GÊNERO, IDENTIDADE E SEXUALIDADE: DOS CONCEITOS ÀS CATEGORIAS JURÍDICAS.

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202506250125


Cícero Paulo Bezerra da Silva Filho1
Juliana Teixeira Esteves2
Larissa Ximenes de Castilho3


RESUMO 

O presente trabalho reflete a construção dos conceitos de gênero, identidade de gênero e  sexualidade e analisa a abordagem de tais conceitos pelo Direito, especificamente, por órgão  dos sistemas de justiça como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, Supremo Tribunal  Federal, Tribunal Superior do Trabalho e Ordem dos Advogados do Brasil, seja através de  decisões ou documentos distintos a exemplo das opiniões consultivas, protocolos e cartilhas  que versam sobre a temática. Os materiais analisados possuem notória repercussão jurídica e  são precursores nas instituições autoras, mas, também, no Direito. Para além de relatar os  avanços realizados, a pesquisa faz uso de uma perspectiva crítica na observação do tratamento  dispensado aos termos. A pesquisa ora realizada é do tipo explicativo quanto ao objetivo,  bibliográfica e documental quanto ao procedimento. Ademais é empregado o método dedutivo  e abordagem qualitativa, expressa por meio de análise de conteúdo. 

Palavras-chave: categoria jurídica; conceito; gênero; sexualidade. 

INTRODUÇÃO 

O presente trabalho reflete a construção dos conceitos de gênero, identidade de gênero  e sexualidade e analisa a abordagem de tais conceitos por órgãos que são referência na ordem  internacional, a exemplo da Corte Interamericana de Direitos Humanos e alguns órgãos do  sistema de justiça brasileiro que os utilizaram em cartilhas, protocolos ou decisões, como o  Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunal Superior do  Trabalho (TST) e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), no intuito de pensá-los criticamente  enquanto categorias jurídicas aplicáveis. 

Para tanto, os conceitos serão debatidos na medida em que se expõe formulações  teóricas fundantes e transformadoras, que por vezes se complementam e/ou foram contrárias  umas às outras. Após o desenho de um panorama geral do desenvolvimento de cada conceito,  será comentada sua aplicação jurídica, tendo como parâmetro materiais de notória repercussão como o Protocolo do CNJ para Julgamento com Perspectiva de Gênero, decisões de repercussão  geral do STF e Protocolo do TST para julgamentos na Justiça do Trabalho. Desde quando inicialmente discutido, especialmente sob a perspectiva das ciências  sociais, o conceito de gênero esteve intimamente ligado às demandas que tinham o Direito como  principal eixo e eram voltadas, também, para questões de impacto econômico, a exemplo da  legalização do direito ao trabalho de mulheres brancas e sua remuneração igualitária. As pautas  de gênero alcançaram outras proporções, conquistando mais espaço, reunindo um número  maior de apoiadores, engajamento e reconhecimento institucional, sobretudo a partir dos anos  70, intensificando-se nos 90, contudo, o conceito foi desenvolvido no Direito, ainda mais no  Direito brasileiro, com certo atraso em relação a outras ciências como antropologia e filosofia,  tanto por causa do conservadorismo, quanto pelos interesses envolvidos, de modo que não é  difícil encontrar um tratamento retrógrado ou rudimentar do tema em matérias de grande  repercussão. 

Além disso, há um inventário negativo que obscurece a história das e pelas mulheres e da comunidade LGBT e pela comunidade LGBT, de forma tal que as temáticas concernentes  aos conceitos até hoje são vistas, por grande parte da sociedade, e inclusive, por parte dos  juristas, como secundárias, exageradas ou até irrelevantes, cabendo a uma minoria acadêmica  e jurista, o papel de vanguarda dos debates e consequentes avanços. Ainda assim, nos últimos  anos, conquistas importantes foram alcançadas em órgãos internacionais e nacionais, apoiando-se nos conceitos centrais da discussão a seguir.

Os problemas e demandas sociais acerca de gênero, identidade e sexualidade têm  aumentado e vêm sendo cada vez mais observados em diferentes situações cotidianas,  entrecortando diferentes áreas do conhecimento e ramos do Direito, a exemplo da violência  doméstica, igualdade salarial, luta por direitos civis como casamento igualitário,  reconhecimento do nome social e gênero. Nesse sentido, problematiza-se: quais as condições  dos conceitos de gênero, identidade de gênero e sexualidade enquanto categorias jurídicas no  Brasil? 

O objetivo geral do estudo é pensar a construção dos conceitos de gênero, identidade de  gênero e sexualidade e seu uso nos principais órgãos do Sistema de Justiça Brasileiro,  apontando uma espécie de estado da arte em instituições judiciais. Os objetivos específicos, por  sua vez, são: tratar os conceitos supracitados a partir do seu desenvolvimento teórico,  fomentando sua compreensão; apontar conceituações em documentos de grande relevância de  órgãos oficiais internacionais e do Sistema de Justiça Brasileiro; Pensar as abordagens, a partir  de uma visão crítica, compreendendo os avanços alcançados, bem como questões a serem  superadas. 

Para um desenvolvimento estruturado da pesquisa e atendimento da rigorosidade  metodológica necessária à pesquisa científica, faz-se imprescindível apontar os caminhos  percorridos nesta investigação. A pesquisa ora realizada é do tipo explicativa quanto ao  objetivo, vez que não só faz relatos do tema, mas, também, busca compreender as relações  envolvidas, levantando porquês, e as vezes, respondendo-os. Já quanto ao procedimento, por  sua vez, é bibliográfica, apoiando-se em livros, teses, dissertações, artigos e outros formatos de  produção acadêmica, e documental, ao passo em que são investigados e analisados protocolos,  decisões e cartilhas de órgãos oficiais do Sistema de Justiça Brasileiro, a fim de atingir os  objetivos relacionados. Por fim, a abordagem do estudo é a qualitativa, sendo os conceitos o  grande mote do estudo, observados por meio da análise de conteúdo e o método é o dedutivo.,

1. O QUE É GÊNERO? 

Apesar da pergunta parecer possuir uma resposta simples e objetiva, na verdade, exige  considerações sob um olhar que contemple as complexidades da formação de um conceito,  sobretudo, um conceito que impacta diferentes áreas do conhecimento e da vida social, bem  como, é influenciado por elas.  

Parafraseando Maria Luiza Heilborn e Carla Rodrigues (2018), conceitos têm história,  além de serem objeto de disputas e discussões. Assim, ao contrário do que se espera, eles não  oferecem definições como verdades absolutas, não são esgotados em uma concepção única,  supostamente neutra e definitiva. Em síntese, um conceito nunca exprime uma ideia, mas o  resultado da junção de ideias múltiplas e nem sempre convergentes, mas, de algum modo,  complementares, sendo resgatado por investigações e agendas distintas. 

Com essa perspectiva, responderemos o que é gênero de maneira diversa, pontuando  ideias referenciais, pensadas ao longo do tempo, no intuito de alcançar proposições claras para  possibilidades do conceito de gênero, sempre inacabado, e consequentemente, em constante  alteração desde a sua criação em meados do século XX. 

