EXTERNALIDADES DO USO DE AGROTÓXICOS E SEGURANÇA ALIMENTAR: UMA ANÁLISE JURÍDICA DAS CONSEQUÊNCIAS

EXTERNALITIES OF PESTICIDE USE AND FOOD SECURITY: A LEGAL ANALYSIS OF CONSEQUENCES

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10372702


Adrieli Toniato Pieruzzi1
Renato Jorge dos Santos2
Maíra Melo Cavalcante3


RESUMO

O artigo aborda a problemática do uso de agrotóxicos na agricultura brasileira, considerando seus impactos na segurança alimentar e no meio ambiente. Destaca-se a relevância do tema no contexto brasileiro, onde a agropecuária desempenha papel central na economia. A pesquisa busca compreender como o ordenamento jurídico brasileiro regula as externalidades do uso de agrotóxicos, com ênfase nas implicações jurídicas. A abordagem interdisciplinar incorpora aspectos do direito ambiental, do consumidor, da saúde pública, da economia ambiental e da ética. O estudo utiliza metodologia qualitativa, através da pesquisa bibliográfica e exploratória. O uso de agrotóxicos no Brasil consolidou um modelo agrícola químico-dependente, com uma legislação insuficiente para garantir a responsabilidade dos produtores que usam de forma intensiva e inadequada os agrotóxicos, degradando o meio ambiente. O desafio reside na conscientização da sociedade brasileira, na revisão das políticas agrícolas e na efetiva implementação de medidas que promovam uma produção alimentar mais saudável e sustentável.

Palavras-chave: Agrotóxicos. Segurança Alimentar. Externalidades Negativas. Responsabilidade Jurídica.

ABSTRACT

This article addresses the issue of pesticide use in Brazilian agriculture, considering its impacts on food security and the environment. Emphasis is placed on the relevance of the topic in the Brazilian context, where agriculture plays a central role in the economy. The research seeks to understand how the Brazilian legal system regulates the externalities of pesticide use, with a focus on legal implications. The interdisciplinary approach incorporates aspects of environmental law, consumer law, public health, environmental economics, and ethics. The study uses qualitative methodology, analyzing bibliographic and exploratory data. The use of pesticides in Brazil has consolidated a chemical-dependent agricultural model, with insufficient legislation to guarantee the responsibility of producers who intensively and inappropriately use pesticides, degrading the environment. The challenge lies in raising awareness among Brazilian society, reviewing agricultural policies and effectively implementing measures that promote more healthy and sustainable food production. 

Keywords: Agrochemicals, Food Security, Negative Externalities, Legal Responsibility.

INTRODUÇÃO

O uso de agrotóxicos na agricultura, apesar de contribuir significativamente para o aumento da produção de alimentos, suscita preocupações profundas em relação à segurança alimentar e ao meio ambiente. Como destacado por Smith et al. (2019), os agrotóxicos são substâncias que, embora desempenhem um papel relevante na produção agrícola, apresentam riscos ambientais e de saúde pública.

No contexto brasileiro, onde a agropecuária desempenha um papel central na economia e na oferta de alimentos tanto para consumo interno quanto para exportação, a problemática dos agrotóxicos ganha uma dimensão singular. O Brasil é um dos maiores produtores agrícolas do mundo, e, portanto, os impactos decorrentes do uso dessas substâncias se estendem por vastas áreas geográficas, afetando milhões de pessoas (Smith et al., 2019).

Nos últimos anos, temos observado um desafio crescente à segurança alimentar relacionado ao uso excessivo de agrotóxicos, resultando em preocupações legítimas quanto à qualidade dos alimentos disponíveis no mercado. Essas preocupações, por sua vez, suscitam uma questão central, que é a base desta pesquisa: “Como o ordenamento jurídico brasileiro regula as externalidades do uso de agrotóxicos para promover a segurança alimentar?”.

Como Silva e Santos (2020) destacam, é evidente que a utilização de agrotóxicos na esfera do agronegócio tem acarretado prejuízos que reverberam por toda a sociedade, configurando o que os estudos econômicos identificam como “externalidades negativas”. Este fenômeno se traduz na transferência dos custos decorrentes de uma determinada atividade para terceiros. Ao observarmos a disseminação indiscriminada de agrotóxicos, torna-se evidente que os impactos adversos são transferidos de forma generalizada para a população em geral (Ribeiro, 2018).

Este artigo tem como objetivo aprofundar a análise das externalidades do uso de agrotóxicos no contexto brasileiro, com um foco específico nas implicações jurídicas que emergem dessas externalidades. De acordo com o entendimento de Smith et al. (2019), as externalidades referem-se aos efeitos indiretos e muitas vezes indesejados do uso de agrotóxicos, que ultrapassam os limites das propriedades agrícolas e afetam tanto a saúde humana quanto o ambiente.

A relação intrínseca entre o uso de agrotóxicos e seus impactos na segurança alimentar constitui uma questão central. Como destacado por Oliveira e Santos (2020), a segurança alimentar é um direito humano fundamental, reconhecido internacionalmente. Este direito implica não apenas o acesso a alimentos em quantidade suficiente, mas também a disponibilidade de alimentos seguros e nutritivos. Nesse contexto, o uso de agrotóxicos provoca preocupações quanto à qualidade dos alimentos disponíveis no mercado, bem como aos riscos à saúde da população.

A problemática dos agrotóxicos levanta questões jurídicas essenciais, abrangendo a regulamentação da pesquisa, produção, comercialização e uso dessas substâncias, além das responsabilidades legais dos diversos atores envolvidos na cadeia de produção de alimentos, desde os produtores até os órgãos reguladores (Alves & Souza, 2018).

