ÉTICA E VIÉS EM ALGORITMOS DE IA: UMA ANÁLISE TÉCNICA, HISTÓRICA E CIENTÍFICA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202509070943


Tiago Mendes A. Mota de Avelar
Revisor: Manoel P de Lima Junior


Resumo 

A crescente adoção de sistemas de Inteligência Artificial (IA) em decisões sociais, econômicas e jurídicas tem exposto um problema crítico: o viés algorítmico. Esses sistemas, ao serem treinados com dados históricos, frequentemente incorporam e amplificam desigualdades existentes, resultando em decisões discriminatórias ou injustas. Este artigo investiga, sob uma perspectiva técnica e histórica, como os preconceitos presentes nos dados de treinamento afetam o comportamento dos algoritmos e quais estratégias têm sido desenvolvidas para a detecção, avaliação e mitigação desses vieses. São analisados casos emblemáticos, métricas de justiça algorítmica, técnicas computacionais de correção e as abordagens regulatórias mais recentes. A discussão propõe ainda caminhos futuros para o desenvolvimento de sistemas mais justos, transparentes e responsáveis. 

Palavras-chave: inteligência artificial, viés algorítmico, justiça algorítmica, ética em IA, aprendizado de máquina, dados enviesados, fairness, governança algorítmica, mitigação de viés, tomada de decisão automatizada. 

Introdução 

A ascensão da Inteligência Artificial (IA) ao centro das transformações tecnológicas contemporâneas trouxe benefícios significativos em diversas áreas — desde diagnósticos médicos até recomendações de consumo, passando por sistemas judiciais, recrutamento e segurança pública. No entanto, junto com esses avanços, emergem preocupações éticas críticas, sendo o viés algorítmico um dos temas mais urgentes. À medida que os sistemas automatizados assumem papéis de tomada de decisão, a possibilidade de replicarem ou até amplificarem preconceitos sociais tornou-se uma questão central para pesquisadores, engenheiros e legisladores.

Este artigo oferece uma abordagem técnica e histórica sobre os vieses em algoritmos de IA, investigando suas causas, impactos e possíveis estratégias de mitigação. A análise é baseada em evidências empíricas, revisão científica e práticas de engenharia, buscando oferecer uma base robusta para reflexão e desenvolvimento responsável da tecnologia. 

1. A Formação do Viés Algorítmico: Uma Perspectiva Técnica 

O Papel dos Dados de Treinamento 

O problema do viés algorítmico em sistemas de Inteligência Artificial está fortemente enraizado na estrutura e na composição dos dados de treinamento utilizados durante a fase de modelagem. Em algoritmos de aprendizado de máquina, especialmente os supervisionados, a lógica de aprendizado se baseia na replicação de padrões estatísticos observados em dados históricos. No entanto, quando esses dados refletem desigualdades sociais, discriminações ou omissões sistêmicas, os algoritmos aprendem a reproduzir — e frequentemente amplificar — essas distorções. 

Esses vieses se manifestam de forma concreta em aplicações críticas. Por exemplo, considere um sistema de triagem automática de currículos alimentado com dados de contratações passadas de uma empresa. Caso esse histórico reflita preconceitos de gênero ou raça, o modelo de IA pode aprender associações indevidas, como priorizar candidatos masculinos ou brancos, mesmo quando não há justificativa técnica para essa preferência. O algoritmo, neste caso, não está “pensando”, mas apenas replicando os padrões existentes nos dados fornecidos. 

Além disso, é importante destacar que esses problemas não decorrem necessariamente de má intenção ou erro explícito dos desenvolvedores. Muitas vezes, os dados de entrada são considerados “neutros”, quando, na verdade, carregam implicações sociais profundas. A falta de representatividade em datasets, a coleta enviesada de amostras e a ausência de dados sobre grupos vulneráveis tornam a IA suscetível a erros sistemáticos com impactos éticos relevantes, principalmente em domínios sensíveis como justiça, saúde e educação. 

Tipos de Viés 

Os vieses algorítmicos podem ser classificados de forma técnica em diferentes categorias, cada uma com causas distintas e formas específicas de mitigação. O viés de amostragem, por exemplo, ocorre quando o conjunto de dados utilizado para treinar o modelo não representa adequadamente a diversidade da população real. Isso pode acontecer devido à exclusão involuntária de certos grupos ou pela super-representação de outros, distorcendo a capacidade do modelo de generalizar seu desempenho.

