REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202503231243
Agda Zampieri Stroebele
Resumo
Este artigo analisa de forma crítica a influência do pensamento de Hegel sobre a filosofia social e sobre o materialismo dialético de Marx, enfatizando a concepção de trabalho como fundamento para a formação da consciência individual e coletiva. Ao explorar as ideias de reconhecimento e liberdade presentes na obra hegeliana, aborda-se a dimensão social do trabalho, que simultaneamente emancipa e aliena o sujeito. Observa-se como Marx, ao assimilar a dialética de Hegel, redireciona o foco para as contradições históricas e econômicas, estabelecendo um posicionamento materialista que realça o caráter concreto das relações de produção. Assim, o artigo destaca as convergências e divergências entre Hegel e Marx na análise da relação entre trabalho, consciência e reconhecimento, apontando, ao mesmo tempo, para as possibilidades de emancipação e para os mecanismos de dominação presentes nas estruturas sociais.
Palavras-chave: Hegel; Marx; trabalho; materialismo dialético; reconhecimento.
Introdução
A densidade reflexiva que surge da relação entre Hegel e Marx ilumina perspectivas importantes para a compreensão do pensamento social moderno, evidenciando como o trabalho, concebido inicialmente como atividade formadora de consciência e inserida nas demandas do coletivo, pode converter-se num fator de transformação ou alienação. Ao retomar a noção hegeliana de que o trabalho ultrapassa o desejo meramente animal e se materializa em produtos e instrumentos que implicam necessariamente o reconhecimento de terceiros, observa-se como esse fenômeno dialético se projeta na realidade da vida social (Semeraro, 2013).
Trata-se de uma matriz conceitual em que a própria consciência se edifica na medida em que o indivíduo se percebe envolto em relações familiares, laborais e institucionais, articulando-se a partir de uma busca incessante por legitimação e liberdade. Embora Hegel privilegie o lado emancipador do trabalho, ele não escapa às críticas marxistas, sobretudo no que diz respeito às contradições históricas evidenciadas pelos modos de produção da burguesia, capazes de explorar e submeter o trabalhador a uma lógica sistêmica que o aliena de sua própria humanidade (Semeraro, 2013).
Nesse ponto, Marx inverte as posições do ideal e do material, sustentando que o elemento objetivo da realidade precede e condiciona o pensamento, demarcando, por meio do materialismo dialético, uma concepção de mudança social ancorada nas lutas concretas de classe e na efetiva transformação das relações de produção. A polarização entre o aspecto ontológico do trabalho, como instância formadora, e a captura desse mesmo trabalho pela dinâmica capitalista, atualiza a tese de que as disputas por reconhecimento (Ravagnant, 2009) e a consecução de espaços de liberdade (Cressoni, 2020) só podem ser compreendidas à luz de uma análise crítica que leve em conta a realidade histórica e econômica.
Assim, o presente estudo propõe-se a investigar a relevância do legado hegeliano tanto para a filosofia social quanto para o conjunto teórico de Marx, destacando os pontos de convergência e distância que conformam a dialética do real, na qual o trabalho e a busca por reconhecimento revelam-se simultaneamente motores de emancipação e potenciais mecanismos de dominação.
A importância de Hegel para a filosofia social e para o materialismo dialético de Marx
Não há nenhuma dúvida de que a filosofia de Hegel tenha influenciado de forma marcante a estruturação do pensamento de Marx. Por mais que Marx tenha questionado alguns posicionamentos de seu professor, a utilização da dialética de Hegel é evidente na filosofia marxista, a partir do materialismo dialético. Não só Marx foi influenciado pelas ideias do compatriota, como Hegel influenciou grande parte dos pensadores da filosofia social. Conforme Semeraro (2013) Hegel definia o trabalho como “a atividade peculiar do ser humano que supera o instinto imediato do desejo animal e é capaz de criar produtos e ferramentas”.
Nesse sentido, Semeraro (2013) destaca as ideias de Hegel acerca da concepção de trabalho, “o homem, ao trabalhar, forma sua consciência e ao atender a uma necessidade determinada acaba satisfazendo a demanda de outros, de modo que sua operosidade tem um reflexo social”. Dessa forma, na concepção hegeliana a consciência do ser humano se forma por meio de sua interação com a família, com o trabalho e com a materialidade da vida social. Ele esclarece ainda que a modernização do trabalho, trouxe benefícios como o aumento da produção e a diminuição de custos, traz também muitos malefícios, “que mecanizam e degradam o homem, obscurecendo assim a sua consciência e rompendo o nexo entre trabalho individual e seu alcance universal”.
