EQUIDADE NO ESPORTE: DESAFIOS E PERSPECTIVAS NA PARTICIPAÇÃO DE ATLETAS TRANSEXUAIS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202411301722


Icaro Thelon Pereira Alves1
Hyarllison Silveira Da Silva2
Antônio Carlos de Souza Gomes Junior3


RESUMO

A discussão sobre gênero e sociedade tem se intensificado, trazendo transformações significativas nos conceitos de identidade e nos relacionamentos sociais. O reconhecimento da diversidade de experiências de vida tem levado ao entendimento de que o sexo biológico e a identidade de gênero nem sempre são congruentes, destacando a importância da cirurgia de mudança de sexo no Brasil, um marco na afirmação da identidade de gênero das pessoas trans. As mulheres trans, frequentemente marginalizadas e discriminadas, enfrentam desafios para garantir dignidade e inclusão social, especialmente no esporte, onde surgem questões sobre igualdade de condições com as mulheres cis. Este artigo propõe  uma análise da evolução da cirurgia de mudança de sexo no Brasil, dos direitos das mulheres trans à inclusão social e das implicações legais e esportivas da sua inclusão, buscando um equilíbrio entre direitos, respeito à dignidade humana e igualdade no esporte. O estudo visa contribuir para o avanço das discussões acadêmicas sobre as transformações sociais contemporâneas e os direitos humanos, influenciando futuras pesquisas e práticas em diversas áreas do conhecimento. A metodologia adotada será uma revisão de literatura, englobando leis, regulamentações, artigos acadêmicos e estudos de caso sobre a participação de mulheres trans em competições esportivas femininas.

Palavras-chave: Gênero. Identidade de gênero. Sexo biológico. Mulheres trans. Cirurgia de mudança de sexo. Inclusão no esporte.

ABSTRACT

The discussion about gender and society has intensified, bringing significant transformations in the concepts of identity and social relationships. Recognition of the diversity of life experiences has led to the understanding that biological sex and gender identity are not always congruent, highlighting the importance of sex change surgery in Brazil, a milestone in affirming the gender identity of trans people. Trans women, often marginalized and discriminated against, face challenges in ensuring dignity and social inclusion, especially in sport, where questions arise about equal conditions with cis women. This article proposes an analysis of the evolution of sex change surgery in Brazil, the rights of trans women to social inclusion and the legal and sporting implications of their inclusion, seeking a balance between rights, respect for human dignity and equality in sport. The study aims to contribute to the advancement of academic discussions on contemporary social transformations and human rights, influencing future research and practices in various areas of knowledge. The methodology adopted will be a literature review, encompassing laws, regulations, academic articles and case studies on the participation of trans women in female sports competitions.

Keywords: Gender. Gender identity. Biological sex. Trans women. Sex change surgery. Inclusion in sport.

1. INTRODUÇÃO

A discussão sobre gênero e sociedade tem ganhado destaque nas últimas décadas, refletindo profundas transformações nos conceitos de identidade e na maneira como as pessoas se relacionam com a sua definição social. 

O  entendimento das terminologias de gênero, como “cis” e “trans”, e a percepção de que o sexo biológico e a identidade de gênero podem não ser necessariamente congruentes, tem levado a um crescente reconhecimento da diversidade de experiências de vida.

No Brasil, a cirurgia de mudança de sexo, embora ainda permeada por desafios sociais, políticos e legais, passou por uma significativa evolução, sendo um marco importante na luta pela afirmação da identidade de gênero das pessoas trans. 

Dentro deste contexto, um dos grandes desafios enfrentados pela sociedade brasileira é garantir a dignidade e o direito à inclusão social das mulheres trans, que muitas vezes são marginalizadas e expostas a situações de discriminação. 

Tal contexto de inclusão não se limita a aceitação social e inclusão das mulheres trans, no esporte há questões complexas   relacionadas à igualdade de condições da prática despostiva, o que coloca em pauta o debate sobre o direito das mulheres cis a uma competição justa.

