EUTHANASIA: THE FUNDAMENTAL RIGHT TO LIFE AND A DIGNIFIED DEATH
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202505282110
Lorena Tôrres de Arruda1
RESUMO: A pesquisa em questão realiza uma análise aprofundada sobre a viabilidade da eutanásia no contexto brasileiro. Aborda a eutanásia como um instituto que visa assegurar uma morte digna, respaldada pelos princípios fundamentais da dignidade humana, a autonomia como um aspecto central da dignidade, o direito à vida e a sacralidade inerente à existência. Nesse sentido, a investigação emprega métodos como análise bibliográfica e documental, apoiando-se em legislações estrangeiras. A pesquisa buscará examinar como a autonomia, entendida como parte essencial da dignidade humana, pode influenciar e respaldar a argumentação em favor da eutanásia, destacando a importância do indivíduo ter a prerrogativa de decidir sobre o seu próprio destino, mesmo no contexto delicado e complexo da morte. A prática da eutanásia continua sendo proibida em âmbito nacional, com uma certa ressalva para a ortotanásia e as diretivas antecipadas de vontade. As diretivas antecipadas de vontade conferem ao indivíduo o direito de expressar suas preferências quanto aos cuidados médicos que deseja receber no futuro, permitindo-lhe maior autonomia em decisões cruciais sobre sua própria saúde. O método de pesquisa adotado foi indutivo, partindo do conceito de eutanásia, sua classificação e outras modalidades específicas para, posteriormente, explorar o debate sobre a possível recepção dessa prática pela Constituição Federal.
PALAVRAS-CHAVE: eutanásia; dignidade; autonomia; vida; princípios.
ABSTRACT: The research in question carries out an in-depth analysis of the viability of euthanasia in the Brazilian context. It approaches euthanasia as an institute that aims to ensure a dignified death, supported by the fundamental principles of human dignity, autonomy as a central aspect of dignity, the right to life and the inherent sacredness of existence. In this sense, the research employs methods such as bibliographical and documentary analysis, relying on foreign legislation. The research will seek to examine how autonomy, understood as an essential part of human dignity, can influence and support the argument in favor of euthanasia, highlighting the importance of the individual having the prerogative to decide on their own fate, even in the delicate and complex context of death. The practice of euthanasia is still prohibited at national level, with a certain exception for orthothanasia and advance directives. Advance directives give individuals the right to express their preferences as to the medical care they wish to receive in the future, allowing them greater autonomy in crucial decisions about their own health.The research method adopted was inductive, starting with the concept of euthanasia, its classification and other specific modalities and then exploring the debate about the possible reception of this practice by the Federal Constitution.
KEYWORDS: euthanasia; dignity; autonomy; life; principles.
1 INTRODUÇÃO
Em sociedades marcadas por um intenso fervor religioso, a vida é concebida como um presente divino, cujo desenvolvimento deve aderir às normas estabelecidas pela entidade divina e por seus representantes na terra. A existência é, portanto, considerada uma experiência passageira, adquirindo significado na medida em que busca cultivar as virtudes humanas. A morte é percebida como a expressão da falência tanto pessoal quanto da medicina.
Essa visão fundamenta a utilização de todo o aparato técnico disponível para estender a existência, o que inclui a adoção de medidas como seguir as orientações médicas para aprimorar a condição física e promover a saúde.
A discussão em torno da eutanásia tem permeado as reflexões éticas, jurídicas e morais em diversas sociedades, suscitando debates acalorados sobre o direito à vida e a autonomia do indivíduo sobre seu próprio destino. O tema, que envolve a ação deliberada de encerrar a vida de uma pessoa para aliviar seu sofrimento insuportável, coloca em questão princípios fundamentais, como a dignidade humana e a liberdade de escolha.
A presente monografia tem como objeto de estudo a análise da eutanásia e do direito de autodeterminação do paciente. Seu propósito é discutir a viabilidade da prática, respaldada pela autonomia de vontade do indivíduo consciente em estágio terminal.
Nesse contexto, visa explorar as complexidades inerentes à relação entre a eutanásia e o direito à vida, analisando os diversos aspectos legais que cercam essa questão delicada. A pesquisa leva em consideração os aspectos dos direitos e princípios fundamentais respaldados na Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988.
A proposta parte da concepção da dignidade da pessoa humana para examinar o direito à autodeterminação corporal e à livre consciência, com o objetivo de discutir a antecipação da expressão de vontade da pessoa em relação aos tratamentos médicos que ela considera aceitáveis em situações de incapacidade.
O primeiro capítulo abordará aspectos relacionados à dignidade da pessoa humana, explorando o direito de desfrutar de uma existência e, por conseguinte, de uma morte digna. O segundo capítulo abordará o histórico e a origem da eutanásia, além de outros tipos relacionados, como a ortotanásia, distanásia e o suicídio assistido.
No terceiro capítulo, o enfoque se estenderá para uma análise detalhada das diversas abordagens legais adotadas em países da Europa e América do Sul.
A monografia adotará uma abordagem metodológica fundamentada no método dedutivo e na pesquisa bibliográfica, visando atingir os objetivos propostos. A escolha pelo método dedutivo implica em partir de princípios gerais para chegar a conclusões específicas. Este método permite estabelecer relações entre conceitos amplos e particulares, proporcionando uma estrutura coerente para a pesquisa. A metodologia bibliográfica será empregada englobando a revisão crítica de obras relevantes, artigos científicos e legislação.
2 O DIREITO À VIDA, O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE E A DIGNIDADE COMO AUTONOMIA
A prática da eutanásia é um tema que gera controvérsias e debates em diversas esferas da sociedade. Essa questão envolve não apenas aspectos médicos, como o direito do paciente à autonomia, mas também questões éticas, filosóficas e religiosas, além de implicar em reflexões jurídicas acerca do direito à vida e da legalidade de se permitir a interrupção intencional da vida humana. O debate em torno da eutanásia é complexo e envolve uma série de conceitos e princípios e é necessário um aprofundamento teórico acerca do direito à vida, que é considerado um direito fundamental protegido. O conceito de vida abrange não apenas a existência biológica, mas também a dignidade da pessoa humana e suas condições de existência. Nesse contexto, este primeiro capítulo tem como objetivo explorar o direito fundamental à vida, relacionando-o à prática da eutanásia.