Para Ravagnant (2009) a concepção de Hegel sobre a luta social está pautada no conceito de reconhecimento, assim ele explicita “a luta social não é uma luta por poder, mas uma luta por reconhecimento”. Assim, o desenvolvimento moral da sociedade “configura-se como uma luta por reconhecimento que não se constitui em autopreservação física somente, mas como um conflito que gera e desenvolve as distintas dimensões da subjetividade humana”. Ele ainda destaca que não se pode dissociar o contexto cultural no qual os entes estão inseridos, da construção da moralidade, e, portanto, “os sujeitos se constroem a partir de sua própria auto-interpretação, a qual só se dá dentro de um contexto dialógico, ou seja, cultural”.
Nessa perspectiva, Cressoni (2020) estabelece o conceito de liberdade em Hegel também vinculado a prática social. O autor esclarece que para o filósofo alemão, a liberdade não está relacionada exclusivamente a um saciar-se, a uma busca pela realização de desejos, mais do que isso, a liberdade é também uma busca por reconhecimento social
[…] para um sujeito enxergar sua ação como livre, não se trata tanto de ter uma experiência de um poder causador de uma ação e que foi executada de forma bem-sucedida, mas antes de uma experiência compreensiva de reconhecimento no interior das demandas sociais (CRESSONI. 2020, p.145)
Dessa forma, Hegel estabelece a própria liberdade inserida ao contexto social e a busca por reconhecimento. O autor também destaca a importância das ideias hegelianas para o comunitarismo e para o pragmatismo. Além disso, ele aponta a forma como Hegel tratou a relação do Estado para com os seus sujeitos, esclarecendo que este tem o dever de ser “o que impede ou visa impedir a proliferação de relações de dominação e providencia aos indivíduos espaços legítimos de reconhecimento”.
Cressoni (2020) trata as demandas de reconhecimento em Hegel, como um motor que move toda a dinâmica social, e sem o qual, não haveria um agir construtivo para a moralidade. Assim, ele destaca
A ação livre racional sempre se dá de acordo com uma pluralidade de perspectivas, e por isso há sempre a colisão de normas e demandas, tanto entre agentes sociais quanto entre estes e o estado, pois nesta diversidade não há a identificação de uma única voz que seja mais válida acima de outras (CRESSONI. 2020, p.152)
É nessa pluralidade de perspectivas, na incessante busca do ser por reconhecimento, e a consequente construção da moralidade e da ética social, que reside a dialética hegeliana. E assim, Semeraro (2013) esclarece “para Hegel, o trabalho não é só satisfação das próprias necessidades individuais e imediatas, mas é a expressão de um valor maior: nele se forma a consciência pessoal e social, se manifesta o caráter público e universal do ser humano”. Dessa forma, a concepção de trabalho de Hegel e sua visão filosófica, atingem profundamente Marx.
Nesse sentido, Marx reconhece na forma como Hegel estabelece o trabalho, suas características de transformação, não só do sujeito, como também da sociedade, a formação da consciência se dá por meio da interação individual e social do trabalho. E nisso, Semeraro (2013) aponta uma coalizão de ideias “como em Hegel, então, Marx reconhece uma finalidade, uma teleologia no trabalho do homem que não afeta apenas a natureza, mas também as relações humanas”.
Porém, Marx diferencia-se à medida que ele determina que “acima do trabalho não paira o “espírito”, e a consciência e o pensamento não antecedem, mas se formam juntos, inseparavelmente, com a reprodução material da existência” (SEMERARO. 2013, p.95). O autor ainda aponta as diferenças mais marcantes da visão marxista em relação a de Hegel
Embora Marx reconheça que o homem se autoproduz pelo trabalho, mostra que esse processo está permeado por profundas contradições, devido ao sistema historicamente criado pela burguesia que explora o trabalhador e aliena tanto o trabalhador como o próprio empregador.