Assim, este estudo adota uma abordagem interdisciplinar, incorporando aspectos do direito ambiental, do direito do consumidor, da saúde pública, da economia ambiental e da ética, para examinar as complexidades das externalidades dos agrotóxicos na segurança alimentar. A metodologia qualitativa foi empregada a fim de aprofundar o estudo, e se utilizou de dados descritivos, exploratórios e bibliográficos, que foram constituídos pela análise de textos publicados na literatura especializada, tanto em periódicos disponibilizados na internet nas plataformas de pesquisa, quanto nos manuais oficiais e na legislação, atendendo ao objetivo proposto.

O presente artigo se organiza da seguinte maneira: no Capítulo 1, analisaremos o direito humano à segurança alimentar. No Capítulo 2, examinaremos o incentivo ao uso de agrotóxicos e a ameaça à segurança alimentar. O Capítulo 3 discutirá a legislação brasileira e as externalidades dos agrotóxicos no Brasil. No Capítulo 4, exploraremos as consequências das externalidades negativas bem como o tratamento do tema no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, o Capítulo 5 apresentará as considerações finais deste estudo com o intuito de oferecer insights para o aprimoramento das políticas e práticas jurídicas relacionadas aos agrotóxicos no Brasil.

1 O DIREITO HUMANO À SEGURANÇA ALIMENTAR

No período pós-Segunda Guerra Mundial, o mundo enfrentou uma devastação generalizada, e a fome tornou-se uma realidade tanto nos países derrotados quanto nos vitoriosos. Em 1945, a criação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) representou um dos primeiros esforços globais para erradicar a fome e a insegurança alimentar (ZIEGLER, 2013).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1948, afirmou, no artigo 25, o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para garantir saúde, bem-estar e, principalmente, alimentação para si e sua família (ONU, 1948). Apesar do reconhecimento inicial da alimentação como direito humano, estava inicialmente vinculado ao acesso diário aos alimentos.

No contexto brasileiro, o direito à alimentação adequada foi formalmente estabelecido pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) em 2006. A Constituição Federal de 1988 incorporou o direito humano à alimentação como um dos direitos sociais somente em 2010, por meio da Emenda Constitucional nº 64 (BRASIL, 1988). Rocha (2011) destaca que, na sociedade brasileira atual, a alimentação é percebida como um direito a ser protegido, promovido e respeitado.

Inicialmente, o direito à alimentação estava focado no acesso diário aos alimentos para combater a fome decorrente da escassez global. No entanto, as mudanças na agricultura, a comercialização dos alimentos e a degradação ambiental ampliaram a concepção desse direito para abranger a necessidade de alimentos de qualidade, isentos de contaminação e em conformidade com os hábitos culturais (VALENTE, 2002).

As lutas sociais, especialmente após o período da ditadura militar, foram cruciais para expandir o significado do direito à alimentação. A participação da sociedade em conferências, como a “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida,” e a criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) contribuíram para uma redefinição da segurança alimentar, incluindo acesso, qualidade, respeito cultural, saúde e cidadania (ROCHA, 2011).

Essa transformação reflete a teoria crítica dos direitos humanos, que considera a influência do contexto social na formulação desses direitos (MORAIS, 2010). O direito à alimentação passou a incorporar noções de alimentos seguros, qualidade nutricional, equilíbrio na dieta e respeito aos hábitos culturais (VALENTE, 2002).

O direito humano à alimentação adequada é um dos direitos fundamentais reconhecidos internacionalmente. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 estabelece que “toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação” (ONU, 1948).

No Brasil, esse direito foi legalmente instituído em 2006 por meio da Lei nº 11.346, conhecida como Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) que traz em seu artigo 2º, que:

Art. 2º A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população. (BRASIL, 2006)

É a LOSAN que define também o conceito de segurança alimentar: 

Art. 3º A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. (BRASIL, 2006). 

Somente em 2010 o direito fundamental à alimentação foi inserido no rol dos direitos sociais da Constituição Federal de 1988, por meio da Emenda Constitucional nº 64:

 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988). 

Nesse contexto pós-Segunda Guerra Mundial, o direito à alimentação surge como resposta à luta contra a fome, inicialmente centrada no acesso diário aos alimentos. Contudo, sua evolução revela uma abrangência muito além desse aspecto, incorporando a necessidade de alimentos de qualidade, isentos de contaminação química ou biológica, em conformidade com os costumes de cada comunidade, e que atendam a diversas exigências nutricionais, como bem elucidado por ROCHA (2011). Nesse momento, a fome e a segurança alimentar passaram a redefinir seus significados.

O debate sobre alimentação não se limita ao acesso aos alimentos, mas engloba uma gama ampla de variáveis, desde a produção até a chegada à mesa dos brasileiros. Aspectos como os tipos de alimentos produzidos, seus produtores, métodos de produção, locais de origem, condições de transporte e informações sobre impactos na saúde tornam-se cruciais para assegurar o direito da população a uma alimentação saudável e de qualidade.

Na década de 1970, a insegurança alimentar estava intrinsecamente associada à escassez de alimentos, e a garantia do direito à alimentação envolvia principalmente o aumento da produção agrícola para suprir toda a população. Isso culminou na chamada “Revolução Verde”, uma transformação baseada em evidências científicas na agricultura dos países em desenvolvimento. Encorajada por organizações como FAO, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial, a Revolução Verde adotou o uso intensivo de agrotóxicos, fertilizantes químicos e sementes geneticamente modificadas.

Conforme destaca VANDANA SHIVA (2015), a Revolução Verde representou uma “transformação de base científica na agricultura do Terceiro Mundo”, promovendo o agronegócio com monoculturas, em grande parte transgênicas, voltadas para exportação e sustentadas pelo uso de insumos químicos modernos, como agrotóxicos e fertilizantes.