Outro tipo relevante é o viés histórico, que se manifesta quando os dados de entrada refletem práticas discriminatórias do passado. Isso é comum em sistemas de policiamento preditivo ou modelos de crédito, onde decisões passadas — marcadas por discriminação racial ou de classe — são interpretadas pelo algoritmo como “normais”, levando à perpetuação de desigualdades. O viés de medição também é recorrente, e ocorre quando variáveis utilizadas como substitutas para atributos sensíveis (por exemplo, endereço como proxy de condição socioeconômica) induzem o modelo a conclusões equivocadas. 

Adicionalmente, o viés de modelagem emerge das próprias escolhas técnicas feitas durante a criação do modelo, como a função de perda ou as métricas de desempenho utilizadas, que muitas vezes ignoram aspectos relacionados à equidade. Já o viés emergente se manifesta na interação do sistema com o ambiente em tempo real, quando o uso contínuo do algoritmo em diferentes contextos altera seu comportamento de forma inesperada. Esses tipos de viés podem coexistir e se reforçar, exigindo uma abordagem técnica multifacetada para sua identificação e mitigação. 

2. Histórico e Contextualização do Debate Ético 

Primeiras Discussões: De Sistemas Especialistas ao Aprendizado de Máquina 

O debate sobre ética em computação começou a ganhar relevância acadêmica nos anos 1970, quando os primeiros sistemas automatizados começaram a ser empregados para suporte à decisão. Com a consolidação dos sistemas especialistas nas décadas seguintes, os profissionais da área passaram a discutir os riscos associados à automatização de julgamentos humanos. Contudo, esses sistemas eram baseados em regras explícitas, permitindo rastrear facilmente suas decisões, o que mitigava em parte as preocupações com viés. 

A virada tecnológica ocorreu com o surgimento e posterior avanço do aprendizado de máquina, especialmente no início dos anos 2000. Diferente dos sistemas simbólicos, os modelos baseados em dados operam por meio de inferência estatística, detectando correlações em grandes volumes de dados sem que haja uma programação direta para cada decisão. Isso introduziu uma camada de opacidade e imprevisibilidade, pois os próprios desenvolvedores nem sempre conseguem explicar as decisões tomadas pelos modelos. 

A partir da popularização dos modelos de deep learning — com múltiplas camadas e milhões de parâmetros —, os sistemas de IA se tornaram verdadeiras “caixas-pretas”, o que tornou mais difícil identificar e corrigir vieses internos. Essa transformação intensificou as preocupações éticas, levando pesquisadores, engenheiros e reguladores a desenvolver métodos específicos para análise e mitigação de injustiças algorítmicas, além de questionar o papel social desses sistemas. 

Casos Notórios 

Diversos eventos públicos e bem documentados ajudaram a evidenciar os perigos concretos do viés algorítmico. Um dos exemplos mais emblemáticos foi o caso do sistema COMPAS nos Estados Unidos, utilizado para prever a reincidência de presos em julgamentos criminais. Estudos revelaram que o sistema tendia a superestimar o risco de reincidência para indivíduos negros e a subestimar o risco para brancos, evidenciando um viés racial significativo com implicações jurídicas sérias. 

Outro caso relevante envolveu a gigante Amazon, que em 2018 descontinuou um sistema interno de recrutamento automatizado. A IA penalizava sistematicamente currículos femininos, tendo aprendido com dados históricos de contratações majoritariamente masculinas na empresa. Isso gerou forte repercussão pública e mostrou como mesmo empresas tecnológicas avançadas podem ser vítimas de seus próprios vieses algorítmicos. 

O reconhecimento facial é mais um campo que tem sido amplamente criticado por seus erros discriminatórios. Pesquisas conduzidas pelo MIT e pela Georgetown University revelaram taxas de erro significativamente mais altas na identificação de rostos de mulheres negras, quando comparadas com homens brancos. Isso se deve, em parte, ao desequilíbrio racial e de gênero nas bases de dados utilizadas para treinar os algoritmos. Esses casos impulsionaram uma onda de iniciativas voltadas à regulação e à ética na IA. 

