FAMÍLIA VIRTUAL E SEUS REFLEXOS NO DIREITO CONTEMPORÂNEO

VIRTUAL FAMILY AND ITS REFLECTIONS ON CONTEMPORARY LAW

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202410221441


Manaem Siqueira Duarte1


Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar o conceito de família virtual e seus reflexos no direito contemporâneo, discutindo como os vínculos afetivos formados em ambientes digitais podem ser reconhecidos juridicamente, com base no direito à felicidade, cidadania e dignidade humana, que autorizam a autodeterminação das pessoas e asseguram a multiparentalidade, impondo efeitos civis como consequência do princípio da solidariedade familiar. A pesquisa utiliza-se de teorias antropológicas e jurisprudência recente para examinar a evolução do conceito de família, que passou de um modelo biológico para uma configuração mais ampla, centrada no afeto. O Provimento 83 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ampliado pelo Provimento 149, regulamentam o direito e o procedimento para   reconhecer vínculos socioafetivos extrajudicialmente. Estes Provimentos, são analisados como possíveis vias para a formalização do pedido de reconhecimento de famílias virtuais. Embora ainda não haja regulamentação específica, o artigo argumenta que as interações digitais podem ser usadas como provas da existência de laços afetivos, abrindo espaço para o reconhecimento dessas relações no direito brasileiro. Como metodologia, este artigo envolve uma pesquisa qualitativa, de cunho descritivo, com a realização da pesquisa documental e bibliográfica. O estudo conclui que, ao adaptar os mecanismos legais já existentes, o direito pode acompanhar as mutações sociais e reconhecer juridicamente as famílias virtuais, impondo seus efeitos civis.

Palavras-chave: Família Virtual. Vínculos Afetivos. Direito Sucessório. Solidariedade Familiar. Multiparentalidade.

Abstract

This article aims to analyze the concept of virtual family and its impact on contemporary law, discussing how affective bonds formed in digital environments can be legally recognized, based on the right to happiness, citizenship, and dignity of the human person, wich authorize individual` self determination and ensure multi-parenthood, imposing civil effects as a consequence of the principle of solidarity. The research uses anthropological theories and recent case law to examine the evolution of the concept of family, which has gone from a biological model to a broader configuration, centered on affection. Provision 83 of the National Council of Justice (CNJ), expanded by Provision 149, regulates the right and procedure for recognizing socio-affective bonds extrajudicially. These provisions are analyzed as possible means for formalizing the request for recognition of virtual families. Although there is still no specific regulation, the article argues that digital interactions can be used as evidence of the existence of affective bonds, opening space for the recognition of these relationships in Brazilian law. As a methodology, this article involves qualitative, descriptive research, with documentary and bibliographical research. The study concludes that, by adapting existing legal mechanisms, the law can keep up with social changes and legally recognize virtual families, imposing their civil effects.

Keywords: Virtual Family. Affective Bonds. Inheritance Law. Family Solidarity. Multiparenthood.

1  INTRODUÇÃO 

Em uma sociedade cada vez mais permeada pelas interações digitais, vínculos sociais estão se expandindo e o conceito de família tradicional tem sido progressivamente ressignificado. As relações afetivas virtuais, consolidadas por meio de laços construídos no ambiente digital, desafiam as estruturas jurídicas convencionais e colocam em pauta a necessidade de reconhecimento desses novos vínculos. 

As relações afetivas virtuais, capazes de serem consideradas família, ainda carecem de reconhecimento e atribuição de um conceito. A bem da verdade, merece ser estudada, porque os movimentos sociais sugerem a presença de afetividade construída a partir dessas portas. Este artigo não afirma que se trata de uma descoberta, apenas propõe investigar o que se tem percebido, descrevendo e atribuindo significado à existência de afetividade desenvolvida nas relações virtuais, capazes de gerar vínculos familiares como espécie de multiparentalidade. 

 Apenas para introduzir, segundo Kuhn (2020), em seu livro “A Estrutura das Revoluções Científicas”, o termo “descoberta” consiste no ato de encontrar, perceber ou identificar algo que antes era desconhecido. Ele ensina como as descobertas científicas emergem em momentos de crises paradigmáticas. Interações virtuais tem o potencial de gerar consequências no âmbito jurídico e, particularmente, jurídico-familiar. Nestes momentos de rompimentos paradigmáticos, não é incomum emergir nova teoria, assim como apontar um novo modelo científico substituindo concepções anteriores, revelando novos fenômenos ou explicações antes ocultos. 

 Desta forma, o objetivo deste artigo é investigar o reconhecimento de laços familiares virtuais no âmbito jurídico e suas implicações legais, com base no conceito de pluriparentalidade.

O artigo propõe, sem querer, obviamente fechar a definição, mas sustenta que família virtual poderia ser definida como um grupo de indivíduos que, apesar de não compartilharem um espaço físico ou laços biológicos diretos, mantêm uma convivência regular e significativa através de interações digitais, como plataformas de comunicação online, redes sociais, videochamadas e até mesmo os óculos de computação espacial, a exemplo do “Apple Vision Pro”, que descreve a possibilidade de experiências sensoriais em ambiente tridimensional. 

Esses laços são formados e nutridos por meio de trocas afetivas, instalando a solidariedade familiar entre os afeiçoados. Embora não sejam reconhecidos formalmente por vínculos biológicos ou legais tradicionais, esses relacionamentos podem assumir os contornos de parentesco socioafetivo, se adequadamente percebido a extensão e profundidade do julgamento que emergiu o Tema 622 do Supremo Tribunal Federal (STF), particularmente estudado no corpo do artigo (Brasil, 2019). 

É plenamente aceito que a família, independentemente de sua constituição biológica, é formada pelos laços de afeto, sendo o sentimento o verdadeiro fundamento de sua existência e a razão de sua proteção jurídica (Diniz, 2019). Nessa mesma linha de pensamento, Dias (2015) discute que a família contemporânea deve ser analisada a partir do afeto, rompendo com o paradigma tradicional baseado exclusivamente no parentesco biológico. Ambas as autoras enfatizam a necessidade de uma abordagem jurídica que reconheça o valor central do afeto na constituição das famílias, particularmente em contextos que envolvem novas formas de relacionamento, como os laços virtuais.

Para metabolizar a adequada ideia do conceito de família, é fundamental promover uma análise interdisciplinar entre o Direito e a Antropologia, com o objetivo de examinar o desenvolvimento dos laços familiares ao longo da história. 

Chaves (2020) explica que família é um fenômeno humano social e só é possível entender a partir de uma análise interdisciplinar, uma vez que a sociedade contemporânea está marcada por relações complexas, plurais, abertas, multifacetárias e globalizadas. 

A partir de uma perspectiva cronológica, o artigo tenta evidenciar a natureza dinâmica e mutável do conceito de família, demonstrando como as transformações sociais e culturais influenciam sua configuração (Fonseca, 2009). Ao compreender a mutabilidade do conceito de família, espera-se reduzir a resistência ao reconhecimento das novas formas de laços afetivos, especialmente aqueles formados no ambiente virtual. 

O entendimento moderno de que famílias podem ser constituídas por laços afetivos e sociais amplia o conceito tradicional de família no direito brasileiro. O julgamento do Recurso Extraordinário 898.060, por exemplo, fixou a tese estabelecida no Tema 622 do STF, que trata da multiparentalidade decorrente da afetividade e consiste na possibilidade de coexistência de vínculos biológicos e socioafetivos no registro de filiação, acarretando efeitos cíveis. Isso significa que tanto os laços biológicos quanto os afetivos são reconhecidos e protegidos legalmente (Brasil, 2016). 

