FEMINICÍDIO E PROVA PERICIAL: ANÁLISE CRÍTICA DA IMPLEMENTAÇÃO DA PERSPECTIVA DE GÊNERO NAS INVESTIGAÇÕES DE MORTES VIOLENTAS DE MULHERES

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202503252023


Gyzele Cristina Xavier Santos¹; Eduardo Ramos de Freitas²; Livia Sabino Cardoso³; Michele Cunha Franco⁴.


RESUMO

A tipificação dos feminicídios tem sido uma preocupação constante dos organismos internacionais de Direitos Humanos e de grupos feministas, visando enfrentar adequadamente as diversas formas de violência contra a mulher. A investigação criminal orientada pela perspectiva de gênero constitui-se como uma ferramenta imprescindível para alcançar esse objetivo, visto que possibilita a coleta e análise de elementos probatórios robustos e específicos, favorecendo a correta identificação e responsabilização desses crimes. Diante desse cenário, este estudo utiliza-se da pesquisa bibliográfica, abrangendo literatura impressa, artigos científicos e documentos de referência nas áreas de direitos humanos das mulheres, estudos de gênero, interseccionalidade e investigação criminal, dentre outros temas correlatos, publicados até o ano de 2017. Como resultado, estabelecemos um diálogo crítico entre os temas abordados, os procedimentos específicos previstos nas Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar as Mortes Violentas de Mulheres (ONU Mulheres, 2016), e a experiência profissional da autora no âmbito da perícia criminal localística. Essa articulação permitiu identificar lacunas e fragilidades passíveis de comprometer a efetiva implementação das referidas diretrizes no campo da perícia criminal, bem como apontar oportunidades promissoras para futuros estudos e avanços na área.

Palavras-chave: Feminicídio; violência contra a mulher; Direitos Humanos; investigação criminal; perícia criminal; perspectiva de gênero.

1. APRESENTAÇÃO

A violência contra a mulher, é uma realidade que aflige milhares de mulheres e meninas em todos os continentes e que vem se arrastando por séculos e, em contraposição aos avanços legais e aos esforços educativos e culturais, tais violências resistem insistentemente e afetam as várias fases da vida de mulheres em todas as sociedades

No Brasil, os assassinatos de mulheres decorrentes de violência doméstica, familiar ou por desprezo e discriminação, historicamente fizeram parte do cotidiano, porém\evidenciadas como episódios banais, os quais perdiam boa parte de sua importância como fenômenos da vida pública e políticas por meio de uma exposição midiática protagonizando a barbárie e as absurdidades ocorridas, e não a origem da violência e suas características, as quais, segundo Bandeira (prefaciando Blay, 2008) têm sua raiz na relação existente entre poder e uma noção de masculinidade,  por meio da qual um delito ou um crime pode ser entendido como uma virtude. Com base nestes entendimentos encrustados no inconsciente coletivo e social, assassinos eram beneficiados pelo argumento da “legitima defesa da honra” quando, de fato, agiam motivados pelo sentimento de posse, desejo de controle, desprezo, menosprezo e discriminação, que, somados,  faziam prevalecer a impunidade (Brasil, 2016).

Após muitas convenções em Direitos Humanos, acordos e pressões internacionais6, o Brasil incluiu em seu ordenamento jurídico dispositivos que versam sobre a violência contra a mulher, destacadas a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) e a Lei 13.104/15 (Lei do Feminicídio). A partir de então, torna-se imperativa a busca pela adequada tipificação do feminicídio, sendo esta impreterível para que as mortes de mulheres por questões de gênero possam ser devidamente nomeadas, contadas e estudadas, consoantes às suas características próprias, visando prioritariamente a devida punição (e o não cabimento da passionalidade e  possível benefício decorrente desta) e consequentemente a prevenção de outras mortes, as quais são caracterizadas por sua evitabilidade mediante ações norteadas e fomentadas pelo Estado.

 Um dos marcos de referência ditado pelos direitos humanos em âmbito internacional, que visa combater a violência contra a mulher (incluindo o feminicídio) e obriga os Estados a tomarem medidas para prevenir, investigar, punir e reparar as violações sofridas pelas mulheres, diz respeito ao dever da devida diligência, ditado pelo art. 7 da Convenção de Belém do Pará (ONU, 1994). o dever de investigar, possui dois objetivos, os quais: prevenir uma futura repetição dos fatos e prover justiça nos casos individuais. Permite apresentar as circunstâncias nas quais ocorreram os fatos, o que é indispensável para o reconhecimento da verdade por parte dos familiares das vítimas e da sociedade, como também para a punição dos responsáveis e o estabelecimento de medidas de prevenção da recidiva das violações dos direitos humanos (ONU Mulheres, 2014).

Os dispositivos internacionais que versam sobre o combate ao feminicídio creditam à investigação um caráter de imprescindibilidade, sendo que o dever de investigar delegado ao Estado deve garantir uma resposta adequada frente a atos de violência contra a mulher. Assim, a Corte IDH (ONU Mulheres, 2014) reforçou que a investigação deve ser pautada pela imparcialidade, seriedade e exaustividade, além de utilizar todos os meios disponíveis a fim de evitar a repetição de fatos semelhantes e de permitir o estabelecimento da responsabilidade penal. Ressalta ainda que ausência da devida investigação e punição faz com que este modelo investigativo mantenha-se inalterado, com o reiterado o uso de métodos inadequados por parte dos investigadores, o que afeta a capacidade do Poder Judiciário de identificar e punir os responsáveis. O Estado Brasileiro publica, então, as Diretrizes Nacionais Feminicídio: Investigar, processar e julgar com a perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres (2016)7 que visam “colaborar para o aprimoramento da investigação, processo judicial e do julgamento das mortes violentas de mulheres de modo a evidenciar as razões de gênero como causa dessas mortes” (p. 16), ou seja, para se atribuir a tipificadora do feminicídio a estes assassinatos.