Contudo, a experiência demonstrou que a Revolução Verde não solucionou a erradicação da fome; pelo contrário, acarretou consequências ambientais, de saúde, sociais e econômicas que agravaram a insegurança alimentar. Como ressalta GONÇALVES (2004, p.47), “a fome não se deve à falta de alimentos e, sim, ao próprio modo como os alimentos são produzidos”.

Nesse contexto, o conceito de segurança alimentar evoluiu para incluir não apenas a disponibilidade de alimentos, mas também a noção de alimentos seguros em aspectos nutricionais, biológicos, sanitários e tecnológicos, bem como a importância do equilíbrio da dieta e do respeito às práticas culturais alimentares (VALENTE, 2002). Santilli, seguindo essa linha, amplia a compreensão da segurança alimentar ao enfatizar a importância da agrobiodiversidade para garantir alimentos de qualidade, respeitando a diversidade cultural e sendo ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentável (Santilli, 2009).

Valente (2002) destaca que o direito à alimentação adequada abrange o acesso aos recursos e meios para produzir ou adquirir alimentos seguros e saudáveis, respeitando as práticas alimentares culturais de uma região. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, reforça a ideia de que o modo de produção está intrinsecamente ligado ao direito à alimentação, reconhecendo a responsabilidade dos Estados em melhorar métodos de produção e distribuição, promovendo o uso eficaz dos recursos naturais (ONU, 1966).

No entanto, a proliferação de textos e normas garantindo o direito à alimentação não foi suficiente para erradicar a fome e garantir qualidade alimentar. O crescimento da população submetida à fome crônica evidencia esse paradoxo (FAO, 2017). Assim, a compreensão do direito humano à alimentação não deve se restringir ao texto legal, pois a realidade altera seu significado, sendo crucial que reflita as necessidades da sociedade atual, considerando os impactos do modelo de produção capitalista (FLORES, 2010). A luta por esse direito envolve não apenas o acesso ao alimento, mas a promoção de práticas sustentáveis que respeitem a saúde, a cultura e o meio ambiente.

O conteúdo do direito à alimentação engloba, portanto, não apenas aspectos relacionados ao enfrentamento da fome ou a garantia de alimentos à população, mas também à qualidade dos alimentos aos quais a população tem acesso. A alimentação saudável torna a melhoria dos processos produtivos imprescindíveis para garantir segurança nutricional e de saúde para a população.

Portanto, a garantia da segurança alimentar está intrinsecamente ligada aos métodos de produção e ao consumo de alimentos. A insegurança alimentar ocorre sempre que a produção de alimentos desrespeita o meio ambiente, a saúde dos trabalhadores e dos consumidores, as práticas agrícolas tradicionais e os hábitos alimentares de uma população. Valente (2002) destaca a necessidade de alimentos seguros do ponto de vista nutricional, de conservação e de higiene, livres de contaminações químicas e orgânicas prejudiciais à saúde, considerando-as incompatíveis com um modelo de produção agrícola baseado em inúmeros produtos químicos tóxicos.

2 INCENTIVO AO USO DE AGROTÓXICOS E AMEAÇA À SEGURANÇA ALIMENTAR

Dentro da segurança alimentar, as formas de produção dos alimentos são determinantes para a qualidade dos alimentos. Neste contexto, a produção de monoculturas, em grande escala da agroindústria, e o constante e intenso uso de agrotóxicos para controle de pragas deve ser analisado sob o enfoque legal, ou seja, como o ordenamento brasileiro estimula ou desestimula o seu uso e os padrões estabelecidos para sua utilização.

Segundo a Lei n° 7.802/89 art. 2º § Ia, consideram-se agrotóxicos: 

“Produtos e agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou plantadas, e de outros ecossistemas e de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos, bem como as substâncias e produtos empregados como desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento” (BRASIL, 1989, art. 2º § Ia).

O uso de agrotóxicos, embora considerado como insumo agrícola, representa produtos perigosos com impactos significativos na saúde humana, variando desde sintomas simples, como náuseas, dores de cabeça e irritações na pele, até problemas crônicos, como diabetes, malformações congênitas, cânceres e, em casos extremos, morte. Além disso, os impactos ambientais são vastos, incluindo contaminação da água, plantas e solo, a redução na diversidade de organismos vivos e o aumento da resistência de pestes. Diante desses riscos, a regulamentação rigorosa do uso dessas substâncias é essencial (MORAES, 2019).

Historicamente, a agricultura foi praticada por séculos sem a utilização de substâncias químicas. No entanto, a partir da década de 50, com a revolução verde, houve um impulso na agricultura comercial, acompanhado pela busca incessante por maior produtividade, muitas vezes à custa do uso intensivo de agrotóxicos. Embora a aplicação dessas substâncias possa contribuir para o aumento da produtividade, seu uso excessivo frequentemente resulta em externalidades negativas, impactando trabalhadores rurais, consumidores e o meio ambiente (MORAES, 2019).

É comum que esses efeitos sejam desconhecidos pelos agricultores, que são incentivados pelo agronegócio a utilizarem agrotóxicos visando grandes safras e, consequentemente, maiores lucros. Portanto, destaca-se a importância da atuação governamental na regulamentação e fiscalização rigorosa do uso dessas substâncias, bem como na conscientização sobre os riscos e danos associados.

Friedrich et al. (2021) destacam que o registro de agrotóxicos, permitindo seu uso, comercialização, produção, importação e exportação no Brasil, é concedido pelos Ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, após a avaliação de três órgãos reguladores: Anvisa, Ibama e Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Esses órgãos avaliam os potenciais impactos na saúde, meio ambiente e eficácia agronômica, respectivamente.

Miguel Altieri (2018) faz uma crítica fundamentada, enfatizando a necessidade de transições para práticas agrícolas mais sustentáveis, conectando diretamente a segurança alimentar à preservação dos recursos naturais. A visão crítica de Bombardi (2021) aprofunda a compreensão dos impactos diretos dos resíduos de agrotóxicos nos alimentos, ressaltando a conexão intrínseca com os direitos humanos à alimentação saudável e segura.

