EQUIDADE DE GÊNERO NA GUARDA COMPARTILHADA: A IMPLEMENTAÇÃO DO PROTOCOLO DE GÊNERO DO CNJ E O CAPITAL INVISÍVEL INVESTIDO PELAS MÃES NA PENSÃO ALIMENTÍCIA.

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202412070824


Alice Soares Rocha¹;
Débora Reis de Souza Bonifácio².


RESUMO

O presente artigo explora um tema essencial no direito de família: a busca pela equidade de gênero na guarda compartilhada. Analisando o novo Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, nosso objetivo foi analisar como essa diretriz vem promovendo uma mudança no modo de valorizar o papel das mães. Muitas vezes, as contribuições não financeiras das mulheres são invisibilizadas, especialmente no cálculo da pensão alimentícia. Ao revisitar essa questão com o uso de uma metodologia baseada em fontes bibliográficas e documentais, o estudo busca revelar a importância desse “capital invisível” no bem-estar das crianças e na distribuição justa das responsabilidades parentais. Os resultados indicam que, embora o protocolo tenha impulsionado transformações, ainda há desafios para reconhecer plenamente o papel essencial das mulheres. Concluímos que um sistema jurídico mais sensível e inclusivo depende de uma nova visão sobre o trabalho não remunerado das mães, com sugestões de mudanças que visem um ambiente familiar e jurídico mais justo e igualitário.

Palavras-chave: Capital invisível, Direito de família, Equidade de gênero, Guarda compartilhada, Pensão alimentícia, Protocolo de Gênero CNJ.

ABSTRACT

This article explores an essential topic in family law: the pursuit of gender equity in shared custody. By analyzing the new CNJ Protocol for Judgments with a Gender Perspective, our goal was to uncover how this guideline has promoted a shift in recognizing the role of mothers. Women’s non-financial contributions are often overlooked, particularly in calculating child support. Through a methodology based on bibliographic and documentary sources, this study aims to highlight the importance of this “invisible capital” in children’s well-being and in the fair distribution of parental responsibilities. The results indicate that while the protocol has fostered transformation, challenges remain in fully recognizing women’s essential role. We conclude that a more sensitive and inclusive legal system depends on a new perspective on mothers’ unpaid work, with suggested changes to foster a fairer and more equitable environment in both family and legal contexts.

Keywords: Family law, Gender equity, Invisible capital, Shared custody, Child support, CNJ Gender Protocol.

1. INTRODUÇÃO

A equidade de gênero na guarda compartilhada é um tema de grande relevância no âmbito do direito de família, com impacto significativo na vida das famílias e na proteção dos direitos das mulheres e das crianças. 

A dinâmica familiar é um intricado tecido social onde convergem responsabilidades, valores e relações intergeracionais. No entanto, por trás da estrutura visível das obrigações familiares, existe um capital muitas vezes invisível, especialmente relacionado ao papel das mulheres no sustento e na manutenção do ambiente familiar.

O Protocolo para julgamento com perspectiva de Gênero do CNJ de 2021 é uma diretriz fundamental estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para promover a igualdade de gênero e a equidade dentro do sistema judiciário brasileiro. Ele tem como objetivo orientar magistrados e servidores do Poder Judiciário a combater qualquer forma de discriminação de gênero e garantir tratamento justo e imparcial a todas as pessoas, independentemente de seu sexo.

Essa iniciativa é essencial para construir uma sociedade mais inclusiva e igualitária, garantindo que as mulheres sejam tratadas com respeito e tenham seus direitos protegidos dentro do ambiente judicial. Esta pesquisa surge da necessidade de explorar e reconhecer esse capital invisível, enquanto também examina a questão da discriminação de gênero no sustento dos filhos.

