ENTRE BUROCRATAS DE NÍVEL DE RUA E ELITES: RECRUTAMENTO NA DEFENSORIA PÚBLICA BRASILEIRA.

BETWEEN STREET-LEVEL BUREAUCRATS AND ELITES: RECRUITMENT IN THE BRAZILIAN PUBLIC DEFENSE OFFICE.

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10699334


Gustavo Alves de Jesus1


RESUMO

O presente trabalho, parte adaptada de dissertação de mestrado, analisa o recrutamento de defensoras e defensores públicos considerando as mudanças trazidas pela Emenda Constitucional n° 80/2014, que afirma ser a instituição “expressão e instrumento do regime democrático”. A função de defensor é objeto de análise de acordo com as teorias de elites e burocracia de nível de rua. O tema ganha relevância quando se considera a expansão da instituição para todas as unidades jurisdicionais, inacabada, mas prevista para ocorrer até o final do ano de 2022. Soma-se a isso o reduzido número de estudos sobre a instituição com potencial para atender aproximadamente 80% da população brasileira. Para promoção da pesquisa exploratória foi utilizada base de dados primária, a qual contou com 706 questionários respondidos, resultando em nível de confiança de 95% e margem de erro de 3,5%. Para os objetivos do presente artigo os entrevistados foram questionados sobre seus perfis sociodemográficos, constando-se que a instituição é formada majoritariamente por pessoas brancas, provenientes de famílias de alta renda e alto grau de instrução. Defensoras e defensores integram elites em sentido amplo, mas apenas parte dos membros compõem elites políticas, sendo por natureza burocratas de nível de rua. 

Palavras-Chave: Defensoria Pública; Elites; Burocracia de nível de rua; Recrutamento; Comportamento político.

ABSTRACT

This work, part adapted from a master’s thesis, analyzes the recruitment of public defenders considering the changes brought about by Constitutional Amendment No. 80/2014, which claims to be the institution “expression and instrument of the democratic regime”. The role of defender is the subject of analysis according to theories of elites and street-level bureaucracy. The topic gains relevance when considering the expansion of the institution to all jurisdictional units, unfinished, but expected to occur by the end of 2022. Added to this is the reduced number of studies on the institution with the potential to serve approximately 80 % of the Brazilian population. To promote the exploratory research, a primary database was used, which included 706 completed questionnaires, resulting in a confidence level of 95% and a margin of error of 3.5%. For the purposes of this article, the interviewees were asked about their sociodemographic profiles, noting that the institution is mainly made up of white people, from high-income families with a high level of education. Defenders are part of elites in a broad sense, but only part of the members make up political elites, being by nature street-level bureaucrats.

Keywords: Public Defender’s Office; Elites; Street-level bureaucracy; Recruitment; Political behavior.

1. INTRODUÇÃO 

Ao longo de sua existência a Defensoria Pública brasileira passou por transformações, regulamentações, adquiriu autonomia funcional, administrativa, iniciativa de proposta orçamentária, novas atribuições e prerrogativas, sendo que em 4 de junho de 2014, com a Emenda Constitucional n° 80, a que Constituição Federal (BRASIL, 1988), recebeu sua atual formatação constitucional:  

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.           (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)  
[…]  
§ 4º São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição Federal. (grifo nosso)  

A reformulação e expansão da Defensoria Pública brasileira, que contava com 6.800 membros em 2020 e deveria possuir entre 11.500 e  16.700 membros em 2022 para estar presentes em todas as unidades jurisdicionais (ANADEP, 2021), está alinhada com pesquisas que constataram diversas barreiras no acesso à justiça no mundo moderno, como o Projeto Florença (CAPPELLETTI e GARTH, 1988), que aponta os custos aos mais pobres, a defesa de interesses difusos e questões procedimentais como entraves relevantes ao acesso à justiça.   

No contexto do trabalho que se propõe desenvolver é necessário salientar que a Defensoria Pública, instituição permanente e essencial, constitucionalizada na transição democrática, passa a ser considerada expressão e instrumento do regime democrático, a única instituição com missão constitucional de promoção de direitos humanos e aos seus membros, responsáveis pelo exercício das atribuições institucionais. É garantida de forma expressa a independência funcional, para que possam exercer suas atividades em defesa dos necessitados sem ingerências internas ou externas de qualquer natureza, entretanto, não se questiona o perfil dos profissionais designados para cumprir tais objetivos institucionais, o que pode refletir diretamente na prestação do serviço público de acesso à justiça.

O presente trabalho divide-se em quatro partes, além da introdução e conclusão. A primeira parte destinada a tratar da defensoria pública sob a perspectiva das teorias de elite e de burocracia de nível de rua; a segunda parte explana sobre a metodologia adotada no trabalho; a parte três apresenta de forma descritiva o perfil socioeconômico das defensoras e defensores públicos brasileiros, resultado do survey aplicado.

