo desse sistema ter sido criado, o Tribunal de Justiça já pronunciava jurisprudência inovadora sobre o tema, daí a importância do estudo da hermenêutica comunitária.
III. Jurisdição e Hermenêutica Comunitária
A jurisdição comunitária desempenha funções importantes no âmbito da União, desde fator de integração europeia até identificação dos princípios não escritos. Muitos dos princípios e normas nasceram da jurisprudência[9] inovadora dos tribunais comunitários. Como exemplo citemos o emblemático caso Costa v. Enel (1964) case 6/64[10]. Deste caso, conjuntamente com outros correlatos, decorre as seguintes normas imperativas de direito comunitário: o direito comunitário é parte integrante do direito dos Estados-Membros, devendo ser aplicado pelos respectivos tribunais; a força normativa do direito comunitário não pode variar de Estado para Estado; as normas dos Tratados devem ser incondicionais e não meramente contingentes; os Estados só podem agir unilateralmente nos termos previstos nos Tratados; os regulamentos comunitários são vinculativos e diretamente aplicáveis, prevalecendo sobre as leis ordinárias; e o princípio do primado do direito comunitário. E se o direito comunitário goza de autonomia, a jurisdição comunitária também. A figura desse terceiro imparcial é importante para que o cidadão da União reconheça a atuação independente, prudente e justa dos juízes[11] comunitários, jurisconsultos de reconhecida competência e aptos ao exercício das mais altas funções jurisdicionais
Assim como no âmbito nacional faz-se necessário o trabalho do exegeta jurídico na interpretação e aplicação das do Direito, assim também ocorre a nível transnacional. Os juízes comunitários certamente se utilizarão das técnicas e métodos de interpretação jurídica na ponderação de valores, princípios e normas para o atendimento do caso concreto. A autonomia da ordem jurídica comunitária e o primado do direito europeu só reforçam o fato de que a jurisdição transnacional exerce influência em todos os Estados-Membros. Por isso falamos em supremacia da interpretação e aplicação do direito pelo Tribunal de Justiça. É este o Guardião do direito comunitário. Assim, em último caso, a negligência aos direitos fundamentais atestaria um total fracasso do sistema jurisdicional europeu, apontando para um desmantelamento na própria constituição político-jurídica da União. Foi com essa preocupação que o Tribunal de Justiça, diante da omissão dos Tratados quanto aos direitos fundamentais, foi construindo pouco a pouco uma interpretação axiologicamente comprometida com o valor dignidade humana.
Neste trabalho de interpretação[12] jurídica, é posto em tela não unicamente as normas de direito originário e derivado, mas também os costumes internacionais, os costumes constitucionais comuns aos Estados-Membros, os princípios gerais de direito e a jurisprudência comunitária. Basicamente, o intérprete levará em conta os elementos literalgramatical, histórico, sistemático e teleológico.
O primeiro contato do intérprete com o direito escrito é, decerto, através do elemento literal-gramatical. No mundo da linguística sabemos que as palavras ganham formas e conteúdos a depender dos espaços (geográfico e temporal) de (re)produção. Os sentidos podem variar de época a época ou de região a região. Essas vicissitudes devem ser levadas em conta na investigação do significado imediato dos termos (consideração lexical) e das relações entre si (consideração sintática). Quem precisa interpretar as normas jurídicas sabe reconhecer a importância de uma redação simples, clara e concisa. Reconhecido o seu valor, é força considerar que a literalidade do texto não pode substituir a mens legis. No Direito antigo o elemento literal era mais importante do que hoje, especialmente porque antigamente ocorria que amiúde os códigos eram escritos em línguas mortas exigindo do intérprete (mais próximo da figura do tradutor) um esforço concentrado no aspecto literal-gramatical. Atualmente já é pacífico o entendimento de que o conhecimento literal do texto legislativo não é suficiente à compreensão do espírito da lei (lato sensu), sendo necessário considerar na interpretação jurídica o elemento histórico. Nas palavras de Nader:
Como força viva que acompanha as mudanças sociais, o Direito se renova, ora aperfeiçoando os institutos vigentes, ora criando outros, para atender o desafio dos novos tempos. Em qualquer situação, o Direito se vincula à história e o jurista que almeja um conhecimento profundo da ordem jurídica, forçosamente deverá pesquisar as raízes históricas do Direito Positivo. A Escola Histórica do Direito, concebendo o fenômeno jurídico como produto da história, enfatizou a importância do elemento histórico para o processo de integração (2008, p. 279).