O Tema 622 encerra nele a tese: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (Brasil, 2019). Foi um marco no direito brasileiro para o reconhecimento de multiparentalidade. Esse julgamento influenciou a edição do Provimento nº 83 do CNJ, que regulamenta o reconhecimento da filiação socioafetiva no âmbito extrajudicial (Brasil, 2019).

Para comprovar a família socioafetiva, é necessário atender a pressupostos jurídicos, como vínculo de afeto contínuo e o exercício das funções parentais, independentemente de vínculo biológico (Dias, 2015). No entanto, no contexto das relações virtuais, essa comprovação torna-se um desafio, pois as interações ocorrem predominantemente no ambiente digital, sem a presença física ou o contato diário tradicionalmente associados às relações familiares. 

Surge, então, a questão: como as interações afetivas no ambiente virtual podem ser reconhecidas juridicamente como família? Esta investigação busca responder a essa pergunta, tendo em vista que a legislação atual, como o Código Civil de 2002 (CC/2002) e o Provimento nº 83 do CNJ, ampliado pelo Provimento nº 149,ainda não trata diretamente dessas questões.

Na interdisciplinariedade sob a argumentação da antropóloga Fonseca (2015), o conceito de família está em constante evolução, e dessa premissa permite concluir que com o avanço das tecnologias digitais, muitas famílias, incluindo biológicas, mantêm suas relações por meio de vídeo chamadas, mensagens de texto e redes sociais, o que pode levar a uma interpretação mais flexível dos conceitos de convivência, elemento fundamental para desenvolver a afetividade.

O avanço das interações virtuais, desenvolvidas exclusivamente no ambiente digital, também é capaz de gerar fato social denominado vínculo afetivo. O antropólogo Miller (2011), com sua obra “Tales from Facebook”, foi um dos pioneiros ao estudar o impacto das redes sociais na vida cotidiana. O antropólogo realizou uma etnografia das práticas sociais e culturais em torno do uso do Facebook, mostrando como a rede social molda as interações e os vínculos nas culturas contemporâneas. 

Além disso, o antropólogo Boellstorff (2008), com sua pesquisa etnográfica em mundos virtuais, como em Coming of Age in Second Life, também ajudou a entender como as pessoas criam identidades e interagem em ambientes exclusivamente digitais. Nesta análise etnográfica, o antropólogo descreveu o mundo virtual Second Life, como a segunda vida, analisando como as pessoas constroem suas identidades e interações em um ambiente totalmente digital.

 Tais estudos mostraram o portal que a sociedade estava atravessando, constatando um fato social, no registro à época, da crescente interação virtual. Os vínculos afetivos entre humanos, decorrentes de interações virtuais, está na fase inicial de aceitação e regulamentação, mas é um fato social constatado.

A investigação desse fato social revela-se urgente à medida que a prevalência das relações mediadas por tecnologias aumentam e suas implicações emocionais e jurídicas demandam uma reflexão aprofundada.

A pesquisa adotada para construção deste artigo é qualitativa, uma vez que esta abordagem permite explorar e compreender os fenômenos sociais e humanos, com foco na análise de relações familiares no contexto digital. A pesquisa qualitativa concentra-se em descrever, interpretar e analisar padrões de comportamento, experiências, significados e interações, sem necessariamente quantificar dados (Lakatos; Marconi, 2003). Entre as técnicas mais apropriadas para esta pesquisa, nesta fase, serão utilizadas a revisão bibliográfica e a análise de jurisprudência. A revisão bibliográfica será fundamental para fornecer uma base teórica sólida sobre o conceito de família, solidariedade familiar e direito sucessório. A análise de jurisprudência permitirá examinar como o STF construiu a lógica para reconhecer a multiparentalidade, decorrente dos vínculos afetivos, a fim de pensar nas implicações em relação a laços formados no ambiente virtual.

O artigo procura realizar um exame detalhado sobre a evolução histórica do conceito de família, com ênfase no papel central do afeto para o reconhecimento jurídico dos vínculos familiares, incluindo aqueles construídos no ambiente virtual.

 Serão exploradas as bases teóricas e práticas que sustentam esse reconhecimento, especialmente em contextos que vão além das configurações tradicionais de família. A análise se concentrará no impacto do afeto como elemento legitimador das relações, conferindo-lhes status jurídico.

E, para entender essa perspectiva, serão consideradas as contribuições da antropologia para ampliar o entendimento sobre os vínculos afetivos e familiares. O estudo destacará como esses laços podem legitimar novas formas de família, tanto no plano simbólico quanto social. Tal abordagem permitirá uma compreensão mais abrangente sobre a forma como as relações afetivas desafiam as fronteiras tradicionais, criando arranjos familiares que, embora não estejam formalizados nos moldes convencionais, demandam reconhecimento jurídico e proteção.

Também será abordada a instrumentalização de pretensões judiciais, tanto em vida quanto pós-morte. Há situações em que os vínculos afetivos, decorrentes das interações virtuais, podem não ter sido formalizados em vida pelas partes. Serão analisados possíveis efeitos civis, sem a pretensão de esgotá-los, ou seja, as consequências jurídicas, tanto no direito das famílias, quanto sucessórios. A análise dos vínculos pós-morte será de particular interesse, considerando o debate sobre direitos hereditários.

Por fim, o artigo examinará de que forma o reconhecimento dessas novas formas de família impactam na geração de direitos e deveres entre os envolvidos. Compreender esses aspectos é essencial para garantir que o reconhecimento jurídico seja coerente com a realidade social e afetiva dos sujeitos, tanto durante a vida quanto após a morte, assegurando que o Direito responda adequadamente às demandas emergentes dessas novas configurações familiares.

2  TEORIAS ANTROPOLÓGICAS SOBRE FORMAS DE FAMÍLIAS 

Ao longo da história, o conceito de família passou por diversas interpretações teóricas. As escolas antropológicas são ferramentas fundamentais para descrever a visão cultural, social e afetiva de famílias. A visão de famílias na antropologia passou por diversas transformações ao longo do tempo, desde uma perspectiva universalista e evolutiva na fase clássica até uma abordagem mais cultural, simbólica e política nas teorias contemporâneas.

Este artigo estudará algumas teorias antropológicas clássicas e contemporâneas, que permitirão compreender a natureza mutável das relações familiares. O aumento da complexidade nas relações sociais impõe movimento nas relações consanguíneas e afetivas. Atravessa-se um momento crucial e torna-se necessário compreender que existem vínculos afetivos virtuais capazes de gerador laços familiares.

Lévi-Strauss (2003), em sua obra “As Estruturas Elementares do Parentesco”, foi pioneiro ao desafiar a visão puramente biológica da família, destacando o papel das relações simbólicas e culturais na constituição dos laços familiares. Para o autor, o parentesco é uma construção cultural que reflete a organização social e as normas de troca entre grupos, sendo fundamental para entender como as sociedades humanas se estruturam. 

Enquanto Lévi-Strauss (2003) rompeu com a visão biológica e destacou o parentesco como uma construção social, Schneider (1984) aprofundou essa crítica ao sugerir que os conceitos de família e parentesco não são universais, mas totalmente definidos pelas culturas em que surgem. Em sua obra, “A Critique of the Study of Kinship”, Schneider (1984) argumenta que o parentesco é uma construção cultural variável, sem uma base biológica fixa, o que desafia a ideia de um modelo familiar único e natural aplicável a todas as sociedades. Assim, o autor  ampliou a compreensão de que o parentesco é culturalmente específico, questionando a validade de se tentar aplicar definições universais de família e parentesco.

