STIGMAS OF PROSTITUTION: THE MEANING AND CONSTRUCTION OF BEING A WOMAN
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202408220716
Briena Padilha Andrade Beltrame1; Raphaella Rosa Horst Massuqueto2; Iria Barbara de Oliveira3; Tatiane Baratieri4; Juliana Rodrigues Hamm5; Talita Mendes dos Santos6; Vanice Andrade da Cruz7; Rafael Siqueira de Guimarães8
RESUMO: O presente estudo objetivou compreender o significado do ser mulher no labor da prostituição e o estigma que a mulher prostituta carrega. O ser mulher é carregado de posturas e códigos construídos, replicados e sustentados pelas instituições sociais detentoras de poder. A mulher que exercesse a prostituição, devido ao ser trabalho, quebra essa construção e assim, carrega consigo uma série de estigmas, que a excluem e segregam da figura idealizada do que é ser mulher. O ser mulher ou homem, vai muito além do que é empregado socialmente, diz respeito a como a você se vê, como se caracteriza e como se percebe. As prostitutas são mulheres, são sujeitos dotados de direitos e merecem serem vistos e respeitados como tal e vai muito além do que é empregado socialmente, diz respeito a como a você se vê, como se caracteriza e como se percebe.
PALAVRAS-CHAVE: Mulher; prostituição; estigma
ABSTRACT: This study aimed to understand the meaning of being a woman in the prostitution’s work and the stigma that they carry. Being a woman is loaded with postures and built codes, replicated and sustained by social institutions that hold power. The woman who practiced prostitution, due to being work, breaks this construction and thus carries with her a series of stigmas, which exclude and segregate her from the idealized figure of what it is to be a woman. Being a woman or a man goes far beyond what is socially employed, it concerns how you see yourself, how you characterize yourself and how you perceive yourself. Prostitutes are women, they are subjects endowed with rights and deserve to be seen and respected as such, and as well as workers in other professions, it concerns how you see yourself, how it is characterized and how it is perceived.
KEYWORDS: Women; prostitution; stigma
Introdução
A prostituição feminina é um fenômeno social e de origem histórica constante em quase todas as civilizações. No cenário popular, a prostituição é posta como o mais antigo labor que o ser humano presenciou. Esse fato, não pode ser validado totalmente, o que se sabe são as evoluções e transformações que a profissão sofreu ao longo dos anos, seja no aspecto da conceituação, da legitimação ou da visão da social (CUNHA, 2012; FONAI; DELITTI, 2007).
A figura feminina e o ser mulher passou por diversas faces ao da história. Diferente do que vivenciamos atualmente, onde a dominação masculina se faz tão forte, a mulher encontrava-se como ponto central da sociedade, era endeusada como grande detentora de poder, isso graças aos seus feitos, como domesticação de animais, criação de ferramentas, descoberta de plantas que serviriam como alimentos, e o maior deles a capacidade de, através dos seus corpos, gerarem vida. Com o passar dos anos, por influências religiosas, o patriarcado se perpetuou e a mulher, passou então, a ser vista como subcategoria à margem masculina (ROBERTS, 1998).
Fato é que esse quadro mudou novamente, especialmente após a década de 1960, onde ocorreu a revolução feminista e as mulheres foram buscar os direitos intrínsecos a condição do ser, como trabalho e educação formal, algo já naturalizado atualmente (MORAES, 2012).
A prostituição seguiu essas modificações no que tange a visão da mulher, segundo Roberts (1998), inicialmente as mulheres que exerciam essa profissão eram vistas como deusas e o sexo com elas era sagrado, posteriormente com o advento do cristianismo, ficaram a margem da sociedade, sendo excluídas das demais classes de mulheres que não atuavam nessa profissão.