Conforme enfatizado por Bulos (2020, p. 35), os direitos fundamentais consistem em um conjunto de normas, princípios, prerrogativas, deveres e institutos inerentes à soberania popular. Os direitos fundamentais servem para assegurar uma convivência pacífica, digna, livre e igualitária, independentemente de credo, raça, origem, cor, condição econômica ou status social. Possuem a função de permitir a limitação do poder estatal, garantindo ao cidadão uma série de direitos que são considerados inalienáveis e que são necessários para a proteção de sua dignidade, impedindo que esta seja violada ou atacada. Dessa forma, tais direitos asseguram que mesmo que o cidadão esteja sujeito às normas e regulamentos estatais, ele ainda possua uma série de prerrogativas que são intransponíveis e que não podem ser transferidas a outras pessoas ou entidades.
Conforme destacado por Bulos (2020, p. 35), os direitos fundamentais têm relevante importância pois “como direitos de defesa, permitem o ingresso em juízo para proteger bens lesados, proibindo os Poderes Públicos de invadirem a esfera privada dos indivíduos”. Assim, uma vez que permitem que os cidadãos recorram a proteção de seus bens e interesses privados ao Poder Judiciário, impede que o Estado invada a esfera privada do indivíduo.
Os direitos fundamentais são a base do ordenamento jurídico e, a partir deles, derivam todas as normas da Constituição Federal da República. Esses direitos são garantias mínimas que visam assegurar a dignidade humana e a liberdade individual, tendo como base a proteção dos direitos e das liberdades individuais, coletivas e sociais. Assim, eles têm grande relevância para o ordenamento jurídico, visto que são reconhecidos como princípios que devem nortear a ideologia política de cada Estado e, sobretudo, a vida humana. Os direitos fundamentais devem ser interpretados de forma ampla e abrangente, visando sempre à sua efetividade, e devem ser aplicados a todos, sem qualquer tipo de discriminação. Dessa forma, pode-se afirmar que os direitos fundamentais são imprescindíveis para o estabelecimento de um Estado Democrático de Direito, que tem como objetivo a proteção e promoção dos valores fundamentais da sociedade, como a dignidade humana, a liberdade e a igualdade.
A determinação exata do significado da vida é uma tarefa desafiadora, em grande parte devido à constante evolução que a vida apresenta. Desde a antiguidade, diversas teorias foram formuladas para definir o que é a vida e quais são suas características essenciais, e mesmo assim, a definição do conceito de vida não é capaz de apresentar características que sejam incontestáveis. Em termos gerais, a vida é considerada como uma condição que permite aos seres vivos realizar funções biológicas como a respiração, nutrição, reprodução e adaptação ao meio ambiente. Segundo Silva (2009, p. 85) a vida é composta por elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais) e que é uma questão de intimidade consigo mesmo, saber-se e dar-se conta de si mesma, constituindo a fonte primária de todos os outros bens jurídicos.
A definição de vida é um tema em constante evolução e o estudo e a reflexão sobre o seu significado são fundamentais para o entendimento da existência humana. Segundo Capelo de Souza, a vida humana é caracterizada como um fluxo de projeção coletivo, que é contínuo e transmissível, comum a todos os indivíduos da espécie, independentemente de sua origem, e presente em cada ser individualmente. Além disso, a ideia de que é comum a todos os indivíduos da espécie humana sugere que as experiências individuais são compartilhadas com outros membros da sociedade.
Para José Afonso da Silva, o conceito de vida vai além da noção biológica de autoatividade funcional, peculiar à matéria orgânica. Para Silva, a existência deve ser compreendida como um processo vital que se transforma incessantemente, sem perder sua própria identidade. O processo vital dá-se início com a concepção ou germinação, progredindo e mantendo sua identidade até que muda de qualidade, deixando de ser vida para ser morte. Essa perspectiva dinâmica é relevante para compreendermos que é mais do que um mero fenômeno biológico, mas um processo em constante evolução. Portanto, as considerações feitas por Silva, contribuem para uma reflexão de que a existência não é um conceito estático e imutável e que deve ser preservada e respeitada para que possa se desenvolver de forma plena (2009, p. 118).
O direito à vida é um dos pilares mais importantes do ordenamento jurídico brasileiro, gravado no caput do art. 5º da Constituição Federal, inserido no Título II que trata dos direitos e garantias fundamentais, dentro do Capítulo I. De fato, esse direito é considerado a fonte primária de todos os demais bens jurídicos protegidos pela Constituição. É por isso que, sem a garantia da vida humana, as outras garantias fundamentais não teriam razão de existir. Assim, como afirma Silva, de nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, se não elevasse a vida humana num desses direitos. (2009, p. 66). No contexto do direito, a vida é protegida e valorizada como um direito humano fundamental, cuja tutela é garantida pelas normas jurídicas e pela atuação do Estado.
De acordo com Maria Helena Diniz (2001, p. 22), o direito à vida é respaldado pelo ordenamento jurídico desde a concepção, seja ela decorrente de meios naturais ou artificiais, e abrange todo o ciclo vital do ser humano, ou seja, compreende o direito ao nascimento e à continuidade da existência. É importante ressaltar que não se limita apenas ao momento do nascimento, mas abrange todo o ciclo vital do indivíduo, assegurando o direito de continuar vivendo e subsistindo. Nesse sentido, é possível compreender que a garantia da existência é um compromisso do Estado com a proteção da pessoa em sua integralidade e que o bem jurídico da vida é dotado de máxima proteção constitucional, conforme previsto no rol de direitos fundamentais. Alexandre de Moraes diz que
O Estado deverá garantir esse direito a um nível adequado com a condição humana respeitando os princípios fundamentais da cidadania, dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e, ainda, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional e erradicando-se a pobreza e a marginalização, reduzindo, portanto, as desigualdades sociais e regionais.