Inicialmente, o artigo abordará os princípios jurídicos da guarda compartilhada e da equidade de gênero, analisando sua fundamentação legal e doutrinária. Neste contexto, surge a indagação que guia o presente estudo: Como o Protocolo de Gênero do CNJ influencia no reconhecimento das contribuições não remuneradas das mães na pensão alimentícia? Para alcançar a resposta desta investigação, o trabalho tem como objetivo principal, analisar de que maneira a implementação do Protocolo de Gênero do CNJ influencia as decisões judiciais relacionadas à determinação da pensão alimentícia em casos de guarda compartilhada, com foco no reconhecimento do capital invisível das mães. O propósito é discutir como o Protocolo de Gênero do CNJ tem contribuído para promover a equidade de gênero no sistema jurídico de família, identificando os impactos práticos e as mudanças das decisões em relação ao reconhecimento e valoração do trabalho não remunerado das mulheres na criação e sustento dos filhos.

A motivação por trás desta pesquisa surge da constatação de que, embora as contribuições das mulheres para o ambiente familiar sejam cruciais, muitas vezes são subestimadas ou até mesmo invisibilizadas. As mulheres desempenham múltiplos papéis no âmbito familiar, desde cuidadoras até gestoras do lar e provedoras de suporte emocional. No entanto, essas contribuições não são adequadamente reconhecidas, especialmente no contexto da justiça familiar, onde o sustento dos filhos muitas vezes é considerado predominantemente como uma responsabilidade financeira.

Para tanto, foi empregada na pesquisa a metodologia de pesquisa bibliográfica e documental, desenvolvida com base em material já elaborado sobre o assunto, constituído principalmente de livros e artigos científicos. A abordagem qualitativa permitirá uma compreensão mais profunda das experiências das mulheres e das nuances envolvidas na dinâmica familiar. Para ilustrar a implementação do Protocolo de Gênero do CNJ.

No desenvolvimento do trabalho, vamos contextualizar a importância da equidade de gênero na guarda compartilhada, explorando os desafios enfrentados pelas famílias e pelo sistema jurídico na busca por uma distribuição equitativa das responsabilidades parentais.

Neste contexto, abordaremos o papel do Protocolo de Gênero do CNJ na promoção da equidade de gênero no sistema judiciário brasileiro. Discutiremos suas diretrizes e como elas impactam as decisões judiciais relacionadas à guarda compartilhada e à pensão alimentícia.

Aprofundaremos nossa análise ao definir os princípios jurídicos que fundamentam a guarda compartilhada e a equidade de gênero, examinando as bases legais e teóricas que orientam a aplicação do direito de família nesse contexto. Além disso, explicaremos as diretrizes específicas do Protocolo de Gênero do CNJ e seu papel na orientação das práticas judiciais.

Um aspecto crucial da equidade de gênero na guarda compartilhada é o reconhecimento do “capital invisível” das mães na determinação da pensão alimentícia. Nesta seção, conceituaremos o “capital invisível” e exploraremos suas contribuições não monetárias para o bem-estar dos filhos, destacando sua importância na garantia dos direitos das mulheres e na proteção dos interesses das crianças.

Ao final, identificaremos os principais obstáculos enfrentados na promoção da equidade de gênero na guarda compartilhada e discutiremos sugestões e reflexões sobre possíveis soluções para superar esses desafios. Consideraremos as implicações práticas e jurídicas dessas soluções na busca por um sistema mais justo e equitativo de proteção dos direitos familiares.

2. OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS DA GUARDA COMPARTILHADA 

De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira: “A guarda compartilhada é um modelo novo, cuja proposta é a tomada conjunta de decisões mais importantes em relação à vida do filho, mesmo após o término da sociedade conjugal.” (PEREIRA, p. 429).

Significa dizer que a guarda compartilhada é um arranjo de guarda de crianças após o divórcio ou separação dos pais, no qual ambos os genitores continuam a ter responsabilidades e decisões relacionadas ao cuidado e à criação dos filhos. Nesse modelo, os pais compartilham tanto os direitos quanto as responsabilidades em relação à educação, saúde, bem-estar e desenvolvimento dos filhos, mesmo que eles não vivam juntos.