Estamos diante de uma realidade em que a moderna legislação brasileira se contrasta com os repetidos, insistentes e alarmantes índices de atos de violações dos direitos humanos das mulheres, por meio de violências continuadas e fatais, baseadas nos estereótipos de gênero, fomentadas e, ainda, legitimadas pela sociedade patriarcal. Diante deste quadro nos dignamos a realizar este estudo, por meio do qual objetivamos discutir acerca da implementação da perspectiva de gênero na investigação criminal pericial das mortes violentas de mulheres. Para tanto, buscaremos levantar questões de relevância contidas na literatura relacionada, bem como problematizaremos alguns aspectos das diretrizes em relação à produção da prova material, levantando lacunas e oportunidades para a realização de pesquisas na área, a fim de viabilizar a efetiva aplicação das Diretrizes e de fomentar a necessária construção probatória do assassinato em investigação[3].

2. ASSASSINATO DE MULHERES E OS DIREITOS HUMANOS

A ONU, que tem dentre seus principais objetivos a proteção e a promoção dos Direitos Humanos, proclamou em 10 de dezembro de 1948, por Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), documento norteador dos direitos humanos fundamentais a serem universalmente protegidos. O Brasil assinou a DUDH na mesma data de sua proclamação e a partir de então a proteção internacional dos direitos humanos se fortaleceu com a aprovação de inúmeras declarações e tratados internacionais (Moraes, 2013).  

A promulgação da DUDH foi o momento no percurso histórico normativo dos direitos humanos em que a houve a referência explícita à igualdade de direitos do homem e da mulher, quando em seu preâmbulo:  

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla (ONU, 1948).

Barsted (2001) discorre que apesar de tal referência aos direitos do homem e da mulher, a ideia de direitos humanos não abarcou a rejeição às violações que vitimizavam ( e ainda vitimizam) as mulheres. Tal constatação reforça a afirmativa de Gonçalves (2013) de que as mulheres não foram consideradas seres humanos como os homens por longo tempo nas esferas social, política e jurídica mesmo que estas estivessem alavancando importantes movimentos revolucionários9, pois vigorou o posicionamento de que a mulher é um ser inferior ao homem.  A autora diz ainda que as mulheres seguem vivendo uma forma única de violação a direitos humanos, por serem vítimas de várias formas de violência dentro de suas casas, no ambiente de trabalho e em espaços públicos, tudo isso devido à construção social e cultural em torno de sua condição biológica.  A mulher sofre formas peculiares de violação a direitos humanos, e muitas vezes são privadas da autonomia sobre seu corpo e sexualidade, e vítimas de violência doméstica e opressões em seus locais de trabalho, violações estas, não reconhecidas enquanto ofensas aos direitos humanos (Binion, G., 1995, apud Gonçalves, 2013).  

Foram necessárias muitas reivindicações, protestos e mortes para que as mulheres tivessem reconhecidos expressamente os seus direitos como direitos humanos. E, apesar de representarem metade da humanidade, foi necessário formalizar, há apenas dezessete anos: “Estamos convencidos de que: (…) 14. Os direitos da mulher são direitos humanos” (ONU, 1995), ratificando o posicionamento prevalecente de que as mulheres não eram vistas como seres humanos. 

Diante desta situação, as Nações Unidas, durante as seis décadas que sucederam a promulgação da DUDH, publicou inúmeros documentos, tratados e protocolos, realizou várias convenções, pactos e intervenções, demonstrando sua preocupação com os direitos humanos das mulheres em diversas esferas, e o resultado foram documentos de fundamental importância no que se refere a violência contra a mulher.

Seguindo, citamos documentos que tiveram grande repercussão e influência na atual conjuntura normativa brasileira em relação ao combate à violência contra a mulher, os quais:

– 1979- Convenção sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW);​

​- 1994- Relatório da Conferência Internacional sobre população e desenvolvimento (Plataforma de Cairo);​

​-1994- Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 9/jun/1994);​

​- 1995- Declaração e Plataforma de Ação da ​IV Conferência Mundial Sobre  a Mulher (Pequim);

A CEDAW (1978) e a Convenção de Belém do Pará (1994) assumem particular protagonismo em relação à Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), como apresentado no preâmbulo desta:

LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006.

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher […].

Assim, podemos observar como os Direitos Humanos interferiram em vários momentos, digamos que, até coercitivamente, para que o Brasil se posicionasse efetivamente em relação ao combate à violência contra a mulher. Com a promulgação da Lei 13.104/15 que tipifica o crime de feminicídio não seria diferente. A mesma, assim como a Lei Maria da Penha, resultou de pressões internacionais com objetivo de tirar da invisibilidade, as mortes de mulheres por serem mulheres, dando a elas existência formal e tornando-as numericamente compiláveis dentro do mundo jurídico.

2.1 A necessidade de tipificar

No Brasil, existem divergências de posicionamentos em relação a necessidade de se tipificar o feminicídio, tanto que os dois anos de tramitação do projeto lei que o tipifica foram permeados por debates calorosos e polêmicos, pedidos de vistas, ressalvas e objeções (principalmente por parte da bancada religiosa). O CADEM (2012) ressaltou que as discussões entre ambos os posicionamentos contribuíram dando visibilidade às particularidades dos homicídios de mulheres por sua condição de gênero.