No dicionário Michaelis (2024), o termo gênero tem a seguinte definição: “Conceito de  ordem geral que abrange todas as características ou propriedades comuns que especificam  determinado grupo ou classe de seres ou de objetos”. Essa determinação abrangente admite o  agrupamento a partir de traços comuns, como acontece nas ideias de feminino e masculino. No  sentido específico da pesquisa, o mesmo dicionário diz o seguinte: 

Categoria linguística que estabelece a distinção entre as classes de palavras, baseada na oposição entre masculino, feminino e neutro, animado e  inanimado, contável e não contável etc.; estabelecida por convenção, essa distribuição das palavras nessas categorias pode ou não obedecer a noções semânticas, como, por exemplo, em galo/galinha, em que a oposição se sustenta na diferença de sexos, designando macho e fêmea, sendo as palavras, respectivamente masculina e feminina; entretanto, outras palavras podem  permanecer alheias a tal critério distintivo, como, por exemplo, em lápis  (masculino) e caneta (feminino). (Michaelis, s. d.) 

Essa definição, por sua vez, admite uma convenção na distribuição com base no gênero,  que segundo Maria Eunice Guedes (1995) é atravessada pelos padrões estabelecidos e expressa  o significado dado por uma cultura dominante. Nesse caso, dividindo pessoas e objetos em dois  sexos, masculino e feminino.

O nascimento do conceito de gênero em sentido mais sociopolítico é produto da  movimentação feminista para pensar as relações sociais sob pontos de vistas diferentes dos  adotados pelos homens brancos. Na segunda onda do movimento, particularmente em meados do século XX, o conceito de gênero começa a ser conjecturado por feministas para (re)pensar  os papéis de homens e mulheres dispostos com base na diferença, a partir do uso do termo  inaugurado na biomedicina por Jonh Money e depois por Robert Stoller.  

Para eles o sexo seria a configuração biológica e gênero seria formado por processos  subjetivos como sentimentos, pensamentos, comportamentos e fantasias relacionados à  masculinidade e à feminilidade, havendo um sexo biológico e um sexo psicológico. Stoller  acompanhava tanto pessoas intersexuais, que considerava serem aquelas nascidas com  características biológicas de ambos os sexos, quanto com pessoas transexuais, compreendidas  por ele como pessoas que experimentam o sentimento de pertencer a um sexo diferente daquele  que lhes foi designado no momento do nascimento. 

A confecção contínua do conceito passa por um refinamento de ideias e contribuições  que nem sempre se deram sob a expressão gênero, a exemplo do trabalho de Simone de  Beauvoir em sua obra O Segundo Sexo, de 1949. Na época, a filósofa refletia a condição da  mulher sem estar atrelada, ainda, ao movimento político-filosófico do feminismo, fez isso muito  mais sob a influência do existencialismo, que a levou a pensar a mulher e o comportamento  determinado para ela a partir de uma existência socializada. 

Em O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir falou da condição da mulher, desconstruindo  as ideias de feminilidade, tão logo, de masculinidade, como traço natural e imutável, fazendo  das experiências vividas um instrumento legitimado de conhecimento de si e do mundo. A sua  mais famosa frase “não se nasce mulher, torna-se” (Beauvoir, 2020, p. 11) concentra o cerne  dos volumes que escancaram a invenção da mulher e controle do seu destino pelo homem que  se vale da biologia para confiná-la, enquanto “fêmea”, em seu sexo (Beauvoir, 2020) e  protagonizam a acertada mobilização política, elogiada pela própria autora, pelas feministas da  segunda onda.  

Nesse período, foi pensado o sistema de sexo/gênero, quando gênero foi utilizado pela  primeira vez nas ciências sociais, por Gayle Rubin, em seu texto Tráfico de Mulheres, no qual  pensa o gênero como a culturalização da natureza materializada no sexo. Nas palavras da autora,  o sistema sexo/gênero está presente de alguma forma em todas as sociedades e diz respeito a  “uma série de arranjos pelos quais a matéria-prima biológica do sexo humano e da procriação  é moldada pela intervenção humana, social, e satisfeita de um modo convencional” (Rubin,  1975, p. 10-11). Para a autora, isso é feito a partir de dois instrumentos de produção do gênero: o parentesco e a divisão sexual do trabalho. Ambas são fontes da diferenciação entre homens e  mulheres e estabelecimento de uma relação de dependência entre eles, necessariamente,  produzindo não somente a sensação de existência de aptidões naturais de homens e mulheres,  mas, também, determinando papéis sociais, extrapolando o sexo e criando o gênero (Almeida,  2020). 

Mais à frente, em 1989, Joan Scott escreveu o texto Gênero: uma categoria útil de  análise histórica propondo o conceito de gênero como uma categoria de análise necessária a  todo e qualquer estudo das relações sociais, seja em uma perspectiva econômica ou política,  não somente das relações entre homens e mulheres. Nesse sentido, gênero seria uma lente sob  a qual o mundo, de maneira geral, deveria ser olhado, de modo que a “história das mulheres”  não estivesse segmentada da história do mundo, posta em segundo plano como se do “mundo  dos homens” surgisse o “mundo das mulheres”, secundário em importância, secundário nos  estudos (Scott, 1989). 

Além de inaugurar no conceito de gênero seu status expresso de categoria, ou seja, uma  forma primeira de significar as relações de poder, Scott não deixa de lado o gênero aproximado  da ideia de diferença, como um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nessa  diferença entre os sexos. Dessa forma, a autora divide o conceito de gênero entre essas duas  partes e algumas subpartes, enquanto elemento constitutivo são destacadas quatro,  especificamente: símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações múltiplas;  conceitos normativos, que colocam em evidência interpretações do sentido dos símbolos que  tentam limitar e conter as suas possibilidades metafóricas; a necessidade de uma análise que  exploda o fixo, a permanência da binariedade, que não exclua o olhar político, organizacional  e institucional; e a identidade subjetiva. 

No referido texto Scott discorda dos (as) antropólogos (as) que que em suas palavras  “reduziram a categoria de gênero ao parentesco” (Scott, 1989, p. 22) e considera que o gênero  “é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído igualmente na  economia, na organização política, e pelo menos na nossa sociedade, opera atualmente de forma  amplamente independente do parentesco”. (Scott, 1989, p. 22) 

Judith Butler, em Problemas de Gênero, traz ideias disruptivas do conceito de gênero e  reinaugura os sentidos ao fixar de maneira expressivas percepções decorrentes dos trabalhos  até então escritos. Para ela a construção do gênero não está baseada na natureza, não é ele um  construto social realizado em cima de um dispositivo natural, mas, sim, tão construído quanto  o sexo anatômico. Ao pensar gênero tão construído como o próprio sexo, encara ambos como  produto cultural e discursivo, que se impõe como norma do modo de existir e se relacionar. 

Assim, ela reflete a ligação entre sexo e gênero perguntando-nos se da forma como são  concebidos, apresentam realmente alguma diferença. 

