BETWEEN LACK AND MEANING: A THEOLOGICAL READING OF CONSUMPTION AND NIHILISM IN CONTEMPORARY TIMES
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202509301029
Rodrigo Bernardes Burhals
Resumo:
Em meio à abundância de estímulos e à escassez de sentido, este artigo propõe uma leitura teológica do consumo e do niilismo na contemporaneidade, articulando contribuições da psicanálise, da sociologia e da teologia cristã. Partindo da estrutura da falta como constitutiva da subjetividade humana, investiga-se como o desejo — indestrutível e sempre orientado pelo Outro — é capturado pela lógica simbólica do mercado, transformando o consumo em ritual e simulacro. A crise de sentido, intensificada pela secularização e pela “morte de Deus” nietzschiana, revela um sujeito fragmentado, condenado à liberdade e à construção solitária de significados. Frente a esse cenário, a teologia não oferece respostas prontas, mas escuta, presença e esperança escatológica: uma redenção que não nega o vazio, mas o atravessa, transfigurando a falta em espaço de encontro com o sagrado. A cruz, símbolo máximo da ausência e da promessa, torna-se o eixo hermenêutico para pensar o sentido da vida em tempos líquidos.
Palavras-chave: Niilismo. Consumismo. Falta. Psicanálise. Teologia.
1 Introdução
Vivemos em uma era marcada pela velocidade, pela abundância e, paradoxalmente, pelo vazio. O consumo tornou-se eixo estruturante da sociedade contemporânea, reorganizando não apenas a economia, mas também os desejos, os vínculos e a identidade dos sujeitos. Ao mesmo tempo, enfrentamos uma crise de sentido que abala as antigas estruturas de significado — uma realidade que o filósofo Friedrich Nietzsche chamou de “a morte de Deus” (NIETZSCHE, 2001), e que autores como Gilles Lipovetsky (LIPOVETSKY, 1983), Jacques Lacan (LACAN, 1964) e Zygmunt Bauman (BAUMAN, 2001) desdobraram em suas críticas à modernidade líquida e à cultura do excesso.
Neste contexto, a teologia é convocada a dialogar com os desafios existenciais da nossa era. Mais do que oferecer respostas dogmáticas, ela precisa ouvir as angústias do tempo, compreender suas feridas e, a partir da Palavra, lançar luz sobre as sombras que atravessam o homem moderno. O presente artigo propõe uma leitura teológica sobre o consumismo e o niilismo contemporâneo, integrando contribuições da psicanálise e da sociologia para compreender as estruturas subjetivas e culturais que sustentam a busca incessante por preenchimento — uma busca, muitas vezes, direcionada a lugares onde o transcendente foi silenciado.
2 Metodologia
Em termos metodológicos, trata-se de uma pesquisa bibliográfica quanto aos meios e descritiva quanto aos fins, conforme a abordagem de Silva Vergara (2005). A pesquisa bibliográfica envolve a revisão e análise de literatura existente sobre niilismo, consumo e crise de sentido, incluindo obras filosóficas, psicanalíticas, sociológicas e teológicas. Os principais autores e textos que fundamentam este estudo são Friedrich Nietzsche, Jacques Lacan, Jean Baudrillard, Gilles Lipovetsky, Zygmunt Bauman, Dietrich Bonhoeffer e Sigmund Freud, entre outros.
3 A Estrutura da Falta e o Desejo na Subjetividade Humana
Desde Freud, aprendemos que o sujeito é marcado pela falta. A psicanálise nos ensina que o desejo não busca objetos em si, mas responde a uma ausência primordial — uma ausência que estrutura a identidade e que jamais pode ser plenamente satisfeita (FREUD, 2010a). O desejo, portanto, é indestrutível, como mostrou Freud a partir da tragédia de Édipo (FREUD, 2010b), e se manifesta sob múltiplas formas: no amor, na espiritualidade, na compulsão ou no consumo.
Lacan radicaliza essa concepção ao afirmar que o inconsciente é estruturado como linguagem e que “o desejo é sempre o desejo do Outro” (LACAN, 1964). O sujeito não deseja simplesmente objetos, ele deseja aquilo que acredita que o Outro deseja. Isso inaugura uma cadeia interminável de significantes, onde a plenitude é constantemente prometida — mas jamais alcançada.
