EXCESSO DO USO DA LEGÍTIMA DEFESA SOBRE A ÓTICA DO POLICIAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7838120


Débora Oliveira da Silva1


RESUMO

O excesso de legítima defesa por policiais ocorre quando, durante o exercício da atividade policial, o agente utiliza meios que excedem o necessário para repelir agressão ou resistência, causando lesões ou mortes. Esse tipo de ocorrência é considerado ilegal e pode caracterizar abuso de autoridade e uso indevido da força. Nessa pesquisa, buscou-se, por meio de uma revisão de bibliografia narrativa, examinar as normas que regulam o uso da força e da legítima defesa no Brasil, a labor da profissão de policial, desde uma perspectiva de direitos humanos até do direito interno.

Palavras-chave: Legítima Defesa. Excesso. Legitimidade.

ABSTRACT

Excessive self-defense by police officers occurs when, during the exercise of police activity, the agent uses means that exceed what is necessary to repel aggression or resistance, causing injuries or deaths. This type of occurrence is considered illegal and may characterize abuse of authority and misuse of force. In this research, we sought, through a review of the narrative bibliography, to examine the norms that regulate the use of force and legitimate defense in Brazil, in the work of the police profession, from a perspective of human rights to domestic law.

Keywords: Legitimate Defense. Excess. Legitimacy.

1.  INTRODUÇÃO

De acordo com dados do Atlas da Violência 2022, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve um aumento de 10,4% no número de mortes violentas no Brasil em 2020, em comparação com o ano anterior. Foram registrados um total de 50.033 óbitos violentos intencionais no país em 2020, o que equivale a uma taxa de 23,9 mortes por 100 mil habitantes (IPEA, 2022).

Nessa perspectiva, infelizmente, o número de mortes causadas por policiais no Brasil é alarmante. De acordo com dados do Monitor da Violência, projeto do G1 em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021 ocorreram 3.025 mortes causadas por policiais em todo o país, o que equivale a uma média de oito mortes por dia (G1, 2022).Além disso, o relatório também mostra que a letalidade policial cresceu 23% em relação ao ano anterior, sendo o maior índice desde o início da série histórica em 2013. A maioria das vítimas são jovens, negros e moradores de regiões periféricas (G1, 2022). Em tempo, é importante ressaltar que muitas dessas mortes são resultado de ações policiais violentas e desproporcionais, o que revela um grave problema de falta de treinamento, protocolos claros e fiscalização adequada da atuação policial no país.

Esses dados reforçam a necessidade de políticas públicas que garantam a segurança dos cidadãos e respeitem os direitos humanos, além de reforma urgente nas forças policiais brasileiras, para que elas atuem de forma mais eficiente e justa(FERREIRA, 2018). O Atlas da Violência também chama a atenção para a disparidade racial no que diz respeito à violência. Em 2019, a taxa de homicídios de pessoas negras no Brasil foi 2,7 vezes maior do que a de pessoas brancas. Ainda segundo o relatório, a taxa de homicídios de mulheres negras no país foi de 7,7 por 100 mil habitantes em 2019, enquanto a de mulheres brancas foi de 3,1 por 100 mil habitantes (IPEA, 2022). Isto também implica que as ações e o poder de política podem estar sobre uma forma de controle não devidamente adequada.

Nesse cenário, desde o retorno à democracia no Brasil em 1985, as ações das forças de segurança passaram a ser cada vez mais monitoradas pelos atores da sociedade civil. Assim sendo, não só a atuação das Forças Armadas durante a última ditadura militar (1964-1985) foi questionada, como começaram a surgir denúncias sobre chamados casos de violência institucional, cuja existência nada mais fazia do que refletir os resquícios de uma lógica de atuação dos integrantes das forças tantas vezes realizada sob a proteção da impunidade que prevalecia durante o terrorismo de Estado (FERREIRA, 2018).

Com o passar dos anos, foram sucessivas as condenações daqueles policiais responsáveis pelo uso da força fora dos padrões penais gerais e internacionalmente regulamentados. No entanto, somente nos últimos anos a abordagem dos direitos humanos ganhou espaço no quadro jurídico desse tipo de caso. Desta forma, foram dados maior destaque aos direitos dos familiares das vítimas, que com cada vez mais força conseguem tornar visível e implementar a obrigação do Estado de investigar e punir os responsáveis pelas forças de segurança (FERREIRA, 2018).

