ENTRE VERGALHÕES E LEIS: REFLEXÕES SOBRE A FRAGILIDADE DO DIREITO À VIDA ANIMAL

BETWEEN REBARS AND LAWS: REFLECTIONS ON THE FRAGILITY OF THE RIGHT TO ANIMAL LIFE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202411131844


Maria Júlia Simão Vila Nova1,
Jakeline Martins Silva Rocha2,


RESUMO

O artigo “Entre Vergalhões e Leis: Reflexões sobre a Fragilidade do Direito à Vida Animal” aborda a relação histórica entre humanos e animais, destacando a necessidade de uma mudança de paradigma na forma como a sociedade percebe e trata os seres sencientes. A autora discute a evolução do conceito de dignidade, que, nas últimas décadas, passou a incluir não apenas os humanos, mas também os animais, reconhecendo-os como seres capazes de sentir dor e prazer. O texto analisa a legislação brasileira e as decisões judiciais que têm buscado garantir direitos aos animais, como a proibição de práticas cruéis. Apesar dos avanços, o artigo aponta que ainda existem barreiras culturais e jurídicas que dificultam a efetividade das leis de proteção animal. A conclusão enfatiza a importância de fortalecer os mecanismos de fiscalização e a necessidade de uma normatização explícita que reconheça o direito à vida dos animais, considerando-os como seres que merecem respeito e dignidade.

Palavras-chave: Direito dos animais, Dignidade animal, Proteção ambiental, Legislação, Ética biocêntrica.

ABSTRACT

The article “Between Rebars and Laws: Reflections on the Fragility of the Right to Animal Life” addresses the historical relationship between humans and animals, highlighting the need for a paradigm shift in how society perceives and treats sentient beings. The author discusses the evolution of the concept of dignity, which in recent decades has come to include not only humans but also animals, recognizing them as beings capable of feeling pain and pressure. The text analyzes Brazilian legislation and judicial decisions that have sought to guarantee rights for animals, such as the prohibition of cruel practices. Despite advancements, the article points out that there are still cultural and legal barriers that hinder the effectiveness of animal protection laws. The conclusion emphasizes the importance of strengthening enforcement mechanisms and the need for explicit regulation that recognizes the right to life for animals, considering them as beings deserving of respect and dignity.

Keywords: Animal rights, Animal dignity, Environmental protection, Legislation, Biocentric ethics.

1. INTRODUÇÃO

A interação entre o ser humano e os animais tem sido objeto de reflexão e debate ao longo da história, permeada por questões éticas, filosóficas e jurídicas. Tradicionalmente, os animais foram vistos como meras “coisas”, desprovidos de direitos e dignidade. No entanto, nas últimas décadas, essa perspectiva tem se transformado, impulsionada por um crescente reconhecimento da capacidade dos animais de sentir dor e prazer, o que os qualifica como seres sencientes.

Nesse contexto, a importância da preservação ambiental tem ganhado cada vez mais destaque nos âmbitos jurídico e social. Contudo, essa valorização muitas vezes se limita a garantir as condições mínimas para a sobrevivência humana, em vez de promover a preservação do meio ambiente por seu valor intrínseco.

Esse descaso é ainda mais evidente quando se trata da relação com os animais. Historicamente, essa relação tem sido marcada por debates filosóficos acerca da distinção entre humanos e animais, frequentemente rotulados como irracionais. Enquanto alguns filósofos justificam um distanciamento baseado na racionalidade, outros enfatizam a necessidade de respeito aos animais, não por sua racionalidade, mas por sua capacidade de sofrer e sentir dor.

Diante disso, surgem questionamentos sobre se apenas o ser humano é dotado de dignidade, visto que, sendo parte da natureza, ele deveria respeitar todas as formas de vida, especialmente em um período em que os maus-tratos contra os animais são cada vez mais comuns, muitas vezes motivados por razões fúteis ou por mero entretenimento.