As pessoas que estão contra a tipificação do femicídio/feminicídio apontam que os homicídios de mulheres por razões de gênero podem ser subsumidos nas hipóteses de homicídio qualificado regulados nos códigos penais, aplicando-se aos responsáveis as punições estabelecidas em tais tipos penais. Afirmam que nem o problema da violência contra as mulheres nem as dificuldades no acesso à justiça se solucionam com a criação de novas figuras penais ou com o aumento das penas. Segundo esta posição, a visibilização dos homicídios de mulheres por razões de gênero pode se obter através de medidas extra penais, por exemplo, criando registros estatais de tais homicídios, como ocorre na Espanha ou no Peru. Nestes dois países conta-se com uma informação muito detalhada sobre os homicídios de mulheres por razões de gênero, o que permite adotar políticas públicas – sobre a base de estatísticas oficiais – para combater a violência contra as mulheres (p.173 e 174).

As pessoas que estão a favor de tipificar o delito de femicídio/feminicídio consideram que a incorporação de um tipo penal visibiliza uma forma extrema de violência de gênero, garante o acesso à justiça e possibilita que o Estado adote políticas públicas para a prevenção e erradicação da violência contra as mulheres. De acordo com esta posição, embora aplicando a norma jurídica neutra do homicídio pode-se perseguir penalmente a quem tenha privado da vida uma mulher por razões de gênero, não se consegue visibilizar o contexto em que ocorrem estas mortes, e portanto se impede que exista uma verdadeira política criminal para combater o delito […]Finalmente, argumenta-se que o elemento simbólico do direito penal pode contribuir a transformações culturais importantes.  (p. 171).

MESECVI10 (2012), em relação ao feminicídio enfatiza “a necessidade de dar seguimento à aplicação desse tipo penal e seus agravantes pelos juízes e promotores, sobretudo na avaliação dos motivos de gênero ou pelo fato de ser mulher” (p. 23).

Mello (op.cit), diz que “a nomenclatura de feminicídio é importante, pois, ao conceituar como crime de assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres, constitui um avanço na compreensão política do fenômeno que era há pouco tempo invisibilizado” (p. 58). No mesmo sentido segue Segato (2006): 

Creo no equivocarme cuando sustento que solamente una discriminación precisa de estos crímenes podrá atacar el problema por la raíz. Esos datos también haránposible identificar la acción de poderes paralelos en jurisdicciones de diferentes nivelesque con certeza afectan también otros ámbitos de la vida económica y política de lanación […] afirmo la importanciade una tipificación de los diferentes crímenes de mujeres y estoy convencida de quesolamente un fuerte énfasis en su diferenciación interna permitirá crear estratégias específicas de investigación policial capaces de llevarnos hasta los perpetradores por caminos más adecuados para cada tipo de caso (p. 10)

Em relatório, a CEVI¹¹ (2008) diagnosticou um aumento da quantidade de mortes de mulheres na América Latina e no Caribe e alertou acerca da impossibilidade de tratar/orientar coerentemente em níveis regionais, devido à variedade de fontes e déficit de informações¹², sendo um dos dificultadores a ausência da tipificação do feminicídio.

Tais afirmativas reforçam a importância de se tipificar adequadamente para que o Estado consiga atuar na raiz da questão. A latência pode fazer com que algo permaneça no esquecimento e na invisibilidade. É como se não existisse. A tipificação do feminicídio é o mecanismo de revelação, por meio da qual é possível diferenciar estas mortes das demais, para que assim, elas possam ser estudas em suas particularidades e efetivamente combatidas.

3 ÓDIO E PAIXÃO: FEMINICÍDIO X CRIME PASSIONAL

A partir de pesquisas em processos judiciais de assassinatos, cujas vítimas eram mulheres e os autores seus (ex)parceiros, Pimentel et al(2006) constatou grande quantidade de homens que ainda eram beneficiados, em pleno século XXI, com a excludente de ilicitude da “legítima defesa da honra” ou com o privilégio da diminuição da pena, concedido pelo provimento do alegado “domínio de violenta emoção”. É patente como a utilização destas figuras nas decisões judiciais configuram violações dos direitos humanos das mulheres pela incorporação de estereótipos, preconceitos e discriminações contra as mulheres vítimas de violência e pela impunidade de seus agressores.

A lei vincula o domínio de violenta emoção à prévia e injusta provocação da vítima (Brasil, 1940).  As reiteradas aberrações jurisdicionais no sentido de beneficiar homens que matam mulheres alegando motivos banais (ciúme, posse, desamor, descumprimento de deveres conjugais, abandono, dentre outros) dando-lhes o benefício do privilégio, propagam a impunidade e fortalecem o estereótipo de que os homens são superiores às mulheres, validando e legitimando tais mortes, inclusive atribuindo à própria vítima a culpa pela violência que sofreu. A conivência social com tamanha desproporcionalidade (honra/integridade moral/proteção da família e casamento versus vida) e a reiterada concessão de benefícios jurídicos (excludente de licitude ou do privilégio de penas menores) aos homens que alegam estar sob “domínio de sentimentos”, é tão comum em determinadas cultura que permitiu que o nome “crime passional” fosse atribuído a tais mortes. Vale lembrar que o termo “crime passional” não existe no código penal, sendo tão comum e aceito que o encontramos ainda hoje em diversos livros e artigos técnicos bem como em relatórios policiais, processuais, e, , nos meios de comunicação. Admitir que um homem matou por estar apaixonado, ou por amar demais, é romantizar e perpetuar tais atrocidades, privando mulheres dos seu direito à liberdade, livre expressão, segurança e à vida, ou seja, dos seus direitos humanos.

