HERDEIRO APARENTE: CONCEITO, EFEITOS E RESPONSABILIDADE CIVIL

HEIR PRESUMPTIVE: CONCEPT, EFFECTS, AND CIVIL LIABILITY

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202411081053


Alice Sampaio Ferreira1,
Gabriel Saad de Avila Morales2,
Maria Gabriela Camargo Arcaro3


RESUMO

O herdeiro aparente surge como uma figura singular no direito sucessório, sendo alvo de fervorosos debates acadêmicos e jurisprudenciais ao revelar adversidades no campo da responsabilidade civil, com diferentes soluções a depender da intenção por trás dos atos praticados no contexto da herança. Nesse sentido, as circunstâncias fáticas ganham destaque no plano da valoração da vontade do alienante e dos terceiros adquirentes. Pela teoria da aparência, sua legitimidade é colocada em xeque e seus atos avaliados à luz do critério da boa ou má-fé, sem ignorar os efeitos irradiados desses atos. Assim, o estudo percorre as bases teóricas do herdeiro aparente, expondo suas particularidades e explorando os conceitos e efeitos dele derivados. Com uma abordagem teórica e dedutiva, com uso dos métodos qualitativo, básico, explicativo e bibliográfico, a pesquisa propõe uma revisão abrangente sobre a temática, inclusive sob as lentes do direito comparado.

Palavras-Chave: Herdeiro aparente. Teoria da aparência. Responsabilidade civil. Direito comparado. Direito sucessório.

ABSTRACT

The heir presumptive emerges as a distinguished figure in inheritance law, inspiring heated academic and court debates by revealing the many complexities in the field of civil liability, with a variety of outcomes according to the intention behind the actions taken in the context of the heritage. In this regard, factual circumstances assume prominence in assessing the intentions of both the alienor and third-party acquirers of the deceased’s estate. Under the theory of apparent authority, their legitimacy is called into question, and their actions are evaluated considering the criteria of good faith or bad faith, while acknowledging the consequential effects of such actions. The study navigates through the theoretical foundations of the presumptive heir, elucidating its specificities and delving into the concepts and resultant effects. Employing a theoretical and deductive approach, alongside qualitative, basic, explanatory, and bibliographical methods, the research proposes a comprehensive review of the subject matter, including through the lens of comparative law.

Keywords: Heir presumptive. Doctrine of apparent authority. Civil liability. Comparative law. Succession law.

INTRODUÇÃO

A figura jurídica do herdeiro aparente não era objeto de expressa previsão legal, inexistindo no Código Civil anterior tal nomenclatura. Trata-se de construção doutrinária destinada a identificar aquele que “aparenta” ser herdeiro em determinado caso e, posteriormente, se averigua que este, por razão de fato ou de direito, não pode figurar como herdeiro do de cujus. Nesse sentido, explica Caio Mário que o herdeiro aparente é aquele detém os bens a título hereditário, embora lhe falte a condição de verdadeiro herdeiro (PEREIRA, 2017, p. 79).

A figura do herdeiro aparente é amplamente difundida na doutrina e jurisprudência pátria, bem como em diferentes países, em decorrência da origem romana, bem como da ampla ocorrência de casos de sucessão em que se há um herdeiro aparente, em decorrência da complexidade das regras sucessórias e das situações da vida. Contudo, a sua conceituação, os efeitos dos atos por este praticados, bem como a sua responsabilidade variam de acordo com o ordenamento jurídico analisado.

Assim, o presente artigo tem por objetivo tratar, no âmbito do direito sucessório, da figura do herdeiro aparente, apresentando a sua origem histórica, o desenvolvimento do instituto no direito nacional e apresentar suas principais características. A partir disso, será explorado os efeitos dos atos decisórios praticados pelo herdeiro aparente no direito nacional e no direito comparado. E, por fim, a responsabilidade civil do herdeiro aparente pela prática de atos será objeto de estudo.

1 A FIGURA DO HERDEIRO APARENTE NO DIREITO BRASILEIRO

O falecimento do agente é o marco da abertura da sucessão, na qual se transmite aos herdeiros legítimos e testamentários a herança, nos termos do artigo 1.784 do Código Civil4. A herança é recebida como universitas, um conjunto heterogêneo de bens e direitos, sem discriminação. Os herdeiros, portanto, recebem os bens em um estado de indivisão, formando um condomínio sucessório nos termos do artigo 1791 do Código Civil5. Contudo, nem sempre é de fácil averiguação quem são os herdeiros, ou seja, quem tem direito sobre os bens deixados pelo de cujus.

Por força legal, são chamados a suceder aqueles que detém a qualidade de herdeiro ou legatário, em virtude de lei ou de testamento deixado por quem faleceu, desde que capazes para tanto. Assim, de início, é averiguada a existência dos herdeiros legítimos previstos no rol do artigo 1.603 do Código Civil, bem como a existência de testamento.

Em sequência, será analisada a validade do testamento analisado, averiguando a capacidade do testador, a adequação da forma escolhida aos ditames legais, bem como a validade das disposições – observação do preceito de proteção à legítima.

Individualizados os agentes que podem figurar como herdeiros legítimos ou testamentários, deverá ser observada a sua capacidade para receber a herança (capacidade sucessória). Carlos Roberto Gonçalves, no que tange à capacidade sucessória, explica que todas as pessoas naturais vivas ou já concebidas ao tempo da abertura da sucessão podem ser beneficiadas, bem como as pessoas jurídicas. Assim, diferente da capacidade civil, a capacidade sucessória é mais ampla, permitindo que os menores e incapazes sejam beneficiados com o quinhão hereditário (GONÇALVES, 2018, p. 51).

Importa pontuar que em todos os ditames legais aplicados no processo de averiguação de quem é o herdeiro deverão ser aqueles vigentes à época da abertura da sucessão, ou seja, no momento do falecimento do de cujus. O herdeiro aparente, nesse contexto, será aquele que aparenta ter direito sucessório legítimo, mas que, por força de lei ou de situação fática averiguada em momento posterior, não figura como herdeiro. Nesse sentido, o herdeiro aparente é aquele que, embora não tenha tal condição, se apresenta aos olhos de todos como herdeiro, criando a impressão generalizada de ser o sucessor do de cujus (GARCIA, 2011, p. 301-315).