3. Avaliação Técnica de Viés: Métricas e Métodos 

Métricas de Justiça Algorítmica 

A avaliação de viés em algoritmos requer critérios técnicos bem definidos que permitam quantificar desigualdades. Dentre as métricas mais adotadas está a Equal Opportunity, que exige que a taxa de verdadeiros positivos (ex: acertos na concessão de crédito) seja igual entre diferentes grupos. Outra métrica comum é a Demographic Parity, que visa garantir que a taxa de decisões positivas seja uniforme entre os grupos, independentemente de características demográficas. 

Uma terceira abordagem importante é a Calibration, onde se espera que, para cada nível de probabilidade previsto pelo modelo, a frequência real do evento seja consistente em todos os grupos. Por exemplo, se um modelo atribui 70% de risco a dois indivíduos de grupos diferentes, ambos deveriam ter a mesma chance observada de falhar ou ter sucesso na realidade. Essas métricas ajudam a sistematizar a detecção de viés, permitindo comparações entre modelos e contextos distintos.

Contudo, há limitações fundamentais: muitas dessas métricas são mutuamente incompatíveis. O teorema da impossibilidade de Kleinberg et al. (2016) demonstrou matematicamente que, em cenários com diferentes prevalências entre grupos, é impossível satisfazer simultaneamente todas as métricas de justiça. Isso obriga engenheiros e responsáveis técnicos a fazerem escolhas informadas sobre qual forma de justiça priorizar, de acordo com os objetivos e os riscos de cada aplicação. 

Técnicas de Detecção e Mitigação 

A mitigação do viés algorítmico pode ser implementada em três fases principais do ciclo de desenvolvimento de um modelo. No pré-processamento, os dados podem ser balanceados, anonimizados ou reamostrados para garantir maior equidade antes mesmo do início do treinamento. Técnicas como “reweighing” e “disparate impact removal” são amplamente utilizadas para ajustar a distribuição dos dados de forma técnica e eficaz. 

Durante o treinamento, ou seja, no in-processing, é possível incorporar critérios de equidade diretamente na função de perda ou utilizar frameworks de otimização multiobjetivo. Isso permite que o modelo aprenda a maximizar acurácia ao mesmo tempo em que minimiza disparidades entre grupos. Modelos adversariais também têm sido usados para forçar o modelo a “esquecer” atributos sensíveis como gênero ou etnia, mantendo a performance em atributos relevantes. 

No pós-processamento, as decisões finais do modelo são ajustadas com base em critérios de justiça, como a redefinição de thresholds de decisão para garantir proporcionalidade entre grupos. Embora essas técnicas sejam promissoras, elas trazem dilemas complexos: podem reduzir a acurácia global, criar novos tipos de enviesamento ou sacrificar a interpretabilidade. Assim, a escolha da técnica adequada exige avaliação técnica rigorosa, sensibilidade ética e entendimento do contexto específico da aplicação. 

4. Avaliação Técnica de Viés: Métricas e Métodos 

4.1 Métricas de Justiça Algorítmica 

A comunidade científica tem se dedicado a definir formalmente o que significa “justiça” para sistemas algorítmicos. Algumas métricas incluem: 

Equal Opportunity: a taxa de verdadeiros positivos deve ser igual entre grupos. 

Demographic Parity: a decisão positiva (ex: concessão de crédito) deve ocorrer com mesma frequência para diferentes grupos. 

Calibration: a probabilidade prevista de um evento (ex: inadimplência) deve corresponder à frequência observada, independentemente do grupo.

No entanto, diversas dessas métricas são mutuamente incompatíveis, levando à chamada impossibility theorem em justiça algorítmica, descrita por Kleinberg et al. (2016), segundo a qual não é possível satisfazer todas as métricas ao mesmo tempo em contextos reais com prevalências diferentes entre grupos. 

4.2 Técnicas de Detecção e Mitigação 

As abordagens para mitigar o viés podem ser agrupadas em três categorias: 

Pré-processamento: manipulação dos dados de entrada, como balanceamento de classes, anonimização ou reamostragem. 

Durante o processamento (in-processing): modificação do algoritmo de treinamento para incorporar critérios de equidade, como otimização multiobjetivo que inclui métricas de justiça. 

Pós-processamento: ajuste das decisões finais (thresholding, relabeling) para garantir proporcionalidade entre grupos. 