Ainda de acordo com Moraes (2003, p. 87), essa dignidade se deve, em síntese, a três princípios do direito romano: viver de forma honesta, não prejudicar ninguém e dar a cada indivíduo o que lhe é devido. Moraes expõe que a proteção da vida tem dupla acepção, que envolve não apenas o direito de manutenção da existência, mas também de ter dignidade quanto à subsistência. Esse aspecto se relaciona com o acesso aos recursos necessários para a sobrevivência. Esses princípios enfatizam a importância da integridade moral, da justiça e da igualdade de oportunidades para a realização da dignidade humana.
A análise das garantias fundamentais traz a reflexão do absolutismo da proteção do bem jurídico da vida, que pode causar medidas extremas sem considerar as particularidades do caso concreto. Portanto faz-se necessária a compreensão do direito à vida enquanto direito não absoluto. A respeito dessa perspectiva Fernandes (2013, p.364) trata que a concepção de que o direito à vida deve ser observado sob um duplo enfoque, qual seja, o direito da vida em si mesma, assim, o direito de estar vivo, e o direito à vida digna com condições mínimas de existência. Nessa ótica, o direito à vida, quando examinado em relação à dignidade da morte, pode ser considerado como um absolutismo, visto que a morte é um fato irremediável que deve também ser regulamentado pelo direito (FERREIRA, 2022, p. 15). A proteção absoluta do direito à vida pode gerar uma série de questionamentos, especialmente no que diz respeito ao significado do fim da vida.
Borges (2005, p. 232) sustenta que os direitos fundamentais, incluindo o direito à vida, não possuem caráter absoluto, nem se constituem como deveres a serem cumpridos, ou seja, o referido dispositivo constitucional não impõe obrigações de manutenção da vida, liberdade ou segurança. Demonstrando assim, que a conotação absoluta do direito à vida pode ser relativizada dentro de uma situação concreta.
Ainda que haja um grande esforço em proteger a vida humana, a humanidade tem vivenciado mudanças em seus paradigmas e direções, as quais devem ser integradas no ordenamento jurídico. Nesse aspecto, a dignidade da pessoa humana, conceito fundamental desse ordenamento, deve ser considerada no que diz respeito à morte. Como a Constituição assegura de forma veemente a proteção da vida, é necessário que, no contexto da morte, a dignidade da pessoa humana seja respeitada.
3 EUTANÁSIA E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS CORRELATOS
Historicamente, como afirmado por Guimarães (apud GUIMARÃES, 2011, p. 23) a expressão eutanásia foi modernamente cunhada pelo filósofo inglês Francis Bacon no século XVII, que alegou que representava o único tratamento viável diante de doenças consideradas incuráveis. Essa perspectiva lançou as bases para discussões e considerações posteriores sobre a eutanásia.
A eutanásia é uma prática antiga. Em algumas sociedades antigas, como os celtas, a prática já estava presente, com a responsabilidade atribuída aos filhos de eliminar os pais idosos e doentes, considerando essa atividade como um ato sagrado. Além disso, há evidências de que os celtas faziam a seleção de recém-nascidos saudáveis, enquanto eliminavam as crianças com deformidades congênitas.
Também era comum o extermínio dos idosos que não mais contribuíam de maneira produtiva para o grupo (Morales, p. 24, 1993). Essas práticas antigas lançam luz sobre a diversidade de atitudes e crenças em relação à vida e à morte em diferentes culturas ao longo da história.
Na Grécia Antiga, observa-se uma prática recorrente entre os cidadãos que se encontravam sobrecarregados pelas responsabilidades do Estado e pela própria vida. Nesse contexto, os indivíduos procuravam um magistrado e apresentavam argumentos que justificavam seu desejo pela morte. A decisão de conceder tal pedido ficava a cargo do juiz, que autorizava o ato se julgasse as razões suficientemente justificadas.
Em tempos antigos, na sociedade romana, era uma prática corriqueira o lançamento ao mar de deficientes mentais. Na mesma época, gladiadores que sofressem graves ferimentos eram contemplados com medidas destinadas a aliviar o seu sofrimento. Assim, o Estado tinha o direito de não permitir cidadãos disformes ou monstruosos. Por conseguinte, determinava ao pai de uma criança nascida com deformidades que a eliminasse (RODRIGUES, 1993, p. 26).
Em Esparta, segundo o relato de Rodrigues (1993, p. 25), crianças economicamente desfavorecidas e fisicamente debilitadas eram percebidas como um ônus pelo Estado, uma vez que se acreditava que não poderiam se tornar guerreiros robustos. Como resultado, tais crianças eram submetidas a um ato drástico, o lançamento do monte Taíjeto. Por outro lado, no contexto egípcio, Cleópatra e Marco Antônio foram responsáveis pela fundação de um local de experimentação a fim de determinar métodos menos dolorosos de morte.
Na Idade Média, como descrita por Asúa (2003, p. 27), a abreviação da vida era considerada um gesto de compaixão e era aplicada em situações de ferimentos graves, acidentes ou doenças crônicas. Devido à prevalência de pestes e epidemias, a prática tornou-se mais comum nesse contexto histórico.
Na Índia, as pessoas enfermas eram conduzidas ao Rio Ganges, sendo sua boca e narinas cobertas com uma lama sagrada e, posteriormente, jogadas ali. Os hebreus preparavam bebidas que anestesiavam a dor da execução. Os germanos antigos também matavam os enfermos desenganados, e, na Birmânia, os idosos e doentes sem cura eram enterrados vivos. Os eslavos e escandinavos, de igual modo, antecipavam a morte dos familiares que tivessem contraído alguma doença incurável (Apud, ROYO; MORALES, 1933).
No contexto brasileiro, existem exemplos históricos que indicam a prática da eutanásia. Algumas tribos indígenas costumavam abandonar os idosos à morte, especialmente aqueles que não participavam das atividades de caça. Além disso, de acordo com Salvador “no tocante aos costumes de nossos índios, já escreveu o Frei Vicente do Salvador, quanto aos enfermos incuráveis, no primeiro século após o descobrimento do Brasil, asseverando que, em verdade, entre o gentio não havia médicos, mas sim feiticeiros, que não curavam os doentes senão com enganos, “chupando-lhes na parte que lhes dói e tirando da boca um espinho ou prego velho que já nela levavam, … dizendo que aquilo lhes fazia o mal e que já ficam sãos, ficando-lhes tão doentes como antes” (apud Guimarães, 2011, p. 35).