Como essas duas realidades podem ser conciliadas sem que se comprometa o princípio da igualdade, tanto no espaço social quanto no esportivo? Esse cenário exige uma reflexão profunda sobre a legislação e políticas públicas voltadas à inclusão, que ainda estão em processo de adaptação para garantir direitos e justiça a todos os indivíduos, independentemente de sua identidade de gênero.

Este artigo se propõe a explorar a evolução da cirurgia de mudança de sexo no Brasil, analisar os direitos das mulheres trans à inclusão social e discutir as implicações legais e esportivas dessa inclusão, especialmente em relação à competição entre mulheres cis e trans. A busca por um equilíbrio justo no acesso a direitos, respeito à dignidade humana e a promoção da igualdade no esporte exige.

A pergunta que se pretende responder é: há legitimidade jurídica para a participação de mulheres “trans”, pelo gênero feminino, em competições esportivas de atletismo no Brasil?

O objetivo geral é Identificar se há legitimidade jurídica para a participação de mulheres “trans”, pelo gênero feminino, em competições esportivas de atletismo no Brasil,  enquanto os objetivos específicos são conhecer a terminologia sobre gênero e designação sexual; entender os conceitos de igualdade, direito à inclusão social das mulheres “trans”, direito a igualdade no esporte; compreender a legislação sobre a condição de inclusão e a disputa desportiva.

A metodologia é fundamental para a produção de pesquisas de qualidade, por isso, o tipo de pesquisa a ser realizada consiste em uma revisão de literatura abrangente, englobando leis, regulamentações, livros, artigos acadêmicos e estudos de caso sobre a participação de mulheres “trans”, disputando o pódio pelo gênero feminino, contra mulheres “cis”, em competições esportivas.

Este processo envolve a exploração de documentos jurídicos, regulamentos esportivos, análise de casos, análise comparativa, análise jurídica, esta metodologia permitirá uma análise do tema, fornecendo uma compreensão fundamentada dos aspectos jurídicos e sociais envolvidos na participação de mulheres “trans” em competições esportivas feminina, para em seguida promover as conclusões sobre a legitimidade jurídica da condição de igualdade da disputa, em face da prevalência dos direitos humanos a inclusão social da mulher “trans”.

2. CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE OS DESAFIOS E PERSPECTIVAS NA PARTICIPAÇÃO DE ATLETAS TRANSEXUAIS

A questão da participação de atletas transexuais no esporte, especialmente em competições femininas, tem gerado uma série de debates, tanto no âmbito acadêmico quanto no cenário esportivo internacional. Ao longo das últimas décadas, a inclusão de pessoas trans em atividades esportivas se tornou um tema central nas discussões sobre igualdade de gênero, direitos humanos e justiça nas competições.

O desafio de equilibrar os direitos de participação das atletas transexuais com a manutenção da equidade e competitividade no esporte é complexo e envolve diversos aspectos biológicos, psicológicos, sociais e legais.

Neste sentido, o presente artigo buscou no contexto social, apresentar uma análise cronológica e teórica sobre os principais desafios e perspectivas relacionadas à inclusão de atletas transexuais no esporte, com ênfase na legislação e nas pesquisas internacionais, para compreender as implicações dessa inclusão para a disputa desportiva.

Mediante a isso, conforme o século XX ao início do século XXI, mais precisamente nos anos 1990, os primeiros debates sobre a participação de atletas transexuais começaram a ganhar visibilidade, especialmente no contexto da transição do movimento pelos direitos das pessoas LGBT para um foco maior na igualdade de gênero.

No início do século XXI, as pesquisas científicas sobre as questões biológicas e sociais envolvendo a identidade de gênero e a transição sexual começaram a se intensificar. Autores como Erving Goffman (1963), em sua obra “Estigma”, contribuíram para a compreensão dos desafios enfrentados pelas pessoas trans, tanto no campo social quanto no esportivo, ao destacarem como o estigma associado à identidade de gênero pode afetar as oportunidades e o bem-estar dos indivíduos.

A partir do ano de 2003, com a criação de diretrizes específicas para a participação de atletas transexuais pela Federação Internacional de Atletismo (IAAF), as discussões se tornaram mais sistemáticas, buscando entender o impacto físico das terapias hormonais e a necessidade de normatizar a inclusão dessas atletas sem comprometer a justiça competitiva. 