Diante desse cenário de desrespeito, propõe-se, inicialmente, uma análise do direito dos animais sob uma perspectiva histórica; em seguida, compara-se a dignidade humana e a dignidade animal, aborda-se um estudo de caso que esclarece a relação que construímos com os animais e como essas questões são tratadas na atualidade e, por fim, busca encontrar uma resposta se os animais tem direito a vida.

2. DIREITO DOS ANIMAIS SOB UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA

A história da relação entre os humanos e os animais remonta à antiguidade, onde eles eram vistos principalmente como recursos naturais a serem explorados. Na Grécia e Roma antigas, os animais eram utilizados tanto para o trabalho quanto para o entretenimento, como nos famosos combates de gladiadores com animais selvagens no Coliseu.

Estes eram utilizados para a caça, arado da terra ou até mesmo para conquista de território em guerras mundiais. Ademais, para se beneficiar, o homem usava o animal em trabalhos forçados, chegando este a ir a óbito muitas vezes por não resistir ao enorme esforço e maus tratos ao qual era submetido. Além de que não havia qualquer conceito de direitos dos animais, pois estes eram tratados como propriedades.

O filósofo Aristóteles (1998) considerava os animais inferiores aos seres humanos, visto não serem dotados de razão e de linguagem. Segundo ele, os animais e os escravos foram feitos para o trabalho servil, defendendo que estes foram criados para serem governados.

Em seu livro “Política”, Aristóteles assinalou que a natureza não faz nada em vão, justificando assim a utilização dos animas pelos humanos, senão vejamos:

Assim sendo, temos de admitir manifestamente que (…) os outros animais existem para o bem do homem; os animais domésticos para uso e alimentação, e os animais selvagens (senão todos pelo menos a maior parte) para alimentação e outras carências, de modo a obtermos as vestes e outros instrumentos a partir deles. Se a natureza nada faz de imperfeito ou em vão, então, necessariamente criou todos estes seres e função do homem. (ARISTÓTELES, 1998, p. 75)

Por conseguinte, na Idade Média, a influência do cristianismo contribuiu para reforçar a ideia de que os animais existiam para servir o homem, baseado na interpretação de que, conforme o livro de Gênesis (BÍBLIA, 2014), Deus teria dado aos seres humanos domínio sobre toda a criação, tendo em vista que o homem teria alçada sobre os peixes, aves e sobre todos os animais terrestres.

Já na Idade Moderna o cenário começa a mudar com o pensamento do filósofo Jeremy Bentham que introduziu a ideia de que os animais sentem sofrimento semelhante ao sentido pelos humanos. Foi ele, que pela primeira vez utilizou uma comparação que subsiste até aos dias de hoje, baseando os seus argumentos de proteção animal.

Bentham comparou a racionalidade dos menores e incapazes com os animais, pondo em questão a racionalidade destes e indagando se ambos não mereciam respeito por não serem racionais como defendiam os filósofos racionalistas. Logo, os inimputáveis e os animais deveriam ser banidos do mundo jurídico e moral?

Hodiernamente, na contemporaneidade, o pensador Peter Singer contribuiu para o avanço da discussão sobre os direitos dos animais. O autor afirma que os animais são seres sensitivos e por isso são dignos de direito, como assinala:

Portanto, para concluir: não há boas razões, científicas ou filosóficas, para negar que os animais sentem dor. Se não duvidarmos de que outros seres humanos experimentam a dor, não devemos duvidar de que outros animais também a experimentam. Os animais são capazes de sentir dor. Como vimos anteriormente, não há justificativa moral para considerar que a dor (ou o prazer) sentida pelos animais seja menos importante do que a mesma intensidade de dor (ou prazer) experimentada por seres humanos. (SINGER, 2013, p. 24)

Com essa obra, Singer é amplamente reconhecido como um dos fundadores do movimento moderno de libertação animal, sendo a obra supramencionada considerada um clássico sobre o movimento pelos direitos dos animais.

Desde o lançamento do livro de Singer, houve um progresso significativo na área dos direitos dos animais, com o aumento do número de vegetarianos e a criação de leis que tratam do tema no mundo e no Brasil. Não obstante, essas conquistas ainda não foram suficientes para erradicar completamente o abuso humano sobre os animais e os maus tratos.