Na obra “Manual de Direito das Famílias”, Maria Berenice Dias aborda amplamente a questão da contribuição dos pais, para a manutenção dos filhos após a separação. Essa abordagem mais abrangente é essencial para garantir uma divisão equitativa das responsabilidades financeiras parentais e promover a igualdade de gênero no âmbito familiar. 

No momento em que há o rompimento do convívio dos pais, a estrutura familiar resta abalada, deixando-os de exercer, em conjunto, as funções parentais. Não mais vivendo os filhos com ambos os genitores, acaba havendo uma redefinição de papéis. Tal resulta em uma divisão dos encargos com relação à prole. O maior conhecimento do dinamismo das relações familiares fez vingar a guarda conjunta ou compartilhada, que assegura a maior aproximação física e imediata dos filhos com ambos os genitores, mesmo quando cessado o vínculo de conjugalidade. (DIAS, 2011).

Tartuce argumenta que a guarda compartilhada é uma manifestação do princípio do melhor interesse da criança, pois permite que ela mantenha um vínculo afetivo saudável com ambos os genitores. No entanto, ele reconhece que a aplicação prática desse modelo pode apresentar desafios, especialmente em situações em que os pais vivem em localidades geograficamente distantes ou têm dificuldades de comunicação e cooperação. (TARTUCE, 2022).

Diante o exposto, vimos que a responsabilidade parental compartilhada implica na atribuição conjunta dos direitos e deveres inerentes à criação do menor, mas é imperativo considerar que os esforços e encargos de cada um se dá de maneira diversa. Mesmo que o termo “compartilhada” remeta à ideia de dividida.

Em primeiro lugar, destaca-se o princípio do melhor interesse da criança, Ele está previsto no art. 227 da CF/88que se configura como critério primordial na definição da guarda, priorizando o bem-estar e o desenvolvimento saudável do filho. Este princípio direciona o foco para as necessidades e interesses da criança, promovendo um ambiente familiar que seja propício ao seu crescimento emocional e físico.

Outro princípio relevante é o da igualdade parental, que busca assegurar que ambos os genitores desempenhem um papel ativo na vida do filho, garantindo uma relação equilibrada e significativa com ambos. Isso reconhece a importância da presença e participação de ambos os pais na vida da criança, independentemente da dissolução do relacionamento conjugal.

Além disso, há o princípio da cooperação e diálogo, que incentiva os pais a colaborarem entre si e a dialogarem de forma construtiva sobre questões relacionadas à criação e educação dos filhos. Esse princípio visa estabelecer um ambiente familiar harmonioso, mesmo após a separação, no qual os interesses da criança sejam prioritários e os conflitos minimizados.

Por fim, destaca-se o princípio da não alienação parental, cujo objetivo é prevenir qualquer forma de manipulação ou influência prejudicial que possa interferir na relação da criança com um dos genitores. Essa salvaguarda visa proteger o filho de eventuais disputas entre os pais e garantir que ele mantenha laços afetivos saudáveis com ambos os progenitores.

Em síntese, os princípios da guarda compartilhada refletem a importância de uma abordagem centrada na criança e na promoção de relações parentais saudáveis, visando seu melhor interesse e desenvolvimento integral, mesmo diante da ruptura conjugal dos pais.

A doutrina contemporânea afirma que o direito de família é um campo em constante evolução, moldado pela dinâmica das relações humanas e pelas mudanças sociais. As estruturas familiares se transformaram de maneiras profundas nas últimas décadas, e o Direito de Família precisa acompanhar esse progresso. (TARTUCE, p. 22). 

Neste contexto, o professor Dr. Rodrigo da Cunha Pereira nos apresenta um conceito de família democrática que, em contraposição à estrutura patriarcal tradicional, rejeita a hierarquia de gênero, promovendo a igualdade de direitos entre seus membros. Valorizando o afeto, a solidariedade e o desenvolvimento do sujeito, independentemente de sua idade ou sexo.