Na União Europeia, especificamente, a diversidade de línguas (Art. 55º TUE) só tende a dificultar a interpretação das normas, o que reforça a necessidade da consideração histórica na ponderação hermenêutica comunitária. Identificar o processo de construção dos direitos em cada Estado-Membro e no âmbito geral da União permitirá uma precisão de termos e sentidos mais próximos da ractio legis. Não se deve levar tanto em conta a vontade histórico-subjetiva do legislador, mas sim as circunstâncias histórico-sociais de nascimento das normas, configurativos da occasio legis, bem como a jurisprudência comunitária antiga. Mas considerar o elemento histórico isoladamente seria uma tarefa útil ao historiador, e não ao jurista. Por isso que Paulo Bonavides prefere falar em elemento histórico-teleológico. Sobre esse tema registrou o renomado constitucionalista brasileiro:
Os fins que o intérprete intenta determinar, mediante o critério teleológico, tanto de acham fora como dentro das proposições legislativas, sendo igualmente importante na pluridimensionalidade desse método estabelecer a vinculação histórica, a que já nos reportamos, visto que esta consente uma captação mais precisa do sentido da norma. A conexão histórico-teleológica prosperou consideravelmente na moderna hermenêutica jurídica, sobretudo em consequência de seu emprego pelos juristas da chamada escola da jurisprudência de interesses (2008, p. 446).
No elemento teleológico o hermeneuta considerará o sentido e fins das normas dos Tratados e do direito derivado (das instituições), especialmente quando o texto não deixar claro seu significado, condições de validade e aplicação. Não é, certamente, uma tarefa fácil, pois “o fim da norma jurídica não é constante, eterno, único” (MAXIMILIANO: 1999, p. 153). Daí sua necessária relação com o elemento histórico, quando melhor visualizará as vicissitudes contextuais e perceber o fim da norma, i. é., o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática.
Além dos elementos já dispostos, outro ainda apresenta-se com substancial importância ao ato interpretativo, qual seja, o sistemático. “O elemento sistemático, que opera considerando os elementos gramatical e lógico, consiste na pesquisa do sentido e alcance das expressões normativas, considerando-as em relação a outras expressões contidas na ordem jurídica, mediante comparações” (NADER: 2008, p. 278).
A interpretação sistemática do direito comunitário levará em conta a estrutura dos preceitos, das normas de direito originário, dos atos normativos das instituições e até mesmo das normas constitucionais nacionais. Como já afirmamos anteriormente, o direito da União deve ser aplicado uniformemente em todos os Estados-Membros, mas isso não exclui a necessidade de o juiz comunitário conhecer, em linhas gerais, a ordem constitucional dos Estados envolvidos, direta ou indiretamente, na ação jurisdicional. Quanto maior for a rede sistêmica criada pelo exegeta maior a possibilidade de acerto e menor a probabilidade de equívocos na ponderação hermenêutica do caso concreto.
Os elementos e métodos[13] de interpretação jurídica expostos neste texto (lista não exaustiva) não estão separados no ato interpretativo. A ponderação hermenêutica levará em conta todos ao mesmo tempo num processo único de compreensão e interpretação. Foram aqui separados por intenção metodológica. Doravante, centraremos nossa análise na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando também haveremos de considerar os direitos humanos na perspectiva da hermenêutica comunitária.
IV. Proteção dos Direitos Fundamentais na União Europeia
Faz-se mister, de antemão, resgatar um pouco da historicidade[14] dos direitos fundamentais. Mas, antes de traçarmos as linhas históricas do tema, vale expor uma concepção acerca do objeto em análise. No dizer de RICARDO (2008: p. 39), “ [a concepção de direitos humanos] pode ser resumida como um conjunto de direitos reivindicados e conquistados em um determinado contexto histórico e que compõe um todo uno, indivisível, interdependente e universal”. O que exporemos adiante é especificamente a histórica europeia acerca dos direitos humanos.