Trata-se de figura jurídica fruto da complexidade da constatação do agente como herdeiro, bem como da possibilidade da ocorrência de fatos, jurídicos ou não, que atingem o direito sucessório, influenciando na determinação do agente que deverá receber o quinhão hereditário. Explica Marco Túlio Murano Garcia que a constatação da condição de herdeiro “guarda algumas complexidades, de tal sorte que não é incomum que determinada pessoa seja apontada e tratada como herdeiro, muito embora não seja o verdadeiro e legítimo titular dos direitos sucessórios” (ibidem).

O instituto jurídico do herdeiro aparente tem origem no direito romano, que chamava de “possessor pro herdare”, isto é, aquele que sob a aparência de herdeiro, comportava-se como tal. Assim, os ornamentos que têm por origem ou por inspiração o direito romano, acabaram incorporando este conceito no seu sistema de direito civil interno.

No Brasil, a doutrina nacional comumente identifica o herdeiro aparente em diferentes situações, dentre as quais destaca-se: a) o herdeiro excluído por força do reconhecimento da indignidade por sentença; b) hipóteses de premoriência; b) a procedência de petição de herança que reconhece o direito à herança a alguém, com exclusão total ou parcial daquele que acreditava ser herdeiro; c) aquele que aparenta ser herdeiro testamentário que deixa de ser herdeiro em decorrência da descoberta de novo testamento em que não foi contemplado; d) a descoberta de sucessor mais próximo que exclui aquele que acreditava ser herdeiro; e) o rompimento do testamento que instituiu o herdeiro testamentário em decorrência da descoberta de um herdeiro necessário. O Código Civil de 1916 não tratava do herdeiro aparente de forma expressa. O diploma normativo apenas disciplinava no artigo 1.5956 os agentes excluídos da sucessão, denominando-os de indignos e, logo após, no artigo 1.600, disciplinava os casos em que atos patrimoniais teriam sido praticados antes da exclusão do agente:

Art. 1.600. São válidas as alienações de bens hereditários, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro excluído, antes da sentença de exclusão; mas aos co-herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito de demandar-lhe perdas e danos

Diante deste quadro, existia na doutrina a discussão de se o indigno seria um herdeiro aparente e se essa sistemática poderia ser aplicada aos demais casos de herdeiro aparente. Destaca Sílvio de Salvo Venosa que a questão, até o advento do código civil atual, era complexa uma vez que:

[…] parte da doutrina entendeu não ser possível assimilar o herdeiro excluído ao herdeiro aparente, porque o indigno é herdeiro até o advento da sentença que o exclui. Por essa razão, as alienações feitas pelo indigno são válidas, pois não se trata de atos de disposição a non domino (por quem não é dono) (VENOSA, 2023, p. 1.166).

Nesse âmbito, uma parte da doutrina entendia que a disciplina dos atos praticados pelo indigno antes da exclusão deveria ser aplicada aos demais casos de herdeiros aparentes, por analogia, por força do artigo 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil7 e em decorrência do princípio “ubi eadem ratio, ibi idem jus” (GONÇALVES, 2018, p. 93.). E, outra parte, conforme o ilustrado na citação acima, defendia a aplicação de regimes distintos para indigno e os demais herdeiros aparentes, desconstituindo ou anulando as transações efetuadas pelos últimos.

Importante pontuar que a indignidade possibilita a exclusão dos herdeiros legítimos, necessários, facultativos, testamentários e até mesmo dos legatários. Assim, diferente dos demais casos, aquele que é tido como indigno seria detentor do direito sucessório, mas em decorrência da sentença de declaração da indignidade que tem eficácia retroativa à abertura da sucessão (efeito ex tunc), perderia esse direito. Contudo, por se tratar de sanção civil, com caráter personalíssimo, o indigno é tratado como se estivesse morto no momento da abertura da sucessão, permitindo que seus descendentes herdem.

Nos demais casos em que se identifica o herdeiro aparente, por sua vez, os agentes jamais figuraram como detentores do direito de hereditário, apenas possuindo a aparência de herdeiro. Assim, seus sucessores, por exemplo, não terão, em regra, direito sucessório.

O Código Civil de 2002 manteve a disciplina dos casos de indignidade e deserdação no artigo 1.8148 e as consequências dos atos praticados até o reconhecimento da ausência de qualidade de herdeiro são regulamentadas pelo artigo 1.8179. O diploma normativo, no entanto, inovou e tratou expressamente do herdeiro aparente, ensejando o fim do debate jurídico supracitado, passando a prever nos seus artigos 1827 e 1828:

Art. 1.827. O herdeiro pode demandar os bens da herança, mesmo em poder de terceiros, sem prejuízo da responsabilidade do possuidor originário pelo valor dos bens alienados.

Parágrafo único. São eficazes as alienações feitas, a título oneroso, pelo herdeiro aparente a terceiro de boa-fé.

Art. 1.828. O herdeiro aparente, que de boa-fé houver pago um legado, não está obrigado a prestar o equivalente ao verdadeiro sucessor, ressalvado a este o direito de proceder contra quem o recebeu.

No nosso ordenamento, o procedimento adequado para requerer o reconhecimento do direito sucessório é a ação de petição de herança (art. 1.824 do CC10), que permite ampla dilação probatória e debate sobre o tema. Observa Euclides de Oliveira que, conforme a situação, os efeitos jurídicos dos atos praticados pelo herdeiro aparente poderão ser discutidos nos autos do processo do inventário em decorrência da sua “vis atractiva” (DE OLIVEIRA, 2004, p. 57-63), nos termos do artigo 984 do Código de Processo Civil de 197311, correspondente ao atual artigo 612 do vigente Código de Processo Civil12. A figura do herdeiro aparente também está presente na doutrina francesa e italiana, tendo por origem comum no direito romano e a fundamentação na Teoria da Aparência. O Código Civil italiano, assim como o código brasileiro, não conceitua a figura do herdeiro aparente, restringindo-se à declaração da validade dos contratos a título onerosos celebrados entre o herdeiro aparente e o terceiro de boa-fé no artigo 53413.