Nesse modelo, a democracia se manifesta na igualdade de direitos, na ausência de violência doméstica e na prática da guarda compartilhada em casos de divórcio. Essa concepção não apenas estrutura a base da sociedade, mas também contribui para a formação do indivíduo que busca pela felicidade dentro do ambiente familiar. (PEREIRA, P.18).

Sob esse olhar, ocorreram mudanças relevantes no que diz respeito ao contexto histórico das influências eclesiásticas e na codificação do direito civil. O Código Civil de 1916 refletia uma visão tradicional da família, enfatizando o casamento como base, a estrutura patriarcal e hierárquica, reminiscente do direito romano adaptado à realidade brasileira. (DIAS, 2010).

Segundo Maria Berenice Dias, a família era considerada válida apenas quando formalizada pelo matrimônio, seguindo uma estrutura hierárquica na qual o marido detinha a autoridade legal sobre a família e seus bens. O revogado artigo 233, do antigo Código Civil, estabelecia que o marido era o chefe da sociedade conjugal e lhe atribuía competências, exclusivas deste, tais como o direito de autorizar a profissão da mulher por exemplo, entre outros.

Estes aspectos discriminatórios foram parcialmente modificados por meio de três leis: o Estatuto da Mulher Casada (Lei Nº 4.121/62), a Lei do Divórcio (Lei Nº 6.515/1977) e a Constituição Federal de 1988.

A Lei do Divórcio, por exemplo, aboliu a indissolubilidade do casamento e reconheceu que tanto pai quanto mãe têm direitos e deveres parentais, independentemente do estado civil. No entanto, mesmo com essas mudanças, a igualdade entre os pais ainda precisava ser aprimorada. Foi somente com a Constituição Federal de 1988 que essa igualdade foi reforçada, estabelecendo que os direitos e deveres conjugais são exercidos igualmente por homens e mulheres.

A legislação revolucionou com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que garantiu que o poder familiar, e não mais “pátrio poder”, seria exercido igualmente pelo pai e pela mãe, sem distinção. Estas leis e dispositivos legais posteriores visaram combater a subordinação da mulher e reforçar a igualdade parental, inclusive eliminando a ideia de que o poder familiar era exercido apenas durante o casamento.

Posteriormente, com a sanção da Lei 13.058 de 2014, a chamada Lei da guarda compartilhada, o número de pais que optaram por esse tipo de guarda subiu de 7,5% em 2014 para 34,5% em 2021, de acordo com o IBGE (2023). A pesquisa também mostra que, em consequência disso, as guardas unilaterais exercidas pelas mães alcançaram considerável queda de 31%. Percebe-se aqui que havia uma predileção na guarda unilateral atribuída em maior número à mãe, devido a concepções históricas que associavam a mulher ao cuidado dos filhos e o homem ao sustento da família, como já explicitado.

No entanto, as mudanças sociais têm levado a uma reavaliação desses papéis, reconhecendo o potencial de ambos os pais para cuidar dos filhos. Com o intuito de aprofundar a análise da guarda compartilhada e da equidade de gênero nas responsabilidades parentais, é necessário discutir a implementação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Esse protocolo tem como objetivo assegurar que as decisões judiciais sejam tomadas com base na igualdade de gênero, levando em consideração as particularidades históricas e sociais que envolvem as funções parentais no cuidado dos filhos, o que passamos a analisar.

3. O PROTOCOLO PARA JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO DO CNJ/2021

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), exige que os tribunais brasileiros considerem as especificidades das pessoas envolvidas nos casos, para evitar preconceitos e discriminações com base em gênero ou outras características.

O protocolo se tornou obrigatório em 2023, e determina que juízes recebam formação sobre direitos humanos, gênero, raça e etnia, integrando essas questões em suas decisões. Inspirado em iniciativas internacionais e alinhado à Agenda 2030 da ONU, o documento propõe diretrizes práticas para que julgamentos não perpetuem estereótipos e desigualdades.

