FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA E SEUS REFLEXOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7277371


Arley Elias Meneses1
Joice Kelle de Deus2
Welison Nunes da Silva3


INTRODUÇÃO

Embora ainda de pouco conhecimento por parte da população, sabe-se que a paternidade socioafetiva tem se tornada tema de grande incidência no âmbito jurídico brasileiro no que tange a formação da família. Muito se questiona se haveria respaldo, de fato, para que seja constituída esse tipo de filiação.

Pode-se dizer que o referido tema é fruto das transformações incorporadas no conceito das famílias, que deixaram de ter um caráter econômico, social e religioso, se transformando em uma unidade familiar fundada em afeto, tendo este privilégio em relação àquela. Neste contexto, fica claro que toda paternidade é, de fato, socioafetiva, podendo esta ser considerada um gênero, do qual há duas espécies, sendo elas a paternidade biológica e a não biológica (DIAS, 2016).

Sendo assim, sua abrangência pode ser considerada como ampla, sendo fruto da égide da Constituição Federal de 1988, que deu maior destaque à dignidade da pessoa humana, a qual prevalece sobre antigas concepções pautadas no poder patriarcal definido pelo Código Civil de 1916 e demais legislações esparsas. Diante disso, observa-se que a determinação do real significado de vínculo familiar atualmente deve ter seu conceito pautado pelo afeto entre os indivíduos e não mais apenas pelo vínculo sanguíneo que os une.

Diante do melhor interesse da criança e do adolescente, um fator determinante que auxilia em seu desenvolvimento saudável são as relações estabelecidas com seus genitores e parentes. Sabendo-se da importância que as relações familiares têm na vida dos menores, busca-se, no presente artigo, determinar o conceito de filiação socioafetiva.

Buscou-se, também, reunir dados da doutrina e jurisprudência, objetivando-se definir os parâmetros utilizados por estes para a concessão da filiação socioafetiva e analisar a possibilidade de uma dupla filiação, visando os melhores interesses da criança e do adolescente.

Posteriormente, o presente trabalho analisará os efeitos jurídicos advindos do reconhecimento da filiação socioafetiva e, também, a responsabilidade daquele que é declarado como genitor socioafetivo. Ainda, destaca-se que as consequências jurídicas advindas do referido reconhecimento de filiação socioafetiva produzem efeitos em todas as áreas jurídicas, tanto do genitor reconhecido como socioafetivo, quanto da criança e do adolescente.

Diante de um ordenamento jurídico que evolui constantemente para se adequar à realidade social, deve-se analisar os interesses de todos aqueles que são atingidos pelos efeitos das respectivas alterações, ponderando-se os interesses dos afetados.

Para tanto, observa-se que essas alterações devem ser feitas de forma a melhorar, e não prejudicar, a vida e os interesses da população, sendo viável dar destaque para as relações familiares que, devido ao fato de estas apresentarem grande incidência no âmbito de ações propostas no judiciário, merecem alterações significativas para atender aos interesses daqueles que participam delas, principalmente no que tange às crianças e aos adolescentes, que são os vulneráveis nessas relações.

Para o desenvolvimento do presente trabalho, fez-se uso de pesquisa bibliográfica em livros de doutrinadores conceituados, bem como análise de julgados incidentes no âmbito dos Tribunais brasileiros.

1 FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

A união familiar deve ser conceituada sob o prisma do afeto, sendo este o princípio que deve reger as relações familiares, tendo primazia em relação às considerações que tenham caráter patrimonial e biológico, sendo o afeto o responsável por unir as pessoas para se constituir uma família, sendo, além de um lanço que une a família, um caráter humanitário presente nas relações familiares (DIAS, 2016).

Como bem nos assegura Madaleno (2022), o real valor jurídico que fundamenta as relações familiares se encontra no afeto e não em questões biológicas, pois estas representam um efeito da natureza, enquanto aquele se pauta no vínculo psicológico entre os indivíduos, gerando um sentimento de amor e preocupação com o bem-estar do outro. Quando há a filiação biológica e esta se encontra desconexa do afeto e da convivência, verifica-se que os indivíduos consideram, em muitos os casos, um indesejado acaso.