No presente trabalho, são examinadas as normas que regulam o uso da força desde uma perspectiva de direitos humanos, via revisão bibliográfica, analisando o impacto que tem na sanção penal dos responsáveis. Para eles, será levada em conta a normativa penal e aquela desenvolvida no direito internacional de direitos humanos. A exposição do tema será dividida em 4 seções. Em primeiro lugar, são analisadas as normas penais relativas à legítima defesa. Em segundo lugar, esclarece-se porque, a partir do ponto de vista da literatura, o exercício da legítima defesa por parte dos agentes policiais deve ser mais estrito, avaliando as normas do direito internacional dos direitos humanos que devem ser aplicadas à ação das forças policiais. Em terceiro lugar, analisa-se doutrina e jurisprudência associadas à legítima defesa exercida pelos policiais no Brasil. Por fim, tem-se as considerações finais, onde uma conclusão em face do objetivo desta pesquisa é apresentada.

2. CARACTERIZAÇÃO HOLÍSTICA DA LEGÍTIMA DEFESA

2.1 A LEGÍTIMA DEFESA: NOÇÕES GERAIS

A legítima defesa é uma das causas de justificação que são analisadas dentro da ilegalidade na estrutura da teoria do crime. Nesse sentido, uma ação típica pode ser justificada desde que realizada em legítima defesa. Vários autores (GRECO, 2017; NUCCI, 2020;) deram sua definição do que se deve entender por legítima defesa.  Mirabete (2019, p. 9) sustenta que a legítima defesa pode ser definida como “a reação necessária para evitar a lesão ilegítima e não provocada de um direito jurídico, atual ou iminentemente ameaçado pela ação de um ser humano.Pode ser exercida “pelo agredido ou por terceiro contra o agressor, sem ultrapassar a necessidade de defesa e dentro da proporção racional dos meios utilizados para impedi-la ou rechaça” (MIRABETE, 2019, p. 11). 

No caso, este autor sustenta que o fundamento da legítima defesa é duplo uma vez que confirma o direito ao mesmo tempo em que facilita a autodefesa do indivíduo contra um ataque ilegal (MIRABETE, 2019). Mas, como aponta Bitencourt (2019), deve ficar claro que a legítima defesa não é um instituto que serve para fazer justiça pelas próprias mãos. Por isso, para que a legítima defesa seja configurada como tal, são necessários certos requisitos rígidos, os quais são avaliados em frente.

2.2 REQUISITOS DE LEGÍTIMA DEFESA

O primeiro requisito é a agressão ilegal. Quanto a este, Capez (2020) que ela (a legítima defesa) se configura quando há uma conduta humana, agressiva e ilícita. Isso implica que não pode haver defesa legítima contra o que não é conduta humana, incluindo crianças e criminosos, embora nesses casos a interpretação seja, de fato, necessariamente restrita devido à existência da racionalidade como um limite amplo da necessidade. (DAMÁSIO, 2018). 

Da mesma forma, Damásio (2018) entende que a conduta deve ser agressiva, ou seja, deve haver vontade lesiva, excluindo-se os casos de conduta imprudente. Em esclarecimento importante para o que se refere à ação policial, sustenta que caso o sujeito esteja ciente do perigo que causa com sua ação imprudente e ele foi advertido para parar com sua atitude e, mesmo assim, continua com a sua conduta, torna-se agressivo (DAMASIO, 2018).Isso é especialmente relevante dado que, como será visto na seção posterior, o funcionário (policial) forçado a parar antes de usar a sua arma de fogo. Levando em consideração a opinião deste doutrinário, somente nos casos em que o sujeito continuasse com sua agressão após ser advertido para desistir de sua atitude, o policial estaria agindo nos limites da legítima defesa (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2016; FERREIRA, 2010).

Com a conduta ilícita, Zaffaroni; Pierangeli (2016) se refere àquela que atinge bens jurídicos sem lei. Desta forma, a legítima defesa não poderia ser exercida contra uma pessoa que aja justificadamente, por exemplo, em legítima defesa ou em estado de necessidade justificada.Além disso, “quando houver risco de ferir/matar terceiros, o direito de defesa é limitado, especialmente se houver a possibilidade de fugir ou causar danos menores” (FERREIRA, 2010, p. 24).A legítima defesa pode ser exercida enquanto existir a situação de legítima defesa e pode ir desde o surgimento da ameaça imediata ao bem jurídico até “o fim da atividade lesiva ou da possibilidade de reverter ou neutralizar seus efeitos” (FERREIRA, 2010, p. 29).