Modelos adversariais, fairness-aware learning, e técnicas de fairness constraints têm se mostrado promissoras, mas ainda exigem trade-offs importantes entre desempenho, interpretabilidade e equidade. 

5. Perspectivas Regulatórias e Sociais 

5.1 Marcos Legais 

A União Europeia, com a Lei de Inteligência Artificial (AI Act), é pioneira ao classificar sistemas de IA por grau de risco e exigir avaliações de impacto ético e de viés. Nos EUA, embora não haja uma legislação federal unificada, órgãos como o FTC vêm pressionando empresas para maior responsabilidade algorítmica. No Brasil, a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA) e projetos como o PL 21/2020 tentam definir diretrizes para o uso ético de IA. 

Essas normas exigem transparência, explicabilidade, auditorias algorítmicas e a participação de diversos stakeholders na concepção dos sistemas. 

5.2 Governança e Auditoria 

Organizações têm criado comitês de ética, práticas de “AI Governance” e frameworks como Ethics by Design, incorporando questões sociais desde a concepção do modelo. Iniciativas de auditoria algorítmica externa — incluindo auditorias independentes e auditorias participativas com usuários afetados — têm ganhado espaço como forma de democratizar e validar os sistemas automatizados.

6. Desafios Abertos e Caminhos Futuros 

Apesar dos avanços, diversos desafios permanecem: 

Interpretação e explicabilidade de modelos complexos, como transformers e redes neurais profundas. 

Bias interseccional, quando múltiplas identidades (raça, gênero, classe) se cruzam e intensificam injustiças. 

Adoção de métricas de equidade específicas ao contexto, evitando soluções genéricas. 

Educação ética em engenharia de dados, formando profissionais conscientes dos impactos sociais da tecnologia. 

Além disso, é fundamental fomentar o desenvolvimento de bases de dados mais inclusivas, garantir participação social na governança da IA e promover diversidade nas equipes técnicas que projetam algoritmos. 

Conclusão 

A crescente integração de sistemas de Inteligência Artificial em decisões humanas de alta relevância social impõe um imperativo ético e técnico para a identificação e mitigação de vieses algorítmicos. Esses sistemas, ao dependerem de dados históricos e operarem com estruturas opacas de modelagem, tornam-se suscetíveis à reprodução de desigualdades estruturais já presentes na sociedade. Como demonstrado ao longo deste artigo, o viés algorítmico não é uma anomalia pontual, mas uma consequência direta de decisões técnicas e epistemológicas sobre coleta de dados, seleção de variáveis e definição de objetivos de otimização. 

A justiça algorítmica, portanto, deve ser tratada como uma dimensão central do desenvolvimento de IA, exigindo métricas específicas, métodos rigorosos de avaliação e ferramentas de auditoria contínua. No entanto, a impossibilidade de satisfazer todas as métricas de justiça simultaneamente mostra que não há soluções universais. A escolha de métricas, estratégias de correção e formas de governança devem ser contextualizadas de acordo com o domínio de aplicação, os riscos sociais envolvidos e as necessidades dos grupos potencialmente afetados. 

Além da técnica, é fundamental incorporar uma abordagem interdisciplinar que una ciência da computação, ciências sociais, direito, filosofia e design. A inclusão de diferentes vozes — especialmente de populações historicamente marginalizadas — no processo de concepção, avaliação e uso dos sistemas de IA é condição necessária para democratizar a tecnologia e garantir sua responsabilidade social. Isso envolve práticas de governança ética, diversidade nas equipes de desenvolvimento, transparência no funcionamento dos modelos e mecanismos reais de contestação por parte dos usuários. 

Construir uma IA mais justa, transparente e confiável não é apenas um desafio científico, mas uma escolha política e institucional. Requer mudanças na forma como se ensina, regula e aplica a tecnologia, bem como o reconhecimento de que os algoritmos não são neutros. Ao contrário, eles refletem e amplificam valores, intenções e estruturas de poder. O compromisso com a ética algorítmica não deve ser apenas um adendo às boas práticas de engenharia, mas uma base fundacional para qualquer projeto que vise o uso socialmente responsável da inteligência artificial. 

Bibliografia 

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● O’Neil, C. (2016). Weapons of Math Destruction: How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy. Crown Publishing Group. 

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