Além disso, foi criado um Comitê de Acompanhamento e Capacitação para monitorar a aplicação das diretrizes e propor melhorias no sistema de justiça, com foco na interseccionalidade e na igualdade de gênero.

O Protocolo tem como objetivo orientar magistrados e magistradas a julgarem com uma perspectiva de gênero, promovendo a equidade e a igualdade substantiva. Ele apresenta ferramentas conceituais e um guia prático, detalhando etapas a serem seguidas para neutralizar desigualdades históricas e estruturais.

A criação do Protocolo foi impulsionada pela condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Márcia Barbosa de Souza, um exemplo trágico que evidenciou a necessidade de aprimorar a diligência nas investigações e julgamentos de crimes de gênero.

O caso de Márcia Barbosa de Souza, uma jovem negra e pobre assassinada em 1998 por um deputado estadual, é um exemplo emblemático de como o sistema de justiça brasileiro falhou em proteger mulheres vítimas de violência, especialmente aquelas pertencentes a grupos vulneráveis.

Márcia foi assassinada por Aércio Pereira de Lima, deputado estadual da Paraíba, que inicialmente se beneficiou da imunidade parlamentar, impedindo que o processo criminal contra ele prosseguisse. A Assembleia Legislativa negou a autorização para que o parlamentar fosse processado, permitindo que a impunidade prevalecesse por anos.

Somente em 2007, após mudanças constitucionais e a perda de mandato do deputado, ele foi condenado pelo homicídio de Márcia, mas recorreu da sentença e permaneceu em liberdade até sua morte em 2008. Além disso, as investigações sobre o crime foram marcadas por estereótipos de gênero, com questionamentos sobre a vida pessoal e a sexualidade de Márcia, o que refletiu o machismo estrutural e a falta de uma perspectiva de gênero no tratamento de casos de violência contra a mulher.

O caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que concluiu que o Brasil violou os direitos de Márcia ao não investigar adequadamente o crime e por permitir a impunidade do parlamentar.

Em 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil por essas violações, reconhecendo que a violência contra as mulheres no país é um problema estrutural e que o uso da imunidade parlamentar contribuiu para a impunidade do crime.

Entre as medidas de reparação impostas, a Corte exigiu a implementação de um sistema nacional de dados sobre violência contra mulheres e a adoção de um protocolo de investigação para feminicídios.

Esse caso foi um marco na luta contra a violência de gênero no Brasil e destaca a importância de integrar uma perspectiva de gênero nas decisões judiciais. A criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e, posteriormente, a implementação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, foram passos significativos na tentativa de reparar a histórica omissão do sistema de justiça em casos de violência contra mulheres, como o de Márcia Barbosa.

A aprovação do Protocolo foi um passo crucial para alcançar a paridade de gênero no Judiciário, onde atualmente apenas 38% dos magistrados são mulheres. A relatora, conselheira Salise Sanchotene, apresentou a Carta de Brasília, que contém propostas para promover a igualdade de gênero no sistema judiciário e enfrentar os desafios existentes.

Exemplificando a implementação do Protocolo, a 3ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional VII de Itaquera, em São Paulo, utilizou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para decidir uma ação de alimentos.

Ao analisar o pedido, a juíza ressaltou a importância de considerar a “divisão sexual do trabalho” e como as responsabilidades são tradicionalmente atribuídas entre homens e mulheres na sociedade. Ela destacou que, historicamente, o trabalho produtivo é visto como responsabilidade masculina, enquanto o trabalho de cuidado realizado pelas mulheres é frequentemente desvalorizado.

No caso, o pai alegou ter uma renda mensal de R$ 5 mil, que já era comprometida com a pensão de outra filha e outras obrigações familiares. No entanto, a juíza enfatizou que a mãe da criança já contribui significativamente através da “economia de cuidado”, que envolve tempo e esforço dedicados ao bem-estar da filha e à gestão da casa. Argumentou ainda que essa contribuição não poderia ser ignorada na fixação do valor da pensão.