A IAAF foi uma das primeiras federações internacionais a estabelecer um protocolo, que exigia que as atletas trans fizessem a cirurgia de redesignação sexual e mantivessem seus níveis de testosterona abaixo de um certo limite para competir nas categorias femininas.

Além disso, é de se pensar que, nos últimos 15 anos, obtiveram êxito em avanços e desafios na legislação internacional, diversas federações esportivas, como o Comitê Olímpico Internacional (COI), revisaram suas normas, adaptando-se para permitir a participação de atletas transexuais.

O Comitê Olímpico Internacional (COI), em 2015, revisou suas diretrizes, permitindo que atletas trans competissem sem a necessidade de cirurgia, desde que mantivessem os níveis de testosterona abaixo de um determinado limite durante um período de tempo. Essa mudança representou um avanço significativo, reconhecendo que a identidade de gênero não deveria ser subordinada à cirurgia de redesignação sexual para garantir a inclusão.

Desde o ano de 2015, no instante em que a questão da inclusão de pessoas transexuais foi levantada pela primeira vez, após o pedido de um homem transexual do triatlo, o Comitê Olímpico Internacional (COI) adotou uma regra geral para todo o movimento olímpico. 

A norma estabelecia que, no caso de uma mulher trans, era necessário um ano de tratamento hormonal para manter os níveis de testosterona no sangue abaixo de 10 nmol/L, e esse limite deveria ser mantido continuamente. Essa política possibilitou que a atleta neozelandesa Laurel Hubbard fosse a primeira mulher transexual a participar de uma Olimpíada, em Tóquio, na modalidade de levantamento de peso.

Segundo o COI, as diretrizes “reconhecem a necessidade de garantir que todos, independentemente de sua identidade de gênero ou variações de sexo, possam praticar esportes em um ambiente seguro e livre de assédio, que reconheça e respeite suas necessidades e identidades, e o interesse de todos – especialmente atletas de elite nível – para participar de competições justas onde nenhum participante tem uma vantagem injusta e desproporcional sobre os demais”….
– Veja mais em https://www.uol.com.br/esporte/colunas/olhar- olimpico/2021/11/16/coi-cria-diretriz-para-trans-no-esporte-e-inclui-nao- presuncao-de-vantagem.htm?

No entanto, a legislação e as normas ainda apresentam lacunas em vários aspectos. De acordo com a pesquisa de Pielke et al. (2019), ainda existem limitações e variações significativas nas políticas de diferentes federações internacionais. 

Além disso, questões como a validade e a eficácia do controle hormonal em garantir a igualdade de condições continuam sendo um ponto controverso, dado que a testosterona tem efeitos significativos no desempenho físico de atletas, especialmente em esportes de resistência e força.

A literatura científica também revela que as mudanças hormonais necessárias para a transição de gênero afetam o desempenho atlético de maneiras complexas. Estudo de Terry et al. (2016) conclui que a redução dos níveis de testosterona nas atletas transexuais podem, de fato, reduzir a vantagem competitiva em esportes de força, mas essa redução não é universalmente eficaz em eliminar as diferenças biológicas decorrentes da puberdade masculina, como o aumento de massa muscular e densidade óssea.

Por outro lado, outros estudos, como o de Sundby et al. (2019), destacam que as atletas transexuais podem enfrentar desafios psicológicos, como a pressão constante para provar sua capacidade e se adequar às normas de feminilidade no esporte.

Desta forma, no Brasil, a questão da inclusão de atletas transexuais também tem sido discutida principalmente nas últimas décadas, à medida que o movimento LGBT ganhou mais força e visibilidade. 

A Constituição Brasileira de 1988, que garante a igualdade de direitos e proíbe a discriminação por sexo, abriu caminho para que legislações posteriores buscassem garantir os direitos das pessoas trans, tanto na sociedade quanto no esporte. O Código Penal Brasileiro e o Estatuto do Idoso (que inclui a mudança de nome em documentos civis) também tiveram impactos na luta pela inclusão social de pessoas trans.