Podemos dividir a história da proteção dos direitos fundamentais na União Europeia em quatro momentos. O primeiro é representado pelos Tratados de Paris e de Roma (1968), cujo paradigma era o fator econômico[15]. Todavia, a primeira manifestação desta temática se deu com a Convenção Europeia[16] sobre os Direitos do Homem, que entrou em vigor em Setembro de 1953. A integração europeia surgiu motivada por interesses econômicos e, subsidiariamente, por uma vontade de se construir um espaço comum europeu de paz e segurança. Os direitos e liberdades dessa fase estavam voltados à proteção e promoção da economia europeia, visando unicamente o homo oeconomicus. É compreensível, então, que à essa época não houvesse, nem no direito nem na jurisprudência, uma preocupação com a temática dos direitos fundamentais.
O segundo momento foi marcado pelo Ato Único Europeu (assinado em Luxemburgo, em 17 de Fevereiro de 1986) e pelo Tratado da União Europeia (assinado em Maastricht, em 6 de Fevereiro de 1992). A primeira referência dos direitos fundamentais na União Europeia foi feita no preâmbulo do A.U.E. Apesar dessa novidade, o texto preambular não passava de meras intenções políticas. Mas foi a partir desse período que a jurisprudência comunitária passou a levar em conta os direitos fundamentais, dando fundamentalidade material a seus acórdãos e pareceres. O Tratado da União Europeia, por sua vez, promove a vinculação[17] da União aos direitos e liberdades proclamados na Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e as tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros são consideradas pela jurisprudência como princípios gerais de direito comunitário. São essas, resumidamente, as características dessa fase.
O terceiro momento foi marcado pelo Tratado de Amesterdão (assinado em 2 de Outubro de 1997), com a figura da cidadania europeia[18]. O Tratado afirma que a União Europeia se baseia nos princípios de liberdade, democracia, respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais e do Estado de Direito. Além de desenvolver o conceito de cidadania europeia, o Tratado reúne diversas medidas que tratam de por o cidadão no centro das preocupações da União. Introduzem-se medidas que fomentam a intervenção comunitária na luta contra o desemprego, o respeito do meio ambiente e a protecção dos consumidores.
Garante-se o direito de proteção diplomática, de votar e ser eleito nas eleições municipais do Estado-Membro da residência, de aceder aos documentos das instituições da UE e a comunicar com elas em qualquer das línguas oficiais da União (Art. 55º TUE).
Por fim, falta-nos comentar brevemente acerca do quarto momento de proteção dos direitos fundamentais na ordem comunitária. Na verdade, essa é uma fase ainda inacabada. Estamos vivendo atualmente esse momento. O marco é o Tratado de Lisboa (assinado em 13 de Dezembro de 2007, e que entrou em vigor no dia 1º de Dezembro de 2009). A União aceitou e concedeu vinculatividade jurídica à Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (Art. 6º, n. 1 TUE), elevando-a à categoria de direito originário. Além disso, a União aderiu formalmente à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Art. 6º, n. 2 TUE). O Tratado prevê uma nova iniciativa dos cidadãos no âmbito da qual, com um milhão de assinaturas, estes podem dirigir à Comissão Europeia uma petição para que apresente novas propostas políticas (Art. 11º, n. 4 TUE). Com essas mudanças, o Tribunal de Justiça mudaria também sua abordagem acerca dos direitos fundamentais e, consequentemente, a abordagem do princípio da dignidade humana[19].
Este princípio não contém um conceito preciso e fechado, mas vale apenas expor as considerações de Laís de Oliveira Penido (2008, p. 434):
O princípio da dignidade humana foi enunciado por Kant, nos seguintes termos: „mas aquele que constitui a condição unicamente sob a qual algo pode ser fim em si mesmo não tem meramente um valor relativo, isto é, um preço, senão um valor interior, isto é, dignidade‟.