Além disso, a magistrada rejeitou a alegação do réu de que a mãe também deveria sustentar a filha, afirmando que ela já cumpre essa função sozinha. Ao fixar os alimentos, a juíza determinou que o pai pagasse 16,5% de seus rendimentos líquidos ou o equivalente a 100% do salário-mínimo em caso de desemprego, deixando claro que a responsabilidade pelo sustento da criança deve ser compartilhada entre os pais.

Essa decisão exemplifica a aplicação do Protocolo do CNJ na prática judicial, promovendo a equidade de gênero nas relações familiares e reconhecendo o valor do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres. (Alimentos. Princípio da paternidade responsável. Binômio necessidade e possibilidade – TJSP – 1018311-98.2023.8.26.0007 – Alimentos – Lei Especial Nº 5.478/68, Relatora: Felícia Jacob Valente, data do julgamento: 08/01/2024).

A aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero pelo CNJ nessa decisão demonstra como a justiça pode se alinhar com os princípios de equidade de gênero. Ao reconhecer a importância da “economia de cuidado” e a desvalorização histórica do trabalho das mulheres, a decisão não apenas assegura os direitos da criança, mas também reafirma o papel fundamental das mães na criação e no sustento dos filhos.

Essa abordagem inovadora e sensível às desigualdades sociais serve como um modelo para futuros julgamentos, demonstrando que a implementação de diretrizes com perspectiva de gênero pode transformar a forma como o sistema judiciário lida com questões familiares e de responsabilidade parental, promovendo uma sociedade mais justa e igualitária.

Com isso, a discussão sobre a equidade de gênero na guarda compartilhada e na pensão alimentícia se torna ainda mais pertinente, abrindo caminho para reflexões sobre as mudanças necessárias em práticas e legislações que impactam a vida das mulheres e de suas famílias.

4. O CAPITAL INVISÍVEL

Dispõe o Código Civil, em seu artigo 1.694 §1º, que “Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.” Nesta passagem identificamos o princípio da necessidade-possibilidade, o chamado binômio.

Flávio Tartuce identificou na inteligência do art. 6º, da CF/88, o conceito de pensão alimentícia, que traz o fundamentado do princípio da solidariedade familiar, intrinsecamente relacionado à garantia do direito à subsistência. Sua finalidade primordial é assegurar que aqueles que não possuem capacidade para prover autonomamente seu sustento sejam devidamente assistidos financeiramente. (TARTUCE, pag. 562)

Neste sentido, os alimentos, de maneira geral, constituem uma obrigação pecuniária, ou seja, caracterizam-se como uma dívida em dinheiro, especificamente. Essa obrigação decorre da necessidade de garantir o sustento e a subsistência daqueles que não têm condições financeiras para prover suas próprias necessidades básicas.

Versa o artigo 1.703 do Código Civil:

“Art. 1.703 – Para a manutenção dos filhos, os cônjuges separados judicialmente contribuirão na proporção de seus recursos.”

Na singeleza da lei, o legislador buscou estampar a obrigação comum entre pai e mãe, agora ex-marido e ex-mulher (ou ex-companheiro e companheira), em sustentar sua prole. É coeso perceber que o intuito do legislador era de equiparação das responsabilidades, restando evidente que essa colaboração se dê de forma proporcional, de acordo com as possibilidades de cada um.

No entanto, já existem precedentes que abordam a noção de “capital invisível” e reconhecem o valor do trabalho cotidiano das mães na criação dos filhos. Essas decisões jurisprudenciais têm considerado o aspecto intangível e muitas vezes não remunerado do papel materno, reconhecendo-o como uma contribuição essencial para o bem-estar e desenvolvimento dos filhos.