Sobre o conceito de iminência da agressão, exigido por lei, Barbosa(2019) dá um exemplo que deve ser levado em consideração na avaliação da ação policial diante de um confronto armado. Este autor sustenta que a agressão é iminente quando pode ser percebida como uma ameaça manifesta, dependendo sua execução apenas da vontade do agressor: “quando um sujeito saca uma arma, não importa se leva dois segundos ou uma hora para disparar” (BARBOSA, 2019, p. 74). Outro doutrinário, Greco (2019, p. 550) sustenta que a agressão é “a ameaça de lesão ou prejuízo de direitos legalmente protegidos. O ataque ou ameaça deve partir de uma ação humana, não necessariamente violenta, mas agressiva”.

Outro pré-requisito é a necessidade racional dos meios utilizados para prevenir ou repelir (BITENCOURT, 2018). O código penal brasileiro exige que o sujeito agindo em legítima defesa concorde com uma necessidade racional dos meios utilizados (BITENCOURT, 2018). Parte da doutrina brasileira (MIRABETE, 2017; NUCCI, 2019) tem entendido esse requisito como proporcionalidade. Por exemplo, Nucci estabelece: “deve-se considerar explicitamente que o meio utilizado pela vítima foi racional desde que proporcional ao potencial defensivo apresentado pelo agressor” (NUCCI, 2019, p. 24). Mas, como explica Bonfim (2018), na realidade a doutrina brasileira recorreu aos casos de desproporção grosseira entre os meios utilizados e a conduta repelida. Por esta razão, ele conclui, “a defesa legítima não conhece limites de proporcionalidade, além da desproporção grosseira” (BONFIM, 2018, p. 34).A proporção exige mais do que uma mera falta de proporcionalidade. Só existe quando a relação entre o interesse lesado pela defesa e aquele por ela protegido puder ser valorada como ‘intolerável’ […] Não mais se justificará um homicídio cometido recentemente para proteger valores materiais insignificantes” (GRECO, 2019).

A jurisprudência refere-se a esse requisito. Implica, antes de tudo, que a ação seja movida contra o agressor. Da mesma forma, argumenta-se que sem o requisito de ser necessário, não se pode falar em defesa, nem completa nem excessivamente. Deve-se levar em conta todas as circunstâncias que cercam o ato (CAPEZ, 2019). No entanto, a proporcionalidade não é exigida apenas em relação à agressão e defesa, mas também é medida na relação entre os meios utilizados para defender se e o bem defendido (CAPEZ, 2019).

Quando o requisito da necessidade racional do meio utilizado não for atendido, configura-se o que se denomina excesso de legítima defesa.Havendo excesso de legítima defesa, o artigo 25 do Código Penal pode ser utilizado para imputar o crime ao título de negligência, afinal, taxa explicitamente a seguinte premissa:“entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem” (BRASIL, 1940). Tem-se o uso específico das palavras “moderada” e “meios necessários”. Assim sendo, num processo para que se avalie ou conclua que houve excesso na legítima defesa, pode-se entender a desproporção com um dos objetos de caracterização (DAMÁSIO, 2016; DELMANTO; DELMANTO JÚNIOR; DELMANTO, 2019).

O terceiro requisito é caracterizado pela falta de provocação suficiente por parte do arguido (NUCCI, 2019; BONFIM, 2018). Segundo a doutrina, este requisito implica que, para atuar no limite da legítima defesa, o próprio defensor não deve ter provocado a agressão (NUCCI, 2019; BONFIM, 2018). Em relação ao exposto, vale destacar um caso em que o Tribunal de Alagoas considerou: Se o conjunto probatório não demonstra inequivocamente que o agente, usando moderadamente dos meios necessários, agiu para repelir injusta agressão, atual ou iminente, não há que se falar em configuração da legítima defesa, nos termos do art. 25 do CP.(TJMG APR: 10153180000157001,    Rel. Doorgal     Borges       de   Andrada,   Julgado:

05/05/2021,Data de Publicação: 12/05/2021). Assim, a provação ou intencionalidade do em provocar é um dos requisitos de caracterização que são assumidas à luz do ordenamento jurídico brasileiro (DELMANTO; DELMANTO JÚNIOR; DELMANTO, 2019).