Conforme exposto acima, cumpre destacar, aliás, a importância que se faz o vínculo afetivo nas relações familiares, principalmente naquelas envolvendo genitor e prole, sendo o vínculo afetivo fato que se sobrepõe ao vínculo sanguíneo. Mesmo assim, não parece haver razão para que se desconsidere por total a importância do vínculo sanguíneo entre os familiares, devendo, preferencialmente, haver conjunção entre vínculo sanguíneo e afetivo, sendo indispensável o último, haja vista que sem o afeto entre familiares, muitas vezes estes consideram a relação estabelecida como um efeito da natureza.

Conforme verificado por Gonçalves (2022) a paternidade socioafetiva não afasta os direitos do genitor biológico, haja vista que esse impedimento seria uma afronta à Constituição Federal de 1988, principalmente ao princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-se inegavelmente de um direito da prole em ter reconhecida sua verdadeira filiação, caso assim o deseje, não devendo ser imposto a esta a filiação socioafetiva. Assim, reveste-se de particular importância o fato de que há prevalência da paternidade socioafetiva, sobretudo quando o pai biológico registrado concorda com o disposto.

Sob essa ótica, fica clara a importância que a dignidade da pessoa humana tem no contexto das relações familiares, principalmente no relevante papel do afeto na relação entre estes, haja vista que o afeto e amor garantem uma melhor qualidade de vida e desenvolvimento da criança e do adolescente. Dias (2016) observa que “o elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo. Cada vez mais a ideia de família afasta-se da estrutura do casamento.” (DIAS, 2016, p. 204).

Ora, em tese, todas as famílias são sempre socioafetivas, haja vista que se constituem em uma união que tem como fundamento a convivência e o afeto que une os membros destas. Julga-se pertinente trazer à baila o fato de que existe, também, a possibilidade de o enteado adotar o sobrenome da madrasta ou do padrasto, sendo chamada de adoção unilateral, e sem excluir o vínculo parental com o genitor.

Madaleno (2022) ainda observa que “uma vez declarada a convivência familiar e comunitária como direito fundamental, prioriza-se a família socioafetiva, a não discriminação de filhos, a corresponsabilidade dos pais quanto ao exercício do poder familiar, e se reconhece o núcleo monoparental como entidade familiar” (MADALENO, 2022, p. 33).

O autor deixa claro que há a priorização da família socioafetiva, devido ao fato de que a convivência familiar e comunitária terem sido declaradas como direitos fundamentais, devendo também não haver a discriminação entre os filho e haver a corresponsabilidade dos pais no que tange ao exercício do poder familiar, tudo isso visando o melhor atendimento às necessidades da criança e do adolescente.

A despeito disso, Dias (2016) observa que:

O parentesco deixou de manter, necessariamente, correspondência com o vínculo consanguíneo. Basta lembrar a adoção, a fecundação heteróloga e a filiação socioafetiva. A disciplina da nova filiação há que se edificar sobre os pilares constitucionalmente fixados: a plena igualdade entre filhos, a desvinculação do estado de filho do estado civil dos pais e a doutrina da proteção integral. (DIAS, 2016, p. 632)

Neste contexto, fica claro que o parentesco deixou de considerar como essencial o vínculo consanguíneo, passando a adotar critérios mais flexíveis para se considerar uma relação familiar. O mais preocupante, contudo, é constatar que, diante desse fato, muitos pais biológicos possam vir a não honrar com seus deveres familiares quando há uma dupla filiação, imputando seus deveres apenas ao pai socioafetivo.  Não é exagero afirmar que tal situação poderia interferir no pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, pois, quando se encontra presente a dupla filiação, há a necessidade de que todos os pais, biológicos ou não, cumpram com seus deveres familiares visando o bem-estar do menor.

Quando se resta configurada a filiação socioafetiva, há a configuração do parentesco para todos os fins de direito, havendo também a responsabilidade do pai socioafetivo. Dias (2016) observa que:

O vínculo de filiação socioafetiva, que se legitima no interesse do filho, gera o parentesco socioafetivo para todos os fins de direito, nos limites da lei civil. Se o filho é menor de idade, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente; se maior, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, que não admite um parentesco restrito ou de “segunda classe”. O princípio da solidariedade se aplica a ambos os casos. (DIAS, 2016, p. 654).

Conforme verificado, a presença da filiação socioafetiva gera efeitos jurídicos, sendo a responsabilidade do pai socioafetivo equiparada à responsabilidade do pai biológico, gerando efeitos jurídicos para todos os fins, nos termos do direito civil. Logo, observa-se que se trata de decisão tomada que afetará a vida do menor, assim, reveste-se de particular importância, a decisão a ser tomada, devido à repercussão que gerará, devendo-se tomar os devidos cuidados e os pais se responsabilizarem pela decisão tomada.