O evolucionismo na antropologia é uma teoria desenvolvida no final do século XIX, que propunha que todas as sociedades humanas passavam por estágios de desenvolvimento semelhantes, indo de formas mais simples para formas mais complexas, em um processo linear de evolução. Representado por autores como Morgan (1877) e Tylor (1975), a família era vista como uma instituição em evolução histórica universal. Morgan (1877) propôs que a família passou de formas primitivas, como a família consanguínea, onde irmãos se casavam entre si, para formas mais complexas, como a monogamia. Para ele, a estrutura familiar refletia a evolução da sociedade, movendo-se de relações coletivas para nucleares. Já Tylor (1975) acreditava que as formas de organização familiar e de parentesco seguiram um desenvolvimento linear. Ele argumentava que a família tinha uma origem tribal, transpassando pelo estágio da promiscuidade, momento em que não havia exclusividade sexual, seguido da poligamia, estágio em que grupos de homens se relacionavam com várias mulheres e, por fim, a monogamia, estágio que seria mais avançado na evolução familiar. Estes pensamentos foram contestados por Lévi-Strauss (2003), que argumentaram que família e parentesco são construções sociais e não algo linear. 

O funcionalismo antropológico é uma teoria que surgiu no início do século XX, e considera como ideia central cada parte de uma sociedade ao contribuir para o funcionamento e a sobrevivência do todo. Para esta escola, a família desempenha uma função central na manutenção da ordem social. Malinowski (1944), um dos principais expoentes dessa escola, considerava a família como a unidade fundamental de todas as sociedades, sendo essencial para a socialização dos filhos e a regulação das relações sexuais. Ele argumentava que a família garante a estabilidade social ao regular esses aspectos essenciais da vida humana. Já Radcliffe-Brown (1952), outro importante estudioso do funcionalismo, via a família como parte de um sistema de parentesco, essencial para a coesão social e a integração dos indivíduos no grupo. Segundo o autor, o parentesco regula relações de autoridade, obrigações e poder dentro dos sistemas sociais mais amplos, garantindo a estabilidade das estruturas sociais.

O estruturalismo, que surgiu entre as décadas de 1950 e 1970, enfatizou os padrões universais nos sistemas de parentesco, focando principalmente nas regras de casamento, como a exogamia, que é um conceito antropológico e consiste na prática do casamento fora do grupo social e as obrigações recíprocas entre famílias aliadas, com proibição do incesto, porque seria uma das leis fundamentais que estruturariam a sociedade. Lévi-Strauss (2003), um dos maiores expoentes dessa escola, via a família como parte de um sistema de troca e aliança entre grupos sociais. Para o autor, a família e o parentesco estavam no cerne da organização social humana, desempenhando um papel fundamental na formação de vínculos e na estruturação das sociedades.

As teorias contemporâneas da antropologia, como a antropologia interpretativa, popularizada na década de 1970, entende a família não como uma instituição fixa com funções universais, mas como um sistema de significados culturais. Para Geertz (1989), a família deve ser compreendida dentro de seu contexto simbólico e cultural, ou seja, a maneira como cada cultura atribui seus próprios significados às relações familiares. Segundo essa abordagem, a família não é uma estrutura rígida com funções predefinidas, mas uma construção cultural, cujos significados variam de acordo com as interpretações simbólicas de cada sociedade. A família, nessa perspectiva, é fruto de uma teia de significados que só pode ser entendida dentro de seu contexto cultural específico.

Outra teoria contemporânea importante é a pós-colonial, que ganhou destaque nas décadas de 1980 e 1990, analisando a família dentro das relações de poder e dominação associadas ao colonialismo e à modernidade. Autores pós-coloniais, como Said (1978) e Bhabha (1994), questionam como as ideias ocidentais sobre família, casamento e gênero foram impostas a sociedades colonizadas, muitas vezes desconsiderando as tradições e valores locais. Eles promoveram uma crítica ao Eurocentrismo, porque diferentes tradições culturais se encontram e se misturam, gerando novas formas de família que rompem com o modelo colonial imposto, não havendo preponderância da cultura europeia sobre qualquer outra. Para os autores pós-coloniais, o conceito de família não é universal, mas moldado pelas interações de poder entre culturas dominantes e subjugadas, criando dinâmicas sociais e culturais.

A antropologia feminista e os estudos de gênero, que emergiram a partir da década de 1980, questionam a ideia tradicional de família como uma unidade patriarcal e heteronormativa. Para Rubin (1975), o parentesco, central na definição de família, tem sido historicamente um mecanismo de controle das mulheres, perpetuando as desigualdades de gênero. Ela argumenta que as normas de parentesco muitas vezes limitam a autonomia das mulheres, subordinando-as a estruturas familiares masculinas. Butler (1990), por sua vez, desafiou a ideia de gênero fixo, questionando, também, os pressupostos sobre a família nuclear tradicional. Para Butler (1990), o gênero é uma construção social, o que implica considerar que a definição de família também pode ser reconsiderada e expandida. Os feminismos contemporâneos argumentam que as famílias atuais incluem uma diversidade de arranjos, como famílias homoparentais e famílias escolhidas, rompendo com o modelo tradicional imposto pela sociedade patriarcal e heteronormativa.

A visão de família para a teoria da dádiva de Mauss (1925), em seu “Ensaio sobre a Dádiva”, foi publicada originalmente em francês “Essai sur le don”,  sugere que as relações familiares envolvem trocas recíprocas, sejam elas de afeto, bens ou cuidados. Tal teoria é oriunda da década de 1920, mas foi revisitada na contemporaneidade. A família constrói trocas simbólicas como o afeto e não se baseia apenas em obrigações biológicas. 

A ideia de economia do afeto como extensão da teoria da dádiva discute a importância das emoções e do afeto nas relações sociais, nela incluindo as relações familiares. Neste prisma, os sentimentos criam redes de trocas, escambo afetuoso, que transcendem a lógica econômica tradicional. Massumi (2015), em seu trabalho “The Politics of Affect”, analisa o afeto como parte de uma economia simbólica que organiza as interações sociais e políticas, o que ressoa com os princípios da teoria da dádiva. A noção de economia do afeto se refere à maneira como laços emocionais, empatia e relações afetivas influenciam e até regulam as interações de troca nas esferas social, econômica e pessoal. Diferente da economia de mercado, que é baseada no cálculo racional e utilitário de ganhos e perdas, a economia do afeto coloca o afeto, ou seja, sentimentos como o amor, cuidado, empatia e solidariedade no centro das trocas, valorando essas relações de forma não monetária (Illouz, 2007).

A Antropologia da Globalização e Mobilidade, surgida na década de 1990, introduz uma nova perspectiva sobre a família, enfatizando a fluidez e a transformação dos laços familiares em um mundo marcado por migração e mobilidade transnacional. Esse conceito de família em movimento, atualiza as discussões anteriores sobre funcionalismo e estruturalismo, que focavam na manutenção da coesão social e na troca entre grupos sociais. O movimento transnacional das famílias contemporâneas reconfigura essas noções tradicionais, mostrando como as funções e alianças familiares não estão mais vinculadas a um local fixo ou a uma rede de relações geograficamente delimitada. 

Appadurai (1996) argumenta que, em um mundo globalizado, as famílias estão cada vez mais distribuídas em redes transnacionais, e a tecnologia ajuda a manter os laços emocionais à distância, o que reflete uma mudança nas funções sociais e culturais atribuídas à família. Além disso, Ong (1999) explora como as famílias migrantes desenvolvem novas formas de parentesco e apoio econômico, que dialogam com as antigas teorias sobre as funções e o papel da família na sociedade, mas adaptadas às dinâmicas contemporâneas.