Nessa perspectiva, o autor explica que para Marx, Hegel viu apenas o aspecto positivo do trabalho, esquecendo-se de retratar o lado negativo. Dessa forma, ele concorda ao destacar que Hegel não conseguiu enxergar que o mundo “vinha se constituindo um sistema econômico que introduzia uma contradição insanável entre o trabalho de um lado e a acumulação do capital de outro”. Hegel então, esteve limitado a uma concepção de libertação do homem pelo trabalho, abstraindo-se do fato de o homem estar preso a sua condição física de servo. É nesse ponto que as duas teorias divergem, Marx viu na teoria hegeliana uma desvalorização do mundo objetivo ao tratar exclusivamente na libertação do pensamento e relegar a liberdade física em detrimento da espiritual.
Marx, no entanto, ao resgatar a centralidade do trabalho, sustenta que para o homem o mundo objetivo é uma componente fundamental e inseparável, não um momento negativo e transitório em função da conciliação do pensamento consigo mesmo (Semeraro. 2013, p,96).
Nessa perspectiva, Marx não desassocia do trabalho o mundo objetivo, pelo contrário, é pela realização do trabalho objetivo que o homem pode alcançar a libertação espiritual. Para ele, segundo Semeraro (2013), “o trabalho se transforma em experiência de embrutecimento pelo fato que o operário é coagido a vender a si mesmo e à sua humanidade”. Essa diminuição do trabalhador em mero produto e a autoconsciência inerente a um processo de manifestação, são as causas geradoras do processo de transformação por meio da organização de trabalhadores que buscam alterar “a condição desumana em que estão enredados”.
Assim, Marx inverte a dialética de Hegel restrita ao mundo das ideias, e a transforma no conhecido “materialismo dialético”, a transformação da sociedade por meio das lutas sociais, lutas provenientes do processo de construção da identidade e do autorreconhecimento de condição, os quais estão dispostos os indivíduos.
Por fim, fica evidente a influência de Hegel na concepção de trabalho e o modo como a ele é atribuída grande consideração em relação as suas ideias e a forma como ele estabelece a dialética. Mais ainda, é notável sua influência sobre a filosofia marxista, e como Marx o utiliza como ponto de partida para a construção do materialismo dialético. Sem dúvida, sua influência foi e ainda é fundamental para a compreensão das transformações sociais pelas quais o mundo constantemente está envolvido.
A Dimensão Prática do Trabalho em Hegel e Marx
Quando Hegel concebe o trabalho como atividade peculiar do ser humano, capaz de constituir consciência e alargar os laços de convivência social, não apenas enaltece a força ontológica dessa prática, mas delineia os contornos de um processo dialético em que cada gesto produtivo excede a mera satisfação de necessidades imediatas (Semeraro, 2013).
Nessa perspectiva, as relações familiares, as estruturas institucionais e a rede de interdependências coletivas sustentam a formação de uma consciência que se projeta para além do indivíduo, abrindo caminho para a busca de reconhecimento mútuo. Contudo, ao mesmo tempo em que o labor engendra um sujeito reconhecido e reconhecedor, transparece a tensão inerente ao contraste entre as possibilidades criativas do trabalho e a sua apropriação pelas engrenagens de um sistema que submete o trabalhador à venda forçada de sua própria humanidade (Semeraro, 2013).
Na reflexão hegeliana, portanto, o ato de produzir transfigura-se em elemento fundante tanto da liberdade quanto do risco de alienação, pois a mediação entre o sujeito e o mundo torna-se inseparável do campo de forças que regula as relações sociais. Essa concepção hegeliana encontrou em Marx não apenas um eco, mas uma radicalização, visto que o filósofo alemão do resgatou o papel central do trabalho, atualizando-o a partir das contradições históricas e econômicas geradas pela burguesia (Marx apud Semeraro, 2013).
Tal reapropriação se expressa naquilo que se costuma chamar de inversão materialista da dialética, em que o mundo objetivo — o contexto das relações de produção, o surgimento dos modos de exploração e a consequente alienação estrutural — antecipa a consciência e faz dela um reflexo das condições concretas de existência, sem, contudo, anular as aspirações emancipatórias que brotam das lutas sociais. Nesse sentido, a dialética hegeliana, centrada numa razão que se eleva do particular ao universal, sofre a inflexão marxista, sobretudo ao apontar a contradição fundamental entre capital e trabalho, que impulsiona a organização de trabalhadores em busca da superação das amarras sistêmicas (Semeraro, 2013; Ravagnant, 2009).