Contudo, o legislador italiano, neste dispositivo, ressalta que a validade dos contratos supracitados não se aplica aos bens imóveis e móveis inscritos nos registros públicos nos casos em que há o registro de ação judicial contra o herdeiro aparente ou da anotação sobre o verdadeiro proprietário. A hipótese ressalvada pelo legislador estrangeiro, a nosso ver, não poderia se enquadrar no permissivo da manutenção dos efeitos da relação jurídica em decorrência da boa-fé, uma vez que o adquirente teria ciência sobre o caráter meramente aparente daquele que se diz proprietário, e, por tal razão, não precisava ser expressamente consignado.

O código civil argentino, também não conceitua expressamente a figura jurídica do herdeiro aparente, mas menciona a sua existência no artigo 3.423, enquanto sujeito passivo na ação de petição de herança, prevendo que a ação poderá ser proposta em face de (herdeiro aparente) um parente de grau mais remoto que entrou na posição de herdeiro por inação dos parentes mais próximos ou de um parente de mesmo grau que não deveria figurar como herdeiro (herdeiro aparente)14. O legislador argentino nos artigos 3.426 e 3.42715 disciplina os efeitos dos atos praticados pelo herdeiro aparente, estabelecendo um regime para aquele que está de boa-fé, dispensando, por exemplo, a indenização nos casos de perda ou deterioração da coisa; distinguindo dos efeitos advindos da prática de atos por aquele que esteja de má-fé, o qual responderá pela coisa perdida ou deteriorada.

Já o artigo 3.42816 do código civil argentino estabelece que o herdeiro aparente será de boa-fé quando este por erro de direito ou de fato acredita ser legítimo proprietário do bem. Em paralelo, ressalta que quando o parente mais distante atua como proprietário dos bens por inação do parente mais próximo não importa em má-fé, ainda que tenha consciência que apenas o último tinha direito aos bens. Neste caso, a má-fé apenas se configura quando ciente de que o aquele que deveria figurar como herdeiro (parente mais próximo) ignora o seu direito à herança. Trata-se de sistemática distinta à brasileira, posto que, no nosso ordenamento, a ausência de ação daquele que deveria figurar como herdeiro não implica na possibilidade de que terceiros (ainda que parentes) atuem como se herdeiros fossem.

2 DISPOSIÇÕES GERAIS SOBRE OS EFEITOS DA TEORIA DA APARÊNCIA NO DIREITO SUCESSÓRIO BRASILEIRO

Como já mencionado, o herdeiro aparente é:

Aquele que, por ser possuidor de bens hereditários, faz supor que seja o seu legítimo titular, quando, na verdade, não o é, pois a herança passará a terceiro que é o real herdeiro. O herdeiro aparente nunca foi herdeiro, nem titular legítimo dos direitos sucessórios, apesar de ser tido como tal em razão de algum erro de fato ou de direito, invencível e comum, aceito como verdade, pela maioria das pessoas. Enfim, aquele que pode ser herdeiro, mas não o é, por não poder suceder ao de cursos, como o que foi declarado incapaz para suceder, indigno ou deserdado, ou contemplado em testamento nulo ou anulável, caduco ou revogado. (DINIZ, 1999, p. 173)

Destarte, os herdeiros aparentes são aqueles cuja condição de herdeiro é afastada posteriormente por não possuir capacidade sucessória, seja pela exclusão pela indignidade e deserdação, ou ainda pela anulabilidade do testamento que havia instituído este como herdeiro, pela descoberta de testamento que não contemplava aquele herdeiro, ou, ainda, por ter sido reconhecido o título de herdeiro a alguém que o pretere.

Pela primeira vez, o legislador brasileiro tratou expressamente do herdeiro aparente nos arts. 1.827 e 1.828, posto que as legislações anteriores não faziam qualquer referência a este, só fazendo subentender o instituto:

Art. 1.827, Código Civil: O herdeiro pode demandar os bens da herança, mesmo em poder de terceiros, sem prejuízo da responsabilidade do possuidor originário pelo valor dos bens alienados.

Parágrafo único. São eficazes as alienações feitas, a título oneroso, pelo herdeiro aparente a terceiro de boa-fé.

Art. 1.828, Código Civil: O herdeiro aparente, que de boa-fé houver pago um legado, não está obrigado a prestar o equivalente ao verdadeiro sucessor, ressalvado a este o direito de proceder contra quem o recebeu.

Tais disposições estão dispostas de maneira expressa no capítulo de petição de herança, ação pela qual há a busca pelo reconhecimento da qualidade de herdeiro, e conjuntamente a reinvidicação de patrimônio herdado, principal efeito da declaração de aparência de um herdeiro. Nas palavras de Renato Maia:

[…] a ação de petição de herança pode ser proposta antes ou depois de homologada a partilha, uma vez que o julgamento de divisão hereditária não faz coisa julgada em relação ao pretenso herdeiro real, já que a ele foi estranha (MAIA, 2008, p. 135)

Dessa maneira, inúmeras são as situações de aparência que podem demandar o ajuizamento de uma ação de petição de herança, como por exemplo para inclusão de um filho reconhecido pelo pai, sobre o qual os demais herdeiros não tinham conhecimento, ou ainda, o surgimento de um herdeiro que se encontra em uma situação mais favorável na ordem de vocação hereditária e por isso acabaria vindicando os bens de parentes mais remotos, além da hipótese de uma realização de um testamento posterior levado a conhecimento do juízo, reconhecendo novos legatários. Aqui, cabem infindáveis exemplos sobre situações que geram a aparência e podem vir a ter como consequência o ajuizamento da ação de petição de herança, mas importante ressaltar que a questão aqui é justamente a necessidade de dilação probatória para se comprovar a qualidade de herdeiro, porque, caso contrário, bastaria a simples habilitação no inventário, e conforme bem pontua Vitor Frederico Kumpel:

[…] conforme disciplina o art. 1.824 do Código Civil, no momento em que o juiz verifica que o autor tem a qualidade de herdeiro, independentemente da apreensão material dos bens, ocorre a retrotraição dos efeitos no momento da abertura da sucessão (princípio de saisine) (KUMPEL, 2007, p. 322.)

No mesmo sentido, é pacífico na jurisprudência que a procedência de ação de petição de herança implica de forma lógica e automática a nulidade da partilha realizada sem a participação do herdeiro real, sendo descabida a ação específica para anulação de partilha e sua retificação, bastando, simples pedido de retificação daquela que anteriormente foi realizada, ou se, caso, a reabertura do inventário com feitura de nova partilha.