A CEVI (op.cit) declarou que grande parte dos feminicídio permanecem impunes, e “Estos casos o son archivados por una supuesta falta de pruebas, o son sancionados como homicidios simples con penas menores, donde en muchas ocasiones se aplican los atenuantes de “emoción violenta” para disminuir la responsabilidad del victimario” (p. 10).  E recomendou aos Estados Parte “1. Que el atenuante de “emoción violenta” no sea utilizado para disminuir la responsabilidad de los autores de femicidio”. Tais afirmativas foram ratificadas por meio do Relatório da MESECVI (2012), que recomenda que os Estados Partes adotem medidas para prevenir e punir feminicídios, removendo os obstáculos judiciais que atenuem a pena para o agressor que alega “emoção violenta”.

[…] não se pode deixar os homicídios de mulheres como mais um homicídio no marco da violência social, pois corremos o perigo de banalizá-lo e dar passo a percepções tais como “a morte de Edna foi um crime passional produto dos ciúmes” ou “o homicida atuou levado por uma paixão incontrolável” como comumente o visibilizam os meios de comunicação. Faz-se necessário erradicar o termo “delito passional” por ser um conceito misógino, posto que esconde todo o sistema de dominação patriarcal e, portanto, busca seguir mantendo as mulheres subordinadas. (CLADEM, 2012, p. 12).

Mott (2006), afirma que estamos diante de um crime de ódio quando a condição de gênero da vítima foi determinante para a ação do agressor, que age “motivado pela ideologia preconceituosa dominante em nossa sociedade machista” (p. 514). Assim, quando alguma violência é cometida baseada na manutenção dos papeis de gênero enraizados nas entranhas da sociedade, da qual se originam preconceitos, discriminações e misoginias, estamos diante de um crime de ódio. Os ditos “crimes passionais” são crimes de ódio pois a condição feminina da vítima foi determinante para a ação do agressor, que agiu motivado por desprezo, menosprezo ou sentimento de posse (coisificação) e não por amor ou paixão, sendo incabível o termo “passional”. Quando e porque as manifestações de ódio pelas mulheres e pelo que é feminino, passaram a ser entendidas, aceitas e até validadas como se na verdade fossem resultantes de um “amor ardente”, “uma paixão incontrolável”, capaz de tornar o indivíduo “cego” e totalmente “dominado”, amenizando, beneficiando e até eximindo o agressor de culpa?   

Foucault (1984) aponta que as questões de gênero que permeavam a relação conjugal entre homem e mulher caracterizavam-se por ser uma relação assimétrica de poder, configurada em uma relação “estatutária que dá ao homem o poder de governar a mulher, os outros, o patrimônio, a casa […]” (p. 176), traduzida em uma responsabilidade do homem perante a sociedade patriarcal, que consite em sua atuação junto à mulher de modo a mantê-la em sua posição de submissão.

[…] as mulheres são adstritas […] a obrigações extremamente estritas; contudo, não é às mulheres que essa moral é endereçada; não são seus deveres, nem suas obrigações que aí são lembrados, justificados ou desenvolvidos. Trata-se de uma moral de homens: uma moral pensada, escrita, ensinada por homens e endereçada a homens […]. Consequentemente, moral viril onde as mulheres só aparecem a título de objetos ou no máximo como parceiras às quais convém formar, educar e vigiar, quando as tem sob seu poder […]. Aí está, sem dúvida, um dos pontos mais notáveis dessa reflexão moral: ela não tenta definir um campo de conduta e um domínio de regras válidas — segundo as modulações necessárias — para os dois sexos; ela é uma elaboração da conduta masculina feita do ponto de vista dos homens e para dar forma à sua conduta (p. 24).

[…]

O esposo a deve a si próprio na medida em que o fato de ser casado o introduz no jogo particular de deveres ou de exigências onde se trata de sua reputação, de sua fortuna, de sua relação com os outros, de seu prestígio na cidade e de sua vontade de levar uma existência bela e boa. Pode-se compreender, então, por que a temperança do homem e a virtude da mulher podem se apresentar como duas exigências simultâneas, e derivando, cada qual à sua maneira, e sob suas formas próprias, do estado de casamento […] A virtude da mulher constituía o correlativo e a garantia de uma conduta de submissão; a austeridade masculina inscrevia-se numa ética da dominação que se limita¹³. (p. 162 e 163).

Foucault (2014) utiliza a expressão “corpos dóceis”, para definir os produtos de uma política de coerções “que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos” (p. 135), por meio do qual  há o direcionamento disciplinar ao corpo de acordo com os termos de utilidade e obediência, servindo-se dele como objeto e alvo de poder. Nesta sistemática das relações de poder, existe uma hierarquização dos corpos : há grupos de pessoas cujas vidas são consideradas “destrutíveis” e “não passíveis de luto”, e, consequentemente, mais sujeitas à violência impune, pois a perda dessas pessoas é considerada necessária para a manutenção das coisas como as conhecemos (Butler, 2016). Arrematamos com a ideia com o pensamento de Segato (2006), para a qual o assassinato de mulheres resultam do controle dos corpos e do uso da capacidade punitiva sobre as mulheres por parte do patriarcado como estratégia de poder, na qual poder e masculinidade são sinônimos e disseminam a misoginia, ódio e desprezo pelo corpo feminino e pelos atributos associados à feminilidade. Neste meio se atribui menos valor à vida das mulheres e há uma propensão em justificar os crimes sofridos por elas.