Já na atualidade, Miller (2011), que é um renomado antropólogo britânico, amplamente reconhecido por seu trabalho no campo da antropologia digital e no estudo do consumo e da cultura material, professor de Antropologia no University College London (UCL), conduziu importantes pesquisas sobre o impacto das novas tecnologias e mídias, especialmente a internet e as redes sociais na vida cotidiana. 

A pesquisa “Why We Post“, por exemplo, liderada por Miller e sua equipe, foi um extenso projeto etnográfico que explorou o uso das redes sociais em diferentes contextos culturais ao redor do mundo. Realizado entre 2012 e 2018, o projeto envolveu a observação e análise do comportamento de usuários em nove países, incluindo o Brasil, China, Turquia, Índia e Itália, entre outros. A principal premissa era entender como as redes sociais são apropriadas de maneiras únicas em diferentes sociedades e como influenciam questões como identidade, relacionamentos e política. A inclusão do Brasil é particularmente relevante para este artigo, dado o papel central das redes sociais no cotidiano de muitas pessoas no país, que interagem de múltiplas formas, e o estudo permite compreender a realidade para entender alguns pontos sobre os quais se investiga.

No Brasil, o campo de estudo foi uma pequena cidade de classe média no interior da Bahia. Os pesquisadores observaram como plataformas como Facebook e WhatsApp eram usadas para manter laços familiares, reforçar laços de amizade e até negociar a presença nas esferas pública e privada. A pesquisa mostrou que, no Brasil, as redes sociais são amplamente utilizadas para sustentar e fortalecer as relações pessoais, sendo um canal para interações afetivas, mas também uma plataforma para questões mais amplas, como ativismo e discussões políticas.

Entre os achados mais notáveis da pesquisa no contexto brasileiro, destaca-se o fato de que a conectividade digital tem um impacto profundo na vida social, sobretudo na forma como os brasileiros lidam com a noção de privacidade. Muitos usuários, especialmente em plataformas como WhatsApp, expressam preocupação com a exposição exagerada, buscando estratégias para gerenciar essa visibilidade, como criar diferentes grupos para diversos círculos sociais. A pesquisa também revelou que, embora as redes sociais possam reforçar hierarquias sociais, elas também oferecem oportunidades de contestação dessas mesmas estruturas, especialmente entre grupos marginalizados.

No geral, o estudo “Why We Post” evidenciou que, embora as redes sociais sejam globais, suas manifestações e impactos são profundamente locais. No caso do Brasil, a pesquisa mostrou que as plataformas digitais não apenas refletem a cultura brasileira, mas também moldam novas formas de interação, permitindo aos usuários negociar seu lugar no mundo de maneiras que muitas vezes desafiam convenções tradicionais. Esse estudo é uma contribuição fundamental para entender a complexidade das dinâmicas sociais no ambiente digital contemporâneo.

O antropólogo também escreveu o livro “Tales from Facebook”, um estudo sobre os impactos do Facebook nas relações humanas. Neste estudo, Miller (2011) explica que o Facebook tem um impacto profundo nas vidas de seus usuários, não apenas facilitando a criação e manutenção de relacionamentos, mas também influenciando questões como privacidade e dinâmicas familiares. Miller (2011) observa que, ao conectar pessoas de todas as idades, essa plataforma pode tanto resgatar aqueles isolados por doença ou idade quanto provocar rupturas em relacionamentos pessoais. O autor destaca que o Facebook funciona como um meio pelo qual indivíduos constroem e expressam suas redes sociais, refletindo um dos princípios centrais da antropologia, de que as pessoas sempre foram o centro dessas redes. Miller (2011) também sugere que o Facebook transformou as redes sociais, desafiando suposições anteriores da ciência social sobre o declínio da comunidade, ao expandir os relacionamentos sociais em um novo formato digital.

A análise das teorias e estudos antropológicos acima mencionados, indicam que as transformações nas estruturas familiares acompanham as mudanças culturais, sociais e tecnológicas da sociedade contemporânea. O conceito de família, anteriormente vinculado ao parentesco consanguíneo, expandiu-se para abarcar relações voluntárias e baseadas na afinidade, como as famílias formadas por laços de amizade e redes de apoio não biológicas. Estudos recentes, como os de Miller (2011), demonstram a importância das redes sociais na manutenção e fortalecimento desses vínculos, particularmente em contextos de mobilidade e migração, corroborando a noção de que o afeto e as escolhas pessoais têm se tornado elementos centrais nas novas configurações familiares.

Esses vínculos voluntários e afetivos não apenas desafiam o modelo tradicional de família, mas também introduzem uma nova configuração para concretização do princípio da solidariedade familiar. As relações afetivas, muitas vezes consolidadas em ambientes virtuais, ilustram uma dinâmica de trocas emocionais e apoio recíproco, em que o afeto se estabelece como elemento central na legitimação desses vínculos. Assim, os estudos indicam a necessidade de uma compreensão mais ampla das dinâmicas familiares, incluindo a consideração de novas formas de organização que transcendam o parentesco biológico, o que sugere um campo de investigação relevante para o direito das famílias.

3    A EVOLUÇÃO DOS VÍNCULOS FAMILIARES: BIOLÓGICOS, AFETIVOS E FAMÍLIAS VIRTUAIS

O conceito de família tem evoluído ao longo do tempo, passando por diversos enfoques teóricos e culturais. A análise antropológica apresentada confirma que as dinâmicas familiares estão em constante transformação, afastando-se da ideia de uma estrutura fixa. Com base nesse raciocínio, a presente análise busca verificar se os vínculos afectivos construídos no ambiente virtual, seguindo os mesmos pressupostos que fundamentam o reconhecimento da família socioafetiva, com suas próprias particularidades, também podem ser capazes de gerar o fenômeno da multiparentalidade.

Dias (2015) corrobora com essa visão ao observar que o estado de família não é algo fixo, mas sim um conceito dinâmico, adaptado às mudanças sociais e culturais. Ela ensina que o Direito passou a reconhecer que as famílias não podem ser vistas sob um único modelo tradicional, mas devem ser compreendidas como uma pluralidade de arranjos, refletindo a diversidade de laços afetivos e sociais presentes nas sociedades contemporâneas.

Diante dessa pluralidade de arranjos, o Direito se ajustou para legitimar essas diferentes configurações. Atualmente, é mais técnico adotar a expressão “formatos de famílias”, no plural, em vez de “família”, no singular, uma vez que isso reflete a legitimidade das diversas formas de constituição familiar. Tanto entre os que adotam o mesmo formato quanto entre os próprios formatos, existem diferenças significativas que merecem reconhecimento.

Para confirmar, o art. 1.593 do CC/2002, por exemplo, dispõe que: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (Brasil, 2002). A expressão “ou outra origem” é uma norma jurídica aberta, permitindo que a interpretação acompanhe as mudanças sociais. O STF em 2019, por meio do Tema 622 e a literatura jurídica contemporânea, ao reconhecerem a existência de diversas formas de constituição familiar, trouxeram concretude a essa norma. Diniz (2019) sintetiza essa visão ao ensinar que o Direito das Famílias passou a abraçar uma pluralidade de formatos.

Além disso, a própria Constituição Federal de 1988 (CF/1988) sempre reconheceu diferentes arranjos familiares além do casamento. A resistência para afirmar modelo único de família, a matrimonial, revela preceito. Veio com o próprio poder constituinte originário, a união estável como entidade familiar (art. 226, § 3º) e a família monoparental, composta por qualquer dos responsáveis parentais – termo proposto na atualidade, porque alcança pais, mães, biológicos ou não, atribuindo significado da expressão “qualquer dos pais e seus descendentes” (art. 226, § 4º). 