2. DEFENSORES PÚBLICOS: ELITES OU BUROCRATAS DE NÍVEL DE RUA?

Na República Federativa do Brasil redemocratizada e com a promulgação da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), a Defensoria Pública ganhou status constitucional, como instituição estatal responsável pela promoção da política pública de acesso à justiça de forma integral e gratuita, optando o constituinte pelo modelo salaried staff, no qual o serviço é prestado por funcionários do Estado, remunerados para tal fim, em detrimento do sistema judicare, em que advogados privados atendem as demandas da população e são pagos pelo Estado pelo serviço prestado ou, ainda, do assistencialismo do modelo pró-bono, modelos descritos por Cappelletti e Garth (1988), no Projeto Florença.

Como características marcantes do modelo salaried staff, os defensores públicos poderiam promover os interesses dos pobres de forma individual e coletiva, empreender esforços para fazer com que pessoas pobres tomassem consciência de seus direitos e desejassem utilizar os serviços de assistência jurídica para obtê-los, além de atuarem para ampliar os direitos dos pobres enquanto classe “através de casos-teste, do exercício do lobby, e de outras atividades tendentes a obter reformas da legislação, em benefício dos pobres dentro de um enfoque de classe”, outra característica do modelo são os escritórios de vizinhança, próximos do público-alvo para facilitar o acesso aos serviços profissionais e minimizar barreiras de classe (Cappelletti e Garth, 1988, p.40).

Decorrem das características do modelo adotado pelo Brasil dois pontos relevantes para a discussão sobre a natureza política dos defensores públicos: o primeiro é o fato de que, como regra, defensores mantém contato com a população destinatária de política pública de acesso à justiça, com atuação dotada de discricionariedade técnica para alcançar os objetivos institucionais, em razão da garantia da independência funcional. Já o segundo ponto, é a conclusão lógica de que para a promoção dos interesses de vulneráveis de forma individual e coletiva, “exercício de lobby e de outras atividades tendentes a obter reformas da legislação, em benefício dos pobres dentro de um enfoque de classe” (Cappelletti e Garth, 1988, p.40), defensores públicos deveriam, de alguma forma, poder decidir ou influenciar de forma relevante o processo decisório, característica essa destacada em elites ou contra-elites.

Desde logo, não há como negar que defensoras e defensores públicos são burocratas de nível de rua por excelência, se adotada como referência a já clássica obra “Burocracia de nível de rua”, de Michael Lipsky (2019), na qual o autor sustenta haver duas possibilidades de compreensão do termo “burocracia de nível de rua”: uma primeira forma, mais comum, que relaciona o termo aos serviços públicos com os quais a população interage, e uma segunda forma, que se refere a apenas um certo tipo de empregado no setor público e restrito a certas condições. Nessa última concepção os burocratas de nível de rua interagem com os cidadãos no decurso do trabalho e têm discricionariedade para exercer autoridade, ao que se soma o fato de não poderem exercer suas atividades de acordo com concepções ideais, em virtude das limitações existentes na estrutura de trabalho. (Lipsky, 2019, p.24)

A temática da burocracia de nível de rua perpassa a literatura sob diversas denominações: funcionários de ponta ou de balcão (Lipsky, 2019); burocratas de esquina ou de linha de frente (Oliveira, 2012); funcionários públicos de contato direto (HUPE et al, 2019); burocratas operacionais (Peters, 2001), dentre outros. 

Todavia, apesar da distinção de nomenclatura, características marcantes da categoria costumam incluir, como em Lipsky (2019): a) discricionariedade; b) contato direto com o público; c) adaptação e implementação de políticas públicas; d) margem de manobra limitada em razão de restrições que incluem questões orçamentárias e regulamentação rígida, e; e) tomada de decisão com base em informações incompletas, que podem levar a erros ou decisões subótimas (Page e Jenkins, 2005; Maynard-Mood e Musheno, 2003).  

Pesquisas demonstram que a defensoria pública brasileira não possui estrutura de trabalho adequada, seus recursos financeiros são limitados e o número de profissionais insuficiente para o público-alvo (Esteves et al., 2022), mas, todavia, aos profissionais é garantida de forma expressa a “independência funcional” o que, de acordo com a teoria, implicaria na entrega de uma política pública distinta do tipo ideal em razão das limitações, como forma de adaptar as expectativas dos gestores à realidade encontrada no serviço público.

Ainda sobre o tema e o enquadramento de defensores públicos como burocratas de nível de rua, Lipsky (2019) ao tratar dos serviços públicos norte-americanos menciona de forma expressa os defensores público, juízes, policiais, assistentes sociais, dentre outros profissionais como abarcados pelo conceito, esclarecendo que algumas profissões são mais respeitadas e bem remuneradas, enquanto outras mais contestadas.

Lipsky pontua, ainda, que muitas vezes as pessoas entram para o serviço público com o compromisso de servir a comunidade, serem socialmente úteis e a forma como atuam tem por objetivo tornar mais coerentes seus compromissos com expectativas de carreira, salientando que na teoria esses profissionais deveriam responder às necessidades individuais ou características das pessoas, mas na prática precisam tratar os indivíduos coletivamente, porque as exigências do trabalho proíbem respostas individualizadas (Lipsky, 2019, passim, p. 17-19).