2.1. OS ANIMAIS DETÉM A MESMA DIGNIDADE DO SER HUMANO?

O conceito de dignidade humana está profundamente arraigado nas tradições filosóficas e jurídicas, sendo um dos pilares fundamentais dos direitos humanos. No Brasil, a Constituição Federal, em seu artigo 1º, inciso III, estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (BRASIL, 1988). Tradicionalmente, esse conceito é entendido de maneira antropocêntrica, ou seja, centrado na figura humana, considerando o ser humano como o único portador de direitos inerentes.

No entanto, nas últimas décadas, a doutrina jurídica e filosófica tem expandido o entendimento sobre a dignidade, de modo a incluir não apenas os seres humanos, mas também os animais. Essa nova visão, que reflete uma ética biocêntrica, reconhece os animais como seres sencientes (SINGER, 2013), ou seja, capazes de sentir dor, prazer e outras sensações, e que, por isso, merecem ter sua dignidade respeitada.

No Brasil, vem ganhando espaço na doutrina a ideia de “dignidade animal”. O ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, aceita a ideia de que os animais tenham dignidade, senão vejamos:

O que poderia ter sido suscitado, isso sim, seria o reconhecimento de dignidade aos animais. Uma dignidade que, naturalmente, não é humana nem deve ser aferida por seu reflexo sobre as pessoas humanas, mas pelo fato de os animais, como seres vivos, terem uma dignidade intrínseca e própria (BARROSO, 2012, p. 118)

Em contrapartida, há autores que defendem que os animais não detém direito e sim proteção, como é o caso do filósofo brasileiro Joaquim Carlos:

Com efeito, o animal, na esfera dos entes naturais, jamais poderia ser sujeito de direito, porque não é indivíduo, não é livre ou não possui existência autônoma; é elemento da espécie, compõe-na, e o dano que se lhe causa é dano à espécie. Se tem proteção, é em razão da consciência do homem, em razão do homem, por ser este racional. Proteção, contudo, não se confunde com direito (SALGADO, 2007, p. 70-71).

Nesse diapasão, surge o questionamento se para ter dignidade precisa ser sujeito de direito. De acordo com Pontes de Miranda (2000), ser sujeito de direito significa ser titular de um direito, mas isso não implica que o sujeito deva necessariamente desfrutar ou exercer o direito, a ação ou a pretensão por si mesmo, uma vez que o sistema jurídico permite que outra pessoa o faça em seu lugar. Além disso, a personalidade não é, em si, um direito, mas sim uma característica de quem pode ser titular de direitos em uma relação jurídica.

Ora, os seres humanos possuem um documento denominado Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada após a segunda guerra mundial, que tem por objetivo estabelecer os direitos fundamentais de todo ser humano. Com base neste, foi criada a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, em Bruxelas – Bélgica em 27 de janeiro do ano de 1978, que, em seu preâmbulo, diz:

Considerando que todo o animal possui direitos; Considerando que o desconhecimento e o desprezo desses direitos têm levado e continuam a levar o homem a cometer crimes contra os animais e contra a natureza; Considerando que o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das outras espécies animais constitui o fundamento da coexistência das outras espécies no mundo; Considerando que os genocídios são perpetrados pelo homem e há o perigo de continuar a perpetrar outros; Considerando que o respeito dos homens pelos animais está ligado ao respeito dos homens pelo seu semelhante; Considerando que a educação deve ensinar desde a infância a observar, a compreender, a respeitar e a amar os animais. (ONU, 1978)

Infere-se através desta passagem que fora reconhecido ser o animal possuidor de direitos, sendo sujeito de direito ou não, considerando-o pessoa ou não. De qualquer modo, juridicamente, no âmbito nacional, em se tratando de tutela animal, não há razão para questionamentos, pois toda a nossa fauna (silvestre, doméstica, domesticada ou exótica) é possuidora de direitos, independente de ser considerada pessoa ou não, amparada, pois, pelo Ordenamento Jurídico Ambiental Brasileiro. A Lei 9.605/1998, nesse pensamento, veio ratificar esse entendimento.