Na acepção filosófica dignidade, palavra etimologicamente de origem latina: Dignitas, fato de ser digno, de merecer, mérito. No sentido moral: caráter de pessoa, que é autônoma e representa um fim em si, por oposição às coisas.
No sentido jurídico traz o Dicionário Jurídico Laboral o conceito de dignidade como „indeterminado cujo conteúdo depende dos usos, valores e princípios éticos imperantes em cada sociedade e em cada momento histórico‟. Mais à frente especifica consistir a dignidade da pessoa „no direito de toda pessoa a um ato que não contradiga sua condição de um ser racional igualo e livre capaz de determinar sua conduta em relação consigo mesmo e seu entorno (J. J. Solozável) (…) De outro lado o respeito da dignidade de todo homem impede tratá-lo como objeto ou instrumento por parte do Estado ou dos demais, convertendo-o em mera entidade substituível‟.
Eduardo Bittar lembra que o tema não é exclusivo da modernidade, pois desde já a cosmologia ética dos estóicos que o pensamento grego forjou uma compreensão do que seria dignidade, como valorização da capacidade racional e criativa do homem. A exegese judaica cristã antiga contribuiu, também, significativamente para a concepção da dignidade humana quando postula ser todos iguais perante o Criador. Acrescenta o autor:
Mas, são os modernos que darão uma configuração mais precisa para o tema. A questão da dignidade da pessoa humana é declarada presente nos debates modernos com a Oratio de Hominis Dignitae, do século XV (1486), de autoria de Giovanni Pico Della Mirandolla, quando se percebe a necessidade de unir a visão do antropocentrismo ascendente com a visão de autonomia do ser humano a partir de sua natureza (…).
Entre os modernos, será Kant quem haverá de aprofundar esta discussão, discutindo-a a partir da ideia de igualdade, colocando-a no centro da discussão a respeito da natureza humana racional. Em seu pensamento, portanto, a dignidade (Würde) decorre da natureza humana racional, na medida em que significa dominação e capacidade de auto-imputação de regras de comportamento. De fato, a dignidade tem haver com esta capacidade de ser autónomo, na medida em que age a razão legisladora e moral (2010, p. 247).
Em suma, constatamos que inicialmente a jurisprudência comunitária viveu uma fase “agnóstica” em relação aos direitos fundamentais. Depois leva-os em consideração como fatores de interpretação jurídica. Mas a viragem jurisprudencial considerável diz respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana[20]. Na ausência de um catálogo de direitos humanos de onde se pudesse retirar os direitos nucleares para a definição do conteúdo dos direitos humanos, o valor dignidade humana era pensado apenas como vetor hermenêutico. Como agora a União dispõe de um catálogo de direitos fundamentais com valor jurídico vinculativo, os cidadãos poderão ir a juízo comunitário pleitear a promoção ou a reparação de seus direitos básicos, necessários à garantia de uma vida digna. Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana ganha um novo significado (que não substitui o anterior, mas a ele é acrescentado), qual seja, de ser direito subjetivo exigível judicialmente nos âmbitos nacional, transnacional e internacional.
Como foi referenciado, o Tratado de Lisboa elevou os direitos fundamentais ao status de positivação jurídica na ordem comunitária, com a incorporação da Carta de Direitos Fundamentais no direito dos tratados e com a adesão formal à Convenção Europeia de Direitos do Homem. “A positivação de direitos fundamentais significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos considerados naturais e inalienáveis do indivíduo” (CANOTILHO: 2003, p. 377). Antes dessa fase, a jurisprudência do Tribunal de Justiça já havia firmado a fundamentalização material dos direitos fundamentais. A fundamentalidade material diz respeito à incorporação dos valores fundamentais da dignidade humana como base da estrutura política e social da ordem jurídica.