Um dado relevante é o aumento no número de aprovações de produtos de base biológica para o controle de pragas e doenças na agricultura no Brasil. Em 2022, a Anvisa finalizou a análise de 157 pedidos, representando um aumento de 70% em relação a 2021. Esse crescimento é considerado um marco, indicando uma mudança de comportamento do mercado em relação a essas práticas no combate às pragas agrícolas.

No entanto, dados oficiais revelam que entre 2019 e 2022, foram liberados 2.182 agrotóxicos, o maior número de registros desde 2003. Em 2022, dos 652 agrotóxicos liberados, 43 eram inéditos, sendo 35 destinados ao uso dos agricultores. Ambientalistas expressam preocupação, uma vez que quase metade dos produtos liberados são proibidos em países europeus, e a maioria é considerada “muito perigosa ao meio ambiente” pelo Ibama.

O uso de neonicotinóides, proibido na União Europeia desde 2018, destaca-se como um exemplo desse cenário paradoxal, pois a UE, mesmo proibindo seu uso em seu território, continua produzindo esses pesticidas para exportação. O Brasil, onde o uso de agrotóxicos é permitido, figura como um dos principais compradores desses produtos, conforme registros da Agência Europeia das Substâncias Químicas.

Em contraponto, há uma disparidade entre a avaliação das agências, pois, segundo a tabela da Coordenação Geral de Agrotóxicos e Afins (CGAA), enquanto a Anvisa classifica cinco dos novos produtos como de perigo moderado para o ser humano, o Ibama classifica 22 como muito perigosos ao meio ambiente. Esse paradoxo ressalta a complexidade da regulação e os desafios enfrentados na gestão dos agrotóxicos no Brasil. O atual cenário de aprovação de novos agrotóxicos no Brasil e o uso inadequado gera preocupações acerca das consequências à saúde e ao meio ambiente

Machado (2023), pesquisador da Fiocruz-DF e médico sanitarista, destaca que o Brasil utiliza agrotóxicos de maneira exagerada e descontrolada, prejudicando a população diretamente por intoxicações e indiretamente pela perda da biodiversidade e restrição de outras formas de uso agrícola nas proximidades das monoculturas extensivas. Leonardo Melgarejo (2022) enfatiza os impactos adversos no solo, na água e na biodiversidade decorrentes do uso indiscriminado de agrotóxicos, sublinhando a urgência de transições para práticas agrícolas mais ecológicas.

Um dado alarmante é que o Brasil possui 3.162 agrotóxicos registrados para uso, utilizados em diversas culturas, incluindo pastagens. A problemática dos agrotóxicos nos alimentos do cotidiano, muitas vezes negligenciada, é destacada, ressaltando os sérios problemas ecológicos gerados pela agricultura intensiva e pelo uso indiscriminado dessas substâncias, impactando diretamente na qualidade dos alimentos e na saúde da população (ASSIS, 2009). Assim, urge inquirir sobre os efeitos do uso intensivo dos agrotóxicos, quais as principais externalidades da produção e quais as responsabilidades normativas incidem sobre o produtor.

3 LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E EXTERNALIDADES DOS AGROTÓXICOS NO BRASIL

Os agrotóxicos são regulamentados no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989. É importante ressaltar que antes da chegada da Lei dos Agrotóxicos, essas substâncias eram legalmente regulamentadas pelo Decreto Federal nº 24.414, de 12 de abril de 1934, responsável pela regulamentação da proteção fitossanitária, criando mecanismos de registro, controle e autorização de inseticidas e fungicidas, com o objetivo de modernizar a agricultura, que era a principal atividade da economia do país na época.

Portanto, o Decreto nº 5.478, de 12 de maio de 1943 e o Decreto nº. A Lei 6.946, de 21 de agosto de 2009, trouxe algumas alterações na redação do decreto anterior no que diz respeito aos aspectos de proteção à saúde. Já a Constituição Federal, embora não mencione explicitamente a palavra “agrotóxicos”, em seu artigo 225, § 1º, inciso V, afirma que o controle desses agrotóxicos deve ser de responsabilidade do poder público, que decidiu sem mencionar este termo para maior cobertura e em vez disso inseriu “substâncias que representam risco à vida, à qualidade de vida e ao meio ambiente”. 

Em relação à Lei de Agrotóxicos – Lei nº 7.802/1989, alterada pela Lei nº 9.974, de 6 de junho de 2000, e alterada pelo Decreto nº 4.074, de 4 de janeiro de 2002, dispõe sobre pesquisa, experimentação, produção, embalagem e rotulagem, transporte, armazenamento, comercialização, publicidade comercial, utilização, importação, exportação, destinação final de resíduos e embalagens, registro, classificação, controle, inspeção e controle de agrotóxicos, seus componentes e afins.

Assim, a lei decorre da competência concorrente entre a União, os estados e o Distrito Federal, de modo que, como a lei federal não regulamenta integralmente a produção e o consumo de agrotóxicos, essa tarefa cabe aos estados e cabe também fazer cumprir o acréscimo de legislação federal sempre que necessário. A legislação em questão estipula que o registro de uma substância agrotóxico deve ser um ato privativo do órgão federal competente que permita a fabricação, comercialização, exportação, manipulação ou utilização de agrotóxicos, ingredientes e afins.

O registro de tais preparações é necessário antes de qualquer uma das ações acima, portanto este procedimento deve ser realizado junto às autoridades federais e entidades do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, do Ministério do Meio Ambiente através do IBAMA e do Ministério da Saúde. Agricultura, Pecuária e Abastecimento através da Secretaria Nacional de Defesa da Agricultura; conforme estipulado no § 3º da Lei nº 7.802/89.