Ceccarelli (2008) comenta que na Grécia antiga, a prostituição era um meio de sustento igual a qualquer outro e inclusive muito cotidiano, sendo regulamentado pelo estado. Desta forma, as prostitutas pagavam altos impostos e se vestiam para serem identificadas como tal. Haviam inclusive diversas categorias de prostituição, como por exemplo as hetairas, que participavam de atividades do universo masculino, cuidavam dos próprios bens, tinham competências para a articulação política e trabalhavam em bordeis, os quais não sofriam de descriminações. Essas eram consideradas umas das mulheres mais instruídas da Grécia, pois frequentavam escolas com o objetivo de aprender sobre a arte do amor, a filosofia e a retórica e literatura.
Com o passar do tempo, os homens começaram a alcançar ainda mais o poder, fazendo com que a sociedade ficasse cada vez mais dividida através das hierarquias, destacando o enorme espaço existente entre os bem-nascidos e os malnascidos. Essa distinção veio a se fazer evidente na classe das sacerdotisas prostitutas no templo, onde algumas, em acordo com o regime imposto, conseguiram manter a sua elevada classe. Outra divisão que ocorreu, essa que podemos dizer, que ainda hoje permanece, é a divisão entre as mulheres que são destinadas ao cargo de esposas e as prostitutas (ROBERTS, 1998).
As leis para com as prostitutas começaram a ser mais rígidas. As mulheres esposas eram alvo da repreensão e domínio dos maridos. Já os homens não estavam acostumados com a perda das antigas liberdades, então, quando queriam ter uma relação extraconjugal, ou seja, que não fossem mantidos com nenhuma de suas esposas e amantes, eles recorriam às prostitutas. Elas que mantinham a sua liberdade sexual, resistindo às leis, cada vez mais estreitas, que lhes impunham, sendo uma adversária ao regime patriarcal e sua autoridade (ROBERTS, 1998).
Atualmente, vincula-se comumente a esse labor mulheres de classes mais baixas, com pouca ou nenhuma instrução, que o realizam por não terem outra opção; apesar de verídico esse fato não é geral, visto que muitas mulheres das classes média e alta, com formação universitária, optam por exercer a prostituição, caracterizando esse trabalho como outro qualquer, além disso, por seus atributos essas mulheres são melhor vistas no mercado (ROBERTS, 1998).
O ser mulher na sociedade é um fato carregado por muitos estigmas e estereótipos, e se tratando da mulher, prostituta, isso se aflora ainda mais. Compreender o significado do ser mulher para essas profissionais, é imprescindível, pois nos leva a observá-las, ouvi-las e ressaltá-las como seres sociais, permeados por direitos, vontades, abdicações, assim como uma trabalhadora mulher de qualquer área de atuação, o objeto de trabalho modifica, mas a essência do ser humano não.
Diante do exposto e de toda a problemática que envolve a figura da mulher prostituta na sociedade, o presente estudo tem o objetivo de compreender o significado do ser mulher para mulheres que exercem o labor da prostituição e o estigma envolto nessa profissão.
Caminho metodológico
O estudo foi realizado em duas casas noturnas do Município de Guarapuava-PR, foram entrevistadas 06 mulheres as quais exerciam a prostituição, enquanto atividade laboral, três de cada uma das casas. Para a coleta de dados, valeu-se da técnica de história oral, onde elas puderam discorrer sobre a sua trajetória de exercício do labor prostitucional, além de discutir conceitos de direito, estigma, ser mulher. Os dados foram trabalhados de acordo com a técnica de análise de conteúdo de Bardin.
Ressalta-se que a pesquisa seguiu todos os preceitos éticos no que concerne a pesquisa com seres humanos. Sendo o estudo avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética e pesquisa da Universidade Estadual do Centro Oeste-UNICENTRO, no parecer 487.703 de 10/12/2013. As participantes foram esclarecidas quanto aos objetivos da pesquisa e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Os seus nomes, neste trabalho foram substituídos por nomes fictícios para manter o seu anonimato.