 A condição pessoal, da qual decorre a dignidade, não deve ser entendida como algo que decorra da racionalidade ou da autoconsciência de um ser, mas do reconhecimento do seu igual valor por outros seres que também são reconhecidos e respeitados como tal.  De qualquer modo, Singer (2013) defende a perspectiva de que tanto os seres humanos como os animais detém um valor especial e devem ter seus direitos plenamente reconhecidos.

Além do mais, o modo de existir do animal exige certa proteção às suas capacidades, como um espaço mínimo para se exercitar e interagir com os de sua espécie, uma alimentação adequada, cuidados com sua saúde, no caso de animais domésticos. Nada disso, porém, faz com que sejam igualados aos seres humanos, haja vista que buscar essa nivelação seria perda de tempo, observado que nem os próprios seres humanos se respeitam entre si.

Em suma, mesmo as pessoas que têm relações afetivas fortes com animais parecem não abandonar uma posição naturalmente desigual, de “donos” de seus animais, parece razoável não lhes atribuir uma condição que não se ajusta ao seu modo de ser, reservando o nome “pessoa” exclusivamente aos seres humanos, mas ambos os detentores de dignidade, a qual deve ser respeitada, em especial os animais por não conseguirem se defender sozinhos.

3. ESTUDO DE CASO: O CASO DO GATO ESPETADO POR UM VERGALHÃO NA CIDADE DE LINHARES/ES

Em novembro de 2020, a cidade de Linhares, no Bairro Jardim Laguna, Espírito Santo, foi palco de um caso brutal de maus-tratos a animais que gerou grande comoção. Um gato foi capturado em uma armadilha feita com vergalhões e sofreu repetidas agressões que resultaram em graves ferimentos, especialmente na cabeça.

O caso foi registrado em vídeo e circulou amplamente nas redes sociais, principalmente Instagram, gerando grande indignação por parte da população e de grupos de proteção animal. O gato, mais tarde chamado de “Guerreiro” pelos protetores que o resgataram, foi encontrado agonizando dentro da armadilha, com ferimentos graves na cabeça e pelo corpo, causados pelos vergalhões usados no ataque. “O gato agonizava muito, chorava muito e o corpo dele estava todo furado. Ele foi torturado”, comentou uma das ativistas que participou do resgate e não quis ser identificada. (G1, 2020)

Após o resgate, o gato foi encaminhado para tratamento veterinário, onde foi submetido a cuidados intensivos. Apesar das sequelas físicas, “Guerreiro” sobreviveu ao ataque, mas ficou marcado emocionalmente, apresentando um forte medo de seres humanos, especialmente de homens.

Guerreiro passou por um longo processo de recuperação. Fisicamente, conseguiu se reestabelecer, mas as marcas psicológicas permanecera evidentes, conforme relatado pela protetora de animais que o adotou. O trauma emocional do animal se manifestava em um profundo medo de humanos, e o gato só interagia com alguns cuidadores de confiança, sempre mostrando sinais de estresse diante de ruídos ou da presença de homens.

O responsável pelo crime, Victor Brandão Machado, servidor público municipal, confessou o ataque. Segundo ele, o gato estava causando transtornos em sua casa, invadindo o local, destruindo pertences e defecando. Alegando estar sob forte estresse emocional, Victor capturou o gato e o espetou com o vergalhão, justificando que sua intenção era matar o animal rapidamente e não torturá-lo. (A Gazeta, 2020)

O caso ganhou enorme repercussão nas redes sociais e a pressão popular ajudou a impulsionar ações das autoridades locais. Após a denúncia e divulgação de vídeos do animal agonizando, Machado foi preso, mas logo foi solto para responder ao processo em liberdade​. (A Gazeta, 2020)