O registro é uma medida de segurança social e individual que visa impedir imediatamente a produção, o manuseio, o comércio, o transporte e a aplicação de produtos agrotóxicos que se mostrem vetores de risco inaceitáveis ​​para a saúde e o meio ambiente, levando em consideração a finalidade, os aspectos fitossanitários, higiênicos e ecológicos. da periculosidade para analisar os órgãos responsáveis ​​no momento do pedido de registro, renovação e extensão do uso de agrotóxicos. O registro de agrotóxicos representa assim uma forma de duas etapas, de modo que na primeira etapa é realizada uma avaliação técnico-científica e na segunda etapa o registro é permitido ou recusado. 

A Portaria 4.074/2002 estabelece prazos para o procedimento de registro de agrotóxicos, determinando que a fase de avaliação técnico-científica deve ser realizada em até 120 dias, e estabelece prazo de 30 dias para o desenvolvimento da fase de aprovação ou rejeição da substância, com o registro procedimento sendo concluído em 150 dias ou até 210 dias se forem necessárias medidas adicionais. Para tanto, estão envolvidos os Ministérios da Agricultura, da Pecuária e Abastecimento, da Saúde e do Meio Ambiente, que analisarão se as diretrizes e exigências são atendidas e, então, apoiarão a concessão ou recusa do registro da substância.

Quando é concedido o registro de agrotóxico, há determinação legal explícita de publicidade, anulando-se o procedimento de registro que não atenda a esse dispositivo legal, seja por não publicação, publicação prematura ou ausência de dados sobre a substância cujo registro foi aprovado.

Portanto, o § 6º do artigo 3º da Lei nº 7.802/89 traz uma lista exemplar de situações que determinam a proibição de registro de agrotóxicos, seus componentes e similares, com o objetivo de impedir que produtos nocivos à saúde humana e ao meio ambiente sejam sendo colocado no mercado. Como esta lista é um exemplo, é claro que outras razões relevantes também podem proibir o registo.

Nesse sentido, vale ressaltar que as substâncias que possuem propriedades cancerígenas, mutagênicas e teratogênicas, bem como aquelas que podem causar distúrbios hormonais ou danos ao aparelho reprodutor, permanecem proibidas no território do estado e seu registro é proibido. Contudo, o registro de substâncias agrotóxicos no Brasil deveria ter um processo mais rigoroso que levasse em conta, entre outros critérios, as proibições de determinadas substâncias em outros países, especialmente aquelas que agridem o meio ambiente.

Além disso, devido às propriedades muito nocivas de alguns agrotóxicos para a saúde humana, seria necessário intensificar estudos técnicos que pudessem destacar essas propriedades com mais precisão, “para podermos fazer isso, já que não há direito adquirido contra a saúde dos o meio ambiente, a revisão do registro aprovado, conforme recomendação de promulgação 4.074/02”.

É também importante notar que, embora a legislação aborde estas limitações, infere-se que a implementação de serviços que cumprem as obrigações legais de avaliação e monitorização da utilização de pesticidas nas culturas é muito inferior ao necessário. A avaliação toxicológica dos agrotóxicos foi aprimorada pela Anvisa nos últimos anos, mas é muito difícil retirar do mercado produtos que atendam a esses critérios de risco conhecidos.

Nesse sentido, Vaz (2006) ressalta a indolência do país quanto ao registro e admissão de substâncias agrotóxicas: 

Nota-se um atraso injustificável, uma verdadeira letargia das nossas autoridades públicas ambientais – fruto talvez de pressão econômica, política ou mesmo de inconsciência ambiental – no sentido de se implantar uma política séria de registro de agrotóxico (…) Será que o brasileiro, o nosso meio ambiente, a nossa biodiversidade, são imunes aos efeitos do agrotóxico considerado nocivo em outros países? Na prática, quando um produto é cancelado nos EUA e na Europa, as multinacionais da indústria química se obrigam a intensificar as campanhas de seu uso nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, a fim de não reduzirem seus faturamentos e justificarem o investimento para a produção do ‘veneno’.

Somado a isso, a legislação silencia no que concerne às interações das substâncias químicas que, usualmente combinadas entre si e utilizadas na prática agrícola, têm por consequência a potencialização de seus efeitos negativos na saúde humana e no Meio Ambiente. Outro importante ponto a ser considerado quando se discute o registro de Agrotóxicos no Brasil é que seu custo, que é abaixo que em outros países, servindo, de fato, como incentivo ao registro de mais e mais substâncias agrotóxicas.

É possível depreender da Lei de Agrotóxicos, também, a limitação que se estabelece quanto ao registro de Agrotóxicos para os quais o Brasil não detenha métodos de desativação de seus componentes, a fim de que os resíduos de tais substâncias não ocasionem o comprometimento do Meio Ambiente e da saúde humana, ressaltando-se que o texto legal aponta o impedimento de registro em relação a substâncias cujas características sejam teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, bem como capazes de provocar distúrbios hormonais, danos ao aparelho reprodutor e possam causar danos ao Meio Ambiente.

No âmbito da legislação sobre agrotóxicos, é imprescindível mencionar o recentemente aprovado Projeto de Lei nº 6.299/2002, proposto por Blairo Maggi e popularmente denominado “PL do Veneno”, que foi transformado no PL 1.459/2022 com o objetivo de atualizar a legislação pertinente, revogando a Lei nº 7.802/89.

A questão tem gerado um embate entre ruralistas e ambientalistas, pois o PL 1.459 resulta de diversas modificações ao longo de mais de duas décadas de tramitação no Congresso. O projeto original, PLS 526/1999, foi apresentado há 23 anos pelo então senador Blairo Maggi. Ao contrário da proposta inicial, que visava alterar apenas dois itens na Lei dos Agrotóxicos (Lei 7.802, de 1999), o texto atual revoga integralmente a legislação vigente e introduz 67 novos artigos.