Os próximos capítulos abordarão a temática referente às decisões jurisprudenciais a respeito do tema e os efeitos jurídicos advindos do reconhecimento da filiação socioafetiva.

2 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

O presente capítulo abordará a incidência dos processos relativos à filiação socioafetiva no âmbito dos Tribunais brasileiros e o posicionamento destes quanto ao tema. Há muito se sabe que o direito de família se configura como um ramo complexo e objeto de grande volume de demandas judiciais no ordenamento jurídico, sendo também alvo de diversas divergências.

Dias (2016) observa que há três critérios para se estabelecer o vínculo parental, sendo eles:

(a) critério jurídico – previsto no Código Civil, estabelece a paternidade por presunção, independentemente da correspondência ou não com a realidade (CC 1.597); (b) critério biológico – é o preferido, principalmente em face da popularização do exame do DNA; e (c) critério socioafetivo – fundado no melhor interesse da criança e na dignidade da pessoa. Pai é o que exerce tal função, mesmo que não haja vínculo de sangue. (DIAS, 2016, p. 632-633).

Conforme explicado acima, é interessante, pois, afirmar que há fatores, além do biológico, que estabelecem que há um vínculo parental. Assim sendo, há o critério jurídico, biológico e socioafetivo, sendo este determinado pelo fato de que pai é o que exerce a função, assumindo as responsabilidades do papel, independentemente do vínculo de sangue.

Observa-se, ainda, que o ordenamento jurídico tem como enfoque atender ao melhor interesse da criança e do adolescente e, para tanto, admite a possibilidade da multiparentalidade, conforme é possível observa no seguinte julgado:

RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. MODIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. PATERNIDADE BIOLÓGICA. DNA. RECONHECIMENTO CONCOMITANTE DA PATERNIDADE BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA. 1. A paternidade não pode ser vista apenas sob enfoque biológico, pois é relevante o aspecto socioafetivo da relação tida entre pai e filha. 2. As provas dos autos demonstram que o apelante estabeleceu forte vínculo com a menor, tanto que, com o divórcio dos genitores, a guarda e o lar de referência é o paterno. 3. A tese de multiparentalidade foi julgada pelo STF em sede de repercussão geral e decidiu que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseado na origem biológica com os efeitos jurídicos próprios. 4. Ante a existência dos dois vínculos paterno-filiais, que não podem ser desconstituídos, a orientação que melhor atende aos interesses das partes, notadamente o da menor, é o reconhecimento de ambos os vínculos paternos: o biológico e o socioafetivo, com as devidas anotações no seu registro civil. 5. Recurso conhecido e desprovido. (Acórdão 1066380, 20160210014256APC, Relatora: Maria de Lourdes Abreu, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 16/11/2017, publicado no DJe: 13/12/2017)

Pode-se dizer que há relevante importância no que tange ao aspecto socioafetivo nas relações familiares, sendo que a paternidade não pode ser vista apenas sob o enfoque biológico, conforme decisão supracitada. Neste contexto, fica claro que há a possibilidade de se adotar a multiparentalidade ou dupla filiação, sendo esta tese já acolhida pelo STF, o qual decidiu que a paternidade socioafetiva não impede que também seja reconhecida a paternidade biológica de forma concomitante.

Ora, em tese, caso a criança fosse impedida de ter reconhecido seu pai biológico, seria negado a esta sua origem biológica. É importante considerar que, para solucionar a determinada questão, a orientação que visa atender melhor as partes, é manter os dois registros paterno-filiais, reconhecendo o vínculo destes com o menor, de forma a atender o melhor interesse das partes.