Histórico da prostituição em Guarapuava
O município de Guarapuava, cenário da presente pesquisa, é um local guiado por parâmetros conservadores, pautados na moral familiar e cristã. Apesar de todo o conservadorismo da cidade, a prostituição se mostrou e se mostra presente na história desse local. Assim como em outras sociedades, a prostituição em Guarapuava sofreu mudanças ao longo dos anos, contrapondo-se em alguns pontos à atividade prostitucional que, hoje, é vista nesse espaço. Abaixo, apresento um breve panorama histórico da prostituição em Guarapuava e as transformações sofridas por esse labor.
A cidade de Guarapuava, nasceu com a assinatura do formol e a instalação da freguesia de Nossa Senhora do Belém, em nove de dezembro de 1819 (Guarapuava, 2014). A prostituição nesse local, inicialmente, foi praticada por escravas, tendo surgido para saciar as carências de variados segmentos da sociedade, visto que a mulher branca daquela época deveria preserva-se das luxúrias, sendo espelho de mãe e mulher. Existem evidências de que as primeiras casas de prostituição em Guarapuava surgiram no ano de 1908, nas proximidades da atual Lagoa das Lágrimas e da Catedral de Nossa Senhora do Belém, pontos que hoje se localizam no centro da cidade e eram chamadas de “Casas de Tolerância” (SALDANHA, 2013).
Entre as décadas de 1940 e 1960, a zona de meretrício era então a Vila Pequena, onde o comércio do sexo se fazia muito presente, visto que não havia muitas opções de lazer, a prostituição era a maior fonte de distração nesse período. Fazendeiros e outros homens da região vinham a esses locais em busca de prazeres e diversão. Esse espaço chegou a ser ocupado por 57 casas de prostituição (SALDANHA, 2013). Os estabelecimentos de prostituição encontrados nessa época, em Guarapuava, eram basicamente de duas formas: os cabarés e dos bordéis. Os cabarés eram locais requintados, chefiados por uma gerente que tomava conta de tudo com muita excelência. As mulheres que lá trabalhavam eram bem vestidas, educadas e sabiam portar-se de forma mais discreta, sendo criteriosamente selecionadas pela dona da casa. Era comum esses locais contemplarem a sua clientela com shows de ballet, musicais e bailes temáticos. O público, seguindo a lógica do local, era composto por homens ricos, que estavam dispostos a gastar muito dinheiro com essas profissionais, oferecendo-lhes, segundo Saldanha (2013) traz em sua obra, joias, casas e luxo. Segundo a autora, existia apenas um cabaré em toda a zona de meretrício da vila pequena.
Os bordéis da época faziam a vez da baixa prostituição, as mulheres que lá laboravam eram consideradas vulgares, sem educação, a clientela não tinha tanto dinheiro e não existiam os grandes eventos do cabaré. A própria dona da casa é que comandava o negócio. Ainda existiam alguns bares, onde, além de bebidas alcoólicas, ofereciam-se encontros para os clientes. Hoje em Guarapuava, não é possível encontrar a prostituição praticada nos cabarés, pautada no luxo e requinte; o que se observa, hoje, são as casas de baixa e média prostituição, além da prostituição de rua, praticada por mulheres e travestis (SALDANHA, 2013).
As casas de prostituição eram tão visadas e vigiadas que as donas da casa, para o funcionamento dos locais, deveriam pagar uma taxa de licenciamento para a prefeitura, além de tributos sobre os produtos vendidos, a exemplo das cervejas e cigarros. Cada um desses produtos, adquirido para a comercialização, deveria ter autorização da prefeitura para a venda. O horário de funcionamento desses ambientes também era determinado pelas autoridades, das 22 às 4 h, porém, muitas casas burlavam tal regra (SALDANHA, 2013). Esses fatos contrapõem a dinâmica da prostituição hoje, pois as casas não pagam diretamente tributos sobre os produtos vendidos, além de não necessitarem de permissão para compra e venda. O horário de funcionamento também é diferenciado, sendo estipulado de acordo com cada ambiente, geralmente, inicia-se no período da tarde, não tendo horário para fechamento.