Assim, procura-se proteger o herdeiro aparente já que este, até então, era herdeiro e o Código Civil segue nesta linha, prevendo que são eficazes as alienações feitas, a título oneroso, pelo herdeiro aparente a terceiro de boa fé, exceção aqui à regra geral do artigo 1.827, o qual prevê responsabilidade de qualquer outro herdeiro que não o herdeiro aparente. Interessante comentário de Galvião de Almeida sobre a boa fé do herdeiro aparente:

Pouco importa se o herdeiro aparente agiu ou não de boa fé, pois o importante é que o terceiro adquirente tenha agido de boa fé para consolidar o domínio em suas mãos, prestigiando os princípios da aparência (ALMEIDA, 2003, p. 194).

Porém, há quem entenda de maneira diversa, como Orlando Gomes que entende que o herdeiro aparente pode ser de boa fé ou má fé (GOMES, 1996, p. 47). Sobre o tema:

Considerar-se-á de boa fé o herdeiro que adquirir tal posição na convicção de ser realmente herdeiro, seja por disposição legal ou testamento, ou por se ignorar a existência de parente que o precede na ordem de vocação hereditária, ou quando se supõe válido testamento absolutamente nulo, caso em que se pode até observar desconhecimento de novo testamento revogando o antigo. Já o herdeiro aparente de má fé é aquele que não desconhecia o obstáculo para poder adquirir a herança, ou então, quando embora realmente não tenha conhecimento, foi negligente quanto à indagação das circunstâncias que ensejaram dúvidas acerca de sua condição hereditária (MAIA, 2008, p. 134)

Ademais, tendo em vista que a ação de petição de herança é imprescritível por dizer respeito a questões declaratórias da condição de herdeiro, Orlando Gomes ainda trata acerca da possibilidade de usucapião pelo herdeiro aparente. Vejamos:

Outro aspecto destacado por Orlando Gomes é que se confundem dois problemas quando se admite a prescrição do direito hereditário ou, mais precisamente, do título herdeiro. O herdeiro aparente pode usucapir os bens recebidos na convicção de que lhe pertenciam por devolução regular. Assim sendo, se o consumo real somente promove a aquisição do título quando já se consumou a usucapião, impossibilitado ficará de recolher os bens. Nessa hipótese, continua o mestre, a petitio hereditatis torna-se inútil, em vista de não se produzir sua consequência natural, que é a restituição dos mesmos bens. Não é a ação que prescreve, mas a exceção de usucapião que a inutiliza” (ibidem, p. 136)

Outrossim, o artigo 1.828 do Código Civil trata do cumprimento de legado por herdeiro aparente e, assim, pouco importa quem cumpre o legado, quer seja o herdeiro aparente, quer seja o herdeiro real, o bem deve ser disponibilizado em favor do legatário de forma que o cumprimento é sempre devido. Logo, a boa fé do herdeiro aparente deve dizer respeito à forma como cumpriu o legado e não a sua ciência ou não de sua qualidade de herdeiro, pois mesmo se de má fé, caso o legado fosse devido, não há nada o que reclamar contra o herdeiro aparente que cumpriu o seu dever. E ainda, caso o legado não fosse devido, e o herdeiro aparente agiu de boa fé, também fica isento de responsabilidade, apenas cabendo ao verdadeiro herdeiro reivindicar o bem do terceiro, pela relação ter ocorrido de maneira gratuita. E, claramente, caso o herdeiro aparente tenha agido de má fé, além de reivindicar o bem junto a terceiro tem o herdeiro real direito de exigir perdas e danos do herdeiro aparente.

3 DISPOSIÇÕES ESPECÍFICAS SOBRE OS EFEITOS DOS HERDEIROS APARENTES EXCLUÍDOS DA SUCESSÃO (INDIGNIDADE E DESERDAÇÃO)

A indignidade e a deserdação são formas de exclusão da herança, de acordo com o disposto no artigo 1.814 a 1.818 do Código Civil e portanto, até que sejam declarados excluídos da sucessão, os herdeiros são aparentes.

Assim como dispõe Pontes de Miranda, a sentença não gera um caráter de inexistência do indigno, com faz a renúncia, de forma que o indigno foi herdeiro e depois foi excluído, por incidir em uma pena (PONTES DE MIRANDA, 1983, p. 194.).

Tanto no caso da indignidade quanto no caso da deserdação, há a necessidade de declaração judicial da exclusão, justamente porque trata-se de exceção ao princípio do direito constitucional de herança, previsto no artigo 5º, XXX da Constituição Federal:

Art. 5, Constituição Federal: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXX – é garantido o direito de herança;

Assim, ainda que haja disposição legal de que a sentença de exclusão do herdeiro venha a retroagir, como regra para todos os efeitos, há a exceção dos atos praticados por terceiro de boa fé, hipóteses nas quais não haverá invalidade. Da mesma forma, dispõe o artigo 1.817 do Código Civil também dispõe acerca dos efeitos das alienações feitas pelo herdeiro aparente, visto que “serão válidas as alienações onerosas a terceiros de boa fé e os atos de administração legalmente praticados, antes da sentença de exclusão”. Logo, é fundamental proteger o terceiro de boa fé que adquiriu, onerosamente, bens e direitos do indigno ou do deserdado, antes da decisão judicial e, ainda:

Para efeito de proteção do terceiro que, de boa fé negociou com o sucessor aparente, é irrelevante que este saiba, ou não, da condição que lhe excluiu da sucessão. Importa é a proteção do terceiro que acreditou na situação que aparentava ser verdadeira. Fundamenta-se, a toda evidência, na segurança necessária aos negócios jurídicos em geral. (CHAVES DE FARIA e ROSENVALD, 2020, p. 170.)

Da mesma forma entende o professor Silvio Rodrigues, que dispõe que a sentença de exclusão retroage para todos os efeitos, exceto para invalidar os atos de disposição praticados pelo indigno perante terceiros de boa fé, já que não poderiam prever futura exclusão do herdeiro.