Apesar da menção expressa aos defensores públicos como burocratas de nível de rua na teoria de Lipsky (Lipsky, 2019), ao menos um ponto quantos às defensorias brasileiras e outros órgãos autônomos, merece destaque e impõe questionamento sobre o enquadramento no tipo ideal: “o princípio da independência funcional”, posto como ausência de hierarquia na atividade-fim,  aparenta contrariar a teoria de burocracia de nível de rua, pois esta pressupõe a existência de uma hierarquia decisória e discricionariedade, que influenciam na entrega da política pública. Observe-se a lição de Guilherme Penã de Moraes:

Princípio institucional maior, a independência funcional traduz-se na inocorrência de subordinação hierárquica – ou seja, no desempenho de suas funções, os defensores públicos não estão adstritos, em qualquer hipótese, ao comando de quem quer que seja. Cabe acentuar que esse atributo é qualificado como ilimitado, pois os membros da Defensoria Pública, para o exercício de suas atribuições, não se encontram sujeitos, sequer, às recomendações dos órgãos de administração superior da Instituição, pautando suas condutas somente pela lei e por sua convicção. (Moraes, 1999, pág. 175) 

Com tal parâmetro posto, inexistindo na atividade-fim subordinação hierárquica, estando o defensor vinculado apenas à missão institucional de promoção de acesso à justiça, sem influência direta de gestores de quaisquer esferas sobre decisões técnicas, pode-se afirmar que as crenças e valores dos membros da instituição ganham destaque. 

A isso, se somada à proposta do modelo salaried staff de fomento da consciência de classe, de direitos, atuação coletiva, interferência no processo decisório político através de lobby ou outros meios de obter reformas nas legislações em favor dos pobres enquanto classe, poderia incorrer na análise não de uma burocracia de nível de rua, mas eventualmente de uma elite, discussão que ocupará os parágrafos seguintes.

As ‘teorias das elites’, como bem observa Farazmand (1999), possuem diversas definições para o termo elite, algumas das quais abordaremos a seguir, sendo comum à maioria dos teóricos apontar que a característica marcante consiste na “posição poderosa de um pequeno grupo de indivíduos ou grupos que moldam ou influenciam as decisões que afetam os resultados nacionais”, o que é corroborado por Moore (1979, p. 674), Higley e Burton (1989), dentre outros.

Pareto abordou o conceito de elite inicialmente de forma econométrica, propondo a classificação das pessoas que possuem os índices mais altos em seus ramos de atividade como elites (Pareto, 1935, p.1422-3). Este conceito não foi desenvolvido plenamente nesta obra, servindo apenas para acentuar a desigualdade de atributos individuais em todas as esferas sociais. No entanto, esta definição viria a servir de ponto de partida para o seu conceito de ‘elite governante’, compreendendo indivíduos, que direta ou indiretamente, participam do governo.

Bottomore (1974, p. 12) esclarece que o termo “elite(s)” atualmente refere-se, como regra, a grupos funcionais, em especial ocupacionais, que possuem status elevado por diferentes razões em uma sociedade. Sob o ponto de vista de elite em sentido amplo, segundo o survey realizado para o presente trabalho e a Pesquisa Nacional da Defensoria Pública (2022), os membros da defensoria pública brasileira são e provêm, como regra, de elites econômicas intelectuais. 

Considerando os conceitos de Pareto e Bottomore alhures apresentados, poderíamos, por exemplo, concluir através   das poucas pesquisas existentes de avaliação de desempenho, serem os membros da defensoria pública brasileira parte de uma elites, pois os resultados apontam que os membros da instituição obtêm proporcionalmente na esfera penal resultados mais favoráveis ao público-alvo em recursos do que advogados particulares nos tribunais superiores, sendo o índice de 48% no STJ e 5% no STF dos defensores, em contraposição a 23% no STJ e 3% do STF dos advogados (Faria e Garcia, 2019). 

Por sua vez, Gaetano Mosca, afirma que desde os primórdios da civilização existem duas classes de pessoas, uma classe que dirige e outra que é dirigida. A primeira é menor e mais organizada, monopoliza o poder e goza de suas vantagens, enquanto a segunda é dirigida e controlada pela primeira de forma mais ou menos legal, mais ou menos arbitrária e violenta, sendo a organização da minoria, em razão de ser minoria, determinante no controle de indivíduos da maioria (Mosca, 1939, passim, p. 50-4).

A análise de Mosca e Pareto permite concluir que apesar das divergências entre si, os conceitos de ambos: “classe política” e “elite governante”, respectivamente, preocupavam-se com os grupos de pessoas que exercem diretamente o poder político ou que poderiam influenciar no exercício deste, cientes de que essas elites não eram homogêneas. Pareto (1935, p. 1429-30) referia-se a aristocracias e plutocracias militares, religiosas e comerciais. Esse autor priorizou mais a relação entre “elite” e “não-elite”, enquanto Mosca voltou-se com mais profundidade para composição de elite. 

De acordo com o último autor, uma elite não se impõe apenas pela força, mas também representa interesses de grupos importantes e influentes na sociedade, não estando deslocada da sociedade. A elites está intimamente ligada a essa através de uma sub-elite, um grupo maior que compreenderia toda uma nova classe média que incluiria os funcionários públicos em um aparente quebra-cabeças. Por fim, divergências postas, a elite não seria um grupo estanque e permanente, mas em medida permeável a renovada por membros de outros grupos, como sub-elites ou, eventualmente, substituída por completo por contra-elites, mais comumente em contextos de revoluções. (Bottomore, 1974, p. 5-8).