Observa-se a seguinte decisão:

PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO CIVIL. ANULAÇÃO PEDIDA POR PAI BIOLÓGICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PREPONDERÂNCIA. 1. A paternidade biológica não tem o condão de vincular, inexoravelmente, a filiação, apesar de deter peso específico ponderável, ante o liame genético para definir questões relativa à filiação. 2. Pressupõe, no entanto, para a sua prevalência, da concorrência de elementos imateriais que efetivamente demonstram a ação volitiva do genitor em tomar posse da condição de pai ou mãe. 3. A filiação socioafetiva, por seu turno, ainda que despida de ascendência genética, constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família. 4. Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factumproprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família. 5. Na hipótese, a evidente má-fé da genitora e a incúria do recorrido, que conscientemente deixou de agir para tornar pública sua condição de pai biológico e, quiçá, buscar a construção da necessária paternidade socioafetiva, toma-lhes o direito de se insurgirem contra os fatos consolidados. 6. A omissão do recorrido, que contribuiu decisivamente para a perpetuação do engodo urdido pela mãe, atrai o entendimento de que a ninguém é dado alegrar a própria torpeza em seu proveito (nemoauditurpropriamturpitudinemallegans) e faz fenecer a sua legitimidade para pleitear o direito de buscar a alteração no registro de nascimento de sua filha biológica. 7. Recurso especial provido. (STJ. REsp 1087163 / RJ – Terceira Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe de 31/08/2011).

Na decisão acima, é exposto o caso em que um pai pediu a alteração do registro civil de sua filha, devido ao fato de que neste constava como pai o nome de outrem. Ao decidir sobre o tema, a Turma decidiu que a paternidade biológica não tem o poder de vincular, impreterivelmente, a filiação, tendo, ainda, apontado que a filiação socioafetiva é uma relação que deve ser protegida no ordenamento jurídico.

Neste sentido, conclui-se que “A filiação socioafetiva funda-se na cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade.” (DIAS, 2016, p. 653).

Neste contexto, fica claro que o posicionamento de doutrina e jurisprudência é no sentido de privilegiar a filiação socioafetiva em detrimento da biológica, quando ambas se encontram em conflito, entretanto, cumpre ressaltar, que não há que se desmerecer a paternidade biológica, haja vista que a prole possui o direito de ter reconhecida sua origem biológica.

Dias (2016) aponta, ainda, que:

Em matéria de filiação, a verdade real é o fato de o filho gozar da posse de estado. Esta é a prova o vínculo parental. Não é outro o fundamento que veda a desconstituição do registro de nascimento feito de forma espontânea por aquele que, mesmo sabendo não ser o pai consanguíneo, tem o filho como seu. (DIAS, 2016, p. 653)

Logo, fica claro que a solução adequada para se resolver o óbice em questão é a adoção da multiparentalidade, em que há a possibilidade de constar no registro civil a paternidade socioafetiva e a biológica, podendo ter como fundamento a cláusula geral de tutela da personalidade humana, buscando-se a melhor formação e desenvolvimento da personalidade.

3 EFEITOS JURÍDICOS RESULTANTES DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

A filiação socioafetiva gera efeitos jurídicos para todos os fins, seja de natureza pessoal, quanto patrimonial. O vínculo gerado decorrente do afeto se constitui em um laço forte que não é ignorado no ordenamento jurídico brasileiro, sendo, em verdade, privilegiado por este.

Na visão de Dias (2016) o vínculo decorrente do afeto se fundamenta no interesse do filho, tendo seus efeitos reconhecidos nos limites da lei civil, observa-se:

O vínculo de filiação socioafetiva, que se legitima no interesse do filho, gera o parentesco socioafetivo para todos os fins de direito, nos limites da lei civil. Se o filho é menor de idade, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente; se maior, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, que não admite um parentesco restrito ou de “segunda classe”. O princípio da solidariedade se aplica a ambos os casos. (DIAS, 2016, p. 654)

É interessante, aliás, destacar que o registro da paternidade socioafetiva, em alguns locais, pode ser realizado diretamente no Cartório de Registro Civil, podendo haver o reconhecimento espontâneo se não houver paternidade registral, bastando apenas a anuência do filho que seja maior de idade, por escrito (DIAS, 2016).

Conforme verificado, trata-se inegavelmente de instituto que visa atender ao melhor interesse da criança e do adolescente, conferindo a estes direitos inerentes ao de filhos biológicos, objetivando-se não haver distinção entres estes e àqueles. Assim, reveste-se de particular importância este tratamento conferido aos filhos socioafetivos, o qual garante uma relação afetiva justa e igualitária entre os componentes da unidade familiar.