 Mas além desses dois exemplos, a CF/1988, ao ser promulgada, também como fruto do poder constituinte originário, proibiu distinção entre os tipos de filiação, independentemente de serem biológicos ou não, resultantes de matrimônio ou não, vedando qualquer discriminação (art. 227, § 6º).

 Esta norma constitucional foi necessária, para aniquilar o preconceito social validado pelo Código Civil da época (CC/1916, arts. 337 a 358). Conceitos até então rígidos que validavam tal discriminação parental, ao estabelecer regras distintas para os ditos filhos legítimos – nascidos dentro do casamento – e ilegítimos – nascidos fora do casamento -, incluindo nas distinções os “naturais”, “adulterinos” e “incestuosos”.

 A interpretação do conceito de família, sob a ótica da CF/1988 veio sendo expandida pelo STF, especialmente no reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar. É considerado um marco histórico, em 2011, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277. Tal decisão fortaleceu a compreensão de que famílias podem ser constituídas de várias formas, além do casamento civil (Brasil, 2011).

Vale relembrar os ensinamentos do professor Oswaldo Peregrina Rodrigues (2016), de que o rol previsto na Constituição Cidadã é exemplificativo, tanto que o Estatuto da Criança e do Adolescente, promulgado após a Carta Magna, instituiu o conceito de família extensa e família substituta, demonstrando que a origem da família não é exclusivamente matrimonial.

Da soma de tudo isso, atualmente, o direito brasileiro reconhece a existência de múltiplas formas de famílias. Ao que parece o reconhecimento familiar ocorre, desde que presente o “estado de família”, ou seja, atributos inerentes à pessoa definindo sua posição jurídica na relação familiar, fruto do parentesco, casamento ou união estável (Diniz, 2010). 

Exemplo dessas múltiplas famílias atualmente reconhecidas, são as famílias por união estável, simultânea, monoparental, unipessoal, anaparental, eudemonista ou afetiva, homoafetiva, reconstituída ou mosaico, parental socioafetiva, extensa ou ampliada, poliafetiva, por adoção, entre outras. Essa multiplicidade reflete as transformações sociais e culturais que ampliam o entendimento do que constitui uma família no contexto jurídico contemporâneo (Dias, 2015).

Desses exemplos, cabe destacar a família eudemonista e a socioafetiva. O termo “eudemonista” remete à ideia de felicidade como finalidade da vida em sociedade, sendo essa a base que justifica a união e permanência dos membros dessa família (Dias, 2015). Sendo assim, é definida como aquela família, cuja base está na busca pela felicidade e bem-estar dos seus membros. O conceito central dessa família não se restringe a laços biológicos ou a obrigações legais formais, mas sim ao afeto e à realização pessoal dos seus integrantes. Ela foca na convivência harmônica e na promoção do bem-estar. 

A família socioafetiva, por outro lado, embora também esteja fundamentada no afeto e já tem como característica distintiva, o reconhecimento jurídico dos vínculos formados por meio do convívio e do exercício contínuo de funções familiares, mesmo sem relação biológica. Nesse tipo de família, o afeto já é formalmente reconhecido como critério para a geração de efeitos legais, como direitos de filiação, herança, entre outros. A centralidade aqui não está apenas no afeto, mas também na possibilidade de transformar esse afeto em fundamento legal para o estabelecimento de direitos e deveres.

É comum encontrar acórdãos datados de 2012, fazendo referência ao conceito eudemonista de família. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG, 2012), ao julgar a apelação cível 10470100039556001, rejeitou um pedido negatório de paternidade cumulado com retificação de registro público, sob o fundamento do exame negativo de DNA. De forma brilhante, a decisão fundamentou que, o após o advento da CF/1988, surgiu um novo paradigma para as entidades familiares e não existe mais o conceito fechado de família, mas, sim, um conceito eudemonista socioafetivo, moldado pela felicidade e pelo projeto de felicidade de cada indivíduo. Neste acórdão a socioafetividade foi fundamentada como sinônimo de eudemonista. Logo preponderou o afeto à biologia. 

Desta forma, o pleno desenvolvimento das famílias modernas está profundamente atrelada ao reconhecimento do direito à busca da felicidade, que consiste num princípio implícito na CF/1988, decorrente do art. 1º, inciso III, que trata da dignidade da pessoa humana (Fachin, 2007). 

O Tema 622, editado pelo STF, enfatiza tal princípio, quando coloca o indivíduo no centro do ordenamento jurídico. A tese prevista no referido tema garante a capacidade de autodeterminação das pessoas e assegura liberdade de escolher seus próprios caminhos, inclusive na constituição de suas relações familiares, sem que o Estado possa impor modelos rígidos e preconcebidos de organização familiar. Assim, o direito à felicidade abrange não apenas a liberdade de formar famílias, mas também de constituir vínculos parentais, seja de natureza presuntiva, biológica ou afetiva ou eudemonista (Brasil, 2019). 

Dessas premissas, o conceito de família, segundo a visão constitucional, também inclui a pluriparentalidade, ou seja, a possibilidade de múltiplos vínculos parentais, de maneira a garantir a mais ampla proteção às pessoas envolvidas, sejam eles decorrentes de vínculos biológicos ou não. A pluriparentalidade é um conceito, fruto do reconhecimento da família eudemonista. No Brasil, o STF, ao julgar o Recurso Extraordinário 898.060, destacado como Repercussão Geral, deu origem à tese lançada no Tema 622. Historicamente, é um passo muito importante, porque fundamentando na autodeterminação das pessoas, no direito à felicidade e proibindo que o Estado se imiscua, para restringir direitos, reconheceu a paternidade socioafetiva como plenamente válida. A decisão equiparou a socioafetividade à paternidade biológica e reafirmou que ambas podem coexistir sem hierarquia, assegurando direitos civis, ou seja, direito à filiação, herança, entre outros. 

O STF, ao validar a pluriparentalidade, não apenas rompeu com alguma resistência presente em algumas áreas do Direito, como também avançou na construção de um sistema jurídico mais inclusivo e alinhado com a realidade social contemporânea, em que as famílias se formam com base no afeto e em arranjos que vão além dos moldes tradicionais. 

A multiplicidade de vínculos parentais demanda uma tutela jurídica ampla, assegurando que todos os envolvidos tenham seus direitos reconhecidos e respeitados, em consonância com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, cidadania e ao direito à felicidade. Portanto, a superação de modelos pré-concebidos de família é essencial para que o Direito possa acompanhar a complexidade e a pluralidade das relações familiares modernas, oferecendo proteção igualitária a todas as formas legítimas de parentalidade.

A família afetiva ou eudemonista já existia antes mesmo do reconhecimento jurídico firmado na tese do Tema 622 do Supremo. Agora, diante do reconhecimento formal, que tem por uma das consequências, o registro, permitirá informar estatísticas acerca do número dessas famílias. Isso é frisado apenas para trazer luz ao fato de que não é o sistema que criou este formato de família, ele apenas reconheceu a existência. O progresso social é que impõe as mutações e o desenvolvimento desses arranjos. 

Da mesma forma que a família eudemonista foi descoberta antes de seu reconhecimento jurídico pelos Tribunais, talvez a família virtual, atualmente em análise, trilhe um caminho semelhante. Com o avanço acelerado da tecnologia, é possível que esse reconhecimento ocorra de forma ainda mais célere. As inovações tecnológicas proporcionam novas formas de interação e convivência, o que pode acelerar o processo de legitimação de novos modelos de família, incluindo os vínculos afetivos formados virtualmente.