Ainda nas considerações de Bottomore (1974, p. 12-3), com intuito de diferenciar “elites” como grupos funcionais, de grupos que “exercem poder ou influência política e estão diretamente empenhados em disputas por lideranças políticas”, o autor opta por seguir a definição de Mosca (1939) para tanto, com o termo “classe política” e para o grupo de efetivamente exerce o poder político em qualquer época “elite política”.

Dentre as contribuições ao estudo das elites, cabe aqui mencionar a discussão de elite organizacional de Farazmand (1999). Em alguma medida este conceito se relaciona com a “sub-elite” de Mosca ao pontuar que

“refere-se à ideia de que as organizações, público ou privado, pequeno ou grande são dirigidos, controlados e dominados por uns poucos cujas decisões e indecisões não só afetam toda a organização e seus membros, mas também estão de acordo com os objetivos e direções gerais da elite econômica”. 

Frederico Almeida (2014) trata das elites da justiça, com enfoque nas lideranças jurídicas capazes de influenciar a reforma do Poder Judiciário com a EC n° 45/2004, um recorte mais voltado para a ideia de “elites políticas”; por fim, merece destaque a definição de “contra-elites” utilizada por Espinoza, Gerardi e Sangalli (2017), segundo os quais representam os grupos ou estratos sociais que querem conquistar o poder e  tem  interesses  e  ideias  alternativas  à elite  governante.

A par do exposto, antes de propor uma classificação dos membros da Defensoria Pública de acordo com o referencial teórico retomado, importa salientar que na síntese do estudo das elites políticas são citados três métodos de análise de poder político (Putnam, 1976): 1) o posicional, que considera posições formais de mando na comunidade e tem como livro referência The Elite Power (Mills, 1956); 2) o decisional, que defende que pessoas com poder são aquelas com capacidade de tomar decisões estratégicas para a comunidade ou influenciar suas decisões, o que nem sempre se confunde com a ocupação de posições formais tidas como relevantes (Dahl, 1961); e 3) o método reputacional que identifica posições formais de poder e depois questiona-se quem são os mais influentes e poderosos dentre os relacionados (Hunter, 1953; 1959).

Isso posto, cabe-nos aqui tecer considerações sobre o caráter político dos membros da Defensoria Pública, destacando desde logo a maior adequação teórica à “teoria das burocracias de nível de rua” do que ao enquadramento geral de todos os membros da carreira como pertencentes à uma “elite política” pelos motivos a seguir delineados. 

Com a Constituição Federal de 1988, a Defensoria Pública passou por transformações profundas nas possibilidades de atuação na arena política e questões públicas, conquistou recursos de poder e espaços que extrapolam os limites de funções exclusivamente judiciais (Sadek, 2002, p. 253-254). 

Todavia, apesar da independência funcional dos membros na atividade-fim e ausência de hierarquia tradicional, a estruturação da instituição, com diretrizes traçadas na Lei Complementar n° 80, de 12 de janeiro de 1994 (Brasil, 1994) e regulamentação nas leis estaduais, há uma hierarquia administrativa e órgãos de controle, capazes de definir o rumo da atuação institucional, definir programas e projetos, direcionar os recursos financeiros para consecução dos fins institucionais e sancionar condutas desviantes, com capacidade de repercussão em toda a unidade de federação em que estão inseridas, nesse ponto visível a existência de uma elite política posicional e elites organizacionais delimitadas, ou seja, apenas membros que ocupam determinadas posições formais da estrutura administrativa decidem diretamente sobre o destino da política pública de acesso à justiça sob a perspectiva orçamentária e organizacional.

Ao lado das elites posicionais, podemos encontrar ainda elites decisionais dentro da instituição, nesse caso compostas por membros que possuem, de acordo com regulamentações internas, atribuição para promoção de tutela coletiva em suas variadas nuances, incluindo a promoção de ações coletivas, de improbidade administrativa, promoção de lobby junto aos poderes, de acordo com suas crenças e valores sobre a missão institucional.

Por fim, não há indícios de que os membros da defensoria pública ou, como regra, membros de burocracia se portem como contra-elite e almejam de alguma forma assumir o poder com ideias alternativas à elite governante, ao contrário, conforme leciona Graham K. Wilson (1993), burocratas tendem a ter papel relevante nas mudanças de elites e na manutenção do funcionamento estatal ao se adaptarem às novas conjunturas. 

Isso posto, dentre os membros de  elite da Defensoria Pública podemos encontrar elites políticas sob o prisma posicional, decisório e eventualmente reputacional, podemos encontrar elites organizacionais, mas em classificação ampla os membros da defensoria podem ser classificados como sub-elite e burocratas de nível de rua, sendo em qualquer caso relevante conhecer suas crenças, valores, atitudes e estruturas de trabalho, visto que tais variáveis podem influenciar como a política pública de acesso à justiça é entregue à população brasileira, todavia, tal análise excede o escopo do presente trabalho e será apresentada em material próprio, restringindo-se o presente artigo à descrição do perfil socioeconômico das defensoras e defensores públicos brasileiros.