Dessa forma, organizações de defesa dos animais, juntamente com a sociedade civil, exigiram que as autoridades tratassem o caso com rigor, aplicando as punições previstas na legislação brasileira de proteção aos animais. A comoção social e a pressão pública tornaram o caso um símbolo da luta contra a impunidade em casos de maus-tratos, além de levantar debates mais amplos sobre os limites da legislação brasileira em relação à proteção da vida animal​

O acompanhado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Maus-Tratos Contra os Animais da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales). A presidente da CPI, a deputada estadual Janete de Sá (PMN), se incumbiu de acionar as autoridades policiais e do judiciário. De acordo com o material apurado pela CPI, o criminoso ainda enviou mensagem ameaçando a protetora após a divulgação do caso. (G1, 2020)

A Prefeitura de Linhares expressou indignação, tristeza e solidariedade com o caso: “A Prefeitura de Linhares, vem publicamente, após conhecimento dos fatos expressar toda indignação, tristeza e solidariedade diante dos atos de extrema crueldade contra o gato exibido nas imagens. Esclarecemos que todas as providências necessárias e legais já estão sendo tomadas pelos órgãos competentes em relação aos fatos. A Prefeitura parabeniza a rápida e necessária atuação dos ativistas, dos órgãos de defesa e proteção animal, pois são verdadeiros fiscalizadores e defensores que de forma assertiva, defendem seres indefesos, assegurando assim a punição ao suposto agressor. Por fim, o Município afirma, mais uma vez, que condena e repudia qualquer tipo de violência e crueldade contra os animais.” (GRAFITTI NEWS, 2021)

3.1. ANÁLISE DO CASO

O Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES), por meio da Promotoria de Justiça Cível de Linhares, ofereceu denúncia em face de o funcionário público municipal, Victor Brandão Machado ter praticado maus-tratos contra o gato oito meses após o acontecimento, em 13/07/2021.

O MPES requereu que o denunciado, Victor Brandão Machado, fosse condenado nos termos do art. 32, § 1º-A, da Lei n° 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais). A norma estabelece que é crime “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. (BRASIL, 1998)

A denúncia formulada à juíza de Direito da 3ª Vara Criminal de Linhares, teve como base o Inquérito Policial n° 0043701677.20.11.0021.24.013. Esta fora distribuída em 14/07/2021, dando origem a demanda processual nº 0005226-62.2021.8.08.0030, que está tramitando ainda nos dias atuais. (TJES, 2024)

O último movimento do processo, após consulta, é a redesignação da audiência de instrução e julgamento para o dia 23/10/2025, às 15h10min.  Ao que tudo indica, nesta audiência será oferecido ao Investigado o Acordo de Não Persecução Penal, logo, caso esteja presente junto ao seu patrono e aceite, será extinta a punibilidade. (TJES, 2024)

Nesse diapasão, o Brasil possui uma legislação relativamente avançada sobre a proteção dos animais, sendo a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998) uma das principais normativas que tipifica maus-tratos como crime. E, ainda, dois meses antes do acontecimento com o felino, foi promulgada a Lei 14.064/20, conhecida como “Lei Sansão”, para aumentar as penas cominadas ao crime de maus-tratos aos animais quando se tratar de cão ou gato. O crime passou a ser punido com prisão de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda, a novidade do projeto. Antes, a pena era de detenção de três meses a um ano, além de multa.

Não obstante, apesar de prever penas de detenção e multa, a aplicação dessas punições ainda é questionada. O caso de Linhares exemplifica essa falha: embora o agressor tenha sido preso, ele foi liberado para responder ao processo em liberdade poucos dias depois e continua em liberdade após 04 anos, sem nunca ter comparecido em nenhuma audiência.

Infere-se, portanto, que legislação brasileira, embora importante, ainda enfrenta barreiras na prática. De acordo com o jurista Édis Milaré (MILARÉ, 2015), a legislação ambiental no Brasil tem se aprimorado, mas ainda carece de mecanismos que assegurem a aplicação rigorosa das normas existentes.