Sobre as questões virtuais, é importante refletir que, desde a promulgação da Lei nº 11.419/2006, que trata da informatização do processo judicial e da possibilidade de audiências telepresenciais, já havia doutrinas de peso questionando sua viabilidade e validade. As preocupações à época incluíam a preservação da prova oral, o risco de exclusão digital, a validade e a segurança das provas produzidas em meio eletrônico (Brasil, 2006).

Esses argumentos foram legítimos, considerando que desbravavam um campo desconhecido. No entanto, em 2020, com a pandemia de Covid-19, o CNJ, através da Resolução nº 314, que regulamentou a retomada dos prazos processuais e a realização de atos, incluindo audiências e sessões de julgamento de forma telepresencial, consolidou de forma mais direta essa prática. O que poucos compreendiam, em 2006, tornou-se uma realidade amplamente aceita, em 2020, mostrando como a evolução tecnológica e social exige que o Direito se adapte continuamente às novas realidades.

Retomando a discussão sobre a tese firmada pelo STF no Tema 622, observa-se que o afeto é reconhecido como um dos pressupostos essenciais para a constituição da família socioafetiva. Esse sentimento, que se desenvolve através do convívio, pode ser cultivado tanto no ambiente físico quanto no virtual, como já é comum entre parentes biológicos que, em circunstâncias de migração, utilizam a tecnologia para manter o vínculo. Considerando o reconhecimento do direito das pessoas à autodeterminação de suas relações, no acórdão que originou o tema supramencionado, é plausível afirmar, a partir dessa premissa, que o afeto também pode ser construído e fortalecido por meios virtuais, ampliando a compreensão de família para incluir vínculos que ultrapassam a convivência presencial e abrem espaço para o reconhecimento de novas formas de organização familiar.

Logo, o reconhecimento da família afetiva virtual ou família virtual afetiva encontra sólido fundamento nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do direito à busca da felicidade. O professor Oswaldo Peregrina Rodrigues (2016), parafraseando Hannah Arendt, adiciona a cidadania como outro princípio constitucional para tal reconhecimento, porque consiste no direito de qualquer pessoa ter direito. Esses princípios asseguram a cada indivíduo a liberdade de estabelecer suas relações afetivas de acordo com suas escolhas pessoais, sem se limitar aos modelos tradicionais de convivência familiar. Assim, as interações digitais podem se configurar como um meio legítimo para a construção de vínculos afetivos, merecendo a mesma proteção jurídica conferida às famílias já reconhecidas.

Tal como o Direito evoluiu para reconhecer diversas formas de organização familiar, como as uniões homoafetivas, famílias monoparentais e a pluriparentalidade, é igualmente necessário que ele se ajuste à realidade das relações virtuais, nas quais vínculos afetivos significativos são criados e mantidos através de interações digitais.

Inclusive, as próprias famílias consanguíneas da atualidade, também se utilizam da tecnologia para manter o convívio, mesmo estando fisicamente separadas. A movimentação migratória de membros de famílias biológicas não tem impedido o convívio familiar mantido por meio dos recursos virtuais, que oferecem inúmeros mecanismos de interação. As tecnologias digitais, como redes sociais, videochamadas, aplicativos de mensagens instantâneas e plataformas de comunicação por vídeo, já permitiam que essas famílias interagissem de maneira significativa, criando rotinas de interação que substituem ou complementam a convivência presencial.

Para além dessas tecnológicas, que já são fortemente conhecidas, existe na atualidade a realidade virtual espacial, exemplificada pelos óculos “Apple Vision Pro”. A empresa Apple emitiu uma nota informando que o lançamento do produto “Apple Vision Pro” seria em meados do ano de 2024. O “Apple Vision Pro” conta com toda a potência do visionOS, um revolucionário sistema operacional com uma interface espacial intuitiva e um sistema de entrada mágico que permite navegar pelo conteúdo usando os olhos, as mãos e a voz. O visionOS é baseado em décadas de inovação em engenharia e design aplicados ao iOS, iPadOS e macOS, e funciona em perfeita sintonia com o ecossistema de hardware, software e serviços Apple para oferecer uma experiência formidável em todos os aparelhos Apple. E já existem outras marcas também com funções semelhantes. 

Embora essa tecnologia esteja em sua fase inicial, já permite experiências sensoriais e imersivas, mostrando que a convivência virtual não só é possível, mas também uma realidade que se expande rapidamente.

Tecnologias imersivas, como os óculos de realidade aumentada “Apple Vision Pro“, projetam hologramas e promovem interações mais realistas, intensificando esses laços. Muitas pessoas já estão usufruindo desses recursos tecnológicos, embora os vínculos afetivos virtuais, para muitos, são preexistentes a essas tecnologias. 

 Mas é óbvio que muito antes dessas tecnologias imersivas, que permitem experiências sensoriais, as redes sociais já serviam como portais para que muitas pessoas se conhecessem e desenvolvessem vínculos afetivos.

No mundo contemporâneo, a tecnologia tornou possível a convivência em ambientes virtuais, onde as pessoas mantêm interações regulares e significativas, mesmo sem um contato físico direto, o que abre novas discussões sobre o impacto dessas relações no âmbito jurídico e familiar.

Turkle (2011), psicóloga e socióloga do Massachusetts Institute of Technology, em sua obra “Alone Together”, explora como as interações online estão transformando as relações humanas. Ela destaca que as conexões virtuais podem ser tão significativas quanto às interações presenciais, especialmente no contexto contemporâneo, em que as redes sociais e plataformas digitais se tornaram parte integrante da vida cotidiana. 

Segundo Turkle (2011), a tecnologia permite que as pessoas mantenham relações afetivas e convivência emocional, mesmo sem o contato físico direto. Essas relações, desenvolvidas no ambiente digital, apresentam novos desafios para o entendimento dos laços sociais e para as formas tradicionais de convivência. Ela argumenta que, embora essas conexões possam oferecer novas oportunidades de aproximação, também levantam questões sobre a profundidade e a natureza dessas interações, propondo uma reflexão sobre o impacto dessas novas formas de relacionamento na sociedade.

Chaves (2020) desempenhou um papel crucial no desenvolvimento do Direito das Famílias e Sucessões no Brasil, ao destacar a centralidade do afeto como critério predominante na definição das relações familiares. Ele argumenta que o afeto deve ser equiparado, ou até mesmo sobreposto, ao vínculo biológico, uma vez que os laços de convivência e solidariedade também merecem proteção jurídica. 

Para Chaves (2020), o Direito Civil, como um todo, deve ser interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, incorporando as transformações sociais e culturais. Suas obras, assim como as de Dias (2015), vêm há anos debatendo as novas configurações familiares e enfatizam a importância de ampliar os direitos das famílias afetivas, adaptando o ordenamento jurídico para refletir as realidades contemporâneas.

Além das perspectivas jurídicas, o estudo de parentesco sob a visão de outras ciências sociais também oferece importantes contribuições para o entendimento das formas de famílias. Na síntese do estudo antropológico, cabe lembrar da antropóloga Fonseca (2015), que, em seus estudos sobre parentesco, afirma que as famílias são construções sociais que transcendem os laços biológicos, sendo o afeto e a convivência os verdadeiros pilares de um parentesco legítimo.

 Sob todas essas perspectivas, permite concluir que se a convivência virtual for intensa e significativa, sugere que esses laços também poderiam ser reconhecidos juridicamente como uma forma válida de relação familiar. Isso abre caminho para o entendimento de que as famílias virtuais, construídas e mantidas no ambiente digital, poderiam seguir a mesma lógica de reconhecimento jurídico das famílias eudemonistas, que apresentam o afeto como elemento central em decorrência da autodeterminação dos membros.