A morte é descrita de forma direta e simples como a cessação da vida em seres humanos, animais ou vegetais (apud GUIMARÃES, 2011, p. 23). Além disso, o dicionário destaca que, na área médica, a eutanásia é definida como o “ato de proporcionar uma morte livre de sofrimento a um paciente afetado por uma condição incurável que cause dores insuportáveis”, enquanto no campo jurídico, é vista como o “direito de praticar ou consentir a morte por essa razão” (p. 24).
É possível discernir várias categorias de eutanásia, as quais abarcam a classificação natural e provocada (CABETTE, 2009, p. 20). A natural é caracterizada pela ocorrência do óbito sem a presença de dor significativa ou intervenção externa. Por outro lado, a provocada se subdivide em duas modalidades distintas: provocada autônoma, que envolve a intervenção direta do próprio paciente no processo de morte, e a provocada heterônoma, na qual a intervenção é realizada por terceiros no desfecho fatal. Vale ressaltar que a modalidade provocada autônoma equivale ao suicídio, assim, trata-se de um fato atípico no ordenamento. Contudo, o artigo 122 do Código Penal considera crime o induzimento, auxílio, ou instigação ao suicídio.
Há uma outra categorização que merece destaque, de acordo com Cabette (2009, p. 21), relacionada ao percurso vital do paciente, que é a distinção entre eutanásia solutiva e resolutiva. A solutiva, também reconhecida como pura, lenitiva, autêntica ou genuína, tem como propósito auxiliar um indivíduo a alcançar um óbito digno, sem, contudo, encurtar seu ciclo de vida. Essa assistência abrange aspectos físicos, psicológicos, morais e espirituais.
Em contrapartida, resolutiva envolve uma abordagem diferente, na qual o agente responsável acelera o fim da vida do enfermo, atendendo ao seu pedido ou ao consentimento de seus representantes legais. Outra categorização relevante se relaciona com a distinção entre eutanásia ativa, também conhecida como ato por comissão, e passiva, também denominada como ato por omissão.
A modalidade ativa envolve a realização de ações deliberadas com o objetivo de auxiliar o paciente a alcançar a morte, visando, assim, mitigar seu sofrimento. Esta forma pode ser subdividida em duas modalidades distintas, nomeadamente, direta e eutanásia indireta. Segundo Cabette, “a eutanásia ativa direta é a que tem em mira principalmente a diminuição do lapso temporal de vida do enfermo por meio de “atos positivos” que o auxiliam a morrer. Já a espécie ativa indireta destina-se a duas finalidades: diminuir o sofrimento do paciente e concomitantemente reduzir seu tempo de vida, sendo tal redução um efeito do fim principal, que é, na verdade, diminuir o sofrimento do doente” (2009, p. 23).
A forma indireta é uma forma legítima que busca aliviar o sofrimento do paciente através da abreviação de sua vida. Nesse processo, o objetivo principal é extinguir o sofrimento, mas sempre com um foco humanitário, que inclui a prestação de auxílio físico, moral, espiritual e psicológico ao enfermo.
Esta abordagem é sensível à ética e aos princípios humanitários, equilibrando o alívio do sofrimento com o cuidado integral ao paciente. A forma passiva, por sua vez, segundo Cabette, “a caracterização como eutanásia passiva tem a seguinte razão de ser: a enfermidade, como constelação corporal, é parte da corporalidade de moribundo e se realiza sem intervenção exterior; na medida – e somente na medida em que – os outros permanecem passivos, ainda que seja desmontando ativamente os aparelhos previamente estabelecidos para tentar ajudar-lhe, se deixa a enfermidade seguir seu curso”. (2009, p. 24). Portanto, ocorre, então, quando o tratamento médico é suspenso, estendendo a vida do enfermo, deixando que esta siga seu destino naturalmente.
Diversas categorizações são identificadas, conforme delineado por Cabette (2009, p. 27-29), abrangendo a voluntária ou consentida, a involuntária ou não-consentida, a agônica, a etária, a coletiva, a teológica, a narcotanásia e a mistanásia. A voluntária ou consentida se caracteriza pelo consentimento explícito do enfermo ou de seu representante legal. Por outro lado, a involuntária ou não-consentida ocorre quando o agente toma a decisão de encerrar a vida do paciente sem o seu consentimento, agindo de forma autônoma e unilateral, desconsiderando a vontade do enfermo.
Cabette (2009, p. 29) aborda a eutanásia etária, também conhecida como “morte branca,” como uma prática que envolve a responsabilidade dos filhos em assegurar que seus pais idosos e doentes tenham um fim de vida tranquilo. Essa tradição remonta a sociedades antigas e é intrinsecamente ligada ao respeito e ao cuidado pelos idosos. Nessa modalidade, a ênfase recai na necessidade de permitir que os idosos enfrentem o processo de morte com dignidade, minimizando seu sofrimento. Embora essa prática tenha raízes históricas, a sua aplicação e aceitação variam amplamente ao longo do tempo e em diferentes culturas, refletindo complexas considerações éticas e culturais associadas ao envelhecimento e à morte.
A eutanásia social, também conhecida como “morte miserável”, descreve o falecimento precoce e desprovido de cuidados médicos adequados, principalmente entre a grande população de enfermos e deficientes que não conseguem acesso efetivo ao sistema de saúde. A expressão “morte do rato” é derivada etimológicamente desse conceito. Para Cabette (2009, p. 31), etimologicamente, significa “morrer como um rato”. Ou seja, expressa o desprezo social, econômico, sanitário, higiênico, educacional, de saúde e segurança a que se encontram submetidas grande parcela das populações do mundo.
Essas categorizações desempenham papéis fundamentais no contexto do debate sobre o tema, fornecendo uma estrutura para analisar e compreender os diferentes aspectos éticos e legais relacionados a essa prática. Cada categoria carrega implicações específicas em termos de responsabilidade, tomada de decisão e respeito pelos direitos e desejos dos pacientes.
Na época mais recente da história, observa-se que a “morte sem dor” está fundamentada nos princípios fundamentais. No universo das normas, a dignidade da pessoa humana está também ratificada na Declaração Universal de Direitos Humanos, na maneira em que este documento internacional preconiza que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidades e direitos, por serem dotadas de razão e consciência e devem agir umas às outras com espírito de fraternidade (PACHECO, 2022, p. 46).