Em 2020, o Superior Tribunal Federal (STF) do Brasil reconheceu a mudança de nome e gênero nos registros de identidade sem a necessidade de cirurgia, um importante marco para garantir os direitos civis das pessoas trans. No entanto, no esporte, ainda existem lacunas legislativas quanto à participação de atletas transexuais, e a questão continua sendo regida, em grande parte, pelas normativas das federações internacionais. 

O Brasil, por exemplo, não possui uma legislação unificada sobre a participação de atletas transexuais em competições esportivas, o que gera insegurança jurídica tanto para as atletas quanto para as organizações esportivas.

Enquanto mais pesquisas científicas são conduzidas e as discussões sobre a participação de atletas transexuais se aprofundam, surge a necessidade urgente de criar um equilíbrio entre a inclusão e a justiça competitiva.

Importante salientar, de acordo com o estudo de Buzu et al. (2022), um dos principais desafios que permanece é a falta de consenso sobre o tempo e as condições para que atletas transexuais possam competir em igualdade de condições, levando em conta fatores como os efeitos da transição hormonal, a história do desenvolvimento físico de cada atleta e a busca por uma “competição justa” que respeite as diferentes identidades de gênero.

3. TERMINOLOGIA SOBRE GÊNERO E DESIGNAÇÃO SEXUAL: A CIRURGIA DE MUDANÇA DE SEXO NO BRASIL

A compreensão sobre gênero e designação sexual tem evoluído ao longo do tempo, as pessoas transgêneras, que possuem uma identidade de gênero distinta da atribuída ao nascimento, enfrentam desafios substanciais em relação à sua aceitação social, aos seus direitos e ao acesso a tratamentos médicos.

A cirurgia de mudança de sexo, ou redesignação sexual, é uma das formas de tratamento para garantir a congruência entre o corpo e a identidade de gênero da pessoa. No Brasil, a evolução dessas questões tem se dado dentro de um contexto legal e de saúde pública, que, embora tenha avançado, ainda enfrenta desafios em termos de acessibilidade e estigmatização.

O sexo biológico é determinado por características físicas como os cromossomos, órgãos genitais e hormônios, sendo geralmente classificado em masculino e feminino no nascimento. No entanto, esse sistema binário nem sempre corresponde à realidade biológica de todas as pessoas, especialmente em casos de pessoas intersexuais, cujas características biológicas não se encaixam nas categorias de homem ou mulher.

A designação sexual refere-se ao ato médico de atribuição de um sexo ao nascimento com base nas características genitais visíveis. Embora a designação sexual seja amplamente aceita como uma categorização binária, ela não leva em consideração a complexidade do espectro sexual e de gênero de cada indivíduo. Além disso, essa atribuição pode não corresponder à identidade de gênero da pessoa, o que gera o fenômeno das pessoas transgêneras.

Gênero é um conceito social e cultural que se refere ao conjunto de normas e expectativas atribuídas aos indivíduos com base no sexo biológico. O gênero não se limita à dicotomia masculino/feminino; existem várias expressões de gênero, como as identidades de gênero não-binárias, que não se limitam às normas tradicionais.

A identidade de gênero refere-se à percepção interna e individual de cada pessoa sobre seu gênero. Quando uma pessoa se identifica com o sexo designado ao nascimento, ela é chamada de cisgênera. Quando a identidade de gênero difere do sexo atribuído ao nascimento, a pessoa é transgênera. A identidade transgênera pode incluir homens trans (que foram designados mulheres ao nascimento, mas se identificam como homens) e mulheres trans (designadas homens ao nascimento, mas se identificam como mulheres).

A cirurgia de redesignação sexual, também conhecida como cirurgia de mudança de sexo, é um procedimento médico realizado por pessoas transgêneras para alinhar seu corpo com sua identidade de gênero. 

Esse procedimento envolve a alteração dos órgãos genitais, podendo incluir a remoção do pênis e a criação de uma neovagina para mulheres trans, ou a remoção dos seios e a criação de um pênis para homens trans. Embora a cirurgia de redesignação sexual seja uma parte importante da transição para muitas pessoas trans, não é obrigatória para o reconhecimento legal de uma identidade de gênero.