Na contemporaneidade, Guarapuava, conta com variados serviços de prostituição, entre eles estão à prostituição de rua, bares e casas noturnas. A prostituição de rua, que é comumente exercida por travestis, fato que não foi encontrado no tempo remoto. A atividade prostitucional em bares, considerados baixo meretrício, pela clientela e condições do ambiente. E a prostituição em casas noturnas, uma das mais, senão a mais convencional pode ser encontrada em diversos bairros, mescladas a casas de família, comércio, igrejas, escolas.
Esses ambientes são facilmente identificados e conhecidos no local, pois em sua estrutura apresentam atributos que denotam, como muros altos, nomes chamativos, ou a famosa luz vermelha. Algumas profissionais do sexo são autônomas, oferecem e fazem propaganda de seus serviços em blogs, sites e redes sociais; nesses espaços elas denominam-se acompanhantes, geralmente essa classe de trabalhadoras do sexo atendem em hotéis e motéis. É comum encontrar nesses endereços eletrônicos, homens oferecendo serviços sexuais, o que não é comum encontrar nos estabelecimentos de prostituição, visto que esse labor, na maior parte, ainda é feminino.
Para contextualizar a prostituição na contemporaneidade em Guarapuava, foi explanado durante o texto abaixo algumas citações feitas pelas profissionais entrevistadas para o presente trabalho, mulheres que hoje tem seu jeito próprio de vivenciar o labor, porém, que em muitos pontos trazem traços das suas antecessoras.
O ser mulher: um estigma a ser enfrentado
Em nossa sociedade, o ser e constituir-se mulher requer uma série de comportamentos, posturas, condutas, direções, que são historicamente concebidos e empregados aos indivíduos do sexo biológico feminino. Essas perspectivas referentes a forma de ser uma mulher, são produtos de uma sociedade pautada no patriarcalismo, na qual, paira a heteronormatividade.
Simone de Beauvoir (1967), em sua obra “O Segundo Sexo” traz a seguinte frase: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. De acordo com a autora, a ideação sociocultural do que é ser mulher, está condicionada a uma série de posicionamentos que os indivíduos que assumem essa condição devem exercer se quiserem se semelhar a visão de mulher, por exemplo, contenção, doçura, discrição, omissão, languidez, decência e compostura. A elas é ensinado e aguardado ações de cuidar, de se dedicar, maneiras peculiares de vestir-se, pentear-se, evidenciando a feminilidade que deve ter. Essa simbologia parece ser socialmente sustentada e reproduzida quando se menciona a figura feminina.
A frase de Simone Beauvoir “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” foi exprimida por muitas mulheres de variados posicionamentos, elas faziam alusão a essa citação para expressar que o ser e estar nesse mundo não é algo inato, dado a priori, mas sim, que configura todo um processo de construção. Nessa perspectiva, o ser mulher estava unida a uma cadeia de atributos, tais como, gestos, comportamentos, das prioridades, das contrariedades, os quais lhes eram ensinados e replicados em suas vivências cotidianas, respeitando as regras e valores de certa cultura (LOURO, 2008).
Os elementos antagônicos da identidade masculina e feminina se desenham, através de formas fixas de se utilizar o corpo, ou ainda, de manter certas posições, que se apresentam como que efetuação, melhor dizer, a naturalização de um tipo de ética (BOURDIEU, 2002).
Segundo Louro (2008) nada é dado a princípio, ou seja, natural, intrínseco que já nasce com o indivíduo. A figura do ser homem ou mulher, se faz através de sistemas que se dão em consonância com o meio cultural que esses vivem, que lhes vão esculpindo tais posicionamentos. O mesmo autor, faz alusão a um escultor, que utiliza barro para fazer uma peça, essa peça não existe a princípio naquele barro, mas com o tempo e trabalhado empregados, ela é moldada e vai se formando, para atender certa encomenda, de acordo com as instruções a quem será vendida. Assim são os seres humanos, ao nascerem, são modelados para que correspondam a determinados atributos, que os caracterize enquanto mulher ou homem.