Assim, o corpo da mulher é utilizado como campo de disputa no qual o que está em jogo é a manutenção de uma cultura patriarcal. À mulher é conferida uma programação imperativa com limites e fronteiras (comportamentais, intelectuais, de conduta, emocionais, ….) que são instaladas e viralizadas socialmente por meio de códigos latentes. Tais limitações mantêm-na em uma situação de subordinação e inferioridade. Quando algum código é burlado/ignorado/desobedecido e a mulher ousa transgredir os limites, ultrapassando a fronteira, de modo a exercer sua autonomia (que formalmente é garantida por lei), os códigos latentes são ativados e entram em ação, primeiramente por meio de comandos autorizando/determinando o uso ações imateriais de modo a transmitir alertas ((auto)julgamentos, (auto)reprovação, ameaças veladas, discriminações, exclusões, censura, atitudes preconceituosas e degradantes.

A partir do momento que as ações imateriais falham (ou paralelamente a atuação destas), são emitidos alertas autorizando o uso de ação material, de modo que esta mulher possa ser coagida a recuar ao ponto da fronteira que ousou ultrapassar : a linha divisória entre a submissão e a autonomia. Assim, a conduta do agente coercitivo é aceita, tolerada e até vangloriada. À mulher que ousou ultrapassar a fronteira, é atribuída a culpa pela ação coercitiva que possa tê-la ferido e ao homem que a inferiu é concedido o benefício de ter agido legitimamente visando a manter a homeostase do sistema.

Judith Butler, filósofa norte americana, visitou o Brasil em 2015, quando fez uma crítica aos altos índices de violência fatal direcionada a grupos vulneráveis. A filósofa cita as mulheres14 como “vulneráveis à morte violenta” por fazerem parte de um grupo que são socialmente designado como dispensáveis ou disponíveis para serem mortas com impunidade, não têm, portanto, a mesma condição para exercer a liberdade de ir e vir, devido à possibilidade de violência (Prado, 2015).

Fica clara e imperativa a necessidade de se combater qualquer pleito que vise a admissão da alegação de que um crime por razões de gênero possa ter ocorrido pelo domínio da “violenta emoção”. Devemos combater também a referência ao feminicídio como “Crime Passional” que, ao contrário, deve ser considerado um “Crime de Ódio”.  Esta denominação equivocada romantiza a violência, faz perpetuar o estereótipo do “Crime de Amor” e a concepção de que o homem que matou uma mulher com a qual mantinha (ou manteve) uma relação íntima deve ser beneficiado por seu ato “apaixonado”.  A modificação da linguagem também possibilita mudanças de culturas, paradigmas e perspectivas. Feminicídio é um “Crime de Ódio” e deve ser punido como tal.

4. AS DIRETRIZES NACIONAIS PARA INVESTIGAÇÃO DE FEMINICÍDIOS

“Todas as etapas de investigação das mortes violentas de mulheres devem ser isentas de preconceitos de gênero” (Diretrizes Nacionais Feminicídio, 2016, p. 72).

Em 2014 a ONU publicou o Modelo de protocolo latino-americano de investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio) e, como consequência, o governo brasileiro e a ONU Mulheres publicaram, em 2015, as Diretrizes Nacionais Feminicídio – Investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Estes documentos objetivam a criação de diretrizes básicas para a investigação efetiva de mortes de mulheres e dedica uma atenção especial processualística do local de crime e dos exames no corpo do cadáver, cujos agentes estatais responsáveis são, respectivamente, o perito criminal e o médico legista, ambos profissionais especialistas forenses.

Segue uma breve explanação acerca das Diretrizes Nacionais, levantando aspectos teóricos de relevância, bem como alguns elementos relativos à investigação criminal pericial, após o qual faremos algumas reflexões.

4.1 O dever da devida diligência15

Reiteradas sentenças condenatórias contra países Latino-Americanos, foram proferidas por Organismos Interamericanos de Direitos Humanos, devido à ausência da devida diligência em casos de feminicídio (consumados ou tentados) e de desaparecimentos de mulheres, sendo que o desrespeito a este dever foi atribuído à ausência de investigação e de punição.

A devida diligência é a obrigação que o Estado tem de agir, protetiva e preventivamente, assim que tiver conhecimento de qualquer situação de risco real e iminente que ameace um grupo de indivíduos. Esta obrigação inclui o dever de investigar, que por sua vez possui dois objetivos : prevenir uma futura repetição dos fatos e prover justiça nos casos individuais. Permite apresentar as circunstâncias nas quais ocorreram os fatos, o que é indispensável para o reconhecimento da verdade por parte dos familiares das vítimas e da sociedade, como também para a punição dos responsáveis e o estabelecimento de medidas de prevenção da recidiva das violações dos direitos humanos (ONU Mulheres, 2014).

4.2 Gênero e violência de gênero

Em tese, todo feminicídio é um homicídio, mas nem todo assassinato de mulher é um feminicídio. A identificação de questões referentes ao gênero que possam ter desencadeado a violência, é imprescindível para a correta tipificação, sendo necessário que a investigação criminal seja conduzida a partir de uma perspectiva de gênero.

Definir o que é gênero, violência de gênero e interseccionalidade se faz fundamental durante a construção deste trabalho, tendo em vista que são termos amplamente utilizados nas referidas diretrizes, sendo indispensável sua real internalização e a compreensão de seus desdobramentos sociais, para que o investigador (ou qualquer agente a quem as diretrizes se direcionam) possa fomentar uma mudança de perspectiva em seus olhares, julgamentos e tomadas de decisões durante os trabalhos investigativos.