Os direitos essenciais são intrínsecos aos indivíduos e têm como principal finalidade o respeito à integridade da pessoa humana por meio do amparo estatal e assegurando as condições básicas para uma vida digna. Segundo Paulo Nader (2008, p. 200), “são os princípios que dão consistência ao edifício do Direito, enquanto que os valores dão-lhe sentido. A qualidade da lei depende, entre outros fatores, dos princípios escolhidos pelo legislador”. Assim, demonstra a importância de tais preceitos constitucionais na garantia de direitos básicos estabelecidos na Carta Magna.
Os princípios são requisitos primordiais que revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se mantêm para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, delimitando a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica (PLÁCIDO E SILVA, 2008, p. 1097). Entende-se que os princípios jurídicos significam elementos iniciais de determinado fato, aquilo que tem como propósito ser o ponto inicial; a base do Direito (apud 2008, p. 1097).
A caracterização dos direitos fundamentais pode ser abordada de duas maneiras distintas. A primeira define como direitos fundamentais todos os direitos estabelecidos na Constituição da República. A segunda considera direitos fundamentais aqueles delineados na Carta Magna com um elevado grau de segurança e dificuldade de modificação, uma vez que qualquer alteração depende de uma emenda constitucional (BONAVIDES, 2005, p. 561).
Nesse ângulo, dá-se a necessidade de discorrer com ênfase nos princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da autonomia. Quanto ao princípio da dignidade, para De Plácido e Silva a (2008, p. 460), a palavra dignidade tem a sua derivação do latim “dignitas”, que significa virtude e honra. Com isso, entende-se a dignidade como uma qualidade moral que a pessoa possui.
A determinação da dignidade da pessoa humana envolve uma série de aspectos que remetem à valorização da sua existência frente aos acontecimentos que ocorriam de degradação da própria humanidade quanto aos abusos e métodos inaceitáveis que ocorreram durante a guerra, com o fim de evitar que ocorressem novamente, instituindo-se assim os direitos humanos como um parâmetro de conduta a ser seguido sob a perspectiva de que toda pessoa humana tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
Para José Afonso da Silva (1998, p. 91) a dignidade da pessoa humana não é criada pela Constituição, pois, na realidade, trata-se de um direito preexistente. E, com isso, a Constituição afirmou como um princípio de grande importância para o ordenamento jurídico, tanto é, que a coloca como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CFRB, 1988).
Além disso, a dignidade humana não depende de reconhecimento jurídico para existir (MARTINEZ, 1996, p. 21), pois é bem inato e ético, colocando-se acima, inclusive, das especificidades culturais, visto que tem a capacidade de persistir mesmo naquelas sociedades que não a respeitam, já que a sua violação evidencia afronta à capacidade de autodeterminação do ser humano e de sua própria condição de ser livre (SILVA, 2002, p. 191).
Diante do princípio da dignidade da pessoa humana, tem um instituto de extrema importância chamado “mínimo existencial”, conceituado por Barroso (2018, p.154) como “pressuposto necessário ao exercício da autonomia, tanto pública quanto privada. Para poder ser livre, igual e capaz de exercer plenamente a sua cidadania, todo indivíduo precisa ter satisfeitas as necessidades indispensáveis à sua existência física e psíquica”. O pressuposto é tomado como base para a existência digna, contudo, deve-se ressaltar a importância dessa dignidade no momento de falecer, onde nada adiantaria viver com tal satisfação e ser privado de sua autonomia em seus momentos finais.
Assim, emerge o princípio da autonomia, em que o indivíduo tem o direito de escolher o destino de sua própria vida. Isto é, a prerrogativa que uma pessoa possui sobre sua existência se estende agora ao momento de sua passagem. O argumento moral para a legislação sobre a eutanásia voluntária centra-se principalmente na defesa do princípio de autonomia, argumentando que as pessoas têm o direito moral de tomar decisões sobre suas vidas.
Nesse contexto, a lei deve reconhecer e respeitar esse direito, evitando impor obstáculos às formas de decisões que envolvem o término da vida com a assistência de outros (PESSINI, 2004, p. 192). Ele argumenta que, uma vez que as pessoas têm o direito moral de tomar decisões sobre sua própria vida, a lei deve respeitar esse direito e não impor obstáculos às escolhas delas de encerrar a vida com a assistência de terceiros.
Por sua vez, Lepargneur (2009, p. 255) defende que “um dos pilares fundamentais do Estado constitucional e democrático de direito consiste em reconhecer a cada indivíduo uma esfera de liberdade que lhe é inerente porque pertence ao gênero humano, porque é digno. ” e que estão protegidos contra as intervenções do Estado e de outras pessoas, acrescentando que é neste sentido que a Constituição Política destaca em seu preâmbulo a liberdade como fim para o qual o Estado se estabelece.
Cabe ressaltar que o referido princípio, mesmo possuindo caráter de extrema importância em vários âmbitos da vida humana, não é um direito absoluto, de modo que a liberdade de um indivíduo existe até o momento em que atinja a liberdade de outro, ou da coletividade.
4 A EUTANÁSIA NO BRASIL E NO MUNDO
São poucos os países que legalizaram em seus ordenamentos jurídicos alguma maneira de abreviação da vida nas situações de sofrimento. Holanda, Bélgica, Suíça e Luxemburgo são exemplos europeus que regulamentaram algum tipo de eutanásia ativa ou suicídio assistido, em dois países norte-americanos, Canadá e Estados Unidos, nos estados do Oregon, Washington, Montana e Vermont; e, na América do Sul, na Colômbia (MARIANA, 2016, p. 355).
A própria definição varia nestes locais, o que demonstra a necessidade da legislação normatizar o que cada país compreende pelo termo. As formas de legalização variam nos países supramencionados, assim como a data em que tal normatização foi aprovada pelos respectivos parlamentos.