A formação dos gêneros e sexualidades acontecem por meio de várias aprendizagens e práticas, insinuam-se nas mais diversas situações, são constituídas de modo explícito ou disfarçado por um conjunto interminável de instâncias sociais e culturais. É um processo meticuloso, delicado, sempre inacabado. Família, instituições escolares, legais, médicas e religiosas, mantêm-se por certo, como âmbitos importantes nesse processo constitutivo (LOURO, 2008).
Essas instituições trazidas pelo autor, igreja, família, escola, medicina, são fragmentos que colaboram em todo o processo de construção do ser homem e mulher, da sexualidade e forma de experienciar essa (LOURO, 2008). Indicações, expressões de ordem nos questionam incansavelmente disciplinando-nos sobre saúde, posturas, religiões e amor. Assim, ditam o que devemos priorizar, acatar ou enjeitar, auxiliando-nos a arquitetar corpos e estilos, os quais nos conduzem sobre a forma de viver e existir.
Como já abordado, parte desses conselhos surgem de instituições que já possuem certo grau de poder, como a medicina, família, religião e justiça (LOURO 2008). Essas instituições, tidas como autoridades, em nosso cotidiano, seguem nos moldando, assim como o barro do escultor, nos sinalizando os percursos certos e incertos, as coisas corretas ou incorretas, as atitudes decentes ou indecentes, o que se enquadra no ser homem ou não, o que se enquadra no ser mulher ou não, e como devemos agir para sermos reconhecidos e respeitados enquanto tal.
Diante dessa dualidade de comportamentos padronizados para homens e mulheres, no que cerne a expectativa social depositada em um e outro comportamento, a mulher, prostituta, vem afrontar com os atributos e comportamentos designados a uma mulher de recato, doçura, submissão, fechamento. Ela quebra com essa ética previsível de seu corpo, de sua postura. Ao valer-se de ferramentas de trabalhado que erotizam a sua figura, ao conquistar homens, ir à luta pelo o que querem, no caso os clientes, assumem um papel socialmente construído e designado ao ser masculino.
Dessa forma, ela acaba sendo anulada no ponto de vista do ser mulher, ou essa sua face acaba ficando adormecida, dando lugar somente a sua profissão. Visto que, ainda, hoje, mesmo que de forma muitas vezes maquiada, essas características que constituem o ser mulher, são valoradas, e no caso das prostitutas, que não se emoldam nesse estereótipo, acabam sofrendo exclusões, pois, ela confrontada com o modelo ideal de mulher, não merecendo assim, aos olhos da sociedade, ser valorizada como ser social, como mulher. Na fala da participante deste trabalho, abaixo esse estigma fica revelado:
“Sempre evito falar que trabalho como profissional do sexo, principalmente nos lugares que não me conhecem, assim, as pessoas têm mais respeito, se eles souberem que é mulher da zona, acham que podem fazer tudo.” (SABRINA)
Ao refletir sobre o que se enquadra ou não na figura do ser mulher, pensa-se sobre certas condutas e performances adotas, isto quer dizer que, o ser feminino é descrito por uma forma de agir e se portar. No que se refere a mulher, cada sociedade e tempo, encontram-se requisitos que ela deve ter para ser socialmente vista como uma pessoa de valor (RUSSO, 2007). A autora reforça que, de acordo com o meio sociocultural que a mulher está, ela deve representar determinados papéis e ações, que as tornam ou não, assentidas e respeitadas enquanto mulheres, enquanto seres sociais e de direitos.