Na senda do renomado constitucionalista português[21], os direitos fundamentais exercem quatro principais funções. A primeira é a função de direitos de defesa, sob duas perspectivas: a) evitar a ingerência do Estado na vida dos cidadãos, para que estes exerçam com liberdade seus direitos fundamentais (liberdade positiva), e b) exigir omissões dos poderes públicos nos casos em que a ação do Estado configuraria uma supressão de liberdade e agressão à intimidade da vida particular (liberdade negativa). A segunda função é de direitos de prestações, ou seja, ao Estado incumbe oferecer aos cidadãos desprovidos de meios financeiros os serviços básicos para a manutenção da vida, ou melhor, de uma vida digna[22]. Saúde, educação, segurança, trabalho e lazer são algumas dessas prestações decorrentes dos direitos sociais, econômicos e culturais. As políticas públicas são meios que o Estado cria para oferecer essas prestações básicas. Mas os direitos fundamentais não estabelecem deveres apenas ao Estado. A função de proteção perante terceiros é, também, imperativo dos direitos fundamentais. O cidadão precisa ter seus direitos protegidos diante da agressão particular. Se o Estado se omitisse alegando que o caso é competência exclusiva dos indivíduos envolvidos, surgiria dessa omissão a figura da vingança particular, caracterizada por “fazer justiça com as próprias mãos”. A relação é entre indivíduo e outro indivíduo, mas com a garantia constitucional de proteção jurídica estatal. O direito penal e o direito civil são exemplos bem claros da tutela dos bens jurídicos particulares e coletivos. “Essa função de protecção de terceiros obrigará também o Estado a concretizar as normas reguladoras das relações jurídico-civis de forma a assegurar nestas relações a observância dos direitos fundamentais” (Ibidem, 409). Por fim, a função de não discriminação, decorrente dos princípios da igualdade e da dignidade humana, representa a quarta função dos direitos fundamentais. O Direito deve assegurar que o Estado trate os cidadãos como fundamentalmente iguais, e que estes respeitem-se uns aos outros sem qualquer tipo de preconceito. Esta função de não discriminação abrange todos os direitos, individuais, coletivos e meta individuais.
No caso do direito comunitário europeu podemos identificar essas mesmas funções, com algumas diferenças no que diz respeito ao garantidor constitucional. Como a União não tem uma constituição formal nem uma Corte de jurisdição constitucional, os Tratados assumem um papel de constituição material e o Tribunal de Justiça age como uma Corte responsável por fiscalizar as normas dos tratados e das instituições. A ação dos Estados não deixa de ser necessária, mas a competência primordial da proteção dos direitos fundamentais na ordem comunitária é do Tribunal de Justiça. Lembremos ainda que a Comissão Europeia, designada como a guardiã dos tratados, desempenha relevantes funções na manutenção do interesse comum, desiderato de qualquer ordem jurídica comprometida com os direitos fundamentais. O Parlamento Europeu[23], eleito diretamente pelos cidadãos da União Europeia, é considerado a voz dos cidadãos. Ele exerce o controle democrático sobre as outras instituições da UE, além de deter o poder orçamental da União. E, para concluirmos essa nota das instituições comunitárias responsáveis por promover e preservar os direitos fundamentais no seio da Europa, resta-nos uma breve referência ao Provedor de Justiça Europeu. O cargo de Provedor de Justiça foi instituído pelo Tratado de Maastricht de 1992. O Provedor atua como mediador entre os cidadãos e a administração da EU. Tem competência para receber e investigar queixas apresentadas por qualquer cidadão, empresa ou instituição comunitária, ou ainda por qualquer pessoa singular ou coletiva que resida ou tenha sua sede estatutária num país da União.
V. Conclusões
O diálogo entre os tribunais é necessário em especial quando se trata de direitos fundamentais, visto a variada forma de abordá-los e compreendê-los. O recurso da hermenêutica é, decerto, uma forma de ampliar a abordagem dando o maior grau de proteção jurídica aos direitos fundamentais, a partir de olhares diferentes de ponto de partida mas para alcançarem o mesmo ponto de chegada
São três os níveis de proteção aos direitos fundamentais na União Europeia: nacional, transnacional e internacional. Nacional porque é dever constitucional de todo Estado assegurar o respeito ao Direito no seu território. O nível transnacional de proteção, por sua vez, refere-se ao âmbito da União Europeia. Por fim, o nível internacional compreende os compromissos que cada Estado assume quando assina tratados internacionais de proteção de direitos, bem como os acordos internacionais assumidos em nome da União Europeia.