3. METODOLOGIA

A pesquisa em tela utiliza-se de fonte de dados primária, a qual foi formada através de questionário estruturado aplicados às defensoras e defensores públicos brasileiros de todas as unidades da federação (Survey Defensores) e será utilizada para análise descritiva do perfil socioeconômico dos membros da Defensoria Pública, tendo sido elaborado da forma a seguir descrita.

Para definição da população e posterior definição da amostra foram utilizados os dados das Defensorias Públicas Estaduais, do Distrito Federal e da União apresentados pelas Defensorias Públicas-Gerais à Pesquisa Nacional da Defensoria Pública (2022), dados esses atualizados através de informações disponíveis em sites institucionais e portais de transparência em  relação ao quantitativo de membros em atividade até o dia 30.06.2022, o que resultou na população de 7.025 defensoras e defensores brasileiros, dos quais 6.386 possuíam vínculo estadual ou distrital e 639 com vínculo federal. 

Isso posto, definiu-se que para a pesquisa possuir nível de confiança de 95% e margem de erro de 3,5%, a amostra deveria contar com 699 defensores públicos estaduais ou 706 defensores brasileiros, se incluída a Defensoria Pública da União nos cálculos, população amostral essa a ser distribuída em razão do gênero pelo território nacional, o que possibilitaria, em tese, retratar as defensorias com maior fidelidade, mesmo que sem poder se definir nível de confiança e margem de erro estatisticamente relevantes por unidade da federação de forma individualizada.

Para responder o questionário estruturado online foram sorteados inicialmente 847 defensores públicos brasileiros, que correspondem aos 706 necessários na amostra aleatória simples para os índices definidos para a pesquisa acrescidos de 20% de substitutos, todos divididos proporcionalmente entre as unidades da federação e em razão do gênero.

Considerando o tamanho da amostra e a extensão territorial brasileira, foram buscados parceiros que possuíssem representatividade, auxiliassem e incentivassem a aplicação do questionário aos defensores públicos. Assim, foram firmados termos de anuência e apoio a pesquisa com o Conselho Nacional de Corregedores-Gerais das Defensorias Públicas Estaduais, do Distrito Federal e da União (CNCG), composto pelos titulares de órgãos de controle de todas as defensorias públicas brasileiras; com a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP), entidade de classe nacional representativa de defensores públicos estaduais ativos e inativos brasileiros e com ao Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (CONDEGE), composto por todos os chefes das agências estaduais e distrital, com status de Secretários de Estado. A Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Federais (ANADEF) e a Defensoria Pública da União (DPU) não formalizaram termo de anuência e cooperação, restando o apoio formal da última apenas no âmbito do CNCG e o informal da entidade classista federal, o que resultou em baixa adesão da carreira à pesquisa.

Aos apoiadores coube a divulgação e promoção de chamada prévia para informar sobre a realização da pesquisa; descentralizar listas de sorteados e fomentar a pesquisa entre as unidades da federação; submeter de links para resposta da pesquisa através de e-mails e outros canais oficiais; contatar sorteados para responderem o questionário quando não o fizessem espontaneamente e; em caso de ausência de resposta dos sorteados, fomentar a resposta dentre os demais defensores para substituição em lista.

A coleta de dados ocorreu entre 03.10.2022 e 10.11.2022, sendo obtidas 734 respostas dentre respondentes sorteados, substitutos sorteados e, por fim, substitutos voluntários. Dentre as respostas obtidas, em razão da impossibilidade de confirmação de submissão por defensores em atividade e duplicidades, foram excluídos 28 formulários, restando 706 respostas válidas.

O controle da amostra utilizou-se da distribuição de gênero, que restou na proporção de 47% de respondentes do gênero masculino e 53% de respondentes do gênero feminino, sendo que os dados oficiais das defensorias apontavam para a existência de 49% de membros do gênero masculino e 51% do gênero feminino quando da resposta da Pesquisa Nacional (2022), em janeiro de 2022.

Cabe esclarecer que a pretensão inicial da pesquisa era obter além da proporção de gênero entre membros, respostas divididas proporcionalmente entre as unidades da federação, o que se mostrou inviável em razão do maior ou menor engajamento das lideranças locais na pesquisa, bem como rede de contatos do pesquisador em cada PDO’s. Todavia, verificou-se ao final da aplicação que o controle em razão de gênero produziu resultados semelhantes aos encontrados na Pesquisa Nacional (2022), sem diferença digna de nota quando considerados intervalos de margem de erro de ambas as pesquisas nos quesitos replicados.

Em relação às perguntas aplicadas o questionário dividiu-se em quatro blocos, o primeiro com três perguntas de controle, esclarecimentos e autorização para pesquisa, o segundo possuía dez perguntas socioeconômicas destinadas à análise de recrutamento, o terceiro bloco, com oito perguntas sobre percepção de estrutura de trabalho, demanda e atendimento ao público, com objetivo de analisar hipóteses sobre burocracia em nível de rua e o último bloco composto por sete perguntas destinava-se à questionamento sobre crenças e valores dos defensores públicos quanto a democracia e direitos humanos.