No Brasil, a cirurgia de mudança de sexo tem sido uma parte fundamental do tratamento de pessoas trans, sendo incorporada ao Sistema Único de Saúde (SUS) em 2008. A Portaria nº 2.836/2011 estabelece as diretrizes para o acesso gratuito a procedimentos de redesignação sexual, incluindo acompanhamento psicológico, endocrinológico e cirúrgico. A cirurgia de redesignação sexual no Brasil é realizada em centros de referência especializados, como a Universidade de São Paulo (USP)  e o Hospital das Clínicas.

Embora a cirurgia seja considerada um direito garantido pelo SUS, a acessibilidade ao procedimento ainda enfrenta desafios. A longa fila de espera e a falta de especialistas qualificados são obstáculos significativos. Além disso, a cirurgia de mudança de sexo não é obrigatória para o reconhecimento da identidade de gênero, já que a Resolução nº 460, de 2014, do Supremo Tribunal Federal (STF), possibilita que as pessoas trans alterem seus documentos pessoais de identidade sem a necessidade de passar pela cirurgia, baseando-se apenas na  autoidentificação.

Embora a cirurgia de redesignação sexual seja um direito garantido, ela ainda enfrenta diversos desafios éticos e sociais. Um dos principais dilemas é o estigma relacionado ao corpo trans, que ainda é visto por muitos como inadequado ou “imperfeito”. Isso gera um ambiente de discriminação e marginalização, impactando negativamente a saúde mental das pessoas trans.

Além disso, questões sobre a adequação da cirurgia de redesignação sexual para todas as pessoas trans surgem constantemente. Não todas as pessoas trans desejam ou têm acesso a essas cirurgias. Para muitas, a transição de gênero envolve outros processos de mudança, como terapia hormonal e mudança de nome ou gênero nos documentos, sem a necessidade de intervenções cirúrgicas.

A terminologia relacionada ao gênero e à designação sexual, assim como a cirurgia de mudança de sexo, envolve conceitos fundamentais para a compreensão da identidade de gênero das pessoas trans e sua inclusão na sociedade.

A mudança na terminologia e na legislação reflete um movimento em direção a uma sociedade mais inclusiva e respeitosa com a diversidade de identidades de gênero. A cirurgia de redesignação sexual, embora não seja uma exigência para o reconhecimento da identidade de gênero, continua a ser um passo importante na transição de muitas pessoas trans, sendo essencial garantir o acesso equitativo a esses procedimentos, sem discriminação ou obstáculos burocráticos.

4. A IMPORTÂNCIA DO DIREITO A INCLUSÃO SOCIAL DAS MULHERES “TRANS” E O DIREITO A UMA COMPETIÇÃO JUSTA DAS MULHERES “CIS”, QUE ENFRENTAM MULHERES “TRANS” NO ESPORTE

Inicialmente, tem-se na percepção da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, estabelece o princípio da igualdade, assegurando que “todos são iguais perante a lei”. Esse princípio é um fundamento essencial para a luta pelos direitos das pessoas trans no Brasil.

A Lei nº 10.948/2001, que proíbe a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) são marcos legais que reforçam a necessidade de inclusão social das mulheres trans em todos os aspectos da vida, incluindo o esporte.

Artigo 5º da lei 10.984/2001 – O cidadão homossexual, bissexual ou transgênero que for vítima dos atos discriminatórios poderá apresentar sua denúncia pessoalmente ou por carta, telegrama, telex, via Internet ou fac-símile ao órgão estadual competente e/ou a organizações não-governamentais de defesa da cidadania e direitos humanos.

Além disso, a Resolução nº 25 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) reafirma a importância da inclusão das pessoas LGBTQIA+ nas políticas públicas e no esporte, reconhecendo a necessidade de promover um ambiente seguro e respeitoso para todas as identidades de gênero.

Com base nisso, a promoção da inclusão social das mulheres trans e a garantia de uma competição justa no esporte exigem um equilíbrio delicado entre os direitos das pessoas trans e a necessidade de garantir condições de equidade nas competições esportivas. Esse debate deve ser contínuo, baseado em evidências científicas, respeito às identidades de gênero e uma visão ampla de justiça social.