[…] a ideia de que o gênero é construído sugere um certo determinismo de significados do gênero, inscritos em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos compreendidos como recipientes passivos de uma lei cultural inexorável. Quando a ‘cultura’ relevante que ‘constrói’ o gênero é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressão de  que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino. (Butler, 2003, p. 26) 

Pensar o contrário seria, para Butler, dar ao gênero um caráter tão essencialista quanto  ao que vinha sendo atribuído ao sexo. Nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o  destino. Logo, ela rompe com a ideia de que o sexo está para natureza, assim como o gênero  está para a cultura, dissolvendo a dicotomia sexo versus gênero a partir do pensamento  significado versus significante, o que a permite expor a binariedade constante e nunca  abandonada antes na teoria feminista. 

Visitando o gênero Nancy Fraser, para quem ele é fundamental ao feminismo, é  possível observar a incorporação de dois conjuntos de conceitos: um referente ao trabalho e  outro cultural. Apoiando-se em uma definição dicotômica, a autora integra ao gênero duas faces  a partir das quais pensará as relações sociais e os problemas que investiga, não mais se baseado  tão somente no sexismo, mas, atribuindo, especificamente, um caráter político-econômico e  outro androcêntrico cultural. Cada um, respectivamente, correspondente ao tratamento  simultâneo das questões de redistribuição e reconhecimento, que não se anulam, ao contrário,  se complementam. 

Para a filósofa não há como pensar e praticar uma libertação verdadeira ignorando a  injustiça econômica, tão logo, a necessidade do estabelecimento de políticas redistributivas de  enfrentamento à pobreza, desigualdade salarial, desigualdade de participação no mercado de  trabalho, existências de jornadas de trabalho duplas, triplas e não remuneradas etc. Assim, o  reconhecimento cultural por si só não é capaz de remediar a injustiça de gênero, entretanto, a  promoção do respeito a existências diversas e consideração de necessidades específicas  decorrentes das desigualdades que as estruturas perpetram é essencial às políticas de  redistribuição. 

O conceito bidimensional de Nancy Fraser nos coloca diante de uma tarefa síncrona,  por vezes prejudicada pelas táticas neoliberais: batalhar pelo reconhecimento sem esquecer a  luta por uma participação econômica efetiva, capaz de impactar o núcleo das estruturas  tradicionais de poder, não só a sua aparência.

1.1 Gênero como categoria jurídica 

Apesar de não discutirem o conceito de gênero propriamente dito, a Organização das  Nações Unidas e a Organização Internacional do Trabalho inserem gênero como essencial às  discussões relacionadas à renda, trabalho, pobreza, economia, de modo que prevê  expressamente a aplicação da perspectiva de gênero em todas as políticas em ações e cita  problemas como a desigualdade da divisão do trabalho baseada no gênero, assimetria da  distribuição das tarefas domésticas não remuneradas, feminização da pobreza, desigualdade do  acesso a confecção das políticas econômicas e ao poder,  

A Declaração de Pequim de 1995 tem como marco a centralidade do conceito de gênero  em todas as suas postulações, não o de mulher ou de sexo, o que representa um avanço para que  se considere não o que é determinado pela biologia, mas o que se entende com base na  construção social e cultural das pessoas e relações. O documento traz doze áreas de preocupação  prioritária, e três delas possuem especial valor para o gênero como pensado na presente  pesquisa, quais sejam: a crescente proporção de mulheres em situação de pobreza (fenômeno  que passou a ser conhecido como a feminização da pobreza); a desigualdade no acesso à  educação e à capacitação; […] os efeitos dos conflitos armados sobre a mulher; a desigualdade  quanto à participação nas estruturas econômicas, nas atividades produtivas e no acesso a  recursos (ONU, 1995). 

A Convenção 190 da OIT também não conceitua o gênero, entretanto, evidencia-nos a  relevância do conceito para sua atividade criativa de normas e recomendações ao definir que o  “termo ‘violência e assédio com base no gênero’ significa violência e assédio dirigido às  pessoas em virtude do seu sexo ou gênero, ou afetam de forma desproporcionada as pessoas de  um determinado sexo ou gênero […]” (OIT, 2019). A abordagem realizada, assim como na  Declaração de Pequim, tem o intuito de expandir a compreensão do gênero e das questões que  o rondam para além de um determinismo biológico, aderindo à evolução do conceito de gênero. 

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, através da Opinião  Consultiva (OC) nº 24 de 2017, respondendo a um pedido da República da Costa Rica, falou  sobre a interpretação e alcance dos artigos 11.2, 18 e 24 da Convenção Americana sobre  Direitos Humanos, em relação ao artigo 1° do mesmo instrumento, reafirmando os direitos  LGBTQIAPN+ como Direitos Humanos protegidos pela convenção, e logo, objeto da proteção  contra a discriminação. No glossário da OC 24, o tribunal tratou de conceitos referentes às  temáticas de gênero e diversidade, dentre eles está o conceito de gênero: “refere-se às identidades, funções e atributos socialmente construídos de mulheres e homens e do significado  social e cultural atribuído a estas diferenças biológicas” (CIDH, 2017). O conceito da corte  segue àquela corrente firmada pela ONU para a agenda internacional que tem o gênero como  produto sociocultural produzido sobre uma base biológica. 

Em âmbito interno o tratamento do conceito pelo Poder Executivo Federal não destoa  daquele dado pelos órgãos internacionais. A Secretaria de Políticas Para as Mulheres da  Presidência da República, no Seminário de Capacitação dos Mecanismos de Gênero no  Governo Federal, em 2013 recorreu ao seguinte conceito de gênero: “O conceito de gênero à  construção de significados culturais para as diferenças de sexo biológico dando sentido para  essas e, consequentemente, posicionando-as dentro de relações hierárquicas e/ou de poder”  (Brasil, 2013). 

Órgãos e entidades autônomas do sistema de justiça também vêm debatendo o conceito  através de cartilhas e protocolos principalmente. Já o órgão maior do judiciário, o Supremo  Tribunal Federal, no entanto, ainda que central para as pautas progressistas de gênero e  diversidade que só se desenvolveram pelo movimento de judicialização das demandas de  diversidade conhecido como advocacy, não conceituou ou recorreu à conceitos bem  estabelecidos, em suas decisões, do gênero enquanto categoria, tratando-o em todos os seus  textos como sinônimo de identidade de gênero, outro conceito, abordado por vezes de maneira  problemática pelo Tribunal. 

Em 2021, o Conselho Nacional de Justiça criou o Protocolo para Julgamento com  Perspectiva de Gênero e dedicou a primeira parte dele, de maneira acertada, aos conceitos  relacionados à gênero e diversidade, uma maneira oportuna de redimir-se em relação às  decisões anteriores, importantes, necessárias, garantidoras, mais rudimentares no que tange aos  estudos de gênero. Não coincidentemente, o texto é iniciado com o reconhecimento de que o  protocolo “é fruto do amadurecimento institucional do Poder Judiciário”. 

Para o conselho Nacional de Justiça gênero diz respeito ao: 

conjunto de características socialmente atribuídas aos diferentes sexos. Ao passo que sexo se refere à biologia, gênero se refere à cultura. Quando  pensamos em um homem ou em uma mulher, não pensamos apenas em suas  características biológicas; pensamos também em uma série de construções sociais, referentes aos papéis socialmente atribuídos aos grupos. (Brasil, 2021) 

A leitura nos lembra instantaneamente da obra de Simone de Beauvoir, citada pelo  protocolo à diante. Além de adotar o construcionismo como corrente de pensamento sobre  gênero, ratifica a necessidade de reconhecer tanto as diferenças dos grupos sociais, quanto às dos indivíduos de um mesmo grupo, atingidos por diferentes marcadores, remetendo a  interseccionalidade, presente no protocolo. 