Esse reconhecimento tem sido fundamentado em uma compreensão mais ampla do conceito de pensão alimentícia, que não se restringe apenas à provisão financeira, mas também incorpora o valor do cuidado e dedicação das mães na formação e educação dos filhos.

Em outubro de 2023, uma determinação emitida pela 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, o desembargador Eduardo Augusto Salomão Cambi implementou o protocolo de julgamento com perspectiva de gênero do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Nesse contexto, o juiz optou por majorar o valor dos alimentos, considerando, no cálculo da proporção dos alimentos, o trabalho doméstico diário e não remunerado realizado pela mulher.

DIREITO DAS FAMÍLIAS. direitos humanos. AÇÃO DE ALIMENTOS C/C REGULAMENTAÇÃO DE CONVIVÊNCIA. tutela provisória de urgência. DECISÃO recorrida. fixação dos ALIMENTOS PROVISÓRIOS EM 50% DO SALÁRIO-MÍNIMO AOS TRÊS FILHOS MENORES DE IDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO INTERPOSTO PELA MÃE. PLEITO DE fixação de ALIMENTOS PROVISÓRIOS EM 33% DOS RENDIMENTOS LÍQUIDOS DO AGRAVADO. OBSERVÂNCIA DO TRINÔMIO ALIMENTAR (POSSIBILIDADE-NECESSIDADEPROPORCIONALIDADE). FILHOS EM IDADE INFANTIL. NECESSIDADE PRESUMIDA. TRABALHO doméstico DE CUIDADO diário e NÃO REMUNERADO da mulher. CONSIDERAÇÃO NO CÁLCULO DA proporcionalidade dos alimentos. adoção do protocolo de julgamento com perspectiva de gênero do conselho nacional de justiça. aplicação do PRINCÍPIO DA parentalidade responsável. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.³

O termo “Capital Invisível” foi criado pela jurista feminista Ana Lúcia Dias da Silva Keunecke, com o intuito de fazer referência ao trabalho, não remunerado, realizado, principalmente, pelas mães no cuidado diário com os filhos. Atividades como alimentação, higiene, vestuário, educação, saúde, recreação, acompanhamento escolar etc. Conceitua a autora: “Essa dedicação compulsória, não remunerada, que obriga mulheres todos os dias e que não são colocadas no cálculo da pensão alimentícia, é o que eu chamo de Capital Invisível Investido na Maternidade.” (KEUNECKE, 2019).

Tema da última redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM – 2023), percebemos a relevância e atualidade da matéria. Maria Luiza Januzzi foi um dos 60 participantes em todo país a alcançar a nota máxima. Sabiamente ela cita a filósofa e escritora Djamila Ribeiro: “…o primeiro passo a ser tomado para solucionar uma questão é tirá-la da invisibilidade.4

Nesse sentido, vale ressaltar que houve uma escassez significativa de informações disponíveis sobre o assunto em questão. Isto decorre, em grande parte, da contemporaneidade do assunto, o que se reflete na limitada disponibilidade de fontes e pesquisas consolidadas.

Além disso, há um componente de desinteresse subjacente, especialmente no contexto do direito das mulheres, cuja importância e relevância podem ser subestimadas ou negligenciadas. Este fenômeno é resultado de uma série de fatores históricos, sociais e culturais que influenciam a priorização de determinados temas dentro do campo jurídico.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da complexidade das relações familiares e da necessidade de se priorizar o bem-estar dos filhos, a guarda compartilhada surge como uma tentativa de promover a participação equilibrada e significativa de ambos os pais na vida das crianças. No entanto, é importante reconhecer que a implementação efetiva desse modelo vai além de simplesmente dividir o tempo de convivência ou os custos financeiros da criação dos filhos. Durante o estudo percebemos que a ideia de guarda compartilhada é apenas uma ilusão jurídica. No dia a dia da família brasileira criou-se uma situação pouco observada na prática legal.