Portanto, o avanço nas políticas públicas depende não apenas da elaboração de leis e normas, mas também de sua implementação eficaz, com especial atenção à criação de espaços seguros e respeitosos para todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero.

Nesse modo, com o apoio legislativo, diante das regulamentações esportivas, as entidades esportivas internacionais têm adotado regulamentos específicos para a participação de mulheres trans em competições. O Comitê Olímpico Internacional (COI), em suas diretrizes de 2021, estabelece que as atletas trans que desejam competir em eventos femininos devem demonstrar que seus níveis de testosterona estão abaixo de 10 nmol/L por pelo menos 12 meses antes da competição. Essa diretriz busca garantir que a inclusão não comprometa a justiça competitiva.

No Brasil, a Confederação Brasileira de Esportes (CBDE) e outras federações têm a responsabilidade de criar regulamentos que reflitam tanto os direitos das mulheres trans quanto a necessidade de manter a equidade nas competições. 

No entanto, a implementação dessas diretrizes ainda é um desafio, e a falta de uniformidade nas regras pode levar a conflitos e questionamentos sobre a legitimidade das competições.

A análise jurídica da inclusão das mulheres trans no esporte e dos direitos das mulheres cis envolve um exame dos princípios da dignidade humana, igualdade e não discriminação. A jurisprudência brasileira tem avançado em reconhecer a identidade de gênero como um aspecto fundamental dos direitos humanos, e o Supremo Tribunal Federal (STF) tem se posicionado favoravelmente em relação à proteção dos direitos das pessoas trans.

No entanto, a questão da competição justa também deve ser considerada. O princípio da proporcionalidade pode ser aplicado para equilibrar o direito à inclusão e a necessidade de garantir condições equitativas de competição. A aplicação desse princípio poderia levar à adoção de diretrizes mais rigorosas em relação aos níveis de testosterona, garantindo que as competições permaneçam justas, ao mesmo tempo em que respeitam a identidade de gênero das atletas.

A inclusão das mulheres trans no esporte é uma questão que envolve direitos humanos, equidade e justiça. É fundamental que as entidades esportivas e o sistema jurídico brasileiro avancem para criar um ambiente que respeite tanto os direitos das mulheres trans quanto as preocupações das mulheres cis sobre a justiça nas competições. Recomenda-se a elaboração de diretrizes claras que considerem as especificidades biológicas, além da promoção de um diálogo aberto entre atletas, organizações esportivas e a sociedade civil.

Adicionalmente, a educação sobre diversidade e inclusão no esporte deve ser incentivada, promovendo a conscientização sobre os direitos de todas as atletas, independentemente de sua identidade de gênero. O fomento a um ambiente respeitoso e inclusivo é essencial para que todas possam competir e se desenvolver plenamente em suas modalidades esportivas.

Ocasionalmente, após vir à tona nas redes sociais um caso que ilustra a questão dos atletas “trans”, o caso ocorreu nas competições de atletismo dos Jogos Pan-Americanos de 2019, onde a atleta trans, Tiffany Abreu, competiu em categorias femininas.

A participação dela gerou debates acalorados sobre a justiça das competições, com defensores argumentando que a inclusão dela era um avanço para os direitos humanos, enquanto críticos afirmavam que isso comprometeria a integridade da competição.

Outro caso relevante é o da nadadora Lia Thomas, que se tornou a primeira mulher trans a vencer um campeonato universitário nos EUA. Sua vitória gerou um intenso debate sobre a equidade nas competições femininas e a adequação das diretrizes do COI e das federações esportivas. Esses casos demonstram a complexidade do tema e a necessidade de uma abordagem equilibrada que respeite os direitos de todos os atletas.

A inclusão das mulheres trans no esporte e a garantia de uma competição justa para as mulheres cis são questões que refletem uma sociedade em busca de equidade e justiça. A legislação brasileira e os regulamentos esportivos internacionais oferecem um arcabouço importante para a construção de um ambiente inclusivo, mas é fundamental que haja um comprometimento contínuo por parte de todos os envolvidos.