Ao tratar da temática da violência de gênero O Ministério Público do Trabalho vai além  de tratar o gênero como questão cultural e estabelece uma crítica objetiva ao construto  sociocultural baseado em aspectos biológicos: 

É uma construção social que se revela em conjunto de expectativas, papéis, gestos, linguagem, roupas, profissões, posturas e comportamentos que se impõe a todas a pessoas quando nascem e que tem como base o sexo biológico.  A pessoa quando nasce é enquadrada como homem ou mulher e a partir daí se  define o papel e comportamentos adequados que ela deve adotar na vida em sociedade. Diversas teorias e visões, como a Teoria Queer, criticam esse modelo binário de gênero que só englobaria homens e mulheres, visando incorporar na inteligibilidade humana as mais diversas formas de expressão do indivíduo. O termo queer significa o estranho, é aquele que se narra ou é narrado fora das normas. A Teoria Queer propõe o questionamento às  epistemes (pressupostos de saber), ao que entendemos como verdade, às noções de uma essência do masculino, de uma essência do feminino, de uma  essência do desejo. Propõe olhar tais conceitos e tentar percebê-los  culturalmente. (MPT, 2023, p. 24) 

Esse é um dos poucos documentos que cita a Teoria Queer que questiona o binarismo e  deixa aberta aos interlocutores essa possibilidade de leitura crítica do contexto. A Ordem dos Advogados do Brasil subseção Rio de Janeiro e Salvador criaram  cartilhas próprias, a primeira sobre o gênero enquanto categoria e a segunda acerca do protocolo  para julgamento com perspectiva de gênero do CNJ: 

Ambas possuem certo conteúdo crítico e encaram o gênero como construto  sociocultural, a primeira destacando que ser homem ou ser mulher depende do período histórico  e que as diferenças entre gênero e sexo se dão a partir da centralização da heterossexualidade  reprodutiva como uma verdade absoluta; A última, como diferencial, lembra-nos que as  inscrições masculinas são, nas estruturas tradicionais, consideradas como hierarquicamente  superiores às femininas, e por isso, compreender gênero é essencial para combater a  discriminação.

2. O QUE É IDENTIDADE DE GÊNERO?  

Frequentemente confundida com o gênero enquanto categoria, a identidade de gênero,  como o nome sugere, se refere a como uma pessoa se identifica em relação ao gênero e a partir  disso se apresenta socialmente. Dessa maneira, ao passo que gênero é um construto  sociocultural complexo que normatiza papéis, a identidade é a experiência individual e interna  que pode ou não ser externada, sempre de maneiras distintas e particularidades, personalíssimas.  Não existe, ou pelo menos não deveria existir, um padrão para como essas identidades são  expressas. 

Apesar de serem diferentes, gênero e identidade de gênero estão intimamente conexos.  Na verdade, a noção de identidade de gênero é advinda da análise biomédica e psiquiátrica,  especificamente psicanalista, do gênero (identidade psicológica) apartado do sexo biológico  (identidade biológica). Os primeiros registros estão nas obras de Jonh Money (1955), em textos  esparsos, Ralph Greenson em determinados estudos de caso e em um livro de Robert Stoller  (1964). 

Greenson e Stoller tentaram estabelecer o termo imprinting, fazendo uso da lógica de  que essa identidade, antes mesmo do desenvolvimento do eu, viria de fora para dentro,  impressas nos indivíduos que desenvolveram sua identidade nuclear, especialmente, sob a  influência materna. Porém, a tentativa não obteve grande aprovação pela medicina, que  enxergou a identidade como algo muito mais social, e consequentemente, irrelevante para  aquela ciência. 

As estudiosas feministas, no entanto, se interessaram pelo pensamento, encontrando a  oportunidade de desenvolver o uso do termo identidade de gênero para explicar questões como  a subordinação da mulher fincada sobre aptidões naturais para determinadas tarefas e inaptidões  para outras. 

Após o desenvolvimento de uma perspectiva construcionista do gênero pela teoria  feminista, foi possível pensar a ideia de identidade de gênero impactada por diferentes fatores  e grupos sociais integrantes do processo de culturalização, particular, mas vulnerável ao  exterior, levando a uma identidade “própria”, que poderia ou não satisfazer as normas  socioculturais designadas com base no sexo.  

O Michaelis (s.d.) define identidade como: “1 Estado de semelhança absoluta e  completa entre dois elementos com as mesmas características principais. 2 Série de  características próprias de uma pessoa ou coisa por meio das quais podemos distingui-las”. A  primeira conceituação do verbete envolve uma identificação externa, enquanto a última é estritamente individual, nos dando duas noções distintas de identidade, seja em relação à forma  como determinada pessoa se vê e expressa sua existência no mundo e como essa expressão é  correlata a de outras pessoas, passível de ser agrupada, o que para nós não se confunde com  qualquer possibilidade de determinar identidades de maneira genérica. 

Essas considerações nos remetem à noção sociológica de identidade discutida por Hall  (2014, p.12) como “[…] uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em  relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que  nos rodeiam”. Evidenciando, assim, que além de buscar moldar gêneros, as condições sociais  interferem também nas construções identitárias dos corpos. De modo que a formação e reforma  da identidade é um processo histórico formado “[…] ao longo do tempo, através de processos  inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento” (Hall,  2014, p. 24). 

No que tange aos estudos de gênero, a noção de identidade de gênero como construto  certamente está estabelecida, contudo, estudos relativamente recentes incrementam as visões  anteriores e fervem as discussões sobre o tema. É o caso da teoria de Judith Butler, para quem  a identidade não se adere, mas, se é compelido a se tornar. Essa identidade é impactada pela  construção sociocultural, entretanto, não se dá diante de uma série de escolhas livres no decorrer  da socialização e culturalização. Há sobre ela um imperativo sexual que abarca um conjunto de  normas sobre como nos comportar, o que devemos vestir e a quem devemos desejar tendo como  base no nosso sexo. Diferente de algo como “não se nasce mulher, torna-se”, Judith Butler fala  de um “torne-se mulher!”. (Firmino; Porchat, 2019) 

No Brasil, Jaqueline Gomes de Jesus, primeira mulher negra transexual a ingressar no  Doutorado da Universidade de Brasília, tem sido destaque nas discussões acerca do feminismo,  transfeminismo e identidade de gênero, liderando os debates acadêmicos e ativistas no país. Ao  tratar identidade de gênero, Jaqueline Gomes de Jesus pontua: 

a identidade é a atitude individual frente aos construtos sociais de gênero, ante aos quais as pessoas se identificam como homens ou mulheres, percebem-se  e são percebidas como integrantes de um grupo social determinado pelas concepções correntes sobre gênero, partilham crenças e sentimentos e se comprometem subjetivamente com o grupo com o qual se identificam, tal qual como em qualquer outra identidade social que adotam. (Jesus, 2013, p. 3) 

Assim como o conceito de gênero, o de identidade de gênero também tem sido  mobilizado no campo jurídico para fins de informação, recomendação e resolução de disputas  nos espaços socio-estatais por direitos, de forma ainda mais latente por conta da natureza das demandas, e provavelmente, da vontade e costume de determinados julgadores, o que influencia  diretamente o conceito adotado. 