Na Holanda a mudança ocorreu através da jurisprudência, sem fulcro de lei específica sobre a temática. A compreensão do judiciário local era que o dever de preservar a vida pudesse ser superado pelo dever de prevenir o sofrimento. Assim, a justiça holandesa aceitava o encerramento da vida por médicos, quando a morte era necessária para prevenir o sofrimento (CAMILO, 2015, p. 137). Pessoas com demência também são elegíveis, assim como crianças, entre 12 e 17 anos, com capacidade mental comprovada (MARIANA, 2016, p. 359). Até mesmo, em algumas circunstâncias específicas, a morte assistida pode aplicar-se também a recém-nascidos, de acordo com a regulamentação do Protocolo de Groningen, de 2005 (MARIANA, 2016, p. 359). A mudança na abordagem da Holanda, em relação ao tema, através da jurisprudência, destaca o papel significativo que os tribunais podem desempenhar na evolução das práticas legais e éticas. Contudo, a falta de regulamentação trazia insegurança para a comunidade médica e pacientes, de forma que foi preciso a aprovação de uma lei de Terminalidade Da Vida e Suicídio (CAMILO, 2015, p. 137).
A Suíça criminaliza qualquer forma de eutanásia, mas autoriza o suicídio assistido, em situações em que o motivo seja inteiramente honorável (CAMILO, 2015, p. 138). De acordo com o artigo 115 do Código Penal de 1918, a prática só é passível de pena quando realizada por motivos “não altruístas” (MARIANA, 2016, p. 360). A regulamentação em Luxemburgo traz aspectos específicos que mesclam características da regulamentação da Holanda, como a legalização expressa do suicídio assistido, e Bélgica, como o impedimento da eutanásia em adolescentes a partir de 12 anos, no último caso desde que atendidos pré-requisitos como a anuência dos pais e constatação da capacidade de o adolescente entender a situação médica (CAMILO, 2015, p. 139).
No caso da Bélgica, “o crescimento anual de eutanásias superou 25% nos dois últimos anos. Em 2013, foram 1807 casos – 73% com diagnóstico de câncer -, o que representa alta de 27% sobre as 1432 eutanásias de 2012. Estima-se que 2 a 3 menores deverão solicitar a eutanásia anualmente neste país” (CAMILO, 2015, p. 138). A primeira legislação belga foi promulgada em 26 de maio de 2002, sendo resultado de deliberações conduzidas pelo Comitê Nacional de Bioética do país. Essa legislação aborda predominantemente a prática da eutanásia ativa. A autorização para a realização de um procedimento de eutanásia é concedida a indivíduos com idade igual ou superior a 18 anos, ou a emancipados com idade superior a 16 anos, desde que demonstrem plena capacidade e consciência do pedido. É exigido que o pedido seja feito de forma voluntária, sem influência externa, e que o paciente esteja em condição médica terminal, enfrentando sofrimento iminente (CAMILO, 2015, p. 138).
Ainda, com a intenção de garantir o estrito cumprimento da lei, a Bélgica exige ao médico que realizou o procedimento apresentar relatório padronizado à Comissão Federal de Controle e Avaliação, formada exclusivamente para avaliar a aplicação da lei, composta por dezesseis membros, detentores de notório conhecimento e experiência nos assuntos. Oito membros deverão ser médicos; quatro professores universitários; quatro professores universitários de direito; e quatro, outros profissionais de saúde. (CAMILO, 2015, p. 139).
Não obstante, o paciente tem assegurado o direito à informação, devendo ser informado por seu médico sobre sua condição clínica e expectativa de vida, tratando de maneira bilateral o pedido voluntário de realizar um procedimento. Em casos de situação inviável para tal, um adulto escolhido por ele deve ser o detentor de tal função, não podendo de nenhuma forma ter qualquer benefício financeiro com a morte deste (CAMILO, 2015, p. 139). Para proteção do indivíduo em situação de incapacidade de expressar sua autonomia, a norma belga autoriza que a pessoa faça uma declaração antecipada, ratificando sua vontade, caso passe a sofrer de uma condição acidental ou patológica grave ou incurável, esteja inconsciente e tal condição de saúde não tenha perspectiva de melhora, devendo ser renovada a cada cinco anos, no mínimo.
Nos três países, a decisão precisa ser ratificada por no mínimo dois médicos independentes. Não obstante, os casos autorizados passarão por comissões de controle e avaliação compostas, no mínimo, por médicos e juristas e, no contexto luxemburguês, essa comissão é ainda mais abrangente, incorporando não apenas médicos e juristas, mas também membros de organizações da comunidade da saúde e representantes de instituições dedicadas à defesa dos direitos dos pacientes (CAMILO, 2015, p. 139). Essas comissões desempenham um papel vital na asseguração de que os procedimentos de eutanásia sejam conduzidos de maneira ética, legal e transparente, considerando as diversas nuances envolvidas na tomada de decisões tão delicadas.
Nos E.U.A, o suicídio assistido é permitido em cinco dos cinquenta estados : Oregon, Washington, Montana, Vermont e Califórnia. O Novo México aprovou legislação condizente com a prática em 2014, mas a decisão foi revertida em segunda instância, em agosto de 2015 4. (MARIANA, 2016, p. 358). Desde a aprovação da lei em 1997, até o fim de 2014, 1.327 pessoas tiveram a medicação letal prescrita, e, destas, 859 morreram após a administração do medicamento (MARIANA, 2016, p. 358). Em março de 2009, o Estado de Washington sancionou o Ato de Morte com Dignidade, mediante o qual adultos competentes, residentes na área, com expectativa de vida de seis meses ou menos, podem requerer a autoadministração de uma medicação letal prescrita por um médico (MARIANA, 2016, p. 359). O ato é garantido pelos direitos de privacidade e dignidade estabelecidos pela constituição, e os médicos que o auxiliam também são protegidos por lei.
Em fevereiro de 2015, com os casos das pacientes Kay Carter e Gloria Taylor, após seis anos de debates na Suprema Corte, o Canadá suspendeu a proibição da eutanásia e do suicídio assistido (MARIANA, 2016, p. 359). Ainda, foi estabelecido período de carência de um ano, durante o qual os governos federais e provinciais do país, assim como profissionais de saúde, deveriam se preparar para implantar a nova lei. A primeira província a regulamentar a morte assistida foi Quebec, através do Ato sobre Cuidados no Fim da Vida que entrou em vigor em dezembro de 2015. (MARIANA, 2016, p. 359). Aprovado no ano anterior, o Ato abrange adultos capazes, diagnosticados com doenças graves e incuráveis, declínio avançado e irreversível de suas capacidades, além de intenso sofrimento físico e psicológico. A imprensa canadense anunciou, em janeiro de 2016, que o primeiro caso de morte assistida foi confirmado pelas autoridades de saúde de Quebec (MARIANA, 2016, p. 359).