A possibilidade de emancipação, que em Hegel advém da consciência que se descobre livre por intermédio do reconhecimento recíproco (Cressoni, 2020), é, em Marx, dependente das condições materiais que autorizem o trabalhador a realizar-se integralmente na produção de sua própria vida e na transformação coletiva da realidade. Assim, a busca por reconhecimento permanece um motor crucial da dinâmica social, mas não é descolada dos antagonismos de classe, sendo necessário considerar o potencial revolucionário que aparece quando o trabalho, outrora apropriado de modo alienante, converte-se em ato de resistência e de criação de novos vínculos societários.
Essa síntese, situada entre a esperança de uma liberdade comum e o risco de coisificação imposto pelas forças do capital, demarca a contribuição decisiva de Hegel e Marx à filosofia social, legando aos debates contemporâneos uma leitura que não se limita a compreender o trabalho como categoria abstrata, mas como prática concretamente imersa nas estruturas de dominação e abertura para a emancipação.
Considerações finais
Ao término desse artigo, resta claro que a contribuição de Hegel e Marx para a compreensão do trabalho como instância formadora e, ao mesmo tempo, potencialmente alienadora, mantém atualidade. Se, por um lado, Hegel inaugura o tratamento sistemático do trabalho como condição de constituição da consciência e do reconhecimento recíproco, por outro, Marx aprofunda o problema ao evidenciar as contradições materiais que subjazem às relações de produção capitalistas.
Entre a possibilidade de liberdade e a realidade de opressão, a dialética hegeliana e a sua inversão marxista compõem uma crítica onde as forças econômicas e históricas não apenas modelam a consciência coletiva, mas também alimentam o conflito que pode levar à emancipação efetiva. Nesse movimento, o trabalho deixa de ser concebido como mera atividade produtiva e revela-se um lócus em que a tensão entre reconhecimento e exploração mostra-se irredutível (Ravagnant, 2009; Cressoni, 2020).
Diante disso, o pensamento social contemporâneo, seja filiado a vertentes comunitaristas ou pragmáticas, seja voltado à crítica do capitalismo, encontra em Hegel e Marx os fundamentos para pensar a crise e a renovação das formas de organização do labor. Ainda que Hegel ressalte o aspecto positivo dessa experiência, vinculada à elevação moral e à autorrealização, e Marx denuncie os mecanismos de exploração que rebaixam o trabalhador à condição de mercadoria, o aspecto comum entre ambos reside na convicção de que a vida social, edificada sobre o trabalho, só pode florescer mediante a superação das contradições históricas que nela se entrelaçam.
Nesse sentido, o legado dialético dos dois filósofos não apenas inaugura um debate filosófico acerca da agência humana no interior das relações econômicas, mas propõe também uma perspectiva realista e simultaneamente esperançosa, na qual o avanço ético e político depende de reconhecer o trabalho como fonte tanto de dominação quanto de emancipação, abrindo espaço para que, em nossos próprios tempos, se continue a buscar respostas para as contradições que persistem em corroer a dignidade humana.
Referências
CRESSONI, André. Sobre a possibilidade de uma dialética dialógica da filosofia social de Hegel. Revista Eletrônica Estudos Hegelianos, São Paulo, v. 17, n. 27, p. 139-163, jan. 2020. Disponível em: https://ojs.hegelbrasil.org/index.php/reh/article/download/409/316. Acesso em: 16 mar. 2021.
SEMERARO, G. (2013). A concepção de “trabalho” na filosofia de Hegel e Marx. EDUCAÇÃO E FILOSOFIA, 27(53), 87-104. Disponível em: https://doi.org/10.14393/REVEDFIL.issn.0102-6801.v27n53a2013-p87a104. Acesso em: 16 de março, 2021.
RAVAGNANI, Herbert Barucci. LUTA POR RECONHECIMENTO: a filosofia social do jovem hegel segundo honneth. Kínesis, Marilía, v. 1, n. 1, p. 39-57, mar. 2009. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/kinesis/article/view/4291. Acesso em: 16 mar. 2021.