4. AS DEFENSORAS E OS DEFENSORES PÚBLICOS BRASILEIROS

Se defensores públicos são agentes políticos, integram elites em sentido amplo e parte deles ainda compõem elites políticas, mas se todos os que exercem a atividade-fim de promoção de acesso à justiça são burocratas de nível de rua por excelência, mostra-se relevante saber de onde são recrutados os defensores públicos brasileiros. Inicialmente merecem análise as composições de renda dos grupos familiares dos defensores públicos antes do ingresso na carreira e a grau de instrução formal dos genitores.

Quando analisamos a renda predominante dos grupos familiares de defensores antes do ingresso na carreira, a primeira constatação óbvia é a de que tais membros, como regra, não provêm das classes sociais que têm a missão inicial de representar. Os membros da carreira provenientes de famílias com renda familiar de até 10 salários-mínimos correspondem a apenas 12,8% do total. Ao contrário, 83,5% dos membros possuíam renda familiar superior ao limite anterior, sendo que 53,9% já eram de classe média alta ou alta classes as quais invariavelmente passaram a compor todos os novos membros, independente da origem, considerando a remuneração da carreira no país, constante no ano da própria pesquisa (Esteves et al., 2022, p. 115-6). 

A título de argumentação salienta-se que como regra as Defensorias Públicas atendem famílias que ganhavam até três salários-mínimos, o equivalente a R$ 3.636,00 no ano de 2022, ano da pesquisa, enquanto os mais da metade dos membros viria de grupos familiares com renda superior a dez salários-mínimos, o equivalente a R$ 12.120,00 (DIEESE, 2022).

Cabe aqui salientar que pergunta semelhante não é habitual em pesquisas sobre outros órgãos do sistema de justiça brasileiro, nas quais a tendência é de se buscar padrões endógenos de recrutamento, para saber quantos membros provêm de famílias que já possuem integrantes no Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria e, por vezes, advocacia. Tais questionamentos indiretos permite apenas inferir que parte significativa dos membros do Poder Judiciário na ativa tem origem de elites econômicas e/ou sociais, sendo filhos de pais que em sua maioria tem origem no serviço público e profissionais autônomos com nível superior e mães definidas como “prendas do lar” na maioria ou também servidoras públicas, mas de médio e baixo escalão (Vianna, Carvalho e Burgos, 2018; CNJ, 2018). 

Figura 01: Classe econômica antes do ingresso na carreira

Fonte: Esteves et al,2021. Elaboração própria.

Quanto à formação materna e paterna dos defensores, mais uma vez, mais da metade dos membros revela que os genitores possuem titulação entre graduação e doutorado, sendo a escolaridade materna nesses casos de 60,2% e paterna de 61,2%%. Em cenário oposto, aqueles que provêm de famílias com escolaridade materna básica incompleta, ou seja, não concluíram ao menos o ensino médio, corresponde a apenas 15,1% dos membros e sob a perspectiva paterna corresponde a 18,7%. Em contraposição, o cenário brasileiro retratado pela PNAD Contínua (IBGE, 2020), demonstra que 51,2% da população não concluiu ao menos o ensino médio e que somente 17,4% da população possui curso superior completo.

À guisa de comparação, nota-se primeiro que os genitores dos membros da defensoria têm grau de instrução pouco superior ao da magistratura, sendo que em pesquisa do CNJ (2018) o resultado aponta para 42% de mães de juízes com alta escolaridade e 51% dos pais com alta escolaridade. Salienta-se que esses percentuais se modificam em relação ao período de ingresso na carreira, sendo respectivamente de 56% e 57% para mães e pais daqueles que ingressaram na magistratura após 2011.

Figura 02: Escolaridade Materna e Paterna

Fonte: Survey Defensores. Elaboração própria.

Assim, a análise da origem socioeconômica dos membros aponta para a perspectiva de maior dificuldade de acesso aos cargos de defensores públicos para pessoas provenientes de grupos familiares de baixa renda e famílias com baixa escolaridade, em que pese o público-alvo da instituição tenha como regra, considerando critérios de elegibilidade, esse perfil potencial.

Sob a perspectiva de grau de instrução dos membros, todos são ao menos graduados em direito, sendo 52,5% provenientes de instituições privadas e 47% se graduaram em instituições públicas, o que também não difere significativamente da magistratura brasileira, na qual 51% são graduados em instituições privadas e 49% são provenientes de instituições públicas (CNJ, 2018, p. 23). 

A aparente divisão proporcional esconde o fato de que existem no Brasil atualmente 1704 cursos de direitos, sendo 1.542 dos cursos em instituições privadas e apenas 162 de instituições de ensino públicas de ensino, o que encerra uma proporção de 90,5% de instituições privadas e 9,5% de instituições públicas de ensino. Não sendo o bastante para demonstrar a desproporção, segundo o INEP (2021), das 503.352 vagas disponibilizadas para o curso de direito, das quais 480.584 pertencem à rede privada e apenas 22.768 à rede pública de ensino superior, ou seja, 95,5% das vagas de direito provêm de instituições de ensino superior privadas e apenas 4,5% de instituições públicas. Todavia, são os oriundos dessas instituições os responsáveis pelo provimento de quase metade das vagas de membros das Defensorias Públicas.