A manutenção dos papeis de gênero vem legitimando condutas violentas, principalmente de homens contra mulheres. À tal violência dá-se o nome de violência de gênero. Porém, é importante considerar que o desprezo não acontece especificamente em relação à mulher, mas sim em relação ao feminino (CARRARA, 2011). Cabem aqui algumas definições que usualmente vem sendo adotado, construídas com base nas teorias de Butler16 (2006 e 2016):

Sexo biológico: É a classificação de homem e mulher segundo os fatores biológicos como os órgãos reprodutores, genética (xx, xy) e às questões hormonais. O sexo biológico é aquele com o qual, essencialmente, somos registrados ao nascer.

Orientação sexual: Diz respeito à sexualidade da pessoa e suas atrações afetivo-sexuais (desejos). Pode seguir a classificação: heterossexual, homossexual ou bissexual.

Papeis de gênero: É como a sociedade espera/determina que os homens e as mulheres se comportem. São os padrões comportamentais de masculinidade e feminilidade. Por exemplo: meninos gostam de azul, meninas de rosa; homens gostam de veículos, armas, esportes que exijam força e velocidade, mulheres gostam de bonecas, utensílios domésticos, e atividades que expressem leveza e docilidade; homens devem se identificar com profissões que exijam raciocínio lógico, mulheres com profissões que envolvam cuidados e educação; homens devem ser mantenedores de sua família, mulheres devem dedicar-se aos cuidados em geral, sendo boas mães, boas donas de casa, e boas esposas; homens devem se relacionar sexual e emocionalmente com mulheres e vice e versa.

As tríade sexo/gênero/desejo desenrolam-se simultânea e independentemente, assim, uma pessoa do sexo masculino, pode se identificar com os papeis de gênero feminino e sentir atração sexual por pessoas de ambos os sexos, por exemplo.

A manutenção da cultura patriarcal e machista exige que a orientação sexual seja a heterossexual (heteronormatividade), que os papéis de gênero (estereótipos de masculinidade e de feminilidade) sejam seguidos e fielmente representados pelas pessoas de sexos correspondentes17 de modo que qualquer desvio ou ruptura soem como ameaças sociais expondo as pessoas (sejam homens ou mulheres) a situações de violências aceitas e legitimadas pela sociedade. O padrão de feminilidade imposto às mulheres (papeis de gênero) determina que, por exemplo, elas sejam submissas aos homens; tenham devoção e dedicação à família e principalmente aos filhos; sejam recatadas; sejam exímias cuidadoras; se vistam adequadamente de modo a não incitar a libido masculina; estejam acompanhadas de um homem em determinados lugares ou situações; sejam fieis às convenções de exclusividade sexual quando em um relacionamento íntimo; seja monogâmica; não desempenhar atividades masculinas;  dentre outros. Sendo que, se algum destes motivos desencadeou a violência, estaremos diante de uma violência de gênero.

É indispensável ao investigador estar ciente dos estereótipos18 de gênero, “evitar julgamentos de valor sobre condutas ou comportamento anterior da vítima e romper com a carga cultural e social que responsabiliza a vítima pelo que lhe ocorreu”, isentando a investigação de preconceitos e direcionamentos equivocados quanto à linha investigativa. 

As pessoas que intervêm nas diferentes etapas da investigação deverão prestar atenção aos preconceitos “óbvios” a respeito dos papéis que devem supostamente cumprir mulheres e meninas na sociedade (ONU Mulheres, 2014, p. 41).

Geralmente a informação do assassinato de uma mulher vem acompanhada de outras informações sobre sua vida, condutas e hábitos que visam justificar o porquê de sua morte, atribuindo a ela a culpa. Quando um profissional perito criminal (ou outro investigador) chega a um local de crime, onde morreu uma mulher, e as primeiras informações que chegam até ele são do tipo: “saiu para um encontro com um homem que acabou de conhecer pela internet” ou “saiu bêbada e sozinha de uma boate” ou “colocava chifre no marido” ou “tem três filhos, mas nenhum mora com ela” ou “é barraqueira” ou “é prostituta”, dentre outros, este profissional deve estar ciente de que tais informações têm o desígnio de fazer com que a mulher seja a culpada pela violência que sofreu e o agressor seja beneficiado com diminuições ou até remição de pena. E para que, na medida que tais informações forem sendo disseminadas, sirvam de exemplo, para as outras mulheres não ousem contrariar os papeis que lhe foram dados a representar. Trata-se de “colocar cada coisa em seu lugar”, visando a manutenção do domínio patriarcal baseado na misoginia e na superioridade masculina.

Cabe aos investigadores estarem aptos e atentos a estas questões para que seu olhar, julgamento e tomada de decisão não sejam contaminados, prejudicando a detecção das razões de gênero e, consequentemente, a tipificação do feminicídio.

4.3 O papel da Perícia Criminal na investigação dos feminicídios  

As Diretrizes Nacionais direcionam um olhar especial à investigação pericial, dando a ela um caráter de singular importância em relação à produção de provas, que são imprescindíveis para a instrução do inquérito, processo e julgamento. Foi identificada uma pequena quantidade de material bibliográfico nacional referente à investigação pericial sob a perspectiva de gênero. Falaram com propriedade sobre o tema, Brochier (2016) e Castilho (2016). A literatura criminalística tradicional não faz distinção entre a investigação de homicídios e feminicídios, apresentando elementos comuns de processamento de local. Infelizmente, ainda encontramos estudos recentes que utilizam o termo “crime passional”, sendo esta uma questão que precisa ser exaustivamente trabalhada.