A prostituta, muitas vezes é ligada ao lado indesejado do ser feminino, pois liga-se a ela a vivência livre da sexualidade, a depravação, em contradição com os papeis estipulados e construídos para a mulher, sendo estes o da maternidade e submissão ao prazer do outro (RUSSO, 2007). Quando omitem as diferenças, os estereótipos que cercam esta categoria são utilizados como tentativa de organização de um certo caos, já que a prostituta é o elemento que representa a desorganização do padrão de conduta sexual admitido. É então produzida uma classificação da prostituta que destaca a ideia de perigo e de deformação do seu papel feminino (MORAES, 1996)
Scott (2005), ao abordar a temática de indivíduos e grupos, traz que ao optar pelo grupo, anula indivíduo. A prostituta ao optar pelo labor da prostituição (grupo de trabalho), abole o ser mulher honrada, mulher normal, por toda a questão de estigma em torno de seu trabalho, ou seja, ela rompe com o papel que é construído, reproduzido e educado, desde que uma pessoa nasce do sexo biológico feminino.
É indispensável distinguir quem é considerado como um indivíduo normal e aquele que inserido no modelo da anormalidade. Os conceitos de norma e distinção são notadamente relevantes atualmente. É necessária uma reflexão sobre essas ideias (LOURO, 2008). O que faz com que determinados sujeitos sejam considerados normais, ao passo que outros, não, é o que determina esse padrão de normalidade. Seguindo esse pensamento, temos a indagação, o que faz com que a prostituta seja segregada das mulheres vistas como comuns? Isso se dá ao fato de sua atividade laboral envolver questões como sexualidade, prazeres sexuais, algo que às mulheres, muitas vezes é taxado como algo inaceitável? Ou que deve ser vivenciado de forma comedida?
A diferença não preexiste nos corpos dos indivíduos para ser simplesmente reconhecida; em vez disso, ela é atribuída a um sujeito (ou a um corpo, uma prática, ou seja, lá o que for) quando relacionamos esse sujeito (ou esse corpo ou essa prática) a um outro que é tomado como referência. Portanto, se a posição do homem branco heterossexual de classe média urbana foi construída, historicamente, como a posição de sujeito ou a identidade referência, segue-se que serão “diferentes” todas as identidades que não correspondam a esta ou que desta se afastem (LOURO, 2008). A diferença só se sustenta porque se confere a certos indivíduos, com base em atributos socialmente engendrados, o grau de normalidade, quando outros contestam esses atributos vistos como “normais”, são estereotipados enquanto seres “anormais” e sofrem o estigma, a segregação, puramente por serem quem são.
Goffman (1988) aborda que os indivíduos normais são o nível para separar os demais. Assim é a mulher que se dedica a prostituição; o status de normalidade é quebrado, pois ela na maioria das vezes, deixa de alimentar condutas esperadas para uma mulher ou, melhor explicando, ela opera de algumas formas que são condenadas ao ser mulher. Assim, acontece a separação entre as mulheres de bem, recatadas, valoradas, para casar, mães de família e a prostituta; embora muitas mulheres que atuam na prostituição, exercem também os papéis, de mulher de família e mãe. Apesar de isso não ser aceito socialmente, o fato dela ser uma profissional da prostituição, não anula, a essência do seu ser mulher.
Moraes (1995) pondera sobre a dicotomia existente nos modelos de representação da sociedade ocidental, esses que possibilitaram a ocorrência de formas duais de classificação, a exemplo: certo/ errado, imaculada/ pecadora, puta/casta, dentre outras. Na formulação desse conjunto de categorias, os espaços com atributos eróticos e libertinos, são considerados locais para as mulheres pervertidas, sem pudor, pecadoras. Esses arranjos interferem na ordem moral, as despudoradas vão afastar das puritanas, o que é sexualmente pervertido. A face da libertinagem seria para prostituta, a face do lar, família, para o restante das mulheres.
O comportamento da mulher do século XIX, é expressado na obra de Perrot (2003), a autora revela que essas mulheres deveriam ser discretas, se despontando muitas vezes através de códigos, que se alteravam segundo a coletividade vigente. O puder era inerente da mulher dessa época, elas não mencionam o sexo e sexualidade, mantinham-se dormentes em meio a tais. A figura da mulher era atrelada ao pecado, nessa época, sendo grande tentadora a estimular os outros indivíduos a cometerem o mesmo. Isso explica, os malabarismos que eram realizados para deter esse pecado, calar e vedar essas mulheres.