O Projeto de Lei nº 1.459/2022 flexibiliza o uso de agrotóxicos e enfrenta resistência de ambientalistas. Sua aprovação pelo Senado, em novembro de 2023, gerou controvérsias, pois, segundo críticos, pode comprometer a saúde pública ao permitir o registro de agrotóxicos cancerígenos. A proposta também centraliza a autoridade sobre agrotóxicos no Ministério da Agricultura, contrariando a divisão tripartite existente desde 1989. A falta de participação popular e o custo reduzido do registro no Brasil são desafios apontados para a eficácia da regulamentação.

Entidades como a Fiocruz afirmam que não há nível aceitável para o consumo de substâncias que podem provocar a doença, alertando para o problema grave da possibilidade de registro de agrotóxicos atualmente proibidos, capazes de causar câncer, mutações genéticas, problemas reprodutivos e desregulação hormonal. O PL 1459/2022, de autoria do senador Blairo Maggi (PP-MT), conhecido como “rei da soja”, conta com o apoio da bancada ruralista, enquanto instituições socioambientais, da área da saúde, especialistas e pesquisadores alertam para os riscos à saúde da população.

4 CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DAS EXTERNALIDADES NEGATIVAS 

A Lei de Agrotóxicos (Lei nº 7.802 de 1989) e seus regulamentos introduziram disposições que regem “pesquisa, experimentação, produção, embalagem e rotulagem, transporte, armazenamento, marketing, publicidade comercial, uso, importação, exportação […]” de pesticidas e similares no mercado interno, de forma que desde a sua introdução no mercado consumidor, que exige registro, até o descarte das embalagens após o uso, existem dispositivos que determinam como cada etapa deve ser realizada.

Além de estipular obrigações, a lei dos agrotóxicos trouxe de forma inovadora e explícita, diante das preocupações com as externalidades negativas decorrentes do uso dessas substâncias, a possibilidade de responsabilização nas esferas administrativa, civil e criminal das entidades que causam danos à saúde e ao meio ambiente. A responsabilização é prevista no artigo 14 e seguintes da Lei nº 7.802, de 1989 (redação semelhante no artigo 84 do Decreto nº 4.074, de 2002)

Tal consideração tem especial relevância no presente trabalho, uma vez que este cuida de analisar as consequências do uso de agrotóxicos, os quais correspondem a substâncias com variados, extensos e permanentes efeitos no meio ambiente e na saúde, inclusive na segurança alimentar, de forma que inegável que a sociedade como um todo, ainda que em alguns casos indiretamente, também figura como vítima dos danos suportados pelo uso dessas substâncias. Isso sem contar outros tipos de danos, como os sociais e culturais que também decorrem da adoção desses compostos como parte integrante do pacote tecnológico.

A diferenciação com base na amplitude da repercussão do dano também se mostra superada com o reconhecimento da existência de danos civis difusos e coletivos, tal como ocorre na responsabilidade ambiental . Em matéria de agrotóxicos, haverá infração administrativa quando uma ação omissão importar na inobservância do disposto na Lei nº 7.802 de 1989, no Decreto nº 4.074 de 2002 ou na desobediência às determinações de caráter normativo dos órgãos ou das autoridades administrativas competentes (art. 82 do Decreto nº 4.074 de 2002).

De acordo com Vaz (2006, p. 187) haverá infração administrativa quando houver conduta contrária a quaisquer normas administrativas previstas nas legislações pertinentes a agrotóxicos, ressaltando, além das já mencionadas, a Lei nº 9.294 de 1996, que trata da propaganda, e a Lei nº 9.605 de 19982 (regulamentada pelo Decreto nº 6.514 de 2008), lei geral em relação a questões ambientais, a qual deverá incidir quando a conduta infratora não se enquadrar em nenhuma das leis anteriores.

Especificamente no artigo 85 do Decreto nº 4.074 de 2002, constam como infrações administrativas:

  1. – pesquisar, experimentar, produzir, prescrever, fracionar, embalar e rotular, armazenar, comercializar, transportar, fazer propaganda comercial, utilizar, manipular, importar, exportar, aplicar, prestar serviço, dar destinação a resíduos e embalagens vazias de agrotóxicos, seus componentes e afins em desacordo com o previsto na Lei no 7.802, de 1989, e legislação pertinente;
  2. – rotular os agrotóxicos, seus componentes e afins, sem prévia autorização do órgão registrante ou em desacordo com a autorização concedida; e
  3. – omitir informações ou prestá-las de forma incorreta às autoridades registrantes e fiscalizadoras.

O próprio Decreto deixa claro que a responsabilização administrativa não impede apuração das responsabilidades cíveis e penais e determina que as sanções constituirão, de forma isolada ou não, e independente de existência de medida cautelar de interdição de estabelecimento, em apreensão dos materiais contaminados e aplicação das penalidades do art. 17 da Lei nº 7.802 de 1989 (art. 86 do Decreto nº 4.074). Por sua vez, o referido art. 17 prevê penalidades de advertência, multa, condenação e inutilização de produto, suspensão de autorização, registro ou licença, cancelamento de 

A apuração de responsabilidade administrativa independe de demonstração de dolo ou culpa e aperfeiçoa-se pela simples prática de ato em desacordo com determinação normativa, ou seja, pela mera atuação prevista em lei como punível (VAZ, 2006).