A recenticidade da Lei do Feminicídio, bem como das publicações que versam sobre a investigação criminal de mortes de mulheres podem ser algumas das explicações para o fato de que pouco se fala (e se escreve) sobre o tema. Castilho (2016) faz referência à investigação criminal em sentido amplo, não se atendo especificamente na perícia criminal. Já Brouchier (2016) traz uma abordagem mais voltada para a área pericial, apresentando ao informações contidas nas Diretrizes Nacionais Feminicídio e ressaltando a importância da identificação de elementos que apontem para as questões de gênero.

Mello (2017) que é juíza de direito com notório conhecimento e experiência em relação à violência contra a mulher e mais especificamente em relação ao crime de feminicídio, faz uma importante crítica à perícia criminal dizendo que “os dados forenses dos homicídios são incompletos e frequentemente não oferecem a informação básica sobre as circunstâncias da morte ou da relação entre a vítima e o agressor” (p. 135).

Analisando o tópico específico das Diretrizes Nacionais acerca da atuação da perícia criminal localística, identificamos alguns pontos sensíveis no que se refere a identificação de vestígios materiais que evidenciem: violência simbólica; e vestígios típicos de locais utilizados para exploração de trabalho escravo ou para exploração sexual. Seriam necessários estudos específicos para elencar e agregar elementos materializáveis para busca pericial de vestígios de violência simbólica, principalmente os não fugazes, já que, nos casos em que a hipótese inicial seria uma morte ocasionada por questões não atinentes ao gênero (latrocínio, suicídio, morte acidental, morte a esclarecer), estes vestígios seriam direcionadores para que o feminicídio possa ser defendido como hipótese no diagnóstico diferencial da morte.

Com relação à busca de vestígios de exploração de trabalho escravo e para exploração sexual, nos deparamos com a carência de literatura técnica sobre o a atuação da perícia criminal em tais casos. A dificuldade também se encontra devido à baixa casuística de exames periciais localísticos relacionados a estes tipos de crimes, dificultando o levantamento de problemáticas que gerariam os desejados direcionamento. Encontramos aí um campo vasto para estudos que possam instruir o perito criminal na busca de tais elementos esclarecedores.

Com relação à violência simbólica, as Diretrizes Nacionais estabelecem que a perícia criminal deve observar e materializar, por exemplo,  a presença de crueldade contra animais de estimação, que é uma forma de infligir sofrimento à vítima. Versando sobre o assunto identificamos uma pesquisa em andamento, pioneira no Brasil e ainda em fase inicial, que busca fazer uma análise da correlação entre violência doméstica e crimes contra animais (Everson et al, 2017) apontam que a relação entre tais violências foi levantada e atestada por estudos em instituições como o FBI e a ONG ASPCA, dando origem à “teoria do link”, que estabelece uma estreita relação entre violência doméstica e violência contra animais. Importante acompanhar este estudo a fim de agregar elementos para a construção de procedimentos factíveis a serem aplicados à perícia criminal localística no decorrer dos exames periciais relacionados a mortes de mulheres.

A integração interinstitucional é uma das premissas para a investigação criminal de mortes violentas de mulheres, elencada nas Diretrizes Nacionais. Apesar da autonomia técnico-científica conferida legalmente à perícia criminal, ela não age de oficio, e necessita ser acionada pela autoridade policial (delegado de polícia), que deve isolar o local e aguardar a chegada dos peritos. Assim, caso não haja uma integração e cooperação mutua, bem como a capacitação técnica de ambas as forças, o trabalho poderá ser prejudicado, como por exemplo com a não solicitação de diligências periciais indispensáveis, comprometendo o conjunto probatório, que serviria de fundamento para a tipificação de um feminicídio.

Importante também ressaltar que a perspectiva de gênero apresentada nas Diretrizes Nacionais em nada exclui ou modifica os procedimentos de praxe descritos nos POPs (Procedimento Operacional Padrão) ou na literatura criminalística. Tratando-se, sim, de uma abordagem mais ampla, com mudanças de olhares e de perspectivas, com função agregadora, e não substitutiva.

Certamente o tema ainda é recente19 e digno de pesquisas e estudos a fim de se identificar e preencher lacunas que por ventura possam inviabilizar a aplicação dos procedimentos e a produção de provas que direcionem para a verdade dos fatos.

5- REFLEXÕES

A Perícia Criminal é uma área que, como poucas na segurança pública, dedica-se de maneira exaustiva e contínua à produção de conhecimento em ciências biológicas e exatas, com significativo reconhecimento acadêmico, possuindo em seu quadro um número expressivo de mestres e doutores20.  Entretanto, observa-se que as instituições periciais têm privilegiado e fomentado prioritariamente a produção de conhecimentos relacionados às ciências biológicas e exatas, ocasionando um déficit epistêmico na investigação localística, que possui natureza essencialmente interdisciplinar, exigindo contribuições significativas das ciências humanas. Estamos diante, portanto, de uma relevante questão epistemológica nas ciências forenses, que precisa ser seriamente considerada e impulsionada. Um dos principais obstáculos ao avanço nessas áreas é a escassez de programas acadêmicos em universidades que contemplem de forma efetiva a interdisciplinaridade, possibilitando o diálogo entre ciências humanas, sociais, biológicas e exatas. A criação e fortalecimento desses programas são essenciais para ampliar o leque de ferramentas conceituais e metodológicas disponíveis para os peritos que atuam no local de crime, especialmente em contextos que exigem sensibilidade social e compreensão aprofundada das questões humanas envolvidas.