Julga-se importante trazer à baila recente situação ocorrida em Goiás, em que o juízo proferiu decisão no sentido de manter o registro de uma menina pelo pai socioafetivo, que não era o biológico, sendo também mantida a obrigação de se prestar alimentos. No caso, o autor requereu que fosse descontinuada a paternidade, haja vista ter descoberto que não havia vínculo consanguíneo entre ambos, entretanto, cumpre destacar que o autor registrou a criança de forma espontânea, pois acreditava ser o pai biológico, tendo, posteriormente, realizado exame de DNA e descoberto que não havia vínculo sanguíneo entre ambos, afirmando, ainda, que não teve mais contato com a criança (IBDFAM, 2021).

No caso supramencionado, o juiz do processo ainda observou que o registro de paternidade pode ser descontinuado caso haja comprovação de que o autor incorreu em erro, coação ou falsidade, sem os quais, por mera liberdade, não pode ser desconstituído. Afirma, ainda, que o simples fato de o autor não ser o pai biológico ou de ter tido arrependimento posterior, não são argumentos suficientes para a comprovação de inexistência de vínculo, haja vista que foi constatado o vínculo socioafetivo entre ambos. É importante destacar que há evidências, no referido processo, que há a vínculo socioafetivo, sendo este privilegiado em detrimento do vínculo biológico (IBDFAM, 2021).

Neste contexto, fica evidenciado o fato de que o pai, mesmo socioafetivo com ausência de vínculo biológico, tem deveres inerentes à condição de pai, possuindo responsabilidades, inclusive a responsabilidade de prestar alimentos ao infante.

Observa-se, ainda, a questão referente ao nome, sendo que, devido às alterações realizadas no ordenamento jurídico para se adaptar às mudanças ocorridas na sociedade, houve uma evolução no âmbito das relações vivenciais. Diante disso, há, por exemplo, o impedimento da descontinuação do compromisso que o pai socioafetivo assumiu, havendo, também, confronto quanto ao fato do filho querer se manter como filho, mesmo que o pai socioafetivo, sem vínculo biológico, assim não o queira (DIAS, 2016).

No que tange ao nome, sabe-se que se trata de assunto complexo, frente ao fato de objetivar-se manter a segurança das relações jurídicas. Conclui-se, pois:

Toda esta mobilidade passou a prevalecer, inclusive, frente ao princípio da imutabilidade do nome, consagrado para manter a segurança das relações jurídicas. Não foi outro o propósito, ao ser admitida a inclusão do nome do padrasto. E cada vez mais a jurisprudência vem sendo sensível e admite a alteração do nome quando o registro não preserva o próprio direito à identidade. Assim possível
é a supressão do sobrenome do pai registral, mediante a prova do abandono. Também é possível a substituição pelo sobrenome do guardião. (DIAS, 2016, p. 186)

Pode-se dizer que há a possibilidade de se registrar no registro civil a cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica, conforme se observa:

O posicionamento da Suprema Corte impede a aceitação, como regra, da afirmação de que uma modalidade, a paternidade socioafetiva e a biológica, prevalece sobre a outra, indicando que a melhor posição será definida apenas no julgamento do caso concreto. O que restou claro é a possibilidade de se reconhecer a cumulação de uma paternidade socioafetiva concomitantemente com uma paternidade biológica, mantendo-se ambas em determinada situação fática, reconhecendo-se, com isso, a possibilidade da existência jurídica de dois pais ou duas mães. (MADALENO, 2022, p. 308)

Fica evidente, diante do quadro exposto, que a paternidade socioafetiva afeta diretamente a vida do pai e do filho socioafetivos, produzindo efeitos diretos e reflexos em todas as áreas de direito, seja no que tange ao registro civil, bem como na pensão alimentícia e no âmbito das sucessões, por exemplo. Assim sendo, confirma-se a sua importância e a responsabilidade que advém com a respectiva modalidade de filiação.

Decorrente do melhor interesse da criança e do adolescente, conclui-se que a posição adotada pela jurisprudência e doutrina brasileiras é no sentido de privilegiar a relação socioafetiva em detrimento da biológica. Entretanto, a presença de uma não anula a da outra, sendo possível a cumulação concomitante de ambos, estando presentes os reflexos de ambas nas áreas jurídicas. Logo, conclui-se pela possibilidade da dupla filiação no ordenamento jurídico, protegendo, assim, o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito da personalidade inerentes a todos os indivíduos.