No âmbito jurídico, a guarda compartilhada surge como uma tentativa de promover a igualdade e a participação equilibrada dos pais na vida dos filhos. No entanto, é preciso considerar a valorização do encargo maior da mulher na criação dos filhos, levando em conta não apenas os aspectos financeiros, mas também os cuidados e a dedicação integral que muitas vezes são negligenciados.

Quando ponderamos anteriormente que a guarda compartilhada é uma “ilusão jurídica”, o intuito foi destacar que esse modelo de guarda implica no compartilhamento de todas as responsabilidades e encargos inerentes à formação de qualidade de um ser humano em desenvolvimento. A ausência da convivência regular e próxima de ambos os pais pode prejudicar o desenvolvimento emocional e psicológico do menor, o que ressalta a importância da efetiva participação de ambos os genitores. 

No entanto, é crucial observar que a contribuição da mãe muitas vezes transcende o aspecto financeiro e abrange um “capital invisível” investido no cuidado diário, na educação e no desenvolvimento emocional dos filhos, o qual frequentemente é subestimado ou ignorado na determinação do valor da pensão alimentícia. 

Diante das complexidades e desigualdades presentes na sociedade, torna-se evidente a necessidade de reavaliação da questão da igualdade de gênero, especialmente no contexto das responsabilidades parentais e da criação dos filhos.

Pesquisas demonstraram disparidades salariais significativas entre homens e mulheres até hoje, destacando a persistência de uma discriminação de gênero que afeta diretamente a independência financeira das mulheres. 

É necessário repensar a abordagem das ações de pensão alimentícia, reconhecendo que a mãe que passa a maior parte do tempo com o filho não deve ser sobrecarregada financeiramente, especialmente quando já assume a maior parte dos encargos da maternidade.

Dessa forma, é fundamental que a legislação e a interpretação dos operadores do Direito caminhem no sentido de eliminar essa desigualdade de gênero nas decisões judiciais, buscando garantir uma abordagem mais equitativa e justa nas responsabilidades parentais, aplicando o protocolo de gênero.

É necessário considerar não apenas as necessidades vitais no sentido estrito, mas também outras necessidades essenciais para uma vida digna. Somente assim será possível alcançar uma verdadeira equanimidade e justiça no âmbito das relações familiares e de gênero.

A jurisprudência, como uma fonte viva do Direito, desempenha um papel crucial na garantia da sua relevância e adaptação à realidade. Ao contrário de ser uma mera formalidade, a jurisprudência é dinâmica e flexível, evitando que o Direito se torne estático e desconectado das necessidades reais da sociedade.

Ela atua como uma ponte entre a lei e a justiça, buscando encurtar a distância entre o texto legal e as demandas da vida cotidiana.

Portanto, diante das questões levantadas e das disparidades evidenciadas, é imprescindível que o tema da igualdade de gênero e das responsabilidades parentais seja uma prioridade na atualização das leis e nas decisões judiciais. É necessário criar precedentes que reconheçam e valorizem o papel da mulher na criação dos filhos, garantindo uma abordagem mais justa e equitativa nas questões relacionadas à guarda compartilhada e à pensão alimentícia. Somente por meio de medidas efetivas e progressistas será possível promover uma verdadeira igualdade de gênero e assegurar os direitos e a dignidade das mulheres na sociedade contemporânea.


³Disponível em : https://portal.tjpr.jus.br/jurisprudencia/j/4100000024121601/Ac%C3%B3rd%C3%A3o-0013506-22.2023.8.16.0000
4Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/novo-livro-de-djamila-ribeiro-e-uma-aula-para-rever-e-mudar-comportamentos/

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito de Família – Vol. 5. Rio de Janeiro. (17 edição). Grupo GEN, 2022. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559643578/. Acesso em: 16 out. 2023.


¹Graduanda no curso de Direito pelo Centro Universitário de Belo Horizonte – Unibh.
²Graduanda no curso de Direito pelo Centro Universitário de Belo Horizonte – Unibh.