2.1 Identidade de Gênero como categoria jurídica 

A Opinião Consultiva nº 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos também  trouxe o conceito de identidade de gênero em seu glossário. Sem dúvidas, o documento constitui  um grande precedente para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, servindo de guia  para o poder judiciário de cada nação que o compõe. 

A amplitude do conceito é um marco de inclusão e reconhecimento para a agenda  Internacional, contudo, justamente devido a essa amplitude não poderíamos passá-lo sem um  exame cuidadoso que nos permitirá fazer pontuações importantes: 

a experiência interna e individual do gênero como cada pessoa a sente, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no momento do nascimento,  incluindo a experiência pessoal do corpo (o que poderia envolver – ou não –a modificação da aparência ou da função corporal através de meios médicos, cirúrgicos ou outros, desde que seja escolhido livremente) e  outras expressões de gênero, incluindo o vestuário, o modo de falar e maneirismos. A identidade de gênero é um conceito amplo que cria espaço para a autoidentificação, e que se refere à experiência que uma pessoa tem de  seu próprio gênero. Assim, a identidade de gênero e sua expressão também assumem várias formas, algumas pessoas não se identificam como homens, nem mulheres, ou se identificam como ambos. (CIDH, 2017, p. 16-17, grifo  nosso) 

O conceito acima teve algumas partes destacadas de maneira estratégica, para que  pudéssemos debatê-las. Inicialmente, o destaque dado ao sexo, serve para que lembremos que  sim, identidades de gênero podem ou não corresponder ao sexo atribuído, contudo, não podemos esquecer que a não conformidade sempre será em relação ao construto social feito  sobre o sexo, de modo que, esta não conformidade com o gênero pode ou não estar somada a  não conformidade com o sexo. 

Quanto ao grifo em “maneirismos”, o fizemos porque a expressão parece possuir uma  conotação negativa, como se os gestos da expressão de gênero fossem viciados e extravagantes,  quando são apenas gestos, ainda que fora dos padrões ou propositalmente ou coincidentemente  extravagantes em relação ao considerado cabível, “normal” ou “natural”. O fato é que esse tipo  de termo pode reforçar estereótipos e preconceitos, assim como o termo “afetação”. 

Ao buscar o significado de maneirismos, essa sensação foi confirmada, pois o  maneirismo é definido como “1. Afetação no estilo. 2. Defeito de quem se entrega ao gênero amaneirado” (Priberam, s.d.) E amaneirado “quem mostra modos de dizer ou de fazer forçados ou pouco naturais; que mostra afetação. = AFETADO, DESNATURAL, PRESUMIDO, PRETENSIOSO” (Priberam, s. d.). 

O uso de termos que instalem esse tipo de possibilidade de interpretação, dá espaço  para que pensamentos e falas preconceituosas que estão na raiz da discriminação ganhem fôlego  e por isso não é cabível, principalmente, para órgãos oficiais, ainda mais em um documento  garantista. Há um reforço da forma retrógrada de ramos como a medicina e a psiquiatria viram  e em parte ainda veem o modo de ser de pessoas que não perfazem as normas de gênero.  Inclusive, para a psiquiatria o maneirismo: 

é um tipo de estereotipia motora caracterizada por movimentos bizarros e repetitivos, geralmente complexos, que buscam certo objetivo, mesmo que  esdrúxulo. Trata-se de uma alteração do comportamento expressivo (mímica, gestos, linguagem), em que a harmonia do conjunto de gestos do indivíduo é  substituída por posturas e movimentos estranhos, exagerados, afetados ou bizarros. Ocorrem especialmente na esquizofrenia, principalmente na forma  catatônica, em formas graves de histeria e na deficiência mental. (Forte, 2013) 

Ou seja, a palavra maneirismo está intimamente ligada à noção de comportamento  doentio e é frequentemente utilizada para homossexuais afeminados e pessoas trans, que por  muito tempo foram consideradas doentes e já não o são, no cenário internacional, desde 1973,  ano em que a Associação Americana de Psiquiatria (APA) retirou a homossexualidade da lista  de doenças mentais e 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) também retirou a  homossexualidade da lista de doenças mentais do Código Internacional de Doenças (CID). 

Para muitas pessoas, esse tipo observação pode ser considerada irrelevante, ainda mais  quando pensamos no avanço que a OC 24 representa, porém, esse tipo de uso é extremamente  simbólico, pois, tanto a homossexualidade quanto a transexualidade foram criadas na  modernidade pela patologização e medicalização (Foucault, 2022) utilizadas como fundamento  de todas as violências seguintes perpetradas contras pessoas gays e trans, suas vidas,  identidades, sexualidade, corpos, etc.  

Por outro lado, a abertura que o conceito da Corte IDH dá ao estabelecer a modificação  ou não do corpo, seja cirurgicamente ou de outra maneira, abre um precedente para o  estabelecimento do reconhecimento de identidades de gênero como a trans, independentemente  de intervenções médicas cuja realização envolve questões de gênero, raça e classe, debates integrantes das pautas da trans medicalização. Essa preocupação possibilita uma interpretação  não restritiva da identidade de gênero, que foi seguida pelo Supremo Tribunal Federal não ação  Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 4275. 

Além disso, o conceito de gênero da OC 24 traz uma perspectiva diferenciada ao tratar  de outras possibilidades não binárias, a exemplo inclusiva quanto a observação não binária em  relação a pessoas que não se identifica com nenhum dos gêneros, a exemplo das pessoas  agênero, e aquelas que se identificam com ambos, como as pessoas de gênero fluido. O  Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ faz o mesmo, além de apontar  a violência expressiva contra pessoas que apresentam a não conformidade no Brasil e o perigo  da regressão de Direitos LGBT na América Latina. 

Na ADI 4275, em que o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a possibilidade de  alteração do registro civil de nome e gênero sem autorização de decisão judicial e realização da  cirurgia de redesignação do sexo, a identidade de gênero apareceu como “manifestação da  própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de  reconhecê-la, nunca de constituí-la” (Brasil, 2018, p. 2). O tribunal reafirmou para o conceito de  identidade à perspectiva essencialista, apesar dos estudos já disponíveis, e ao mesmo tempo,  reafirmou o papel do Estado, expressando a necessidade de proteção das pessoas trans  socialmente expostas, mas que sofrem com a falta de cuidado do ente que deveria protegê-lo,  trazendo um verdadeiro cenário de indiferença do direito positivo, ainda que haja avanço de  determinadas políticas públicas. (Brasil, 2018) 

No que concerne à transexualidade, ela foi por vezes nomeada como “transexualismo”  e tratada em grande parte através do discurso médico, não por ausência de saber quanto aos  estudos de gênero nas ciências sociais já disponíveis, mas por opção. Em seu voto o Ministro  Marco Aurélio deixou claro que: 