ANTUNES (2013) qualifica a responsabilidade como abrangente, pois todos que cometerem, incentivarem ou se beneficiarem da infração por ela responderão e qualquer causa sem a qual a infração não teria ocorrido é considerada ação ou omissão, admitindo-se, porém, as excludentes de responsabilização por força maior ou eventos naturais e circunstâncias imprevisíveis. Sobre a imprevisibilidade, o autor defende não poder ser aplicada a imprevisibilidade do homem comum do povo, já que os agrotóxicos são altamente regulamentados, com previsão de utilização com base em conhecimentos técnicos e científicos, o que faz surgir uma presunção de que o uso foi e é feito dentro dessa lógica (ANTUNES, 2013). É dizer, para excluir a responsabilização o fato deve ser cientificamente imprevisível ou de mínima possibilidade de ocorrência.

Assim, a inserção de dado agrotóxico no país pressupõe um processo de registro, em que estudos científicos sobre os impactos do produto são levados em consideração para a concessão e incidem variadas normas para que tais substâncias sejam comercializadas e utilizadas, pressupõe-se que aqueles envolvidos no processo tenham em conta tudo isso em suas atividades

Por outro lado, a responsabilidade penal, conforme descrito por Dias (2006), manifesta-se quando há perturbação social prevista e determinada por norma penal, cuja ação repressora não tem como preocupação primária os danos individuais , mas sim o dano social. Sua configuração também requer uma análise da culpabilidade do agente ou da percepção da antissociabilidade da conduta. Nesses termos, Dias (2006) conclui que “a imputabilidade, uma vez afirmada em forma de acusação concreta, é a imputação declarada como efetiva e real, constitui a responsabilidade”.

Cleber Rogério Masson (2011) enfatiza que a responsabilização penal sempre decorre de um fato e não pode ser fundamentada em questões pessoais. A aplicação da pena ocorre após um devido processo legal, identificando o agente culpável que foi condenado por um fato típico e ilícito. O autor destaca o princípio da intranscendência, pelo qual ninguém pode ser responsabilizado por um fato cometido por terceiro, e que a responsabilidade é sempre subjetiva, exigindo a presença de dolo ou culpa para que a conduta seja penalmente relevante (MASSON, 2011).

Na mesma linha, Carlos Roberto Gonçalves (2010) argumenta que a responsabilidade penal é pessoal e intransferível, e o réu responde com a privação de sua liberdade, sendo necessário que o Estado assegure todas as garantias. Cabe ao Estado arcar com o ônus da prova. A tipicidade é um requisito genérico essencial para a responsabilização, exigindo uma perfeita adequação do fato ao tipo penal. Gonçalves também destaca que, na esfera penal, não é qualquer culpa que pode ensejar a condenação do réu, mas apenas aquela com determinado grau ou intensidade (GONÇALVES, 2010).

No que diz respeito à responsabilidade penal prevista na legislação de agrotóxicos, é importante salientar que os artigos 15 e 16 da Lei nº 7.802 de 1989 estabelecem como condutas criminosas a produção, comercialização, transporte, aplicação, prestação de serviços, destinação de resíduos e embalagens vazias de agrotóxicos, seus componentes e afins, em desacordo com as exigências estabelecidas na legislação pertinente. Isso inclui a responsabilização do empregador, do profissional responsável ou do prestador de serviço que deixar de promover as medidas necessárias de proteção à saúde e ao meio ambiente.

FILHO (2007) define a responsabilidade civil como uma obrigação jurídica posterior que surge para compensar um dano resultante do descumprimento de uma obrigação legal originária. Para ele, a violação de uma obrigação legal representa um ato ilícito que quase sempre causa dano a outras pessoas, gerando uma nova obrigação jurídica de reparar o dano. 

A responsabilidade civil surge quando uma obrigação legal é violada e ocorre um dano, sendo incumbência da parte responsável reparar o dano causado pela violação da obrigação legal. Ele acrescenta que a responsabilidade resulta do senso básico de justiça, onde se espera que o causador do dano seja obrigado a corrigi-lo (CAVALIERI FILHO, 2007).

DIAS (2006) indica que o fundamento da responsabilidade ou sua causa desencadeadora é “o interesse em restabelecer o equilíbrio econômico-jurídico alterado pelo dano”. Esses conceitos oferecem uma visão geral da responsabilidade civil, mas não são considerados inquestionáveis ou ideais. A dificuldade em conceituar e caracterizar seus elementos e tipologias está relacionada à natureza dinâmica dessa instituição jurídica (MONTEIRO, 2013) que precisa adaptar-se e transformar-se com novas épocas, danos e condições sociais, exigindo uma constante flexibilidade de pressupostos para verdadeiramente restabelecer o equilíbrio causado pelo dano.

Diante disso, concorda-se com Monteiro (2013) na ideia de que não pode haver uma teoria imutável da responsabilidade civil, pois é uma instituição dinâmica que evolui de acordo com a civilização, garantindo flexibilidade para cumprir seu propósito de restabelecer o equilíbrio causado pelos danos.

A questão da responsabilidade civil nos casos de danos causados pelo uso de agrotóxicos se enquadra nesse contexto de necessidade de flexibilização dos pressupostos da responsabilidade civil diante das novas tecnologias, como se apresenta na sociedade de risco atual.

O uso de agrotóxicos no Brasil faz parte do processo de industrialização brasileira, baseado no modelo fordista keynesiano. Inicialmente incorporado ao espaço urbano, a partir da segunda metade do século XX, estendeu-se ao campo para modernizar esse espaço e criar um complexo agroindustrial. Esse processo envolveu a inserção de máquinas, insumos agrícolas e agrotóxicos (LINHARES; SILVA, 1999). Esses elementos não apenas transformaram as relações econômicas, sociais e ambientais, mas também contribuíram para uma mudança na percepção dos danos resultantes ou relacionados a eles.

A responsabilidade civil associada aos agrotóxicos deve ser compreendida nessa perspectiva. Argumenta-se que a previsão de responsabilidade civil na Lei de Agrotóxicos não é exaustiva, limitando-se a estabelecer algumas hipóteses de responsabilidade. A doutrina destaca que condutas não previstas no artigo 14 podem ensejar responsabilidade civil, ressaltando a falta de um rol preciso e esclarecendo que o dispositivo não se sobrepõe ao disposto na Constituição Federal e na Lei Ambiental Nacional.