Essa lógica simbólica se reproduz na sociedade de consumo. Os objetos que consumimos deixam de ser instrumentos de utilidade para tornarem-se substitutos simbólicos do que nos falta: pertencimento, reconhecimento, amor, salvação. Nesse sentido, o consumo não é apenas um fenômeno econômico, mas uma resposta cultural ao mal-estar da subjetividade. Freud já advertia em O Mal-estar na Civilização que os indivíduos seriam sempre tensionados entre os impulsos internos e as exigências sociais (FREUD, 2010c). O mercado, no entanto, explora essa tensão ao apresentar produtos como promessas de alívio — ainda que transitório — para o vazio interno.
4 A Sociedade do Consumo: Simulacro, Hiper Realidade e Obsolescência
Jean Baudrillard denuncia o consumo como um sistema de signos, onde não importa mais o objeto em si, mas o valor simbólico que ele carrega (BAUDRILLARD, 1970; 1995). Vivemos em uma cultura do simulacro, na qual a imagem se sobrepõe à realidade, e os produtos são vendidos menos por sua funcionalidade e mais por aquilo que “representam”. Gilles Lipovetsky complementa ao afirmar que o marketing atual não vende apenas produtos, mas estilos de vida, sensações e significados (LIPOVETSKY, 2007). O consumo tornou-se uma linguagem — um modo de narrar quem se é ou quem se deseja ser.
A obsolescência programada e perceptiva reforça essa lógica, perpetuando uma cultura da insatisfação constante. Os objetos são fabricados para perecer, e com eles, a identidade do sujeito também se fragiliza. A “modernidade líquida”, nos termos de Bauman, dissolve os vínculos duradouros, transformando até mesmo a espiritualidade em experiências superficiais e fragmentadas (BAUMAN, 2001; 2008).
Nesse cenário, o desejo, que antes se vinculava ao transcendente — ao mistério, à graça, ao encontro com o Outro absoluto — é reencenado na busca por novidades. O shopping center torna-se catedral, e o consumo, um ritual. O sujeito deseja consumir — mas deseja também ser consumido, reconhecido, desejado. Tornamo-nos, assim, mercadorias diante do olhar do Outro (BAUMAN, 2008).
5 O Niilismo e a Crise de Sentido: A “Morte de Deus” no Horizonte Teológico
A secularização do Ocidente deslocou o eixo do sentido da transcendência para o imediato. Friedrich Nietzsche, em sua crítica à modernidade, reconhece que a cultura europeia havia internalizado a “morte de Deus”, não como assassinato intencional, mas como o sintoma de uma era que já não necessitava da fé para organizar o real (NIETZSCHE, 2001). “Deus está morto. Nós o matamos,” diz o personagem do insensato em A Gaia Ciência.
Essa ausência de transcendência provocou uma reconfiguração antropológica: o homem se vê como centro e medida de todas as coisas, mas também confrontado com sua própria finitude. Heidegger define o niilismo como a experiência da “nulidade dos valores supremos” (HEIDEGGER, 1979; VOLPI, 2004), onde tudo se torna disponível, manipulável, mas sem raiz ou fundamento. Jean-Paul Sartre, por sua vez, aponta para a liberdade radical do homem como fonte de angústia: somos condenados à liberdade, a construir sentido onde já não há orientação externa (SARTRE, 1943). O vazio é o preço da autonomia.
A teologia cristã não ignora essa dor. Pelo contrário, ela parte da angústia como ponto de encontro entre a limitação humana e a Graça. A “morte de Deus” não é ignorada pela tradição bíblica: o silêncio de Deus no exílio de Israel, o grito de abandono de Jesus na cruz (“Deus meu, por que me desamparaste?”) e a travessia do deserto pela fé constituem o núcleo do drama da redenção. A fé bíblica reconhece o vazio, o escândalo e o silêncio — mas os atravessa. Deus não responde apenas com lógica, mas com presença: Immanuel, “Deus conosco”.