A Colômbia é o único país da América Latina onde a prática é permitida. Apesar de ter sido descriminalizada em 1997 pelo Tribunal Constitucional, somente em abril de 2015 o Ministério da Saúde definiu como poderia ocorrer (MARIANA, 2016, p. 357). Até esse momento era classificada “homicídio por piedade” conforme o artigo 326 do Código Penal. E a falta de critérios bem estabelecidos para a realização da prática, juntamente com uma legislação controversa, sugere que a ausência de diretrizes claras gerava ambiguidade, conflitos de interpretação e incertezas sobre o tema (MARIANA, 2016, p. 357). A transição sendo categorizada como “homicídio por piedade” para a eventual legislação específica indica uma mudança significativa. Assim, considerando a legalização, é preciso de investimento na capacitação de médicos e profissionais da saúde para enfrentamento dos dilemas do fim da vida.
No contexto jurídico brasileiro, não existe uma normativa específica que regule a eutanásia. No atual cenário legal, a prática é tipificada como um crime de homicídio, conforme estabelecido no artigo 121 do Código Penal brasileiro. Dependendo das circunstâncias específicas, a conduta do agente pode configurar-se como crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, como previsto no artigo 122. Conforme o artigo 41 do sexto Código de Ética Médica, é vedado ao médico encurtar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal; também destaca que, em casos de doença incurável e terminal, ele deve oferecer os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas (MARIANA, 2016, p. 361).
A pessoa que praticasse a eutanásia em outra poderia ser beneficiada com uma redução de pena por homicídio, variando de um sexto a um terço. Isso ocorreria caso a ação fosse motivada pela intenção de aliviar o sofrimento do paciente, impulsionada por compaixão e piedade diante da situação deste, constituindo assim um motivo de considerável valor moral (DINIZ, 2023, p. 07).
Dentre as classificações existentes no âmbito da prática, nem todas são explicitamente reconhecidas, proibidas ou devidamente regulamentadas pelos órgãos competentes no Brasil. Contudo, há algumas determinações sobre o tema e, visando a suprir, mesmo que parcialmente, essa lacuna, foram editadas pelo Conselho Federal de Medicina as Resoluções nº 1805/06 e 1995/2012 (SANDRA, 2021, p. 33). A Resolução nº 1805/06, que trata sobre a ortotanásia, dispõe: “Artigo 1º — É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”. Assim, o profissional médico, devidamente autorizado pelo paciente ou por seu representante legal, possui a prerrogativa de restringir ou interromper procedimentos terapêuticos excessivos e dispensáveis que tenham como resultado a prolongação da vida do indivíduo em estágio terminal de doenças graves e incuráveis.
A validade da Resolução em questão foi posta à prova quando o Ministério Público Federal a questionou, iniciando uma ação civil pública com o intuito de interromper seus efeitos. O cerne da argumentação do Ministério Público Federal estava na alegação de que o referido ato normativo transgrediria as normas do ordenamento jurídico nacional. Contudo, o juiz encarregado proferiu decisão favorável à manutenção da resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), reconhecendo-a como válida (SANDRA, 2021, p. 33). Como resultado, a resolução permanece em vigor até os dias atuais. A resistência apresentada pelo Ministério Público Federal e a decisão judicial indicam a necessidade de avaliações e debates em torno de temas sensíveis que impactam diretamente a prática médica e os direitos individuais.
A Resolução nº 1995/2012, por sua vez, instituiu a regulamentação do denominado “testamento vital”. Essa medida refere-se a uma manifestação antecipada da vontade do paciente, registrada em documento, proporcionando respaldo legal e ético para a efetivação das orientações expressas (ELISA, 2012, p. 25). Este documento se destina a fornecer diretrizes claras quanto à continuidade ou à recusa de tratamentos considerados inócuos e tem como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da autonomia da pessoa, visando garantir o cumprimento da vontade daquele que estiver impossibilitado de participar das decisões sobre seu tratamento (ELISA, 2012, p.26). Durante o processo de preparo do testamento vital, pretende-se que a pessoa entenda seu diagnóstico, inclusive sobre as possibilidades de tratamento médico, as consequências da piora da situação clínica, os prós e contras relativos à realização do tratamento.
As diretrizes antecipadas são gêneros, sendo o testamento vital uma de suas espécies. São diferentes objetos, como a aceitação ou recusa do tratamento médico, a rejeição ao direito de ser informado sobre o diagnóstico fatal e a doação de órgãos (ELISA, 2012, p. 85). Cuida-se da decisão a respeito de quais procedimentos a pessoa aceita ser submetida, ou ainda a determinação de cláusula que indique a realização de tratamentos referenciados ao diagnóstico médico.
A escolha por uma obstinação terapêutica representa uma opção válida da pessoa e, mesmo que oponha no campo bioético ao princípio da qualidade de vida, deve ser respeitada e mantida na forma que expressa a autonomia da pessoa (ELISA, 2012, p. 87). Além disso, trata-se de negócio jurídico unilateral e passível de suspensão, qual seja, o ingresso do indivíduo em uma situação de incapacidade que impeça de se manifestar de forma autônoma (ELISA, 2012, p.88).
As diretrizes antecipadas podem ser formalizadas por meio de documento público ou particular (ELISA, 2012, p. 105). Podendo, inclusive, constar o prontuário médico da pessoa para que possa produzir efeito. Ainda nesse sentido, afirma Ana Carolina Brochado, que “por medida de segurança, o ideal é que a declaração seja tomada por escrito, preferencialmente por meio de instrumento público, para que se perfaça a declaração unilateral da vontade” (2012, p. 365). Luciana Dadalto (2010, p. 134) entende ser requisito de validade das diretivas a forma pública, porém sugere que seja feito o registro de maneira a assegurar a eficácia do negócio. Assim, a formalização da declaração da vontade da pessoa é necessária para garantir a segurança jurídica.