O prazer era algo proibido para elas, em muitos casos negado, experenciar essa sensação era coisa de prostitutas, isto é, a sexualidade e o prazer, segregava as mulheres boas das más. Desse modo, a prostituta era, e ainda é incorporada ao pecado, visto que ela desfaz a visão pura e discreta que é admissível à mulher, pois ela usufrui e faz os outros usufruírem de vários prazeres, por conseguinte, seriam elas as pecadoras mais influentes. Mesmo dois séculos depois, a dicotomia entre boas e más mulheres se perpetua, a prostituta ainda é vista como o lado obscuro, que ameaça a instituição familiar, dissipando a boa conduta dos homens, sendo uma afronta as boas mulheres recatadas.
“Você não quer estragar a vida de ninguém, e não vai até a casa de ninguém chamar o homem para vir, ele vem porque quer.” (CAPITU)
Essa dicotomia de boas e más mulheres, é simbolizado no legado Cristão Ocidental, com a figura de duas mulheres, pertencentes ao mesmo gênero, porém, assumindo papéis contraditórios, Maria e Eva. Maria representa a figura da purificação, inocência, recato, complacente. Já Eva, sustenta a imagem do proibido, do prazer, do burlar regras, da indução do pecado (SCOTT, 1989). As prostituas, Evas, por condição, vivenciam a luxúria, ao passo que as mulheres que exercem uma outra função laboral, são as Marias, pois são afastadas do pecado, do condenado, uma é considerada enquanto mulher, pois replica comportamentos esperados para essa, ao passo que a outra assume atitudes permissivas apenas no terreno masculino.
Até meados de 1970, a questão da honra, manutenção da virgindade, amedrontava boa parcela das mulheres. Elas preocupavam-se que sua imagem fosse associada a algo impuro, pois se assim fosse, muitas eram excluídas e impedidas de se casar. É notório, que esse sistema de regras evoluiu consideravelmente, o fato de a mulher manter-se virgem não é mais valorizado como algo primário para o casamento. O que não houve alteração, é a questão que as mulheres ainda seguem vinculadas a algumas dessas cobranças, como ter um único parceiro, não ter relações sexuais com desconhecidos, bem como adotar uma postura adequada (BRIVIO, 2010). A segregação das mulheres para o casamento, ainda que de forma mais velada, ainda existe. As prostitutas então, são selecionadas para o prazer, mas nem sempre para o casamento, elas por vezes são vistas como as grandes responsáveis por quebrar a instituição do matrimônio,.
Em sua pesquisa com prostitutas de Belo Horizonte, Barreto (2008) acredita que existe uma linha que desmembra as mulheres boas e más, em que a imagem da “puta” opera uma espécie de segregador e doutrinador das mulheres, dando enfoque a virgindade e monogamia, rechaçando aquelas que avançam o outro lado dessa divisão. Pode-se dizer que essa separação, é a grande culpada pela imensa exclusão e estigmas que as prostitutas vivenciam, elas são o lado escuro, proibido, onde os desejos e vontades, ligados a sexualidade, são aceitos e não julgados, elas traze, o que não é concebido a uma mulher socialmente respeitada.
Os estabelecimentos de prostituição são locais onde os prazeres ocorrem de maneira livre, foram formados como antagônicos ao lar, espaço onde se dá a perpetuação. Os dois ambientes, domicílio e zonas de prostituição são conflitantes, aquela que habita em um não pode cursar o outro. No entanto, podem se avizinhar visto que muitas prostitutas sonham em casar-se e viver o papel da respeitável esposa, algumas até casam. Esse mesmo fato é visto do outro lado, mulheres tidas como honradas, também pensam na sexualidade livre da prostituta, nas práticas e fantasias, questões que para elas, muitas vezes é impossibilitado.