3. O POLICIAL E O ART.25 DO CÓDIGO PENAL: CONTROVÉRSIAS A RESPEITO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Como já se descreveu, a legítima defesa per se não exprime uma exigência de proporcionalidade, mas sim o uso de um meio necessário ou racional. Ou seja, entre dois meios, deve-se escolher o menos prejudicial, mas não precisa ser proporcional ao ataque que está sendo repelido (MIRABETE, 2017). É verdade que, quando é assim manifestamente desproporcionado, esta justificação não pode ser invocada. No entanto, a ação no âmbito da legítima defesa não conhece grau de proporcionalidade entre o ataque sofrido e a reação a ele, nem quanto aos meios utilizados. Portanto, se o policial pode atuar no âmbito da legítima defesa, ele deve se guiar apenas pelo uso de um meio racional ou necessário (JESUS, 2020).

No entanto, deve-se esclarecer que tanto a legislação internacional (no que se refere à Organização das Nações Unidas) quanto a Carta Magna exige a utilização do uso proporcional da força por parte de agentes de segurança.Consequentemente, embora a proporcionalidade não seja necessária na atuação na legítima defesa, o uso da força por agentes de segurança deve encontrar seu limite na norma internacional de direito público interno e internacional (COSTA JÚNIOR, 2015). E está associada, como explica Jesus (2020), ao fato de o policial não agir espontaneamente ao recorrer à força, mas sim realizar uma tarefa previamente ensaiada e também como policial deve submeter suas ações ao Estado regulamentos. É aqui que insurge diretamente o papel que submete o policial diretamente no que tange à proporcionalidade daquilo que foi aprendido e, principalmente, das ações que são realizadas in loco, momento em que podem ser descaracterizadas premissas do art. 25 (BATISTA; CHOUKR, 2016; NASCIMENTO, 2016).

Nascimento (2016) também destacam o fato de um policial responder à ação regrada e a instruções precisas, o que se contrapõe ao direito de legítima defesa, cujo fundamento está associado, em sua maioria, a reação não convencional, premeditada ou ordenada. Desta forma, portanto, a legítima defesa do cidadão comum não exige proporcionalidade, pois, diante de ataque súbito, o cidadão não tem a possibilidade de sopesar a proporcionalidade dos meios em questão (NASCIMENTO, 2016). Nesse sentido, acredita-se ser fundamental recorrer às normas internacionais de direitos humanos para limitar e coibir o uso da força por parte dos policiais, tal como se faz nas próximas análises.

3.1 NORMAS DERIVADAS DOS PRINCÍPIOS SOBRE USO RACIONAL DA FORÇA E O USO DE ARMAS DE FOGO E O DIREITO INTERNACIONAL HUMANO

O policial constantemente usa a força para proteger a si mesmo e a terceiros. Em muitos desses casos, verifica-se que a força policial repele suposto ataque físico e/ou armado atual, acabando com a vida do agressor (SILVA, 2016).Não se deve esquecer que se trata de funcionários especialmente treinados para o uso de armas de fogo, razão pela qual a análise para verificar a existência de um caso de legítima defesa deve ser realizada com rigor. Nesse sentido, os tribunais regionais de proteção dos direitos humanos entendem que “uma vez que se saiba que seus agentes de segurança utilizaram armas de fogo com consequências letais, o Estado deve iniciar de ofício e sem demora uma investigação séria, imparcial e de fato efetiva” (BATISTA; CHOUKR, 2016; NASCIMENTO, 2016).

O Comitê de Direitos Humanos decidiu no mesmo sentido: a privação da vida por parte das autoridades do Estado é um assunto da maior gravidade. Com isto, a lei deve controlar e limitar rigorosamente as circunstâncias em que tais autoridades podem privar uma pessoa da vida (CDH, 1982). É nesse quadro que se entende ser necessário interpretar o instituto da legítima defesa do policial. Nesse sentido, não se deve perder de vista o que afirmou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que a luta dos Estados contra o crime deve ser realizada dentro dos limites e de acordo com os procedimentos que permitam preservar a segurança pública e o pleno respeito pelos direitos humanos daqueles que estão sujeitos à sua jurisdição (CDH, 1982).