No mesmo sentido de como já explicado, pouco importa a boa fé do herdeiro aparente, dispondo o artigo 1.817, parágrafo único do Código Civil, acerca dos frutos e rendimentos dos bens da herança que estavam sob a posse dos herdeiros aparentes:

[…] o excluído da sucessão é obrigado a restituir os frutos e rendimentos que dos bens da herança houver percebido, mas tem direito a ser indenizado das despesas e conservação com eles

Sobre o tema, ainda interessante comentário do Luiz Paulo Vieira de Carvalho:

É de se explicitar, que o nosso legislador atual, prestigiando o princípio da aparência e o princípio da boa-fé, tem como válidas e eficazes as alienações onerosas (por exemplo, compra e venda, cessão de herança onerosa etc.) realizadas anteriormente a exclusão pelo indigno aos terceiros adquirentes de boa-fé tendo por objeto bens por ele recebidos na sucessão do ofendido, bem como os atos de administração a eles relacionados. (CARVALHO, 2023, p. 657)

Mas, não deixa de tratar acerca dos herdeiros, que possuem o direito de demandar perdas e danos do próprio excluído da sucessão que se apresentava como herdeiro aparente. Aqui, sob o prisma processual, tal ação pode se dar tanto por meio de denunciação da lide quanto por meio de uma ação autônoma.

Interessante notar que Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald ainda fazem ressalva para caso a alienação não seja onerosa, e sim gratuita. Vejamos:

Por evidente, em se tratando de alienações gratuitas (por exemplo, doação), não se justifica a proteção do terceiro, em face da inexistência de boa fé, por conta da presunção de fraude contra credores decorrente da prática de atos gratuitos, consoante a previsão do art. 158 (“os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos) do próprio Código Civil. (CHAVES DE FARIA e ROSENVALD, 2020, p. 170)

Da mesma forma, Silvio de Salvo Venosa dispõe que tratando-se de alienações a título gratuito, não se justifica a mantença do ato de alienação praticado pelo herdeiro aparente, já que não haverá prejuízo. Nessa hipótese, deve ser dada preponderância à situação do herdeiro real.17

Logo, se tratando de alienação a título oneroso são válidas, desde que o terceiro adquirente esteja de boa-fé, mas no caso de alienação a título gratuito e no caso de terceiro de má fé, os atos são ineficazes.

Portanto, a compreensão dos efeitos da teoria da aparência no direito sucessório brasileiro é crucial para garantir a justiça e a eficácia das relações jurídicas relacionadas à sucessão de bens. A análise cuidadosa das disposições legais pertinentes e a consideração dos princípios fundamentais do direito sucessório são essenciais para uma aplicação adequada da lei e para a proteção dos direitos das partes envolvidas.

4 DIREITOS REAIS, ALIENAÇÃO ONEROSA E RESPONSABILIDADE CIVIL DO HERDEIRO APARENTE

Com base nas observações empreendidas nos capítulos anteriores, nos quais foram revelados os conceitos, regras e exceções que cingem a figura do herdeiro aparente, nota-se que suas ações praticadas no curso da sucessão podem resultar em consequências jurídicas no campo da responsabilidade civil ainda que, neste primeiro momento, de forma implícita.

Isto porque a responsabilidade civil tem o escopo de conduzir as partes ao cumprimento das obrigações assumidas – sob o prisma legal ou negocial – e a reparação dos danos que, por ato ilícito, risco da atividade ou inadimplemento contratual, produzir lesão ou inadimplemento, com exceção das excludentes e do exercício regular de direito – sem prejuízo da redução equitativa da cifra indenizatória em circunstâncias de concorrência culposa no resultado.

 Trata-se, portanto, de disciplina voltada à resolução de conflitos resultantes do descumprimento de deveres previstos contratual ou extracontratualmente, com o propósito de fazer valer a confiança e a legítima expectativa depositadas ou, na impossibilidade, retorno das partes ao estado anterior. Afigura-se, assim, uma ferramenta de preservação da boa-fé objetiva e de projeção da paz social.

Neste âmbito, a atividade jurisdicional ocupa-se em valorar a conduta do devedor a partir das circunstâncias fáticas que regem a relação jurídica, buscando ingressar na órbita da vontade do agente, isto é, sob o crivo do elemento subjetivo.

Preenchidos os pressupostos objetivos e subjetivos – inclusive os negativos derivados das excludentes e do exercício regular de direito –, nasce o direito subjetivo de o credor exigir a purgação da mora e/ou a justa indenização, garantido seu direito de ação para postular em juízo, com vistas à proteção do seu patrimônio material ou imaterial.

Ainda que não seja possível o retorno ao status quo ante, todos os esforços devem ser canalizados para tentar neutralizar ao máximo a lesão sofrida, à luz do princípio da integral reparação, especialmente em hipóteses de afronta física, psíquica ou espiritual, aspectos que integram a dignidade da pessoa humana, sob o prisma do mínimo existencial e das condições de pleno desenvolvimento do indivíduo – sem desconsiderar, claro, as pessoas jurídicas na sua esfera imaterial.

Por consequência, acomodando a responsabilidade civil à temática em tela, tem-se que em hipóteses de alienação onerosa de bens que compõem o acervo hereditário, cabe ao herdeiro preterido a defesa do seu respectivo quinhão contra o aparente “desmascarado”, com suporte no artigo 1.817 do Código Civil, que reza:

Art. 1.817. São válidas as alienações onerosas de bens hereditários a terceiros de boa-fé, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro, antes da sentença de exclusão; mas aos herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito de demandar-lhe perdas e danos.

Parágrafo único. O excluído da sucessão é obrigado a restituir os frutos e rendimentos que dos bens da herança houver percebido, mas tem direito a ser indenizado das despesas com a conservação deles.

Aos que entendem haver equiparação entre os herdeiros excluídos e aparentes, o que parece ser o entendimento majoritário da doutrina e sedimentado na jurisprudência, como veremos, tal solução seria combinada com o artigo 1.827 do Códex, que assim dispõe:

Art. 1.827. O herdeiro pode demandar os bens da herança, mesmo em poder de terceiros, sem prejuízo da responsabilidade do possuidor originário pelo valor dos bens alienados.

Parágrafo único. São eficazes as alienações feitas, a título oneroso, pelo herdeiro aparente a terceiro de boa-fé.