[…] O critério morfológico, embora carente de mitigação, ainda é parâmetro relevante para a identificação de cidadãos. Nos casos em que não realizada a  cirurgia de transgenitalização, a alteração do assentamento deve ser precedida da verificação de critérios técnicos aptos a comprovar a transexualidade.  
Mostra-se adequado observar o que preconizado na Resolução nº 1.955, de 3  de setembro de 2010, do Conselho Federal de Medicina. […] (Brasil, 2018) 

Esses requisitos são: “Art. 3° […] 1) Desconforto com o sexo anatômico natural; 2)  Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do  próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; […]”. (Brasil, 2010) Mais uma vez aderindo a uma  posição essencialista, o Ministro partiu de uma base natural e apesar de demonstrar expressamente a ciência da discussão, considerou a transexualidade observável apenas e tão  somente quando da “incompatibilidade” do indivíduo com seus órgãos genitais, o que não  coaduna com os estudos de gênero nas ciências sociais que deixam claro o atraso da medicina  na compreensão das questões de gênero. Outros votos permanecem na esteira do binarismo  mesmo sendo as identidades trans e travestis muito mais extensas, apesar do voto do relator  diferenciá-las com base na identificação com a genitália. Seguindo o entendimento de Maria  Berenice Dias, este coloca a pessoa trans como aquela que apresenta uma divergência entre o  psíquico e o morfológico e a pessoa travesti como a que aceitam seu sexo biológico, porém se  vestem como o gênero oposto. (Brasil, 2018) 

O voto do Ministro Luís Roberto Barroso, porém, destaca-se dos demais no sentido de  se preocupar com o uso do termo adequado, utilizando a expressão transgênero em referência  aos estudos estadunidenses e aderindo à tese proposta pelo Grupo de Advogados pela  Diversidade sexual e de Gênero que trata identidade trans como “identidade de gênero  dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer, por autoidentificação firmada em  declaração escrita dessa sua vontade”. (Brasil, 2018, p. 6) Assim, o ministro promoveu a  afirmação de um entendimento afastado do essencialismo no maior órgão do poder judiciário  brasileiro. 

Em consonância com os avançados estudos de gênero das ciências sociais,  entendimentos outros foram expostos acerca de identidade de gênero e identidades trans,  fazendo jus ao Direito como ramo de tal área do saber. É o exemplo dos Protocolos para  Atuação e Julgamento na Justiça do Trabalho do Tribunal Superior do Trabalho que pontuou  a identidade de gênero como “a forma como a pessoa reivindica social e legalmente o seu  gênero, independentemente do sexo ou da realização de cirurgias” (Brasil, 2024, p. 32),  escapando da armadilha do binarismo e representando um marco para o judiciário brasileiro.  Nesse mesmo caminhar definiu a identidade transgênero:

são aquelas cuja identidade de gênero diverge da atribuída no momento do nascimento, independentemente da realização de cirurgias ou tratamentos médicos, incluindo mulheres trans ou travestis, homens trans, pessoas não binárias, dentre outras manifestações identitárias divergentes. (Brasil, 2024, p. 32) 

Ao tratar as identidades trans e travestis, recorte ao qual se direciona a presente pesquisa,  o órgão aportou os escritos de Judith Butler e Jaqueline Gomes de Jesus, ambas mencionadas  como referências para o estudo de gênero desenvolvido neste trabalho, dissolvendo a tentativa  de estabelecer uma grande diferença entre corpos dissidentes e alargando a interpretação para incluir uma diversidade ainda maior de identidades que não se adequam ao binarismo. Desse  modo, os protocolos ponderam: 

Historicamente, em decorrência da patologização das identidades trans, era  feita uma diferenciação entre transexuais e travestis. Por transexuais, entendiam-se as pessoas que apresentavam desconforto com o corpo sexual.  
Já a identidade travesti, por outro lado, era utilizada com intenção pejorativa,  para se referir às trabalhadoras do sexo. No entanto, em decorrência da  apropriação pela luta trans, esses termos foram ressignificados para indicar identidades de gênero igualmente válidas. Assim, mulher transexual ou  travesti é toda pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como tal,  independentemente do desejo de alteração do corpo sexual. (Brasil, 2024, p. 33) 

Há, pois, no tratamento feito pelo Tribunal Superior do Trabalho uma preocupação com  a estigmatização de corpos a partir de classificações políticas, posicionamento adotado neste  estudo. A fuga do binarismo e da tentativa de conformação de identidades à  cisheteronormatividade é inafastável, pois, não se pode compreender a transexualidade e a travestilidade como uma mera adequação ao padrão biológico. 

A Corte IDH, na OC 24, explica a transgeneridade como:  

quando a identidade ou expressão de gênero de uma pessoa é diferente daquela  que normalmente está associada ao sexo atribuído no nascimento. As pessoas  trans constroem sua identidade independentemente do tratamento médico ou  intervenções cirúrgicas. O termo trans é um termo “guarda chuva” usado para  descrever as diferentes variantes da identidade de gênero, cujo denominador  comum é a não conformidade entre o sexo atribuído ao nascimento da pessoa e a identidade de gênero tradicionalmente atribuída a ela. Uma pessoa  transgênero ou trans pode se identificar com os conceitos de homem, mulher,  homem trans, mulher trans e pessoa não binária, ou com outros termos como  hijra, terceiro gênero, biespiritual, travesti, fa’afafine, queer, transpinoy,  muxé, waria e meti. A identidade de gênero é um conceito diferente da  orientação sexual. (CIDH, 2017, p. 17) 

A corte aborda o termo transgênero como guarda-chuva de outras denominações, o que  é didático e leva a compreensão da transgeneridade como comum a outras identidades que não  a trans, e na verdade, pode ajudar no entendimento recente de pessoas trans e travestis como  sinônimos, como uma forma de enfrentar a visão pejorativa dos corpos, ainda que a própria corte diferencia pessoas transexuais e travestis, colocando a transexualidade como identidade e  a travestilidade como expressão de gênero4, colocação com a qual não concordamos. O Tribunal Superior do Trabalho, inclusive, enfrentou a questão asseverando que  identidade de gênero não se confunde com expressão de gênero e que “travesti é uma identidade  de gênero e não uma expressão de gênero”. Isso quer dizer que “travestis possuem essa  identidade independentemente das roupas que estejam usando” (Brasil, 2022, p. 35).

3. O QUE É SEXUALIDADE? 

A expressão sexualidade decorre da palavra sexo, ambas estudadas por diferentes áreas  do conhecimento, obtendo a primeira, uma compreensão posterior à segunda. As primeiras  investigações do sexo surgiram nas ciências biológicas, que o consideravam como sendo a  genitália ou a relação sexual propriamente dita. 

Segundo o historiador Thomas Laqueaur (2001), até século XVIII, o sexo era visto sob  uma visão unitária, ou seja, não se falava em duas genitálias, mas em um único órgão sexual,  um original, exposto, fálico e outro invertido, logo, inferior, de modo que o corpo feminino  seria, na verdade, ele todo uma inversão do masculino, apenas uma variação de um sexo único,  o do homem perfeito, enquanto a mulher inferior e invertida, seria o homem imperfeito. 

A partir desse século, não por avanço da ciência, mas por motivos políticos, houve  a separação dos sexos, estabelecendo-os como distintos na busca por justificar o homem e a  mulher social e seus papéis. Foi assim que o gênero começou a ser explicado biologicamente e  de maneira binária, como vimos. 

