ENTRE TUTELA E CIDADANIA: UMA CRÍTICA SOCIOLÓGICA AO USO DO TERMO “ASSISTIDO” NA DEFENSORIA PÚBLICA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/dt10202505201435


Gilmar Alves Batista1


RESUMO

Este artigo propõe uma análise crítica e sociológica sobre o uso do termo “assistido” pela Defensoria Pública, problematizando sua permanência como marca simbólica de uma tradição tutelar do Estado frente à cidadania. Sustentado por aportes teóricos de Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Paulo Freire e Boaventura de Sousa Santos, o texto argumenta que a linguagem institucional atua como dispositivo de poder que naturaliza posições de subordinação. A partir de uma perspectiva interdisciplinar, defende-se que a revisão desse vocabulário é essencial para a efetivação da justiça social.

Palavras-chave: Defensoria Pública; linguagem institucional; poder simbólico; cidadania; assistencialismo; sujeito de direitos; terminologia jurídica; acesso à justiça; empoderamento; discurso institucional; justiça social.

1. INTRODUÇÃO

A Defensoria Pública constitui um dos pilares fundamentais do sistema de justiça brasileiro, tendo como missão institucional a promoção dos direitos humanos e a oferta de assistência jurídica integral e gratuita às pessoas em situação de vulnerabilidade. Sua atuação é essencial para a concretização do princípio do acesso à justiça, consagrado pela Constituição Federal de 1988, sobretudo no contexto de um país marcado por profundas desigualdades socioeconômicas e pelo histórico de exclusão de vastos segmentos da população do sistema formal de justiça. Nesse sentido, a Defensoria é convocada a operar não apenas como prestadora de serviços jurídicos, mas também como agente político de transformação social e de fortalecimento da cidadania.

Contudo, observa-se que, mesmo após os avanços institucionais e normativos das últimas décadas, certas práticas e discursos ainda refletem uma herança assistencialista que tensiona o projeto democrático da instituição. Um exemplo emblemático é o uso do termo “assistido” para designar os usuários de seus serviços. Embora esse vocábulo tenha sido naturalizado no cotidiano defensorial e jurídico, sua carga semântica remete à subordinação, à dependência e à passividade, evocando uma lógica tutelar incompatível com os princípios da autonomia, do protagonismo e da igualdade. A permanência desse termo revela uma disputa simbólica mais profunda sobre o lugar ocupado pelo sujeito de direitos no campo jurídico e institucional, e sobre a própria concepção de cidadania que orienta a atuação estatal.

Este artigo propõe uma análise crítica do uso do termo “assistido” a partir de uma abordagem sociológica e interdisciplinar, articulando referências das ciências sociais, do direito e da filosofia da linguagem. Tomando como base autores como Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Paulo Freire e Boaventura de Sousa Santos, o texto pretende problematizar os efeitos simbólicos e institucionais da linguagem na reprodução das desigualdades e na construção da legitimidade democrática. Ao fazê-lo, busca contribuir para uma reflexão interna à Defensoria Pública sobre a necessidade de alinhar sua prática discursiva aos valores de emancipação, dignidade e reconhecimento que a própria instituição se propõe a defender.

2. A LINGUAGEM INSTITUCIONAL COMO DISPOSITIVO DE PODER

O vocábulo “assistido” consolidou-se no vocabulário jurídico brasileiro como expressão de uma lógica assistencialista, vinculada ao atendimento dos “necessitados” — um marco simbólico que atravessou gerações e ainda persiste, mesmo após a Constituição de 1988 ter redefinido o acesso à justiça como direito fundamental.

Sob a ótica de Pierre Bourdieu (1996), a linguagem atua como poder simbólico, capaz de produzir e legitimar relações sociais. Nomear alguém como “assistido” não apenas o descreve, mas o inscreve em uma posição de subalternidade. Michel Foucault (1987), por sua vez, identifica os discursos institucionais como mecanismos disciplinares que moldam condutas e subjetividades. Assim, o vocabulário jurídico não é neutro: ele estrutura o campo das possibilidades sociais.

A Defensoria Pública, ao manter tal designação, reforça inconscientemente um imaginário de tutela estatal. A escolha vocabular colabora para manter desigualdades simbólicas, mesmo quando se pretende combatê-las.