Assim, aos defensores desse posicionamento – o que nos parece ser o mais razoável, respeitados os entendimentos contrários – aqui prevalecem os valores da segurança jurídica e da proteção do ato jurídico perfeito na solução de casos de alienação do patrimônio hereditário cobertos de boa-fé do terceiro adquirente, sem maiores distinções de tratamento sobre eventual má-fé do herdeiro alienante.

Com essa premissa, eventual má-fé poderia intensificar o valor a ser arbitrado em eventuais perdas e danos aferíveis, uma vez que já é amplamente admitida a função punitiva da reparação do dano extrapatrimonial, mas jamais o desfazimento do negócio contra o terceiro de boa-fé.

Em todo caso, remanesce aos herdeiros o direito de apurar eventuais perdas e danos em razão do negócio convencionado, na proporção de seus respectivos quinhões, o que engloba também os frutos e rendimentos da coisa demandada.

Já na hipótese de demonstração da má-fé do terceiro adquirente, cujo onus probandi recai sobre aquele que alega – ainda que na alienação a título gratuito facilite isto, por bastar o eventus damni –, há o desfazimento do negócio, em complemento das demais consequências anteriores, isto é, apuração das perdas e danos, além da restituição do quinhão, e dos frutos e rendimentos emanados da coisa.

Para tanto, deve o interessado comprovar o consilium fraudis, ou seja, a intenção de conluio com a finalidade de fraudar, visto que a má-fé não é elemento pressuposto, mas carece de comprovação se a alienação foi onerosa, dada a presunção de boa-fé dos negócios jurídicos, sem a possibilidade de dolo presumido – sob pena de retornarmos à barbárie da responsabilidade objetiva como regra das ordenações.

No que diz respeito ao dano extrapatrimonial, vale destacar que eles incidem sobre a apuração do quantum das perdas e danos, sobretudo nos casos de alienação de bens de valor inestimável e outras hipóteses de violação aos direitos da personalidade dos herdeiros reais.

Com efeito, não é possível dissociar a validade dos atos praticados pelo herdeiro excluído da averiguação do animus do adquirente. No entanto, em todos os casos o pagamento proporcional ao quinhão, frutos e rendimentos é devido, além de eventuais perdas e danos. A mesma lógica se aplica nos demais casos em que o herdeiro aparente exerça direitos reais sobre a propriedade.

5 O HERDEIRO APARENTE SOB A ÓPTICA DA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E DO DIREITO COMPARADO

A jurisprudência brasileira já sedimentou seu entendimento em sentido convergente ao exposto no que se refere à responsabilidade civil do herdeiro aparente, com destaque às teses firmadas no Supremo Tribunal Federal no âmbito dos leading cases formados nos Recursos Extraordinários n.º 84.938/MG e 96.841-5/GO, que, em dissídio jurisprudencial, atribuíram soluções diversas em circunstâncias boa ou má-fé do terceiro adquirente, além de reconhecer a figura do herdeiro aparente, com diferentes consequências a partir  da sua intenção:

Herdeiro aparente. Validade da alienação feita por herdeiro aparente quanto ao adquirente de boa-fé. Conhecimento pela letra d do permissivo constitucional e desprovimento do recurso.18

HERDEIRO APARENTE. VENDA DE BEM IMÓVEL. AÇÃO ANTERIOR CONTRA O DEVEDOR. COMPRADOR DE MÁ-FÉ. NULIDADE DO NEGÓCIO. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 1.600 DO C.C. 19

Os aludidos acórdãos mostram que o Supremo reconhece desde a década de 1970 a figura enigmática do herdeiro aparente no ordenamento brasileiro, mesmo antes do advento do Código Civil de 2002.

Nesses casos, a solução foi a manutenção da higidez do negócio jurídico na hipótese de boa-fé do adquirente, e desfazimento do negócio em caso de má-fé, sem maiores distinções.

No direito comparado, contudo, existem diferentes soluções estrangeiras para a solução dos cenários apresentados.

Na Argentina, por exemplo, a demonstração da má-fé do alienante é crucial para ser obrigado a restituir ou arcar com eventuais perdas e danos, conforme artigos 3.426 e 3.427 do Código Civil argentino, com a ressalva de que lá a boa-fé condiz à crença indubitável de ser possuidor o exclusivo dono da coisa, nos moldes do seu artigo 4.006, ou quando por ignorância/erro se convencer do mesmo:

Art. 3426.- El tenedor de buena fe de la herencia no debe ninguna indemnización por la pérdida, o por el deterioro que hubiese causado a las cosas hereditarias, a menos que se hubiese aprovechado del deterioro; y en tal caso por sólo el provecho que hubiese obtenido. El tenedor de mala fe está obligado a reparar todo daño que se hubiere causado por su hecho. Está también obligado a responder de la pérdida o deterioro de los objetos hereditarios ocurrido por caso fortuito, a no ser que la pérdida o deterioro hubiese igualmente tenido lugar si esos objetos se hubieran encontrado en poder del heredero.

Art. 3427.- En cuanto a los frutos de la herencia y a las mejoras hechas en las cosas hereditarias, se observará lo dispuesto respecto a los poseedores de buena o mala fe20.

Portanto, no direito argentino, os efeitos da boa-fé se projetam na obrigação de restituir do herdeiro aparente, não devendo o possuidor de boa-fé qualquer indenização por eventos que tenha gerado às coisas herdadas, salvo na hipótese de aproveitamento desses danos, nos limites do proveito econômico obtido.

Um exemplo de Eduardo Zannoni para isso é o caso de herdeiro aparente demolir imóvel objeto da herança e vender os materiais de construção posteriormente. Neste caso, responde apenas pelo lucro auferido com a venda de tais produtos, não respondendo pela demolição do imóvel que confiava possuir (ZANNONI, 1993).

No direito português, por seu turno, surge a figura do herdeiro aparente na teoria dos atos, com o objetivo de resguardar os terceiros de boa-fé. Lá, caso um devedor da herança pague a dívida ao herdeiro excluído crendo que era legítimo sucessor, restará ao herdeiro real apenas o direito de exigir a restituição da soma recebida, com ou sem boa-fé, sem desfazimento do negócio. Há discussão, no entanto, quanto aos casos de hipotecas e alienações fiduciárias, em tese anuláveis sob a égide dos artigos 894 e 1.555 do Código Civil português:

Artigo 894.º (Restituição do preço) 1. Sendo nula a venda de bens alheios, o comprador que tiver procedido de boa fé tem o direito de exigir a restituição integral do preço, ainda que os bens se hajam perdido, estejam deteriorados ou tenham diminuído de valor por qualquer outra causa. 2. Mas, se o comprador houver tirado proveito da perda ou diminuição de valor dos bens, será o proveito abatido no montante do preço e da indemnização que o vendedor tenha de pagar-lhe. […].