Da mesma forma, o Brasil incorporou à sua legislação interna uma série de códigos ou normativos, de diferentes naturezas, aplicados para os seus diferentes tipos de poder de polícia; códigos estes solidificados à luz dos entendimentos do artigo 37º da Constituição Federal Brasileira de 1988 [chamada Carta Magna] (DOTTI, 2016; BATISTA; CHOUKR, 2016; NASCIMENTO, 2016)). 

Assim, é de conhecimento notório que os policiais devem agir de acordo com o código de conduta e os princípios básicos sobre o uso da força e armas de fogo devem exigir proporcionalidade no uso da força (SILVA, 2016). Nesse caso específico, cabe salientar que o inciso III do artigo 23 do Código Penal trata da excludente de ilicitude de fato praticado em estrito cumprimento do dever legal, in verbis: Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato:III – em estrito cumprimento de dever legal (BRASIL, 1940). Contudo, como Greco (2019) afirma em suas análises:

Exige-se presença de seus elementos objetivos e subjetivos. Primeiro, é preciso que haja um dever legal imposto ao agente que “compreende os deveres de intervenção do funcionário na esfera privada para assegurar o cumprimento da lei ou de ordens de superiores da administração pública, que podem determinar a realização justificada de tipos legais, como a coação, a privação da liberdade, violação de domicílio, lesão corporal, etc. Há dois requisitos: o estrito cumprimento – somente atos necessários justificam o comportamento, em princípio, ilícito; e o dever legal – a norma da qual emana o dever caracterizar-se-á pela obrigatoriedade e juridicidade (GRECO, 2017, p. 38).

Importante salientar, contudo, que o devido direito ao cumprimento legal não é premissa de excludente de ilicitude quando se decompõe o art. 25º do Código Penal, em razão da excessividade que aqui é discutida. Dentro deste ponto de vista, tem-se na próxima seção uma análise acerca da legítima defesa das forças de segurança: análise da doutrina e jurisprudência dominantes.

4. LEGÍTIMA DEFESA DAS FORÇAS DE SEGURANÇA: ANÁLISE DA DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA DOMINANTES

Enquanto na Europa/América do Norte não é tão claro que a proporcionalidade seja um requisito no uso da força por um policial, a doutrina e jurisprudência brasileira é mais receptiva a diferenciar os requisitos de legítima defesa por um civil e por um policial. Por exemplo, Ferreira (2018) faz distinção entre uma legítima defesa exercida por um cidadão ou por um policial. Assim, observa que a primeira corresponde ao exercício de um direito e a segunda ao dever do policial de defender terceiros. Nesse sentido, a conduta decorrente desse dever deve ser interpretada de forma restritiva, tendo em vista que é um funcionário quem está autorizado por lei a portar armas de fogo (FERREIRA, 2018).

É assim que, concordando com o autor,Araújo; Júnior (2019) indica que, pelo seu profissionalismo, é necessária avaliação ex ante mais precisa da necessidade de defesa, uma vez que se pressupõe que ele possui conhecimento, treinamento e meios técnicos para fazer uma aplicação mais fina e precisa da violência. “Não se trata de uma esfera menor de intervenção, mas de uma economia mais estrita da violência” (ARAÚJO; JÚNIOR, 2019, p. 2).E a legítima defesa permite, pois tem regras próprias e preconiza o uso proporcional da força (FERREIRA, 2018).

Quanto à discussão sobre legítima defesa, Lopes Júnior (2021) afirmam que existe desproporção dos meios utilizados para configurar legítima defesa, na conduta do acusado policial que atirou contra um delinquente causando a sua morte, depois de ter sido reduzido no pátio de uma casa, pois tendo utilizado uma ação menos letal, como o disparo para o ar e tendo em conta a qualidade do inexperiente e neófito atirador da vítima, o resultado mortal, talvez não tivesse ocorrido.Esta posição pode ser interpretada como um sinal de desconhecimento dos regulamentos que regem a ação policial. Com efeito, o meio menos lesivo de que falam os tribunais brasileiros – o disparo de tiros para o ar – constitui o que tecnicamente se designa por tiros de intimidação, proibidos por lei e também pela constituição brasileira (FERREIRA, 2018; FRANCO, 2019; SILVA, 2017).