A busca por soluções equilibradas que respeitem tanto os direitos das mulheres trans quanto as preocupações das mulheres cis é um desafio que exige diálogo, pesquisa e inovação nas políticas esportivas. O esporte, como um reflexo da sociedade, tem o potencial de ser um campo de luta por direitos, inclusão e respeito à diversidade, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

A implementação de normativas enfrenta desafios práticos, especialmente no que diz respeito à criação de regulamentos esportivos que garantam tanto a equidade nas competições quanto o respeito às identidades de gênero.

O Comitê Olímpico Internacional (COI) e outras entidades esportivas internacionais têm buscado estabelecer diretrizes para a participação de mulheres trans nas competições femininas, equilibrando a inclusão com a manutenção da justiça competitiva. 

No Brasil, a Confederação Brasileira de Esportes e outras federações precisam desenvolver regulamentos que levem em consideração os direitos das mulheres trans e a equidade nas competições, embora a falta de uniformidade nas regras ainda gera questionamentos.

Além disso, a análise jurídica do tema, que envolve os princípios da dignidade humana e da igualdade, reforça a necessidade de um tratamento equilibrado que respeite tanto os direitos das mulheres trans quanto as preocupações das mulheres cis sobre a justiça nas competições. A aplicação do princípio da proporcionalidade pode ser um caminho para alcançar esse equilíbrio, especialmente no que tange aos níveis de testosterona.

Casos como o de Tiffany Abreu nos Jogos Pan-Americanos de 2019 e o da nadadora Lia Thomas demonstram a complexidade e a relevância do debate, evidenciando que, embora a inclusão das mulheres trans seja um avanço nos  direitos humanos, ela também suscita questões sobre a integridade da competição.  A busca por soluções equilibradas que respeitem a diversidade de todas as atletas é essencial para a construção de um ambiente inclusivo e justo no esporte.

5. CONCLUSÃO

A discussão sobre a inclusão de mulheres transexuais no esporte e os direitos das pessoas trans em geral, particularmente no Brasil, evidencia uma série de complexos desafios sociais, legais e esportivos. 

Ao longo das últimas décadas, a sociedade tem avançado no reconhecimento da diversidade de identidade de gênero e na luta pela igualdade, com destaque para a transformação das normativas legais, como a permissão de mudança de nome e gênero nos documentos sem a necessidade de cirurgia, e o reconhecimento dos direitos civis das pessoas trans. No entanto, ainda persistem lacunas importantes, especialmente no campo esportivo, onde a participação de atletas transexuais tem gerado debates sobre a equidade competitiva.

A evolução da cirurgia de redesignação sexual e as políticas públicas em relação à inclusão das pessoas trans refletem avanços significativos na sociedade brasileira, mas o reconhecimento pleno das mulheres trans como parte integrante do esporte feminino ainda esbarra em questões biológicas e fisiológicas complexas. 

A principal dificuldade reside na conciliação dos direitos de participação das atletas transexuais com a manutenção da igualdade de condições competitivas, uma vez que a transição hormonal pode alterar o desempenho físico, mas não elimina as diferenças biológicas resultantes da puberdade masculina, como o aumento da massa muscular e da densidade óssea.

O Comitê Olímpico Internacional (COI) e diversas federações internacionais têm adotado normas para possibilitar a inclusão das atletas trans, com destaque para as exigências de controle dos níveis de testosterona. Embora essas diretrizes tenham permitido avanços, como a participação histórica da atleta trans Laurel Hubbard nos Jogos Olímpicos de Tóquio, ainda existem questões não resolvidas quanto à eficácia dessas políticas para garantir uma competição justa, especialmente em modalidades que exigem força e resistência. 

O Brasil, por sua vez, carece de uma legislação unificada sobre a participação de atletas transexuais em competições esportivas, o que gera um ambiente de insegurança jurídica tanto para as atletas quanto para as organizações esportivas.

Do ponto de vista científico, a literatura aponta que a redução dos níveis de testosterona nas atletas transexuais pode diminuir, mas não eliminar, a vantagem competitiva proveniente das características físicas adquiridas durante a puberdade masculina. 

Além disso, há uma crescente compreensão sobre os aspectos psicológicos enfrentados pelas atletas transexuais, como a pressão para se conformar aos padrões de feminilidade no esporte, o que pode gerar desafios adicionais para sua inclusão.