Em complemento à graduação, 3,9% cursam mestrado, 10,5% têm mestrado completo, 2,1% doutorado em andamento e 2,0% possuem doutorado concluído, sendo que 5,4% dos membros exercem docência universitária. Todavia, fato que chama atenção é que 74,5% das defensoras e defensores públicos mencionaram possuir ao menos especialização lato sensu ou MBA. 

Quando fazemos a comparação dos percentuais com a magistratura brasileiro notamos que no geral defensores possuem quantitativo maior de membros especializados, visto que 69% dos membros do Judiciário possuem algum tipo de especialização. Todavia, ao aprofundarmos para o nível de especialização stricto sensu a instrução de membros do judiciário apresenta-se maior que a de membros da defensoria, sendo que 5% dos magistrados possuem doutorado e 16% possuem mestrado completos (CNJ, 2018, p. 24), situação essa talvez justificável em razão do tempo de existência das instituições.

Figura 03: Pós-graduação lato sensu e/ou stricto sensu

Fonte: Survey Defensores. Elaboração própria.

Em continuidade, merece atenção a composição das defensorias públicas sob a perspectiva de idade, raça e gênero. Quanto ao quesito etário observa-se que 55,3% dos membros possuem até 40 anos, sendo o grupo predominante composto por pessoas com idade entre 31 e 40 anos, que representa 48,4% dos membros. No Estado do Amapá, último a realizar concursos para o cargo de defensor, 100% dos membros possuem até 40 anos, enquanto nas últimas três defensorias efetivamente instaladas também se destacam a quantidade de com idade entre 31 e 40 anos, assim distribuídas: Santa Catarina, 88,2%; Paraná, 81,7% e Goiás com 74,6% dos membros nessa faixa etária.

Ao analisarmos o perfil etário dos membros do Poder Judiciário notamos a primeira diferença significativa dentre os itens até então trabalhados, visto que os membros do Poder apresentam idade mais avançada que se comparada com os membros do órgão de acesso à justiça, pois naquele órgão 52,3% dos juízes de primeiro grau têm idade entre 41 e 60 anos, ao passo que no segundo grau 95,2% têm 51 anos ou mais (Vianna, Carvalho e Burgos, 2018, p. 316).

Figura 04: Faixa etária

Fonte: Survey Defensores. Elaboração própria.

Em relação ao perfil étnico-racial, percebe-se a nítida desigualdade entre a composição do corpo de defensores e a população brasileira, com a predominância de brancos na instituição e baixo percentual de pardos e pretos, quando comparados com a população brasileira em geral. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), realizada pelo IBGE (2020), no Brasil 42,7% da população se declara branca, 46,8% parda, 9,4% preta e 1,1% entre amarela e indígena, todavia, dentro da instituição os números são diversos, 74% são brancos, 19,3% pardos, 3% pretos e 1,5% entre amarelos e indígenas, mais um reflexo da desigualdade entre membros da instituição e população brasileira.

Apesar da situação discrepante em relação à população brasileira em geral, mais uma vez a Defensoria Pública não se afasta do perfil de recrutamento do Poder Judiciário, onde 80,3% se declaram brancos, 16,5% pardos, 1,6% pretos e 1,6% de origem asiática, com apenas 11 magistrados se declarando indígenas (CNJ, 2018, p. 8-9). Dado interessante de pesquisa da AMB (Vianna, Carvalho e Burgos, 2018) aponta que o número de pardos que ocupam cargos no segundo grau é perto da metade do número daqueles que são juízes em primeiro grau, ou seja, 16,5% nessa situação e apenas 9,8% naquela. A Defensoria Pública como regra não vincula suas promoções à entrâncias e talvez por isso não possua dados étnico-raciais de membros com atribuição para atuar junto ao segundo grau. 

Figura 05: Perfil étnico-racial

Fonte: Survey Defensores. Elaboração própria.

Quando é abordada a perspectiva de gênero a situação da instituição, de modo amplo, apresenta melhores índices e mais próximos aos da realidade brasileira, sendo majoritariamente feminina em ambos os cenários. Assim, as mulheres compõem 51% do corpo de membros das defensorias e os homens 49%, enquanto na população em geral, também de acordo com a PNAD 2019 (IBGE, 2020) correspondem respectivamente a 51,8% e 48,2%. Cabe salientar que a distribuição não é equânime em todo território brasileiro sendo os três Estados com maior número de homens em sua composição Maranhão (65%), Rondônia e Santa Catarina (64%), enquanto encontramos no espectro oposto, Rio de Janeiro (66,4%), Pernambuco (59,9%) e Rio Grande do Sul (58,9%), majoritariamente femininos.