No século seguinte, surge a ideia de sexualidade atrelada a tudo aquilo que é sexual,  trazendo uma ampliação das possibilidades que a palavra sexo permitia existir. Freud foi um  dos primeiros estudiosos do tema e responsável por separar a sexualidade da genitalidade e  reprodutividade, englobando o prazer. 

Consequentemente, o sexo, enquanto relação sexual, deixou de ser conhecido  simplesmente como conjunção carnal e finalidade reprodutiva para ser entendido como um  encontro entre pessoas e sua individualidade e subjetividades, que claro, continuava a  compreender a genitalidade, entretanto, não somente ela, sendo discutidos, também, os aspectos  culturais, bem como psicológicos da sexualidade, construída em um processo contínuo. Nesse  sentido, a Organização Mundial da Saúde conceitua a sexualidade como: 

Um aspecto central do ser humano ao longo da vida e engloba sexo,  identidades e papeis de gênero, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. A sexualidade é vivida e expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papeis e  relacionamentos. Enquanto a sexualidade pode incluir todas essas dimensões,  nem todas elas são sempre vivenciadas ou expressas. A sexualidade é  influenciada pela interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, legais, históricos, religiosos e espirituais. (OMS, 2006)

O conceito abrangente nos encaminha para a compreensão de sexualidade como um  complexo integrado por diferentes elementos, como dito, que não se limita ao sexo mesmo, seja  lá qual for o sentido adotado, e ainda, não se confunde com a orientação sexual de um indivíduo,  que compõe a sexualidade, mas não a reduz. 

Outros órgãos e instituições, assim como a Organização Mundial da Saúde cuidaram de  conceituar a sexualidade, até porque, no fincar da determinação de papéis e posteriormente, na  tentativa de desconstrução dessas convencionalidades, a sexualidade também é um espaço de  disputas em que há a regulação do comportamento humano e da sociedade. 

Foucault (2022), em sua obra História da Sexualidade Vontade de Saber, fez uma  genealogia da sexualidade e em sua investigação expôs a sexualidade como um dispositivo de  controle dos corpos, havendo sobre ela uma série de normas estabelecidas por um poder  regulador da vida – biopoder -, munido de outros dispositivos de controle como a medicina, a  psiquiatria e, o que mais nos interessa, o direito, de forma tal capaz de criar não só identidades  sexuais, mas, também, de patologizá-las. 

Dessa maneira, Foucault (2022, p. 139) entende a sexualidade como “um conjunto de  efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais, por um certo  dispositivo pertencente a uma tecnologia política complexa” através do dito e do não dito. Há,  então, uma imperatividade executada através de discursos expressos por meio de textos verbais  e não verbais, que apesar de sugerir uma repressão da sexualidade, a coloca no centro de tudo. 

3.1 Sexualidade como categoria Jurídica 

Sob essa ótica, indicamos a sexualidade como categoria jurídica, tão central quanto  outras categorias tradicionais, interessante aos Estados, poderes, indivíduos, direito público,  privado, externo e interno. Corroborando com essa perspectiva, a sexualidade além de ser  tratada e disputada genericamente, o é em questões específicas dentro de demandas  determinadas, ainda que não mencionada expressamente e tendo impacto econômico tanto  sobre os indivíduos quanto sobre grandes instituições e grupos financeiros. 

A Organização das Nações Unidas (2019, p. 17) trata, em seu conceito primeiro, a  sexualidade de maneira muito similar a OMS, incluindo o vínculo emocional e destacando a  sexualidade como construto social, indo além e ligando-o diretamente ao poder, pontuando  último limiar do poder: “a possibilidade de ter controle sobre o próprio corpo”, é marcante a  maneira que o órgão atribui a sexualidade uma dimensão política e determina que essa compreensão de sexualidade seja difundida nas instituições de ensino, confeccionando para  tanto uma edição de orientações técnicas através da Unesco. 

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, na OC 24, apesar de não atribuir um  conceito à sexualidade, define o que é para ela a orientação sexual, componente  importantíssimo da sexualidade, por vezes confundida com a mesma: 

Orientação Sexual: Refere-se à atração emocional, afetiva e sexual por pessoas de um gênero diferente do seu, ou de seu próprio gênero, ou de mais  de um gênero, bem como relações íntimas e/ou sexuais com estas pessoas. A  orientação sexual é um conceito amplo que cria espaço para a  autoidentificação. Além disso, pode variar ao longo de um continuum, incluindo a atração exclusiva e não exclusiva pelo mesmo sexo ou pelo sexo oposto. Todas as pessoas têm uma orientação sexual, a qual é inerente à identidade da pessoa. (CIDH, 2017, p. 18) 

No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (2021, p. 20), por meio Protocolo Para  Julgamento com Perspectiva de Gênero, diz resumidamente que “a sexualidade diz respeito às  práticas sexuais e afetivas dos seres humanos”. 

Apesar de usar o termo sexualidade, o quadro diz respeito essencialmente à orientação  sexual e não à sexualidade enquanto complexo. No debate sobre sexualidade o CNJ ainda  discute a heterossexualidade compulsória, aplicando a necessidade de pensá-la quando da  elaboração de decisões judiciais, que não devem reforçá-la ou tê-la como pressuposto. 

Diversas decisões de repercussão geral acerca das temáticas envolvendo foram  expedidas pelo Supremo Tribunal Federal, adoção por casais homoafetivos, união homoafetiva,  inconstitucionalidade da criminalização do aborto, criminalização da violência contra pessoas  LGBTQIAPN+, etc. A grande maioria das decisões representa um avanço sem tamanho,  observam a realidade social, contextos históricos e seguem na salvaguarda dos direitos  fundamentais das minorias políticas de gênero, o que não quer dizer que tais decisões não são  passíveis de um olhar crítico. 

A primeira aqui citada, não se refere diretamente ao conceito de sexualidade, mas à ideia  que se tem da sexualidade e dos argumentos jurídicos que a cercam. Diz respeito ao  reconhecimento da união homoafetiva, afastando a possibilidade de interpretação literal da  Constituição Federal quanto ao conceito de família do art. 226 §3º: Para efeito da proteção do  Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar,  devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (BRASIL, 1988). E do art. 1723 do Código Civil: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de  constituição de família” (BRASIL, 2003). 

Antes do julgamento da ADI 4277 proposta pela Procuradoria Geral da República, em  conjunto com a ADPF 132 requerida pelo Governo do Rio de Janeiro, imperava no âmbito  jurídico a concepção patriarcal e heteronormativa de família. Contudo, o STF decidiu que a  interpretação a ser feita não deve ser reducionista e a mutação constitucional pela técnica de  interpretação conforme foi realizada a fim de reconhecer a expressão de amor através da  autonomia, privacidade, liberdade, pluralidade, dignidade, firmando a não discriminação  sexual, seja no plano da construção dicotômica homem/mulher ou no plano da orientação  sexual, de forma que a constituição não atribui nenhum significado ortodoxo ou da própria  técnica jurídica ao termo família. 

O que ocorre é que apesar de ser um marco para o direito de constitucional e direito de  família, com impacto para o direito à saúde, previdenciário e outros, é possível observar uma  tentativa de adequação de relações homossexuais ao modelo heteronormativo de família, bem  como, uma higienização da sexualidade de pessoas gays pela afetividade, que em tese, é a  matriz do casamento heterossexual. 