CONCLUSÃO

Ao se desenvolver o presente artigo científico foi possível se realizar um estudo sobre a filiação socioafetiva, buscando conceituá-la, a posição doutrinária e jurisprudencial sobre o referido tema e os efeitos jurídicos incidentes sobre a respectiva modalidade de filiação. Ademais, foi possível uma melhor familiaridade com o tema e observá-lo sob diferentes posicionamentos.

De modo geral, a tendência jurisprudencial demonstrou prevalência da filiação socioafetiva em detrimento da biológica. Observa-se que os Tribunais brasileiros tiveram posicionamento no sentido de que o afeto é o que une uma família. Portanto, uma relação familiar pautada apenas em um vínculo sanguíneo não há como prosperar, podendo, inclusive, os indivíduos da relação considerarem-na apenas fruto de eventualidade da natureza e um infortúnio.

Foi demonstrado, também, uma proteção maior destinada à criança e ao adolescente, visando atender ao princípio da dignidade da pessoa humana e a proteção do direito da personalidade destes, haja vista que possuem o direito de ter reconhecido, também, o vínculo biológico.

Diante do exposto, verifica-se que os Tribunais adotaram a possibilidade da multiparentalidade ou dupla filiação como forma de resolver conflitos e divergências presentes nas relações familiares, fornecendo à criança e ao adolescente a possibilidade de manter em seu registro civil tanto a filiação socioafetiva, quanto a biológica.

As relações familiares referentes à filiação geram dúvidas e, muitas vezes, divergências, haja vista que são relações complexas e que devem ser analisadas sob o prisma da dignidade da pessoa humana e dos direitos da personalidade.

O presente trabalho fez uma análise geral dos principais pontos mais incidentes que geraram debates nas Cortes superiores, permitindo uma abordagem ampla em que foi possível destacar os efeitos jurídicos desse reconhecimento de filiação.

A pesquisa em sítios eletrônicos e em livros forneceu à pesquisa um embasamento teórico abundante, em que foi possível mensurar a extensão em que este instituto pode ser aplicado no âmbito das relações familiares, bem como os requisitos para que isso ocorra e a possibilidade ou não da descontinuação da paternidade presente no registro civil.

Diante de todo o exposto e da importância do referido tema, principalmente no que tange às relações familiares, faz-se necessária a proteção do ordenamento jurídico aos indivíduos componentes das relações familiares, principalmente à criança e ao adolescente.

Nesse sentido, a possibilidade da dupla filiação apresenta-se como meio eficaz em dirimir conflitos e fornecer dignidade aos infantes, promovendo-lhes um bem-estar social e garantindo sua dignidade.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 139, n. 8, p. 1-74, 11 jan. 2002.

BRASIL. Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Diário Oficial da União: Seção 1, Rio de Janeiro, RJ, 5 de janeiro de 1916, Página 133.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. 1250 p.

DISTRITO FEDERAL, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Acórdão 1066380, 20160210014256APC. Relatora Maria de Lourdes Abreu. 3ª Turma Cível, julgado em 16/11/2017, DJe: 13/12/2017. Disponível em: https://pesquisajuris.tjdft.jus.br/IndexadorAcordaos-web/sistj?visaoId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordao&controladorId=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.ControladorBuscaAcordao&visaoAnterior=tjdf.sistj.acordaoeletronico.buscaindexada.apresentacao.VisaoBuscaAcordao&nomeDaPagina=resultado&comando=abrirDadosDoAcordao&enderecoDoServlet=sistj&historicoDePaginas=buscaLivre&quantidadeDeRegistros=20&baseSelecionada=BASE_ACORDAOS&numeroDaUltimaPagina=1&buscaIndexada=1&mostrarPaginaSelecaoTipoResultado=false&totalHits=1&internet=1&numeroDoDocumento=1066380. Acesso em: 01 out. 2022.

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Mesmo sem vínculo biológico, pai socioafetivo deve ser mantido em registro e prestar alimentos à filha. IBDFAM, 2021. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8526/Mesmo+sem+v%C3%ADnculo+biol%C3%B3gico%2C+pai+socioafetivo+deve+ser+mantido+em+registro+e+prestar+alimentos+%C3%A0+filha. Acesso em: 01 out. 2022.


1 Estudante de Direito na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Alto São Francisco (FASF). E-mail: federal.aem@gmail.com.

2 Estudante de Direito na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Alto São Francisco (FASF). E-mail: kellyjoice355@gmail.com.

3 Estudante de Direito na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Alto São Francisco (FASF). E-mail: welisonnunes21@gmail.com.