Sob a perspectiva de gênero a Defensoria Pública apresenta-se como mais igualitária quando comparada ao Poder Judiciário, visto que em pesquisas do CNJ (2018) e AMB (Vianna, Carvalho e Burgos, 2018), o quantitativo de membros do sexo masculino fica na casa dos 63% e o sexo feminino em 37%. Dados do CNJ (2018, p. 9) apontam que houve redução no processo de desigualdade de gênero até os anos 2000, mas que o processo de desigualdade, com exclusão feminina, se intensificou novamente a partir de 2011, dados semelhantes não estão disponíveis em relação à Defensoria Pública.

Ainda, em complemento, a maioria das defensoras e defensores públicos mantém relacionamento afetivo estável, divididos entre matrimônio e união estável, somando 73,2% de membros nessas situações, contra 20,2% de solteiros. Por outro lado, quando realizamos comparação com o Poder Judiciário observamos que 80% dos membros mantêm relacionamento afetivo estável, enquanto 10% se declaram solteiros (CJN, 2018, p.11). Observe-se a distribuição de estado civil na Defensoria Pública:

Figura 06: Estado civil das defensoras e defensores públicos

Fonte: Survey Defensores. Elaboração própria.

Por fim, outro ponto que guarda com a relação com a teoria dos burocratas no nível de rua, está a principal motivação para a escolha do cargo público de defensor público, a função social do cargo, denominado na pesquisa de “Humanitarismo/ Interesse pelo trabalho jurídico-assistencial”, representando 64% dos membros da instituição.

Não raro obras com a temática burocracia de nível de rua demonstram como resultado de pesquisas que esses profissionais têm motivação intrínseca de ajudar os outros, dispostos a ganhar salários mais baixos e condições de trabalho difíceis porque acreditam que estão fazendo um trabalho importante e significativo (Lipsky, 2019), muitos dos profissionais seriam dotados de forte senso de responsabilidade social e compromisso com a justiça e equidade, valores esses que influenciam o trabalho e a forma como lidam com o público (Newman e Clark, 2012), em outras palavras, muitos burocratas de nível de rua veem seus trabalhos como uma de contribuir para a sociedade e ajudar os necessitados (Howlett e Ramesh, 1998), assim os principais motivos para ingresso na carreira de defensor público não divergem da teoria de burocracia de nível de rua.

Figura 07: Motivação para ingresso na carreira

Fonte: Survey Defensores. Elaboração própria.

5. CONCLUSÕES

Os defensores públicos brasileiros são parte de uma elite nos termos propostos por Bottomore (1974) e Pareto (1935), visto constituírem grupos funcionais com destaque na sociedade e obterem parte significativa dos recursos em sua área de atuação, já outra parte reduzida de seus membros pertencem a elites políticas, sob a perspectiva posicional, decisional ou reputacional (Perissinotto e Codato, 2015), pois tem possibilidade de definir e criação de políticas públicas, influenciar a destinação de recursos públicos e processos decisórios, inclusive na esfera legislativa em razão de posições formais ocupadas ou reputação.

Todavia, ao exercerem a atividade-fim, defensores públicos são por excelência burocratas de nível de rua, entregam efetivamente a política pública de acesso à justiça, em um cenário de limitações, pressões e dotados de autonomia para tomada de decisões, o que implica em adaptações na política pública para conciliar expectativas de gestores e o que efetivamente pode ser entregue à população. Em todos os cenários se tornam relevantes suas crenças e valores, pois capazes de influenciar as decisões que podem tomar no curso da atividade e a própria percepção do que é a política pública de acesso à justiça.

Em complemento, o cenário de desigualdade social brasileiro reflete-se no recrutamento dos defensores públicos brasileiros, sendo a instituição majoritariamente branca, jovem, proveniente de classes mais abastadas da sociedade, com familiares com alto grau de instrução formal, ao contrário de seu público-alvo, dentre os quais, alguns poucos conseguem adentrar nos quadros da instituição; a exceção ao cenário de desigualdade fica por conta da questão de gênero, com predomínio feminino nos quadros institucionais, em proporção semelhante ao da população brasileira em geral. 

A guisa de comparação, dentre as elites jurídicas brasileiras, quando analisamos a magistratura, carreira que apresenta maiores estudos quanto ao perfil de seus integrantes, à exceção da questão de gênero, não se nota tanta diferença entre defensores e juízes, sendo que esses últimos segundo Censo do Judiciário de 2018 (CNJ, 2018), exceto quanto a questão de gênero e distribuição etária, sendo a Defensoria menos desigual na questão de gênero e com quadro de membros mais jovem.

A análise perfil socioeconômico apresenta-se como ponto de partida para novas hipóteses de avaliação do resultado dos trabalhos de defensoras e defensores públicos brasileiros, visto que não diverge significativamente de outras elites judiciárias mas apresenta missão institucional diversa, como expressão e instrumento do regime democrático e a única instituição com atribuição constitucional para promoção e defesa dos direitos humanos, assim, a análise de crenças e valores desses agentes políticos pode ser relevante para compreender os resultados da política pública de acesso à justiça.

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1Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG), MBA em Gestão e Business Law pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Especializando em Direito Eleitoral (PUC-MG), Defensor Público do Estado de Goiás (DPEGO), Presidente da Associação Goiana dos Defensores Públicos (AGDP – Gestão 2017/2019), Vice-Presidente Jurídico-Legislativo da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP – Gestão 2019/2021)