Os votos dos ministros ancoraram-se especialmente em argumentos afetivos, como o do  ministro Luiz Fux para quem o que faz uma família é o amor (Brasil, 2011) e o do ministro  relator Ayres Britto, que elege o termo homoafetividade, utilizado pela primeira vez no Brasil  por Maria Berenice Dias, para identificar o vínculo entre os pares do mesmo sexo. Não há de  se criticar a conquista, mas, sim, o perigo de perpetuar preconceitos contra os desejos  dissidentes por meio da colocação do “casamento homoafetivo” em um lugar de legitimidade  única por corresponder a essa adequação à padrões heteronormativos, como o caso de uma  tentativa de parodiar a família tradicional, enquanto relações com mais de uma pessoa ou não  monogâmicas não são alvo de proteção. 

Permanecendo na caminhada pelo reconhecimento, foi levado a julgamento o Recurso  Extraordinário 670422, em 11 de setembro de 2014, que representou a liberdade para  construção da personalidade. Especificamente, o recurso tem como matéria a discussão da troca  de nome e de gênero no registro civil pelas pessoas transgênero sem a necessidade de qualquer  processo cirúrgico, o que foi reafirmado na ADI 4275. 

Na ADI 4275, a ministra Rosa Weber, em sua decisão, ponderou que a sexualidade não  pode ser mais compreendida, no estágio atual evolutivo cultural da sociedade e de seus valores,  apenas no seu aspecto anatômico-biológico, mas, antes, a partir do aspecto psicossocial,  revelando a influência da CIDH. Além disso, posicionou a sexualidade no campo dos direitos como “direito individual e fundamental que decorre diretamente do princípio da dignidade da  pessoa humana enquanto valor-fonte que informa e conforma todo o ordenamento  constitucional” (Brasil, 2018, p. 76). 

O mesmo é feito na ADPF 527, sobre a ocupação de mulheres trans e travestis em  estabelecimentos prisionais, em que o tribunal considera a identidade de gênero e orientação  sexual como direito fundamental, dimensões essenciais da dignidade da pessoa humana, da  personalidade, da autonomia, privacidade e liberdade. Já ao discutir a interrupção voluntária da  gravidez, que já foi alvo de audiência pública e já teve dentro do órgão posicionamentos  favoráveis como o do ministro Barroso na relatoria do Habeas Corpus 124.306, o tribunal reconheceu a opressão sofrida pela sexualidade das mulheres. 

O Tribunal Superior do Trabalho, nos Protocolos de Atuação e Julgamento da Justiça  do Trabalho não aborda diretamente o conceito de sexualidade, mas trata de todos os elementos  que fazem parte do seu complexo de maneira bastante progressista, sendo um exemplo e fonte  para as formulações jurídicas posteriores. Sobre a orientação sexual, o órgão informa que ela  se refere à atração sexual e afetiva de um determinado indivíduo, bem como formas através das  quais a orientação pode ser sentida e expressa. 

Vale destacar que a bissexualidade e a pansexualidade podem ser encaradas como coisas  distintas, entretanto, cada vez mais, como exposto, são vistas como iguais, isso porque a  instituições e órgãos que entendem a bissexualidade como a atração por homens e mulheres e  a pansexualidade, atração sexual por pessoas independentemente de como se identificam,  havendo pessoas agênero, por exemplo. A questão é bem abordada pelo tribunal, assim como  outras já mencionadas, demonstrando o caminho crítico pelo qual o órgão está disposto a  percorrer.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Os conceitos de gênero, identidade de gênero e sexualidade foram desenvolvidos no  contexto de luta por reconhecimento de existências e direitos. Apesar de possuírem origem nas  ciências da saúde, posteriormente recebeu maior atenção das ciências sociais que  desenvolveram sua compreensão para além da perspectiva biológica, em uma jornada progressista promovida por mulheres acadêmicas e/ou ativistas, na grande maioria das vezes.  Apesar dos esforços conservadores e das duras críticas aos estudos de gênero e diversidade, os  debates avançaram levando a conquistas tanto no saber, quanto no fazer, tornando-se imprescindíveis para as ciências compreenderem e auxiliarem as pessoas e as relações que as  envolvem. 

Assim, as ciências jurídicas, sobretudo, em tribunais, quase que absolutamente a partir  da provocação, realizaram a inclusão dos conceitos de gênero, identidade de gênero e  sexualidade em suas discussões, o que resultou em avanços marcantes para a sociedade e  minorias políticas de gênero. Contudo, ainda assim, é possível observar certa limitação em  determinados usos, havendo um apego às ciências biológicas, fortemente utilizadas na  construção da argumentação. Ademais, é notória a herança dos preconceitos e conservadorismo, que ainda maculam a construção dos conceitos enquanto categorias jurídicas. 

Contudo é evidente que uma série de questões jurídicas, sociais e econômicas carecem da  compreensão dos conceitos, o que os torna indispensáveis para a formulação de dispositivos legais, confecção de decisões judiciais e criação e implementação de políticas públicas,  agrupando uma série de situações jurídicas e fáticas a serem tuteladas de acordo com esse  entendimento. Não há dúvidas quanto à transformação desses conceitos em categorias jurídicas  não só para a luta ativista de gênero e diversidade, mas para todas as pessoas, já que o próprio  Estado recomenda sua consideração quando da resolução de conflitos, utilizando-os como  parâmetro para compreender e decidir tais questões. 

A abertura de tribunais como o Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior do  Trabalho é extremamente importante para a luta pelo reconhecimento socio estatal, mas ainda há muito o que avançar no que diz respeito ao entendimento inclusivo desses conceitos, de  modo que a crítica não se pode confundir com a negação dos avanços, mas sim, ser vista como  uma forma de dar continuidade ao que se tem produzido de maneira aprimorada e ainda mais  substancial.


4Expressão de gênero: entende-se como a manifestação externa do gênero de uma pessoa, por meio da sua  aparência física, que pode incluir o modo de vestir, penteado, uso de artigos cosméticos, ou por meio de  maneirismos, modo de falar, padrões de comportamento pessoal, comportamento ou interação social, nomes  ou referências pessoais, entre outros. A expressão de gênero de uma pessoa pode ou não corresponder à sua  identidade de gênero autopercebida.

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1Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco.  Pesquisador no Grupo de Pesquisa em Direito, Economia e Política – UFPE (CNPQ). E-mail:  cicero.paulobezerra@ufpe.br.
2Professora Adjunta de Direito do Trabalho e Seguridade Social na Faculdade de Direito do Recife (UFPE).  Pós-doutorado em Economia Política no Instituto de Recherche Economiques et Sociales (França). Doutora em  Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora no  Grupo de Pesquisa em Direito, Economia e Política – UFPE (CNPQ). E-mail: juliana.esteves@ufpe.br.
3Professora Adjunta de Direito do Trabalho e Seguridade Social na Faculdade de Direito do Recife (UFPE).  Doutora e Mestra em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de  Pernambuco. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa em Direito Economia e Política – UFPE (CNPQ). E-mail:  larissa.castilho@ufpe.br.