Dias (2015) ensina que a solidariedade familiar está intrinsecamente ligada ao princípio da dignidade da pessoa humana, impondo aos membros da família o dever de assistência e cuidado mútuo. Então é possível concluir, se esses vínculos afetivos, formados virtualmente, forem reconhecidos, o princípio da solidariedade familiar também deverá ser aplicado, estendendo o dever de sustento e prestação de assistência a essas novas formas de família, com efeitos sucessórios, inclusive. Dessa maneira, o afeto e a solidariedade se consolidam como elementos centrais na concepção moderna de família, seja ela sobre as já conhecidas ou virtual.

Dias (2015) também explica que a solidariedade familiar é um princípio que permeia as relações entre os membros de uma família, implicando responsabilidades recíprocas, tanto no campo emocional quanto no material. A assistência mútua é concretizada, seja por meio de cuidado, apoio financeiro ou ajuda em momentos de crise, como doenças ou dificuldades econômicas, alcançando o dever de sustento. O descumprimento dessas responsabilidades pode gerar ações judiciais, com o Estado, agora sim, imiscuindo-se, mas para assegurar a proteção dos direitos de todos os envolvidos.

Esse princípio também impacta o direito à sucessão aberta e o parente afetivo ocupará sua posição na ordem de vocação hereditária conforme previsto no CC/2002, em seus arts. 1.694 e 1.829 (Brasil, 2002). A família virtual, como espécie de pluriparentalidade, merece proteção jurídica para garantir que todos os envolvidos recebam a devida tutela. Cada indivíduo deve ser respeitado em sua singularidade, e não pode ser tratado como um instrumento para atender aos interesses do Estado, a fim de concretizar os princípios constitucionais ao direito à felicidade,  cidadania e dignidade humana, a fim de proteger as pessoas de tentativas estatais de impor modelos familiares pré-definidos pela legislação, valorizando a liberdade de formar suas próprias relações e estruturas familiares (Brasil, 1988).

 Se a família eudemonista ou afetiva é um fato concretizado perante o direito brasileiro e num primeiro olhar, o afeto é o pressuposto fundamental para o reconhecimento do vínculo afetivo parental, logo, torna-se necessário entender o conceito e extensão do convívio como caracterizadores do vínculo familiar. O certo é que a convivência virtual também é possível de reconhecimento jurídico e está cheia de significados, capazes de validar a afetividade entre pessoas.

Neste cenário, o crucial é que os interessados demonstrem o caráter voluntário, genuíno e constante do vínculo, que é, portanto, a chave para o reconhecimento da família virtual, com uma proteção jurídica adequada que inclua as implicações patrimoniais, sucessórias e de direitos e deveres entre os membros dessas famílias.

Embora o reconhecimento desses vínculos ainda seja um tema recente e envolva algumas dificuldades legais e probatórias, a crescente virtualização das interações humanas aponta para a necessidade de adaptação das normativas vigentes. O uso de evidências digitais, como registros de comunicação constante e compartilhamento de experiências significativas entre as partes, pode ser um caminho para garantir o reconhecimento jurídico desses laços afetivos. Ao avançar nesse campo, o sistema jurídico não só acolherá uma realidade social já instalada, como também contribuirá para a evolução dos direitos das famílias.

4  COMPROVAÇÃO DO VÍNCULO AFETIVO VIRTUAL

Ao julgar o Recurso Extraordinário afetado com Repercussão Geral 898.060/SC, o STF editou o Tema 622, cuja consequência foi a publicação do Provimento nº 83 do CNJ, que posteriormente foi ampliado pelo Provimento n.º 149 do CNJ. 

Estes Provimentos, estabelecem o direito e o procedimento para o reconhecimento voluntário da paternidade e maternidade socioafetiva, ao regulamentar os procedimentos para reconhecimento e registro extrajudicial desses vínculos, especialmente quando a afetividade se manifesta na prática social. 

Então, atualmente é permitido que pessoas com mais de 12 anos tenham sua paternidade ou maternidade socioafetiva reconhecida diretamente nos cartórios. A intenção é garantir uma formalização mais célere e acessível desse tipo de relação, desde que estejam presentes elementos concretos que demonstrem a convivência familiar e o afeto, como inscrição em planos de saúde, convivência domiciliar e outros documentos relevantes, etc.. O vínculo socioafetivo deve ser claro e estável, e o registrador tem a responsabilidade de verificar e atestar essa relação, podendo utilizar diversas formas de comprovação, inclusive declarações de testemunhas e documentos oficiais.

Quando o registro envolve menores de 18 anos, o consentimento do menor é essencial, e o Ministério Público (MP) deve ser consultado em todos os casos, sendo o seu parecer determinante para a efetivação do registro. Há uma limitação  do reconhecimento de apenas um ascendente socioafetivo por linha parental no âmbito extrajudicial, e qualquer inclusão adicional,  é possível, mas deverá ser tratada pela via judicial. 

Em suma, foi promovido a valorização do vínculo afetivo como base para o reconhecimento da parentalidade, fortalecendo a proteção jurídica das relações familiares afetivas de forma acessível, porém cuidadosa, garantindo que o processo siga os princípios constitucionais de dignidade humana, cidadania, felicidade, pressupostos da afetividade, para o reconhecimento do vínculo.

A lógica por detrás dos Provimentos é assegurar a autodeterminação das pessoas que podem pedir o reconhecimento da parentalidade afetiva se dirigindo aos cartórios de pessoas naturais. Portanto, se podem autodeterminar e existe afeto instalado, logo não importa a origem, se virtual ou real. A vontade dos sujeitos é crucial como tradução da autodeterminação, elemento reconhecido na fundamentação da Repercussão Geral histórica, que gerou o Tema 622. 

 O STF reconheceu a possibilidade da coexistência entre a paternidade biológica e a paternidade socioafetiva, validando a pluriparentalidade. Desta forma, o interessado até pode buscar o reconhecimento por meio de ação judicial e apresentar provas, todas que forem admitidas em direito para comprovar a relação afetiva existente, como o cuidado mútuo, a convivência familiar e outros fatores que caracterizem o vínculo, como caráter voluntário, genuíno e constância.

Agora, sobre o manuseio de processo para o reconhecimento da família virtual, ainda não há jurisprudência formada sobre o assunto e não há literatura sólida a seu respeito até o momento. No entanto, o direito de ação é uma garantia constitucional, decorrente do princípio da inafastabilidade. Desta forma, o ajuizamento pode ser tanto em vida, quanto após a morte da pessoa. Não há uma limitação temporal rígida para o reconhecimento desse tipo de relação parental, tendo em vista que a natureza é declaratória constitutiva. 

O interessado precisará demonstrar, com base em provas, a afetividade existente, construído pelo convívio virtual, fruto da autodeterminação dos sujeitos envolvidos, estabelecido pelo caráter voluntário, genuíno e a constância do vínculo. Buscando os ensinamentos da doutrina escrita por Bedaque (2024), o direito de ação como um direito fundamental e autônomo, que se concretiza na possibilidade de qualquer cidadão invocar a jurisdição estatal para a solução de um conflito de interesses. Em sua obra, “Efetividade do Processo e Tutela Jurisdicional”, o doutrinador destaca que o direito de ação não se resume à simples propositura de uma demanda, mas inclui o direito de obter uma decisão justa e eficaz. Ele enfatiza que o processo deve ser visto como um meio para garantir a efetivação dos direitos materiais e a realização da justiça. Assim, o direito de ação assume uma função primordial ao assegurar o acesso à justiça e a tutela jurisdicional adequada, de modo que a função do processo vai além de formalidades, visando sempre a efetividade da tutela dos direitos. 