Deve-se levar em conta que a qualidade de policial é levada em consideração no momento da graduação da pena. Assim se entendeu recentemente que, ao se determinar a sentença contra um policial que matou uma pessoa, deve-se levar em conta que ele não exerceu a devida diligência para determinar se estava em uma situação de perigo iminente que o autorizasse a usar sua arma de fogo regulamentar, bem como ter passado a atirar sem mira (LOPES JÚNIOR, 2021). Outros elementos que são considerados como agravantes são o fato de estar à noite no momento do fato, o uso pelo policial de uma arma particular e não a fornecida pela distribuição no evento, sua condição de atirador experiente e a superioridade numérica dos oficiais no local do evento (ARAÚJO JÚNIOR, 2019). A decisão do Tribunal Estadual de Minas Gerais ratifica este entendimento:

EMENTA: RECURSO DE APELAÇÃO – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – DISPARO DE ARMA DE FOGO POR POLICIAL MILITAR – LESÃO COMPROVADA – EXERCÍCIO DA FUNÇÃO – AUSÊNCIA DE EXCESSO NA CONDUTA – LEGÍTIMA DEFESA  –   COMPROVAÇÃO  –   EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE – SENTENÇA CONFIRMADA – RECURSO DESPROVIDO. – Os requisitos essenciais para que se tenha responsabilidade civil, com consequente obrigação de indenizar, são: o ato ilícito do agente, o dano e o nexo de causalidade entre ambos, observado os art. 186 e 927 do Código Civil de 2002 – Apesar de demonstrado o dano sofrido em decorrência de disparo de arma de fogo em desfavor do autor, se ausente a demonstração do excesso na conduta do agente estatal que realizou o disparo e comprovado que o ele agiu em legítima defesa e no exercício regular do direito, não há que se falar em ato ilícito do policial militar, afastada responsabilidade civil, nos moldes do artigo 188, I do Código Civil(TJMG – AC: 10710140015870001 MG, Relator: Carlos Roberto de Faria, Data de Julgamento: 07/02/2019, Data de Publicação: 18/02/2019)

A decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais assume que “demonstração do excesso na conduta do agente estatal que realizou o disparo e comprovado que o ele agiu em legítima defesa e no exercício regular do direito” é conduta que ratifica a inexistência de responsabilidade. E o mesmo também é válido, quando se considera o apontamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:

LESÃO CORPORAL. LEGÍTIMA DEFESA. NÃO CONFIGURAÇÃO. EXCESSO DOLOSO PUNÍVEL. RECURSO DESPROVIDO. 1) Consoante o art. 23 do Código Penal, age em legítima defesa aquele que repele injusta agressão atual ou iminente a direito seu ou de outrem, utilizando-se dos meios necessários e de forma moderada. 2) Caso o agente cometa excessos, tanto na forma dolosa quanto culposa, responderá pelo crime, mesmo atuando inicialmente por qualquer das causas de justificação dispostas no art. 23 do CP, dentre as quais se incluem a legítima defesa. 3) A conduta do réu de desferir uma garrafa de vodka na cabeça do agressor, a ponto de causar-lhe traumatismo craniano, não se mostrou a medida mais razoável e proporcional diante das circunstâncias do caso, jamais podendo atrair a incidência da causa excludente de ilicitude prevista no art. 23, II, do CP. Configurado, portanto, o excesso punível doloso, nos termos do parágrafo único do art. 23 do CP 4) Recurso conhecido e desprovido.(TJ-DF 20110111583653 DF 004100292.2011.8.07.0001, Relator: Ana Maria Mirante, Data de Julgamento: 26/07/2018, 1ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE: 31/07/2018).