6 Teologia e Esperança: Redenção no Tempo da Falta
A teologia cristã oferece uma leitura singular sobre o vazio: ele não é negado, mas transfigurado. O ser humano é, sim, marcado pela falta, pela fragilidade, pela contingência — mas essa ferida é o espaço onde Deus se faz presente. A esperança cristã não promete uma resolução imediata, mas uma reconciliação escatológica: a plenitude não está nos bens, nem na imagem, mas na comunhão com o Criador.
Dietrich Bonhoeffer, teólogo mártir do nazismo, interpretou a maturidade cristã não como dependência passiva, mas como autonomia responsável diante de Deus (BONHOEFFER, 1995). Ele acreditava que viver “como se Deus não existisse” — etsi Deus non daretur — era a única forma adulta de fé: a confiança em Deus sem provas, sem garantias, sem controle. Nesse sentido, o mundo secular não é um obstáculo à fé, mas uma provocação à sua autenticidade.
No coração da teologia cristã está a cruz. E a cruz é o maior símbolo da falta — e também da esperança. Nela, o Filho de Deus experimenta o abandono, o silêncio e a morte. Mas também inaugura a vida nova, a ressurreição e a redenção. A cruz não anula o desejo, mas o redime: convida o homem a direcionar sua sede de plenitude não à acumulação ou ao reconhecimento, mas à entrega amorosa, à relação, à graça.
7 Conclusão: Redescobrir o Encanto – Teologia no Tempo da Fome de Sentido
A presente reflexão teológica revela que o consumismo moderno e o niilismo contemporâneo não são apenas sintomas culturais, mas expressões de um mal-estar existencial mais profundo. O sujeito da pós-modernidade está ferido por uma ausência simbólica, por uma perda do transcendente que o deixou órfão de sentido, deslocando seu desejo para objetos cada vez mais efêmeros.
O consumo não se limita à aquisição de produtos — ele se converteu em uma tentativa desesperada de preencher a ausência do sagrado. O “deus mercado” tornou-se o novo absoluto, oferecendo símbolos, identidades e narrativas de pertencimento. Contudo, essa substituição revela-se vazia, pois o desejo que habita o ser humano é de outra ordem: ele é transcendente por vocação.
A teologia cristã, nesse contexto, não é apenas discurso doutrinário — é um exercício de escuta, de leitura do mundo e de anúncio do Reino. Ela lembra que o sujeito não é um produto, nem um vazio ambulante. É imagem e semelhança de Deus, chamado a viver em comunhão, graça e propósito.
Conforme bem sinalizado pelos clássicos da fé, a esperança cristã não promete uma abolição da falta, mas sua redenção. O desejo não é suprimido, mas purificado; a busca por sentido não é descartada, mas reorientada para Aquele que é o Logos — o sentido encarnado.
O desafio lançado à teologia contemporânea é, portanto, duplo: escutar o grito da falta que ecoa no coração das ruas, redes e corpos cansados; e, ao mesmo tempo, anunciar que há um Outro que pode dar sentido à travessia. Um Deus que não elimina a condição humana, mas a assume — na cruz, no túmulo e na ressurreição.
8 Síntese Final e Relevância
- O artigo mostrou que o niilismo e o consumismo são respostas contemporâneas a uma falta estrutural, mas também sintomas da perda de referências transcendentais.
- A psicanálise e a sociologia permitem compreender o funcionamento subjetivo e coletivo desse vazio.
- A teologia, por sua vez, aponta caminhos: não apaga o desejo, mas o revela como sede do eterno.
- O discurso da cruz, longe de romantizar a dor, reconhece o sofrimento como parte da condição humana, mas também como lugar teofânico — de revelação e encontro.
9 Contribuição e Aplicação
Este trabalho propõe que a teologia, ao dialogar com os saberes contemporâneos, pode resgatar seu papel profético: discernir os sinais do tempo, anunciar o Reino e denunciar as idolatrias que aprisionam a subjetividade.
Para a comunidade acadêmica e pastoral, isso significa assumir a responsabilidade de formar consciências críticas, enraizadas na fé, mas atentas às dinâmicas culturais, psicológicas e espirituais do nosso tempo.
Referências
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Discente do Curso Superior de Mestrado Acadêmico do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação da Escola Superior de Teologia (EST), Campus São Leopoldo.
E-mail: rodrigobernardes07@hotmail.com