O caso ocorrido em Linhares não é isolado; ele reflete uma realidade mais ampla de desrespeito ao direito à vida dos animais. Isso levanta a discussão sobre como o ordenamento jurídico atual protege – ou falha em proteger – esse direito fundamental. Neste sentido, é crucial analisarmos mais a fundo o conceito de direito à vida aplicada aos animais.

4. O DIREITO À VIDA DOS ANIMAIS: ENTRE A PROTEÇÃO E OS DESAFIOS

O direito à vida dos seres humanos está garantido no art. 5º, caput, da Carta Magna (BRASIL, 1988). No entanto, no ordenamento jurídico brasileiro não se encontra expresso o direito à vida aos animais, não humanos, e não há abrangência de tal direito quando mencionado o dos seres humanos.

Igualmente, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais já prevê, em seu artigo 1º, que todos os animais têm o mesmo direito à vida. Além do que, positiva nos demais artigos que têm o direito ao respeito e à proteção do homem.

O Brasil, como signatário da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, instituiu, através do art. 225, VII, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), normas jurídicas de proteção aos animais, proibindo, na forma da Lei, práticas que submetam os animais à crueldade. Entretanto, as normas nacionais, não deixam dúvida quanto ao caráter antropocêntrico ainda enraizado do Direito e, nesse sentido, a “irracionalidade” dos animais vem servindo como desculpa para a privação de direitos, considerados básicos a qualquer ser vivo como, o direito à vida.

Esse dispositivo supramencionado abre a possibilidade de falarmos em direito a vida dos animais de forma presente na Constituição. É o que dispõe um dos maiores expoentes na reflexão sobre os direitos dos animais, Tom Regan:

O argumento mais plausível para a afirmação de que os humanos têm um inerente direito natural à vida, então, traz uma igualmente plausível justificativa para a idéia de que os animais também detêm este direito. Da mesma forma como é afirmado que homens e animais têm o direito de serem poupados de dores injustas, então, também não podemos indicar que o direito em questão nunca poderá ser anulado. (REGAN, 2008, p. 25)

No entanto, como não é normatizado de forma clara e evidente, abre margem para que seja questionado até onde vai o limite de tal direito. Com isso, faz-se necessário que seja realizada uma reforma na Constituição Federal capaz que esclarecer o quão importante são todas as vidas, assim como a Declaração Universal dos Direitos dos Animais o fez.

O Superior Tribunal de Justiça, em matéria de questões concretas relativas ao meio ambiente, tem entendido que a “proteção da vida” como fundamento para constituição de novos direitos, não se limita à vida humana, estende-se, através do princípio da solidariedade, a todas as espécies vivas na Terra.

Seguindo essa mesma linha de pensamento, o Supremo Tribunal Federal em vários julgamentos, assegurou os direitos dos animais, como no caso da proibição da Farra do Boi e a Briga de Galo. O fundamento comum a essas decisões é o artigo 225 da Constituição Federal citado.

O magistrado Juiz Manoel Franklin Fonseca Carneiro, especialista em Direito Animal pela Escola da Magistratura Federal do Paraná, concluiu em seu artigo “A dignidade do animal na Constituição”

(…) que os animais, assim como os humanos, têm o direito de não sofrer, têm dignidade, e que o respeito às outras formas de vida que coabitam nosso pequeno planeta serve para aprimorar os valores morais da sociedade e refletem nosso comportamento com nossos próprios semelhantes. Direitos humanos sem direitos aos animais são incompletos, pois o que está em jogo é o sofrimento, e não a natureza dos seres que sofrem, e em segundo lugar, a integridade e coerência moral do agente, não a qualidade moral do paciente. Direitos animais são uma extensão dos direitos humanos, ambos visam garantir as necessidades primárias de seres que se importam originariamente com o que lhes ocorre, ambos tratam de seres que são fins em si mesmos, ambos são respostas à vulnerabilidade dos indivíduos dependentes entre si. Direitos humanos sem considerar os animais são incompletos, pois direitos humanos, como afirmou Cavalieri, não são apenas humanos. Por isso, de acordo com a nossa Constituição, uma tese sobre direitos animais também é sobre direitos humanos, ela é sobre o mínimo devido a seres vivos que são sujeitos, não objetos; que são alguém, não algo.” (CARNEIRO, 2020, p. 1)

A questão interessante levantada por Carneiro acerca da vinculação dos direitos humanos aos direitos dos não humanos merece destaque, haja vista a ideia de os direitos animais serem um alargamento dos direitos humanos já é nitidamente reconhecida no âmbito dos ambientalistas e defensores dos animais, contudo, não positivada no sistema jurídico com clareza.