Note-se ainda que exclusão de legítima defesa por implicar na caracterização de excesso punível doloso, a depender do caso avaliado. O Tribunal Estadual do Paraná apresenta a mesma visão quanto à excessividade da conduta, ao expor que a qualidade de policial é característica central na decisão de exclusão de ilicitude:

DISPARO DE ARMA DE FOGO (ART. 15 C/C ART. 20 DA LEI Nº10.826/03).AUTORIA E MATERIALIDADE DEMONSTRADAS E INCONTESTES. PLEITO PELO RECONHECIMENTO EXCLUDENTE DA ILICITUDE DO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL E DA LEGÍTIMA DEFESA.IMPOSSIBILIDADE.  CUMPRIMENTO DO    DEVER LEGAL. LEGÍTIMA    DEFESA.  AUSÊNCIA    DE    AGRESSÃO    ATUAL    E   INJUSTA. AFASTAMENTO.MANUTENÇÃO DIRECTIVA DA CONDENAÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. 1. O ordenamento jurídico admite que o agente pratique conduta típica, em cumprimento de um dever legal, desde que seja absolutamente necessária e bem proporcional. No caso, efetuar disparos em via pública, colocando em risco a incolumidade pública, para conter indivíduo, é desproporcional e não está acobertada pela excludente da ilicitude. 2. Para que seja reconhecida a legítima defesa, é necessário que haja agressão atual ou iminente e que o agente use, de uma maneira moderada, os meios necessários para repeli-la. (TJPR – 2ª C.Criminal – AC – 1268979-5 – Ponta Grossa – Rel.: José Mauricio Pinto de Almeida – Unânime – – J. 07.05.2015).

Exposto isto, conforme a doutrina, de acordo com as ideias de Jesus (2020), em situações de excesso, o agente pode usar meios desnecessários de forma dolosa, sem justificação, ou utilizar meios que ultrapassam a necessidade para repelir uma agressão de forma culposa. Já Ferreira (2018) sugere que o excesso doloso ocorre quando o agente continua agindo com a intenção de ferir o agressor, mesmo após a interrupção da agressão. Neste caso, a conduta do agente passa da forma lícita para a forma ilícita.Em relação ao excesso culposo, o agente responde pelo que causou após ter cessado a agressão. Este tipo de excesso ocorre quando o indivíduo não percebe que a agressão já foi repelida e continua a agir por impulso, sem avaliar a real situação. De acordo com Greco (2019), este tipo de excesso é motivado por erro ou uma situação de fato suposta. Vale ressaltar que em ambos os casos, doloso ou culposo, o excesso é punível de acordo com o parágrafo único do art. 25 do Código Penal (BRASIL, 1940).

Outra questão importante relacionada ao excesso é que, “para que não seja reconhecido em um caso específico, é necessário que o bem jurídico preservado pelo agente seja de valor igual ou superior ao que está sendo lesionado” (GRECO, 2019, p. 231). Caso contrário, pode haver excesso, como no exemplo em que uma pessoa mata outra simplesmente porque foi agredida verbalmente, o que é desproporcional; e o mesmo é válido para o profissional policial (GRECO, 2019). Percebe-se, tão logo, que tanto a jurisprudência quanto a doutrina brasileira reconhecem o uso excessivo da legítima defesa, embora a aplicação prática se perceba ainda relutante quando se fala na característica jurídica de policiais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O policial é funcionário do Estado e, dada sua função específica e sua formação prévia, não pode ser considerado como qualquer cidadão ao analisar suas ações em legítima defesa. Nesse sentido, deve cumprir todas as exigências dos compromissos do Estado brasileiro em matéria de direitos humanos, seja na base constitucional ou infraconstitucional, seja nos acordos realizados.

Sem dúvida, isso ajudará a apurar com maior precisão as responsabilidades das forças de segurança no uso de arma de fogo (que trazem números significativos em mortes por policial ao ano, como visto), o que resultará em uma atuação mais diligente de sua parte, e evitará que se estabeleça a impunidade de militares que não utilizam, de fato, a legítima defesa, de acordo com as normas vigentes e com toda a premissa ética que é buscada nesta profissão.

Nesse sentido, endossar o padrão do uso proporcional da força pelo policial implica dupla tarefa. Por um lado, os magistrados devem compatibilizar as normas do direito penal com as do direito internacional de direitos humanos ao analisar a atuação das forças de segurança. Por outro, é necessário que, durante a fase de formação e formação de agentes de força ou policiais, se dê especial ênfase ao requisito da proporcionalidade. Algo que não significa nenhuma onerosidade ao Estado se, de fato, esta busca funcionários comprometidos com a utilização não abusiva da força e enquadrado nas exigências dos direitos humanos.

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