No contexto do princípio da efetividade proposta pela doutrina, escrita por Bedaque (2024), especialmente no que tange à evolução das relações jurídicas e o reconhecimento de novos direitos – a exemplo da família afetiva virtual, que pode ser considerado um desses exemplos – , é certo que o Poder Judiciário deve estar livre de preconceitos para reconhecer a existência de novos direitos e não permanecer rígido, uma vez a própria vida não é estática, mas sim dinâmica e o processo precisa ser adaptável às novas demandas sociais.

Essa perspectiva relaciona-se diretamente com o reconhecimento das famílias formadas por laços afetivos virtuais, que exigem uma compreensão jurídica contemporânea e adaptável, condizente com o avanço das interações digitais. Portanto, reafirma-se que a julgadora ou o julgador deve descartar seus preconceitos longe e fora do processo, porque a vida de uma pessoa deve ser marcada pela proteção de seus direitos e não o contrário.

Embora seja possível encontrar dificuldades no reconhecimento desse tema por ser novo, as evidências sinalizam que as relações virtuais são significativas, e assim como a parentalidade afetiva decorrentes do convívio real também teve seu caminho desafiado até ser reconhecida, certamente a parentalidade afetiva virtual, como espécie de multiparentalidade ou pluriparentalidade, também terá o seu reconhecimento. 

Para estimular o olhar em direito ao futuro, vale relembrar da história para reconhecer a união estável como entidade familiar. Esta forma de família, desafiou a tradição, até ser reconhecida. Muitos ousavam pedir o reconhecimento, mesmo antes da CF/1988. Inclusive, em regra não há lei anterior ao fato. Por isso, confirma que mesmo antes da lei assegurar o reconhecimento da união estável, o Poder Judiciário foi compelido a se pronunciar. Historicamente o Poder Judiciário, por volta das décadas de 1970 e 1980, quando as partes demonstravam a vida em comum duradoura e o cuidado mútuo, concediam direitos patrimoniais e assistenciais em decisões baseadas na realidade fática dessas uniões, reconhecendo que, embora não houvesse casamento, essas relações geravam obrigações mútuas, como já ocorria no casamento formal.

Também é possível buscar outros exemplos atrelados à dignidade da pessoa humano, como direito de autopercepção e consequente possibilidade de adequação do gênero ao nome, o reconhecimento da família homoafetiva,  o direito de trabalhadores ao saque do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para reforma de imóveis, decisão judicial que à época foi tomada com base na dignidade da pessoa humana, mesmo quando tal hipótese não era prevista na Lei nº 8.036/1990, que rege o FGTS, para assegurar moradia para o trabalhador.

Entre tantas resistências, a sociedade superou muitas delas, em nome da dignidade da pessoa humana (Brasil, 1990). O olhar aqui deve ser o mesmo. 

De todos os exemplos citados, constata-se algo comum entre eles e consiste no fato de que o Direito foi, aos poucos, adequando-se à realidade social. Todos eles, antes de qualquer lei ou decisão judicial reconhecendo, já existia. 

Na questão relacionada ao reconhecimento da família virtual, por óbvio, não será diferente. Talvez seja mais célere, porque é crescente, e a informação circula instantaneamente. 

Antecipando uma reflexão, cujo objetivo é tentar diminuir a resistência dos menos progressistas, vale relembrar que, assim como no ambiente real, é certo que, no ambiente virtual, também é possível existir ilícitos. Mas, por óbvio, é certo que, o ilícito praticado por uma pessoa isolada, jamais será capaz de descaracterizar vínculos afetivos virtuais sinceros, prologados e estáveis, porque a autodeterminação dos sujeitos deve ser privilegiada para estabelecimento dos seus vínculos. 

O maior obstáculo ao reconhecimento do parente afetivo virtual reside na prova do vínculo. O Direito exige que haja evidência de uma convivência contínua e de dependência emocional ou econômica. Nas relações virtuais, a ausência de contato físico pode dificultar essa comprovação, mas as interações digitais criam tipos de evidências. 

O ambiente digital deixa rastro concretos para comprovar a profundidade de uma relação, como mensagens frequentes, chamadas de vídeo e outras formas de interação constante. A prova digital pode ser usada para estabelecer a legitimidade de um vínculo afetivo virtual.

Os estudos do antropólogo Miller (2011) sobre o impacto das mídias digitais nas relações humanas mostram que as plataformas digitais não apenas possibilitam a formação de novos vínculos, mas também fortalecem as interações afetivas de maneira profunda e significativa. Em sua obra “Why We Post“, Miller (2011) explora como as redes sociais transformam as dinâmicas dos relacionamentos, permitindo que laços de afeto e intimidade se desenvolvam mesmo à distância. Ele argumenta que essas interações digitais podem ser tão autênticas e relevantes quanto as presenciais, desafiando a noção tradicional de que a proximidade física é necessária para o reconhecimento de vínculos afetivos legítimos. Dessa forma, os estudos de Miller (2011) fornecem uma base antropológica para entender como o ambiente virtual pode oferecer evidências sólidas de relações afetivas, sustentando a possibilidade de reconhecimento jurídico dessas conexões no âmbito das famílias virtuais.

Embora o reconhecimento jurídico das famílias virtuais, como espécie de multiparentalidade, decorrentes da construção afetiva ainda esteja em fase inicial, ou seja, considerada como uma possível descoberta, a tendência global aponta para a crescente aceitação de provas digitais e a valorização de interações afetivas online, são capazes de estabelecer vínculos afetivos.

À medida que os sistemas jurídicos evoluem para reconhecer novos arranjos familiares, é fundamental que o Brasil acompanhe essas transformações e integre as experiências internacionais ao seu próprio desenvolvimento normativo.

5  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto no decorrer do presente artigo, a família virtual é um conceito que surge no contexto das profundas transformações tecnológicas e sociais das últimas décadas. 

Com a disseminação das tecnologias digitais e das interações virtuais, novos tipos de relações afetivas, que não necessariamente envolvem convivência física, emergiram. Essas relações podem incluir laços entre pessoas que interagem predominante ou exclusivamente por meio de plataformas online, como redes sociais, aplicativos de mensagens e outros meios digitais. 

No Brasil, o conceito de família evoluiu com o reconhecimento de famílias formadas por laços socioafetivos, que podem sobrepor-se aos laços biológicos. As interações digitais, especialmente quando há demonstração de vínculos emocionais e de compromisso, podem levar à discussão sobre o reconhecimento jurídico de relações mantidas exclusivamente no ambiente virtual. 

O reconhecimento e os reflexos jurídicos dessas novas configurações no direito contemporâneo têm desafiado a concepção tradicional de família. A jurisprudência e a doutrina ainda caminham lentamente nesse sentido, mas o desenvolvimento dessas relações pode forçar a criação de precedentes.

O direito contemporâneo, enquanto reflexo das mudanças sociais, precisa acompanhar essas transformações para garantir proteção jurídica a essas novas formas de relacionamento. 

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1Advogado. Membro do IBDFAM. Sócio do Escritório de Advocacia RD Sociedade de Advogados. Relator na 5ª Câmara de Julgamento de Benefícios da Caixa de Assistência dos Advogados do Estado de São Paulo (CAASP). Integrou, por dois mandatos, o Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo e foi Relator da 2ª Câmara de Julgamento de Benefícios da CAASP. Pós-graduado em Processo Civil pela Escola Paulista da Magistratura, Direito Civil, Direito Público pela UNISAL e pós-graduando em Direito de Família pela Tríade – IBDFAM.