O avanço legislativo brasileiro, aliado às exigências internacionais de proteção aos direitos humanos, aponta claramente para a necessidade urgente de aprimoramento e avanço científico na perícia criminal localística, sobretudo na investigação pericial dos locais relacionados aos crimes contra a pessoa. Essa exigência torna-se ainda mais significativa quando abordamos a investigação da morte violenta de mulheres sob a perspectiva de gênero.

Investigar a morte violenta de mulheres a partir de uma perspectiva de gênero representa um desafio complexo, que ultrapassa em muito a mera aplicação de técnicas específicas e protocolos padronizados. Trata-se de um trabalho que demanda uma profunda conscientização sobre preconceitos e estereótipos de gênero estigmatizantes e arraigados no inconsciente coletivo, refletidos na permissividade e tolerância social à violência contra a mulher, componentes estruturais de nossa sociedade patriarcal.

Para enfrentar esse desafio, é necessário um esforço que transcenda a tecnicidade habitual e adentre a esfera sutil e subjetiva da individualidade do perito enquanto ser humano. Cada profissional deve reconhecer-se como parte integrante de uma sociedade permeada por preconceitos e estereótipos culturais profundamente enraizados. Esse processo de autoconhecimento e autocrítica é fundamental para que o perito compreenda sua própria susceptibilidade a influências sociais e culturais, estando disposto a confrontar e superar seus próprios preconceitos e vieses inconscientes. Somente por meio dessa reflexão e comprometimento será possível produzir provas materiais que estejam verdadeiramente próximas do ideal de imparcialidade e que contribuam efetivamente para o esclarecimento dos fatos, a justiça e a prevenção de futuros crimes.


6Particularmente após o Estado Brasileiro ser condenado, em 2001, pela Corte Internacional dos Direitos Humanos, por omissão, negligência e tolerância pelas violências sofridas por Maria da Penha Maia Fernandes.
7No decorrer deste trabalho nos referiremos a este documento apenas como Diretrizes Nacionais. Documento baseado no Modelo de Protocolo Latino-Americano de Investigação das Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero (femicídio/feminicídio) (ONU Mulheres, 2014).
8Dados até dezembro de 2017.
9Citamos aqui o caso de Olympe de Gouges, que lutou juntamente com homens pelos ideais burgueses da Revolução Francesa. Após toda a luta, Olympe se deparou com a não representação da mulher na Declaração dos Direitos do Homem e Cidadão (1789) oriunda da Revolução Francesa.  Em consonância com essa declaração, Olympe apresentou em 1791 a Declaração dos Direitos da Mulher e Cidadã.  Em consequência Olympe foi executada em 1793 por dois atos, os quais: “querer ser um homem de Estado e ter esquecido as virtudes próprias a seu sexo” (Anjos e Sierra, 1999, pag.48).
10MESECVI: Mecanismo de Acompanhamento da Implementação da Convenção de Belém do Pará.
¹¹CEVI: Comitê das Peritas do MESECVI.
¹²Eram solicitadas no indicador as seguintes informações: idade, estado civil, causa da morte e localização geográfica. E à época, alguns países tinham como fontes de dados os meios de comunicação, informações da polícia, dos órgãos de saúde, dentre outros. 
¹³Grifos da autora.
14Judith Butler cita como grupos vulneráveis, além das mulheres, jovens negros, pessoas trans e queer.
15De acordo com a Convenção de Belém do Pará (ONU, 1994): Art. 7º- Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e concordam em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em: [..] b) Agir com a devida diligência para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher;
16Judith Butler, filósofa estadunidense, é uma das principais referências teóricas para o feminismo da atualidade. Butler desmembra o antigo conceito de “ser homem” ou “ser mulher” baseado nos estereótipos de gênero, desmontando suas unicidades compulsórias. Segundo a filosofa o ser (eu verdadeiro) se revela de forma simultânea e sucessiva na tríade sexo/gênero/desejo, onde cada elemento vive independentemente do outro. A partir das teorias de Butler surgem termos como identidade de gênero, expressão de gênero. orientação sexual e teoria Queer.
17É o que Butler (2016) chama de ordem compulsória do sexo/gênero/desejo. Categoria homem/masculinidades/heterossexualidade; Categoria mulher/feminilidades/heterossexualidade.
18Estereótipo é definido por Casares (2008) como uma construção social constituinte do plano simbólico, fortemente arraigada na consciência, e que escapa ao controle da razão. São o sustento da desigualdade e da relação de poder hierárquica de gênero.
19Data: dezembro de 2017.
20Em Goiás a Polícia Científica possui o maior quadro de mestre e doutores dentre todos os órgãos da segurança pública. A implantação de alguns exames forenses, bem como a criação de laboratórios tiveram como respaldo a qualificação deste quadro de peritos, que realizam estudos junto à universidades, inclusive validando novos procedimentos laboratoriais na área forense.

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¹Perita Criminal da SPTC-GO. Doutoranda e Mestra em Direitos Humanos (PPGIDH/UFG). Especialista em Gestão Organizacional. Currículo Lattes. E-mail: gyzele@gmail.com;
²Perito Criminal da SPTC-GO. Pós-graduado em CSI – Crime Scene Investigation, em Investigação Criminal e Neuropsicologia Forense, e em Ciência Forense e Perícia Criminal. E-mail: eduardofreitasramos@hotmail.com;
³Perita Criminal da SPTC-GO. Discente da Pós-Graduação em Investigação Criminal e Neuropsicologia Forense. E-mail: liviasabinocardoso@gmail.com;
⁴Doutora e Mestra em Sociologia (UFG). Vínculo anterior como docente da Faculdade de Ciências Sociais da UFG e do PPGIDH/UFG. Currículo Lattes.