A análise jurídica e as pesquisas acadêmicas sobre o tema ainda precisam aprofundar-se na busca por um equilíbrio que respeite as identidades de gênero e assegure a justiça nas competições. 

O estudo proposto neste artigo, ao explorar a evolução das políticas públicas, a legislação e as normativas esportivas, bem como os impactos biológicos e sociais da transição de gênero, contribui para um entendimento mais amplo sobre a questão da inclusão das mulheres trans no esporte. Isso implica, sobretudo, na necessidade urgente de desenvolvimento de uma legislação mais clara e eficaz, tanto no Brasil quanto no cenário internacional, que garanta a igualdade de condições e o respeito aos direitos humanos, sem comprometer a justiça competitiva.

Em suma, a inclusão de mulheres transexuais no esporte, assim como em outros espaços da sociedade, exige uma abordagem multidisciplinar que contemple os aspectos legais, sociais, biológicos e psicológicos. A evolução das normativas esportivas e as mudanças legislativas têm sido passos importantes, mas a questão ainda exige um diálogo contínuo e a adaptação das políticas públicas para garantir um ambiente justo, inclusivo e respeitoso para todas as identidades de gênero.

A análise dos direitos das pessoas trans, especialmente das mulheres trans, revela um processo contínuo de evolução em várias frentes sociais, legais e esportivas. Ao longo do tempo, a compreensão sobre identidade de gênero tem se expandido, reconhecendo a complexidade e diversidade das vivências transgêneras, que incluem a cirurgia de redesignação sexual como um importante passo para a congruência entre o corpo e a identidade de gênero, mas não um requisito absoluto para o reconhecimento legal. 

A legislação brasileira tem avançado, garantindo direitos fundamentais, como o acesso a tratamentos médicos e a possibilidade de alteração de documentos pessoais sem a necessidade de intervenções cirúrgicas. Contudo, a implementação dessas políticas enfrenta desafios como a falta de acesso equitativo aos tratamentos e a persistência de estigmas que afetam a saúde mental e a inclusão social das pessoas trans.

No esporte, a questão da inclusão das mulheres trans é particularmente controversa. Embora as leis sobre registro busquem garantir os direitos a participação das atletas trans no esporte, autorizando a participação em competições femininas, após a modificação de seu gênero pela cirúrgia de redesignaçao, persiste o debate sobre a ausência de condições de equilíbrio da competição, em face da distinção muscular e hormonal entre a mulher trans e a mulher cis.

A mulher cis, por ter sido sempre mulher possuí esqueleto, musculatura e hormônios compatíveis com outras mulheres cis; por outra via, a mulher trans a depender de quando fez a cirurgia de redesignação, mesmo diante do controle hormonal terá estrutura , musculatura compatíveis com o de um homem, por ter se desenvolvido na adolescência na infência e na adolescência como homem. 

A adoção de diretrizes específicas pelas Federações e Confederações Desportivas, como o controle dos níveis de testosterona, visa garantir que a competitividade de mulheres trans com as cis, sem comprometer a integridade das competições, mas ainda assim, a falta de uniformidade nas regras e a resistência em algumas esferas sociais criam obstáculos significativos.

Portanto, a busca por uma sociedade mais justa e inclusiva requer das entidades desportivas, a promoção de diretrizes eficazes, mediante a implementação de regulamentações esportivas que respeitem as diversidades biológicas e identitárias, além de um compromisso contínuo com a educação e conscientização sobre os direitos de todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero. 

Ao fomentar um ambiente mais respeitoso e acolhedor, tanto nas esferas sociais quanto desportivas, estaremos contribuindo para um futuro em que todas as pessoas possam viver sua identidade de gênero de forma plena, digna e em igualdade de condições.

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1Discente do Curso de Direito, pela Faculdade dos Carajás. Email: theylon190@gmail.com.
2Discente do Curso de Direito, pela Faculdade dos Carajás. Email. hyarllison@gmail.com.
3Docente e orientador do Curso de Direito, pela Faculdade dos Carajás. Email. adv.gomes.jr@gmail.com