Assim como no âmbito nacional faz-se necessário o trabalho do exegeta jurídico na interpretação e aplicação das do Direito, assim também ocorre a nível transnacional. A ponderação hermenêutica levará em conta todos ao mesmo tempo num processo único de compreensão e interpretação, concretizando a tutela jurídica dos direitos fundamentais conforme a ponderação do caso concreto.
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IN: MATIAS, João Luis Nogueira (Coord.). Neoconstitucionalismo e Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009.
SARLET, Ingo W. “Os direitos fundamentais sociais, o direito a uma vida digna (mínimo existencial) e o direito privado: apontamentos sobre a possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares”. IN: FILHO, Agassiz A.; MELGARÉ, Plínio (Orgs.). Dignidade da Pessoa Humana: Fundamentos e Critérios Interpretativos. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 27ª Ed. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2008.WEB: http://eur-lex.europa.eu http://europa.eu
[2] “Derivado do latim jurisdictio (ação de administrar a justiça, judicatura), formado, como se vê, das expressões jus dicere, jus dictio, é usado precisamente para designar as atribuições especiais conferidas aos magistrados, encarregados de administrar a justiça. Assim, em sentido eminentemente jurídico ou propriamente forense, exprime a extensão e limite do poder de julgar de um juiz” (SILVA: 2008 p. 804).
[3] O termo “comunitário” nasceu com as Comunidades Europeias, na segunda metade do século XX. Inicialmente dizia respeito ao campo estrito das Comunidades nascidas com o Tratado de Roma. Depois, num processo de constitucionalização comunitária, o termo teve seu campo semântico ampliado passando a significar as políticas gerais de integração internacional sob a perspectiva da constitucionalidade material europeia. Portanto, quando falarmos em direito comunitário, espaço comunitário, jurisdição comunitária ou hermenêutica comunitária estamos a nos referir ao âmbito da integração jurídico-política da União Europeia, que é o espaço transnacional europeu.
[4] O termo “transnacional” quer significar o espaço que está para além do Estado-nação, um espaço internacional regional. A doutrina europeia prefere falar em espaço supranacional numa desnecessária relação hierárquica entre Nações e União. Entendemos que a União Europeia não é supra, superior aos Estados-Membros, mas sim uma forma de complementar a nível internacional os regimes político, jurídico e econômico nacionais. A este favor, lembremos que um dos princípios basilares da União Europeia é o princípio da subsidiariedade, segundo o
[5] “O mínimo existencial corresponde ao conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana digna; existência aí considerada não apenas como experiência física – a sobrevivência e a manutenção do corpo – mas também espiritual e intelectual (BARCELHOS: 2008, p. 230). Ressalta Ingo Sarlet (2010, p. 389) que o designado mínimo existencial não pode ser confundido com um mínimo vital ou um mínimo de sobrevivência, que seria a simples garantia da vida humana mesmo que em condições precárias sem necessariamente abranger as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida com certa qualidade. Diz o autor, “não deixar alguém sucumbir à fome certamente é o primeiro passo em termos da garantia de um mínimo existencial, mas não é – e muitas vezes não o é sequer de longe – o suficiente. Tal constatação, todavia, nunca impediu que se sustentasse que a obrigação do Estado – em termos de direitos subjetivos a prestações – estaria limitada à garantia do mínimo vital, posição esta, aliás, enfaticamente refutada por Ricardo Lobo Torres em todos os seus escritos sobre o tema, ao destacar, entre outros aspectos, a direta fundamentação do mínimo existencial, entre outros princípios, na dignidade da pessoa humana. Tal interpretação do conteúdo do mínimo existencial (conjunto de garantias materiais para uma vida condigna) é a que tem prevalecido não apenas na Alemanha, mas também na doutrina e jurisprudência constitucional comparada, notadamente no plano europeu, como dá conta, em caráter ilustrativo, a recente contribuição do Tribunal Constitucional de Portugal na matéria, ao reconhecer tanto um direito negativo quanto um direito positivo a um mínimo de sobrevivência condigna, como algo que o Estado não apenas não pode subtrair ao indivíduo, mas também como algo que o Estado deve positivamente assegurar, mediante prestações de natureza material” (Ibidem).