Artigo 1555.º (Direito de preferência na alienação do prédio encravado) 1. O proprietário de prédio onerado com a servidão legal de passagem, qualquer que tenha sido o título constitutivo, tem direito de preferência, no caso de venda, dação em cumprimento ou aforamento do prédio dominante. 2. É aplicável a este caso o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º 3. Sendo dois ou mais os preferentes, abrir-se-á entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.

Já na Itália, a intenção do terceiro é compreendida como pouco relevante na resolução dos casos, uma vez que basta ao sujeito agir como verdadeiro herdeiro sem o ser para a validade dos seus atos, detendo legítimo título para tanto, nos conformes do artigo 534 do Código Civil italiano (BRUNETT, 1894). Tal dispositivo prescreve:

L’erede può agire anche contro gli aventi causa da chi possiede a titolo di erede o senza titolo. Sono salvi i diritti acquistati, per effetto di convenzioni a titolo oneroso(1) con l’erede apparente(2), dai terzi i quali provino di avere contrattato in buona fede(3) [1147, 1153, 1189, 1396, 1445, 1729 c.c.]. La disposizione del comma precedente non si applica ai beni immobili e ai beni mobili iscritti nei pubblici registri [2683 c.c.], se l’acquisto a titolo di erede [2648 c.c.] e l’acquisto dall’erede apparente non sono stati trascritti anteriormente alla trascrizione dell’acquisto da parte dell’erede o del legatario vero, o alla trascrizione della domanda giudiziale contro l’erede apparente(4) [2652 n. 7 c.c.].21

Assim, o direito doméstico e estrangeiro enfatizam a necessidade de proteção à segurança dos negócios jurídicos celebrados entre perante terceiros de boa-fé, demonstrando a importância da preservação do ato jurídico perfeito na solução de possíveis entraves derivados do direito sucessório, especialmente no que se refere ao herdeiro aparente, com algumas peculiaridades na legislação italiana, preocupada no título, não na intenção efetivamente.

A criatividade humana atrelada à complexidade das relações sociais, no entanto, é capaz de criar particularidades que careçam de resolução diversa, de sorte que as consequências tratadas neste capítulo são regras gerais, com disposições similares no direito pátrio e estrangeiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O herdeiro aparente é aquele que reputa deter capacidade sucessória aos olhos do imaginário coletivo, sendo confundido como sucessor do de cujus.

Verificada a ocorrência de erro de fato ou de direito, o sujeito passa a ficar impossibilitado de auferir os bens e direitos deixados pelo autor da herança, gerando, assim, reconhecimento superveniente da sua incapacidade sucessória, com validade dos atos praticados, com exceção das alienações não onerosas ou revestidas de má-fé do adquirente, dentre outras hipóteses de nulidade e anulabilidade. Com base na teoria da aparência, é pacífico que a figura do herdeiro aparente aparece nos casos de exclusão da herança por força de premoriência, procedência de petição de herança, descoberta de novo testamento, rompimento de testamento por descoberta de herdeiro necessário ou revelação de sucessor mais próximo na linha de sucessão. Há divergência, no entanto, em relação à aproximação da figura do herdeiro indigno ou deserdado, isto é, atingido por decisão declaratória de indignidade (pena civil) ou deserção.

Dentre as diferenças constatáveis, está o fato de a motivação por trás da exclusão do indigno decorrer de ato conduzido pela sua própria vontade em lesar o de cujus ou pessoas próximas. Sua exclusão, portanto, ocorre por aplicação de uma pena civil, não de mera retificação da linha de vocação hereditária por erro, como nas demais hipóteses.

Verifica-se, ainda, o fenômeno da deserdação, caracterizada pela perda superveniente da herança por ato de vontade do autor ostentada em testamento, podendo apenas os herdeiros necessários (filhos, pais e cônjuges) sofrer o desfecho, o que pode ser questionado pela via judicial, sob o crivo do contraditório.

A despeito disso, o texto filia-se à ideia de que essas modalidades de exclusão de herdeiros estão albergadas na teoria da aparência, tratando-se tipicamente de herdeiros aparentes, uma vez que a sua caracterização envolve qualquer situação de exclusão posterior de sucessores até então considerados legítimos, sem distinção no que se refere à retificação de erro ou aplicação de pena civil.

No plano da responsabilidade civil, eventuais alienações perante terceiros de boa-fé devem ser respeitadas, remanescendo ao herdeiro preterido o direito à restituição dos frutos, rendimentos e eventuais perdas e danos, sem desfazimento do negócio, em regra, o que ocorre somente se comprovada a má-fé do adquirente. Contudo, há divergências no que diz respeito à má-fé do alienante, isto é, do herdeiro aparente, ainda que o entendimento predominante seja da indiferença.

Após, avalia-se como o Supremo Tribunal Federal vem admitindo a figura do herdeiro aparente desde a década de 1970, firmando entendimentos paradigmáticos em leading cases, cuja solução é até hoje seguida pelos tribunais pátrios e ratificada na doutrina.

Por fim, compara-se a legislação argentina, portuguesa e italiana com a brasileira, demonstrando não apenas as proximidades e diferenças entre os ordenamentos, mas principalmente como fazem prevalecer os valores da segurança e do ato jurídico perfeito em situações semelhantes.


4 Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

5 Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.

6 Art. 1.595. São excluídos da sucessão (arts. 1.708, n. IV, e 1.741 a 1.745), os herdeiros, ou legatários: I – Que houverem sido autores ou cúmplices em crime de homicídio voluntário, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar. II – Que a acusaram caluniosamente em juízo, ou incorreram em crime contra a sua honra. III – Que, por violência ou fraude, a inibiram de livremente dispor dos seus bens em testamento ou codicilo, ou lhe obstaram a execução dos atos de última vontade.

7 Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

8 Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.

9 Art. 1.817. São válidas as alienações onerosas de bens hereditários a terceiros de boa-fé, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro, antes da sentença de exclusão; mas aos herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito de demandar-lhe perdas e danos.