Portanto, é possível perceber uma pequena, mas crescente, quantidade de decisões que visam o direito dos animais à vida e o reconhecimento por autores renomados deste direito, pois eles merecem não só viver, como ter uma vida digna como o ser humano também almeja. É pouco, contudo, importante para decisões futuras bem como possíveis legislações que preencham as lacunas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão da dignidade e dos direitos dos animais tem evoluído de maneira significativa ao longo do tempo, desde debates filosóficos antigos até recentes interpretações jurídicas. A ideia de que os animais, por serem seres sencientes, merecem respeito e proteção, tem ganhado força, embora ainda enfrentemos barreiras culturais e jurídicas.

A análise histórica e os casos práticos mostram que o Brasil, apesar de possuir uma legislação protetiva, carece de efetividade na aplicação das leis. Como se observou no caso de Linhares, muitos infratores ainda se beneficiam de falhas no sistema. Assim, há uma clara necessidade de fortalecer os mecanismos de fiscalização e punição.

Quanto ao direito à vida dos animais, a jurisprudência brasileira caminha lentamente na direção de reconhecer esse direito, como visto em decisões que proíbem práticas cruéis. No entanto, a normatização explícita ainda é escassa, o que impede avanços mais robustos.

A resposta, portanto, é que, apesar de não ser garantido com clareza em todos os níveis jurídicos, o direito à vida dos animais está começando a ser reconhecido e deve ser amplamente discutido e reforçado para garantir uma coexistência mais justa e ética entre todas as formas de vida.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Política. Tradução de Antonio Campelo Amaral e Carlos Gomes. Edição bilíngue. Belo Horizonte: Vega, 1998.

BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo. A construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

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Gato é resgatado no ES após ser vítima de maus-tratos e ter vergalhão espetado na cabeça. G1, Vitória, 24 de nov. de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/es/espirito-santo/noticia/2020/11/24/gato-e-resgatado-no-es-apos-ser-vitima-de-maus-tratos-e-ter-vergalhao-enfiado-na-cabeca.ghtml. Acesso em: 17 out. 2024.

Homem que feriu gato com vergalhão em Linhares deixa a prisão. A Gazeta, Vitória, 05 de dez. de 2020. Disponível em: https://www.agazeta.com.br/gato-ferido-linhares. Acesso em: 17 out. 2024​.

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1Acadêmica em Direito, Faculdade de Ensino Superior de Linhares – Faceli, Brasil
E-mail: mariajuliasvn@gmail.com

2Graduada em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (1996). Especialista em Direito Empresarial e Educação e Supervisão pela FVC. Mestra em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Regional pela FVC. Advogada. Mediadora Judicial habilitada pelo TJES. Professora efetiva do bloco de direito privado da FACELI – Faculdade de Ensino Superior de Linhares/ES. Professora de direito privado no Centro Universitário Vale do Cricaré – UNIVC (São

Mateus/ES). Coordenadora e orientadora do NPJ/UNIVC. Membro da CPA- Comissão Permanente de Avaliação/Faceli, da Comissão de Carreiras/ Faceli. Membro suplente do CONSUP-Conselho Superior/Faceli e do CONCUR-Conselho Curador da Fundação Faceli. Conselheira da 12ª Subseção, OAB/ES (2022-2024). Vice-diretora administrativa da Escola Superior da Advocacia/ES (2019 a 2021), Procuradora Geral da Faceli – Faculdade de Ensino Superior de Linhares (2024), Brasil E-mail: jakeline.rocha@faceli.edu.br