“O meu corpo é um objeto de troca, eu dou meu corpo por dinheiro, e fora daqui é normal, eu acho que tenho uma vida tão normal, tenho uma família e amigos que me aceitam do jeito que sou, fora daqui a minha vida é tão normal, que eu não tenho nenhum preconceito comigo mesma” (HILDA)
“Para mim, meu corpo significa o meu instrumento de trabalho e fora daqui apenas meu corpo. Na verdade, é sempre a mesma coisa.” (CAMÉLIA)
Esse ditame de regras que impossibilita ou limita a mulher que não exerce a prostituição de viver sua sexualidade de forma livre e da mulher prostituta desejar ser socialmente respeitada e experenciar papéis a ela negados, leva a estado de repressão dos dois lados, são mulheres que sofrem por serem mulheres, sofrem pelas regras que desde os primórdios foram impostas a elas, o que não vemos com a mesma intensidade nos homens. Observa-se no trecho da fala, que para essas duas mulheres, o seu lado profissional não anula o seu ser mulher, o seu objeto de trabalho não deixa de ser o seu objeto de socialização, e assim deveria sempre ser.
As prostitutas e as mulheres que não operam esse labor da mesma forma que são colocadas, vistas e aceitas enquanto seres oponentes, podem, algumas vezes, desejar a troca de papel, ao visualizar a perspectiva boa de cada lado. Mas isso na maioria das vezes, não se configura; a linha nada tênue que as separa é constantemente reafirmada no meio social, fazendo com que apesar de todas serem mulheres, sejam segregadas como boas e más, ficando a profissional do sexo em desvantagem, pois ela não reproduz, ou não reproduz fielmente o papel criado, idealizado e imposto para uma mulher.
Considerações Finais
O ser mulher traz consigo um peso muito grande e um sistema de características que o indivíduo do sexo biológico feminino, precisa seguir para ser aceito como tal. A prostituição apesar de ser uma das profissões mais antigas do mundo, é permeada por atributos e estigmas, que descaracterizam a construção do ser mulher em nossa sociedade.
O sexo e a sexualidade quando vinculados à mulher, se mantem, ainda hoje, sobre represálias, discursa-se sobre ele, porém, como Foucault (1988) apresenta, sob uma teia de regras colocadas pelas instituições que dominam as experiências nas comunidades.
O labor da prostituição por envolver sexo e sexualidade, incrementa a exclusão das mulheres que o realizam, pois elas assumem papéis não destinados e esperados como certos para uma mulher, elas adentram espaços repletos de sedução, multiplicidade de parceiros, elas se tornam autoras principais desses jogos de conquista, o que é repudiado para uma mulher, apesar de serem.
Os estigmas, tabus e estereótipos, rodeiam cada vez mais os indivíduos, descaracterizando posturas, falas e conhecimentos. É como se para sermos considerados homens ou mulheres, fosse necessário habitar em um corpo pronto, com características pré-definidas e inalteradas, ou é isso, ou é permanecer na exclusão, na margem do existir, no lado obscuro do ser mulher, como é o caso das prostituas.
Ressalta-se que mesmo indo contra o padrão esperado, essas mulheres, profissionais, são mulheres, são sujeitos dotados de direitos e merecem serem vistos e respeitados como tal, assim como trabalhadoras de outras profissões, o ser mulher ou homem, vai muito além do que é empregado socialmente, diz respeito a como a você se vê, como se caracteriza e como se percebe.
Referências
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1Mestre em Desenvolvimento Comunitário/UNICENTRO
2Mestre em Desenvolvimento Comunitário/UNICENTRO
3Mestre em Enfermagem -UFPR
4Doutora em Saúde Coletiva/UFSC
5Doutora em Ciências EE/USP
6Mestre em Nanociências e Biociências/ UNICENTRO
7MBA em auditoria em saúde.UNINTER
8Doutor em Sociologia/ UNESP