10 Art. 1.824. O herdeiro pode, em ação de petição de herança, demandar o reconhecimento de seu direito sucessório, para obter a restituição da herança, ou de parte dela, contra quem, na qualidade de herdeiro, ou mesmo sem título, a possua.

11 984. O juiz decidirá todas as questões de direito e também as questões de fato, quando este se achar provado por documento, só remetendo para os meios ordinários as que demandarem alta indagação ou dependerem de outras provas.

12 Art. 612. O juiz decidirá todas as questões de direito desde que os fatos relevantes estejam provados por documento, só remetendo para as vias ordinárias as questões que dependerem de outras provas.

13 Código Civil Italiano: Art. 534. (Diritti dei terzi). L’erede puo’ agire anche contro gli aventi causa da chi possiede a titolo di erede o senza titolo. Sono salvi i diritti acquistati, per effetto di convenzioni a titolo oneroso con l’erede apparente, dai terzi i quali provino di avere contrattato in buona fede. La disposizione del comma precedente non si applica ai beni immobili e ai beni mobili iscritti nei pubblici registri, se l’acquisto a titolo di erede e l’acquisto dall’erede apparente non sono stati trascritti anteriormente alla trascrizione dell’acquisto da parte dell’erede o del legatario vero, o alla trascrizione della domanda giudiziale contro l’erede apparente. https://www.wipo.int/wipolex/es/text/430550

14 Código Civil argentino: Art. 3.423. La acción de petición de herencia se da contra un pariente del grado más remoto que ha entrado en posesión de ella por ausencia o inacción de los pariente más próximos; o bien, contra un pariente del mismo grado, que rehusa reconocerle la calidad de heredero o que pretende ser también llamado a la sucesión en concurrencia con él. https://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/105000-109999/109481/texactley340_libroIV_S1_tituloIV.htm

15 Art. 3.426. El tenedor de buena fe de la herencia no debe ninguna indemnización por la perdida, o por el deterioro que hubiese causado a las cosas hereditarias, a menos que se hubiese aprovechado del deterioro; y en tal caso por sólo el provecho que hubiese obtenido. El tenedor de mala fe está obligado a reparar todo daño que se hubiere causado por su hecho. Está también obligado a responder de la pérdida o deterioro de los objetos hereditarios ocurrido por caso fortuito, a no ser que la pérdida o deterioro hubiese igualmente tenido lugar si esos objetos se hubieran encontrado en poder del heredero. Art. 3.427. En cuanto a los frutos de la herencia y a las mejoras hechas en las cosas hereditarias, se observará lo dispuesto respecto a los poseedores de buena o mala fe.

16 Art. 3.428. El poseedor de la herencia es de buena fe cuando por error de hecho o de derecho se cree legítimo propietario de la sucesión cuya posesión tiene. Los parientes más lejanos que toman posesión de la herencia por la inacción de un pariente más próximo, no son de mala fe, por tener conocimiento de que la sucesión está deferida a este último. Pero son de mala fe, cuando conociendo la existencia del pariente más próximo, saben que no se ha presentado a recoger la sucesión porque ignoraba que le fuese deferida.

17 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito das sucessões. 12ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2012. P. 80.

18 DISTRITO FEDERAL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n.º 84.938/MG. Recorrente: Joseph Moscovice. Recorrido: Lannes Fernando Nagnabosco e outro. Relator: Min. Rel. Soares Muñoz. Brasília, 2 de mai. 1978. Disponível em: https://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STF/IT/RE_84938_MG_1278577157501.pdf?AWSAccessKeyId=AKIARMMD5JEAO67SMCVA&Expires=1716436510&Signature=K3ho2RWfOWoinvH41o66D7mD6ec%3D. Acesso em 23 mai. 2024.

19 DISTRITO FEDERAL. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário n.º 96.841-5/GO. Recorrente: Laudelino Dias Pinheiro e outro. Recorrido: José Xavier Ferro Sobrinho. Relator: Min. Cordeiro Guerra. Brasília, 7 de dez. 1982. Disponível em: https://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STF/IT/RE_96841_GO-_07.12.1982.pdf?AWSAccessKeyId=AKIARMMD5JEAO67SMCVA&Expires=1716437018&Signature=POE%2Fmc2Vr2It%2FCDvw0uc554fVvM%3D. Acesso em 23 mai. 2024.

20 Tradução livre: Art. 3426 – O detentor de boa-fé da herança não deve nenhuma indenização pela perda ou pelo deterioro causado aos bens hereditários, a menos que tenha se beneficiado do deterioro; e, nesse caso, apenas pelo benefício obtido. O detentor de má-fé é obrigado a reparar todo dano causado por sua ação. Ele também é obrigado a responder pela perda ou deterioro dos objetos hereditários ocorridos por caso fortuito, a menos que a perda ou deterioro também tivesse ocorrido se esses objetos estivessem sob posse do herdeiro. Art. 3427 – Quanto aos frutos da herança e às melhorias feitas nos bens hereditários, será observado o disposto em relação aos possuidores de boa ou má-fé.

21 Tradução livre: O herdeiro pode agir também contra os sucessores daqueles que possuem a título de herdeiro ou sem título. São preservados os direitos adquiridos, em virtude de acordos onerosos, com o herdeiro aparente, pelos terceiros que provem terem contratado de boa-fé. A disposição do parágrafo anterior não se aplica aos bens imóveis e móveis inscritos nos registros públicos, se a aquisição a título de herdeiro e a aquisição do herdeiro aparente não foram transcritas anteriormente à transcrição da aquisição pelo herdeiro ou legatário verdadeiro, ou à transcrição da petição judicial contra o herdeiro aparente.


REFERÊNCIAS

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ZANNONI, Eduardo. Derecho civil: derecho de la sucessione. 2.ª ed. Buenos Aires: Astrea, 1993.


1Advogada. Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Endereço eletrônico: ra00330466@pucsp.edu.br.

2Advogado. Mestrando, especialista e bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Endereço eletrônico: ra00183518@pucsp.edu.br.

3Advogada. Mestranda e bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Especialista em Direito pela Escola Paulista da Magistratura – EPM. Endereço eletrônico: ra00165158@pucsp.edu.br.