No contexto mais amplo das chamadas “diretrizes antecipadas”, destaca-se a existência de um Projeto de Lei, idealizado pelo ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha. Este projeto propõe a exposição detalhada dos requisitos a serem observados nas ordens antecipadas, enfatizando, sobretudo, o respeito irrestrito à autonomia do paciente (SANDRA, 2021, p. 33). Destaca a importância de considerações éticas e legais na formulação de diretrizes referentes aos cuidados de saúde em circunstâncias específicas, contribuindo para o avanço da discussão sobre a autonomia do paciente e a tomada de decisões relativas a tratamentos médicos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho se dedicou a um estudo aprofundado que buscou imergir na complexa temática da eutanásia, explorando suas intricadas particularidades. Com o intuito de abordar de maneira abrangente as múltiplas facetas do tema, optou-se por uma análise que não apenas considerasse seus aspectos jurídicos e éticos, mas também lançasse luz sobre o contexto social e moral que permeia a questão.
Dessa maneira, a resposta à problemática inicialmente apresentada foi construída com base em uma fundamentação robusta, que se valeu da interconexão entre as dimensões jurídicas, éticas e sociais, proporcionando uma visão mais completa e esclarecedora sobre o tema controverso da eutanásia.
O cerne da problemática reside na indagação sobre se um paciente em estado terminal, afetado por uma enfermidade incurável, deve ser compelido a suportar o sofrimento até que a morte ocorra de modo natural. Além disso, a questão se estende à consideração da eutanásia como uma expressão legítima da vontade individual, ponderando se antecipar a morte, em face de uma existência permeada por dores persistentes, constitui um atentado contra a dignidade da pessoa humana.
A complexidade dessa problemática envolve não apenas os aspectos médicos e éticos associados ao tratamento de pacientes em estado terminal, mas também toca profundamente nas noções fundamentais de autonomia, livre arbítrio e a preservação da dignidade intrínseca a cada indivíduo. O debate sobre a eutanásia, nesse contexto, transcende as fronteiras da saúde física para abranger considerações morais e filosóficas sobre o valor da vida e o direito de cada ser humano moldar o curso de seu próprio fim.
O direito à vida ocupa uma posição central no rol dos direitos e garantias fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal do Brasil, sendo considerado o mais crucial por ser a base que sustenta a existência dos demais direitos. No entanto, igualmente relevante é o princípio da dignidade da pessoa humana. Este não apenas está incluído entre os direitos fundamentais, mas também se configura como um dos fundamentos primordiais da República Federativa do Brasil, conforme disposto no art. 1º, III, da Constituição Federal.
Em concordância com todos os argumentos expostos ao longo deste trabalho e após uma pesquisa bibliográfica sobre o tema, chega-se à conclusão de que a defesa da prática da eutanásia se restringe a casos específicos, direcionados exclusivamente a indivíduos em estado terminal, portadores de doenças graves e incuráveis, que, consequentemente, enfrentam intensos sofrimentos físicos e psíquicos. Nesse contexto, é concebida como uma medida apropriada apenas quando conduzida por um profissional médico. A realização desse procedimento requer que a vontade do paciente seja expressa de forma clara e por escrito, demonstrando um consentimento informado e consciente.
A prática é condicionada à plena capacidade física e psíquica do paciente, garantindo que ele compreenda seu estado atual e as opções disponíveis. Essas diretrizes visam estabelecer salvaguardas rigorosas, assegurando que seja aplicada de maneira ética e respeitosa, em conformidade com os princípios da autonomia e dignidade da pessoa humana. A concepção de que a vida é um direito absoluto e indisponível requer uma flexibilidade, a fim de evitar a violação de outros direitos fundamentais, como o princípio da autonomia, o direito a uma vida digna e o princípio da qualidade de vida.
As pessoas devem ter o direito de encerrar suas vidas com dignidade, preservando sua autonomia, da mesma forma que os médicos necessitam de segurança jurídica em relação à prática da eutanásia ou ao suicídio assistido. Negar a um paciente a possibilidade de uma morte digna é uma afronta à sua dignidade como ser humano, violando seu direito à autonomia sobre o próprio corpo e o curso de sua vida. A prática da eutanásia não possui previsão legal no Brasil, mas mesmo diante dessa ausência no ordenamento jurídico nacional, observam-se iniciativas e debates em prol de sua legalização.
Em diversos países ao redor do mundo, o ato de abreviar a vida é realizado com respaldo legal, especialmente no continente europeu, onde legislações específicas a autorizam. Essa disparidade global reflete a diversidade de abordagens em relação à eutanásia, sendo que em alguns lugares ela é reconhecida como uma opção legítima para casos específicos, enquanto em outros permanece uma questão controversa e não regulamentada.
O sofrimento agudo e a dor intensa fundamentam os apelos pela legalização ao redor do mundo, pois tais indivíduos sentem que perderam completamente sua dignidade, autonomia, liberdade e vontade de viver. Para aqueles que enfrentam uma doença grave e incurável, ser compelido a atravessar longos períodos de intenso sofrimento físico e psicológico é considerado degradante e desumano.
A intenção ao apresentar a eutanásia como uma medida eficaz para assegurar a dignidade da pessoa humana no momento da morte não visa a uma abordagem indiscriminada da questão, mas sim a considerar sua aplicação em circunstâncias extraordinariamente específicas. A ideia é abordar situações nas quais não seria adequado prescindir da dignidade consagrada pela Constituição Federal, em virtude de um direito também claramente expresso por esta.
Dessa forma, a discussão sobre a eutanásia busca contextualizar sua possível implementação dentro de limites rigorosos e específicos, em conformidade com os princípios constitucionais que regem o respeito à dignidade humana.
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1Doutora em Direito Urbanístico da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Mestra em Direito do Urbanismo, do Ordenamento e do Meio Ambiente pela Universidade de Coimbra (2016). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás (2008). Atualmente é pesquisadora em tempo integral e docente do Centro Universitário Alfredo Nasser. E-mail: lorenatorres@unifan.edu.br.