A responsabilidade objetiva também é aceita como requisito para a responsabilidade civil relacionada ao uso de agrotóxicos por Vaz (2006), considerando os potenciais danos à saúde e ao meio ambiente decorrentes das atividades relacionadas a esses produtos. Ele destaca a importância dessa teoria para antecipar a nocividade de qualquer atividade relacionada a esses produtos em benefício da sociedade e das vítimas (VAZ, 2006).

Por outro lado, se levarmos em conta que a vítima de intoxicação por agrotóxicos pode pleitear indenização pelos prejuízos sofridos, independentemente da existência de dano coletivo ao meio ambiente e da prévia ajuizamento de ação civil pública, a existência de fundos como mecanismo de reparação nestes casos estará fora de questão. A indenização em ações individuais deve proteger os direitos lesados da vítima, ou seja, a indenização deve considerar a reparação do dano pessoal sofrido individualmente, com consequências tanto patrimoniais quanto não patrimoniais.

Outro ponto levantado por ASSIS JÚNIOR (2010) diz respeito à aplicação do entendimento pacificado do STF sobre o caráter não estatutário dos danos ambientais nos casos de indenização por danos à saúde decorrentes de intoxicação de pessoas. Comentando sobre danos ambientais e prescrição, VAZ (2006) diz que em caso de dano à propriedade privada, a prescrição aplica-se nos termos do direito civil. com a aplicação do art. 206, § 3º inciso V, que fixa o prazo de prescrição de três anos para a indenização civil, não permitindo, portanto, a aplicação da não prescrição nestes casos.

O fato desencadeante da responsabilidade é que a exposição a substâncias tóxicas tem uma continuidade inegável, pois pode piorar até a morte da pessoa. Portanto, para obter a reparação integral, não basta simplesmente contar o prazo prescricional do Código Civil com base em conhecimento claro, pois é impossível saber exatamente quando terminou a extensão do dano, para que o dano não tem prescrição, é prejudicial à saúde, porque é o meio mais adequado de preservação e proteção da vida humana (ASSIS JÚNIOR, 2010). Finalmente, a aplicação prática da responsabilidade civil em casos de danos individuais, conforme descrita nos tribunais brasileiros, ainda está relativamente incipiente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em decorrência da pesquisa realizada, é evidente um crescimento descontrolado no uso indiscriminado de agrotóxicos, resultando em impactos negativos no meio ambiente, no consumo humano e na saúde. A resposta das autoridades brasileiras a esse problema parece desproporcional diante da magnitude do desafio.

O sistema jurídico brasileiro revela uma abordagem complacente na regulamentação de agrotóxicos e benevolente quanto aos limites de resíduos químicos permitidos em alimentos e água consumida pela população. Em um contexto onde os recursos naturais são escassos e o uso indiscriminado de agrotóxicos exerce pressão sobre o solo, a água, o ar, as florestas e os animais, influenciando diretamente sobre a alimentação, deixando a desejar o conceito de segurança alimentar, torna-se vital repensar essa abordagem. Sem a preservação desses recursos, torna-se inviável o desenvolvimento e a sobrevivência da sociedade como um todo.

A falta de consciência da sociedade em relação a essas questões contribui para que as preocupações econômicas superem as ambientais. O avanço do agronegócio no Brasil, marcado pela utilização intensiva de agrotóxicos, reflete uma visão de desenvolvimento econômico que desconsidera as consequências negativas dessa prática para o meio ambiente e a saúde da população.

A modernização da agricultura brasileira nas últimas décadas, impulsionada pelo avanço do agronegócio, foi fortemente influenciada pela política agrícola adotada durante o regime militar e mantida após a redemocratização. Essa política incentivou o uso de agrotóxicos, contribuindo para a consolidação de um modelo agrícola químico-dependente.

Diante desse cenário, é crucial repensar a política agrícola brasileira, buscando internalizar os danos causados pelo uso de agrotóxicos e promovendo um modelo agrário sustentável. Medidas como a revisão da isenção tributária para agrotóxicos, a adequação da base de cálculo do ICMS, a eliminação da isenção de IPI e a taxação das operações mercadológicas podem desencorajar a produção e o uso indiscriminado desses produtos.

Além disso, é necessário reformular a política de crédito e seguro rural, favorecendo práticas agrícolas sustentáveis em detrimento do atual favorecimento ao uso de agrotóxicos. A fiscalização efetiva, a monitoração contínua da água, do solo e dos alimentos, bem como a atuação rigorosa dos órgãos de Justiça e do Poder Judiciário na identificação e responsabilização por danos ambientais são essenciais.

Diante do contexto, podemos concluir que o Estado brasileiro deve abandonar seu papel de promotor do uso indiscriminado de agrotóxicos, implementando políticas públicas efetivas que permitam o desenvolvimento de uma agricultura sustentável, respeitando o meio ambiente, a saúde e o direito fundamental à alimentação adequada. O arcabouço legal atual revela-se insuficiente, sendo necessário um realinhamento da legislação e a imposição de punições mais severas para desestimular práticas prejudiciais à saúde pública e ao meio ambiente. O desafio reside na conscientização da sociedade, na revisão das políticas agrícolas e na efetiva implementação de medidas que promovam uma produção alimentar mais saudável e sustentável.

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1Acadêmica do Curso de Direito Do Centro De Educação Tecnológica De Teresina (CET)
2Acadêmico do Curso de Direito Do Centro De Educação Tecnológica De Teresina (CET)
3Mestre em Direito e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Ceará. Professora do Curso de Direito Do Centro De Educação Tecnológica De Teresina (CET)