[6] “A Corte tem entendido que não se pode admitir provimento incompatível com os direitos fundamentais, reconhecidos e garantidos pela Constituição dos Estados-Membros” (BARACHO: 2005, p. 317).
[7] “Vislumbra-se uma efetiva contribuição entre Estados, no sentido de fortalecer o sistema regional que confere guarida a estes valores e princípios [dos direitos humanos], impondo censura a Estados violadores” (PIOVESAN: 2008, p. 310).
[8] MOURA RAMOS. Tratado da União Europeia e Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 29.
[9] “Chama-se jurisprudência, em geral, ao conjunto de soluções dadas pelos tribunais às questões de Direito; relativamente a um caso particular, denomina-se jurisprudência a decisão constante e uniforme dos tribunais sobre determinado ponto do Direito” (MAXIMILIANO: 1999, p. 176). “Por jurisprudência entende-se as constantes e reiteradas manifestações do Judiciário, no mesmo sentido, acerca de um mesmo assunto, dando sempre a mesma solução; ou seja, representa uma sequência de decisões ou julgamentos, sempre no mesmo sentido, dando a cada caso semelhante a mesma solução” (ALBUQUERQUE. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: 2001, p. 117.
[10] Para aprofundar, ver o processo Arrêt de la Cour du 15 juillet 1964. – Flaminio Costa contre E.N.E.L.. – Demande de décision préjudicielle: Giudice conciliatore di Milano – Italie. – Affaire 6/64(http://eurlex.europa.eu/fr).
[11] “Os juízes e os advogados-gerais do Tribunal de Justiça e os juízes do Tribunal Geral são escolhidos de entre personalidades que ofereçam todas as garantias de independência e reúnam as condições estabelecidas nos artigos 253º e 254º do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia. São nomeados de comum acordo pelos Governos dos Estados-Membros, por seis anos. Os juízes e advogados cujo mandato tenha chegado a seu termo podem ser de novo nomeados” (Art. 19º, n. 2 TUE).
[12] “Etimologicamente, o termo interpretar advém da preposição latina inter (entre) e pre (falar). A utilização antiga do termo diz muito a ver com o seu sentido tradicional, uma vez que interpres na Roma antiga era o intérprete ou advinho que via o futuro das pessoas pelas entranhas da vítima” (RODRIGUES: 2009, p. 106). “Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado do vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão (MAXIMILIANO: 1999, p. 9).
[13] Expusemos em nosso trabalho apenas os elementos considerados da hermenêutica tradicional pois é a partir destes que conseguiremos apreender os métodos da nova hermenêutica, quais sejam, o método tópicoproblemático, o método hermenêutico-concretizador, o método científico-espiritual, a metódica jurídica normativo-estruturante e o método da interpretação comparativa. Para conhecer essa nova hermenêutica, ver MATIAS, João Luis Nogueira (Coord.). Neoconstitucionalismo e Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2009; CADEMARTORI, Luiz H. Urquhart; DUARTE, Francisco Carlos. Hermenêutica e Argumentação Neoconstitucional. São Paulo: Atlas, 2009; BARROSO, Luís Roberto (Org.). A Nova Interpretação Constitucional. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008; BONAVIDES, Paulo. “Os métodos de interpretação constitucional da nova hermenêutica”. IN: _____. Curso de Direito Constitucional. 23ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2008.
[14] “Direitos humanos, em apertada síntese, são o conjunto de direitos que torna possível a existência da pessoa humana e o seu pleno desenvolvimento. Tal formulação, longe de ser óbvia e neutra, revela que os Direitos Humanos, referidos à pessoa humana historicamente considerada, acompanharam as vicissitudes do desenvolvimento da humanidade desde tempos imemoriais. Em outras palavras, impossível falar-se em Direitos Humanos sem reconhecer seu caráter histórico e contingente, ligados que são ao próprio desenvolvimento cultural da humanidade” (CORRÊA: 2008, p. 23).