3. EFEITOS SIMBÓLICOS, POLÍTICOS E SUBJETIVOS DA TERMINOLOGIA

A linguagem utilizada no interior da instituição influencia diretamente a maneira como o cidadão é percebido e como se percebe. O termo “assistido” remete à passividade e à dependência, em contraste com expressões como “requerente”, “usuário”, “cidadão atendido” ou “sujeito de direitos”, que evocam autonomia.

Segundo Chauí (2000), a linguagem política é sempre um campo de disputa: quem nomeia, enquadra o outro dentro de uma narrativa. A Defensoria Pública, ao utilizar esse termo, corre o risco de reforçar o papel do Estado como doador de direitos, em vez de reconhecê-los como inatos.

Além disso, as consequências subjetivas são relevantes: ao se verem reduzidos à condição de “assistidos”, muitos internalizam a ideia de dependência. Esse enquadramento simbólico pode comprometer o fortalecimento da cidadania ativa e do protagonismo social. Portanto, a linguagem aqui não é um detalhe — é um vetor de inclusão ou exclusão.

4. RESISTÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS ALTERNATIVAS

Movimentos sociais, assessorias jurídicas populares e experiências horizontais têm proposto formas alternativas de relação institucional. Inspiradas em Paulo Freire, essas práticas adotam expressões como “comunidade atendida” ou “companheiros de luta”, reforçando a noção de dignidade epistêmica dos sujeitos historicamente marginalizados.

Iniciativas como ouvidorias externas, rodas de conversa e ações de educação em direitos demonstram que é possível promover uma escuta ativa e uma atuação pautada no diálogo e na coautoria. A linguagem, nesses espaços, torna-se ferramenta de empoderamento e não de submissão.

5. A DEFENSORIA E O DESCOMPASSO ENTRE DISCURSO E PRÁTICA

Análises de relatórios e documentos institucionais revelam que o termo “assistido” ainda é amplamente utilizado, inclusive em projetos voltados à promoção de direitos humanos e participação popular. Essa persistência indica uma contradição: mesmo em ações voltadas à valorização dos sujeitos atendidos, a nomenclatura empregada os mantém em posição de subordinação simbólica.

A superação desse vocabulário exige não apenas mudança normativa, mas transformação cultural e discursiva dentro da própria instituição.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A linguagem molda o mundo social com a mesma intensidade com que o direito busca regulá-lo. No contexto da Defensoria Pública, repensar os termos com que seus usuários são nomeados não é um mero detalhe semântico, mas um gesto político de grande relevância. A superação da expressão “assistido” representa um movimento em direção à afirmação da cidadania como prática e reconhecimento, e não como concessão. Questionar essa terminologia é, portanto, provocar a instituição a alinhar seu discurso às suas finalidades constitucionais de promoção da justiça, da igualdade e da dignidade.

Ao adotar designações que valorizem o protagonismo, a autonomia e a humanidade de seus usuários, a Defensoria Pública fortalece sua legitimidade como instrumento de democratização do acesso à justiça. Mais do que prestar assistência, trata-se de consolidar um ethos institucional comprometido com a escuta ativa, com a horizontalidade e com a produção compartilhada de soluções jurídicas. Assim, transformar a linguagem é também transformar as práticas — e, nesse processo, contribuir para um projeto de sociedade mais justa e plural.

REFERÊNCIAS

Bourdieu, P. (1996). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Chauí, M. (2000). Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez.

Costa, D. B., & Godoy, A. E. de. (2018). Revista de Informação Legislativa, 52(208), 321–339.

Foucault, M. (1987). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.

Oliveira, P. G. M. de. (2018). A definição constitucional da Defensoria Pública como expressão e instrumento do regime democrático: Para além de sua função simbólica [Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense].

Paiva, C. (s.d.). Empório do Direito.

Santos, B. de S. (2007). Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez.


1Defensor Público do Estado do Espírito Santo, Mestre em Ciências Contábeis e Administração pela FUCAPE Business School. Graduado em Direito, é especialista em Direito Público pela Universidade Federal de Juiz de Fora.MG.