[15] Flávia Piovesan já constatava este fato quando afirmou que “a União Europeia tem cada vez mais transcendido de uma ótica exclusivamente voltada à integração econômica para uma ótica voltada à integração política, com destaque às cláusulas democráticas e de direitos humanos” (2008, p. 314).
[16] “A Convenção Europeia estabelece um catálogo de direitos civis e políticos, prevendo, originalmente, a
Comissão e a Corte Europeias como meios de proteção. Com o advento do protocolo 11, que entrou em vigor em 1998, alcança-se a máxima justicialização do sistema, com a criação de uma Corte permanente a qual todo e qualquer indivíduo, grupos de indivíduos ou ONGs passa a ter direto acesso” (PIOVESAN: 2008, p. 310). Considera ainda a autora que o sistema europeu é o mais democratizado dos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, na medida em que é o único a permitir o acesso direto de indivíduos, grupo de indivíduos e ONGs à Corte Europeia de Direitos Humanos (Idem, p. 12).
[17] Essa vinculação nada mais era que uma declaração política de que os direitos e liberdades previstos na Convenção deveriam ser levados em conta quando da aplicação do direito comunitário. Esse instrumento normativo carecia, entretanto, de juridicidade. Ninguém poderia ir a juízo pleitear um direito previsto naquela Convenção.
[18] “É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui” (Art. 20º TFUE).
[19] “Seja qual for o ângulo em que analisemos o homem, vemos que ele tem a mesma origem e a mesma natureza, possuindo um valor de dignidade, ou seja, não pode ser reconhecido como coisa mas sim como pessoa. Tal dignidade é atribuída ao homem pelas suas características de racionalidade, sendo o único ser que transforma o mundo em que vive e que comunica suas experiências a seus semelhantes. A racionalidade é modo mais perfeito de subsistir uma vez que apenas o ser racional tem autonomia, porque apenas ele se possui em liberdade e autoconsciência. Ora, se todos os seres humanos são portadores de dignidade, possuindo uma igualdade intrínseca, comungando das mesmas potencialidades, natural que tenham os mesmos direitos. O próprio conceito de direitos do homem é universal, uma vez que os povos sempre tiveram um núcleo de direitos de respeito ao outro, embora tais direitos (essenciais, inalienáveis, imprescindíveis ou intocáveis) fossem especificados à medida que própria ideia de homem fosse se transformando” (CORRÊA: 2008, p. 29).
[20] “A dignidade da pessoa humana é noção formada por vários conteúdos, dentre os quais estão os chamados direitos individuais e os políticos, além dos direitos sociais, culturais e econômicos” (BARCELHOS: 2008 p. 181). “Il y a un principe, reconnu universellement dans son abstraction et qui acquiert par là valeur d‟absolu : c‟est la dignité humaine. Elle est l‟intuition première et fondamentale des droits de l‟homme, elle est la référence qui donne son sens à tout le reste. C‟est elle qui justifie qu‟on puisse seulement parler de droits de l‟homme. Toute discussion étant vaine sans cela, nous y voyons (et nous en faisons) un postulat de base, que nous posons, nous, comme indiscutable et universel” (LÖWENTHAL : 2008, p. 2).
[21] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional., Op. Cit.
[22] “O efeito pretendido pelo princípio da dignidade da pessoa humana consiste, em termos gerais, em que as pessoas tenham uma vida digna” (BARCELHOS:2008 p. 352).
[23] “Em nível comunitário, a resolução do Parlamento europeu sobre a atribuição de direitos especiais ao cidadão da Comunidade europeia teve grande significado. O Parlamento Europeu destaca a exigência de assegurar igualdade aos cidadãos da Comunidade, em matéria de direito civil e político” (BARACHO: 2005, p. 317).
[1] Bacharel em Direito (UFRN). Pós-graduado em Direito Constitucional (FEAD/IED), Direito Processual Civil (UNESA), Direito Penal (UCAM) e Segurança Pública (FFOCUS). Delegado de Polícia Civil do Estado do Pará (PCPA) e Professor da Academia de Polícia Civil da PCPA.