ENSINO MÉDIO COM ITINERÁRIOS FORMATIVOS: UMA ANÁLISE DA NOVA PROPOSTA SOB A PERSPECTIVA DA FORMAÇÃO INTEGRAL

HIGH SCHOOL WITH TRAINING ITINERARIES: AN ANALYSIS OF THE NEW PROPOSAL FROM THE PERSPECTIVE OF INTEGRAL TRAINING

BACHILLERATO CON ITINERARIOS FORMATIVOS: UN ANÁLISIS DE LA NUEVA PROPUESTA DESDE LA PERSPECTIVA DE LA FORMACIÓN INTEGRAL   

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7787162


Josilene Franco Pacheco
Maria José de Jesus Alves Cordeiro


Resumo: Este artigo é um recorte da pesquisa de mestrado e traz como proposta promover uma reflexão a partir da implementação dos Itinerários Formativos na etapa final da Educação Básica, o Ensino Médio. O objetivo do artigo é analisar os documentos oficiais e os Planos de Curso das modalidades Itinerário Formativo em Ciências Exatas e Engenharia; e Linguagens e Ciências Sociais, aplicados em um projeto piloto em uma escola de Nível Médio e Técnico do Estado de SP, a fim de identificar se os itinerários formativos promovem uma Formação Integral, conforme apregoado. A pesquisa é qualitativa, procurando aproximações ao método dialético e os instrumentos utilizados são, pesquisas bibliográficas e documentais. Os resultados indicam que a BNCC traz em seus dizeres um discurso manipulador, pois o seu objetivo implícito é o desenvolvimento econômico.

Palavras-chave: BNCC do Ensino Médio. Itinerários Formativos. Formação Integral.

Abstract: This article is an excerpt from the master’s research and proposes to promote a reflection from the implementation of the Formative Itineraries in the final stage of Basic Education, High School. The objective of the article is to analyze the official documents and the Course Plans of the modalities Formative Itinerary in Exact Sciences and Engineering; and Languages ​​and Social Sciences, applied in a pilot project in a secondary and technical school in the state of São Paulo, in order to identify whether the training itineraries promote Integral Training as advertised. The research is qualitative, looking for approximations to the dialectical method, and the instruments used are bibliographic and documental research. The results indicate that the BNCC brings in its words a manipulative discourse, since its implicit objective is economic development.

Keywords: High school. Training Itineraries. Comprehensive Training.

Resumen: Este artículo es un extracto de la investigación de maestría y se propone promover una reflexión a partir de la implementación de los Itinerarios Formativos en la etapa final de Educación Básica, Bachillerato. El objetivo del artículo es analizar los documentos oficiales y los Planes de Curso de las modalidades Itinerario Formativo en Ciencias Exactas e Ingeniería; y Lenguas y Ciencias Sociales, aplicado un proyecto piloto en una escuela secundaria y técnica del estado de São Paulo, cone fin de identificar si los itinerarios de formación promueven la Formación Integral como se anuncia. La investigación es cualitativa, buscando aproximaciones al método dialéctico, y los instrumentos utilizados son la investigación bibliográfica y documental. Los resultados indican que la BNCC trae en sus palabras un discurso manipulador, ya que su objetivo implícito es el desarrollo económico.

Palabras-clave: Escuela secundaria. Itinerarios de Formación. Formación Integral.

Introdução

O mundo vive transformações constantes em todos os campos e cenários. Não sendo diferente no âmbito educacional, uma vez que, ao observar o contexto histórico, se percebe constantes mudanças no que tange às políticas educacionais. Geralmente, as reformas vêm acompanhadas por demandas dos setores produtivos, para atender às necessidades de uma sociedade capitalista, cujo objetivo é promover o desenvolvimento econômico.

É bem verdade que a escola deveria ter um caráter voltado à construção social, cultural e histórica, contribuindo para o desenvolvimento integral e crítico de alunos(as), no entanto, o que se observa é a omissão dessa função, haja vista que essa instituição é regida por políticas educacionais criadas por governantes de uma nação capitalista. Sendo assim, as políticas dentro desse contexto acabam por favorecer as necessidades de um governo neoliberal que defende uma formação centrada no desenvolvimento de competências e habilidades, que habilite os(as) estudantes como futuros(as) trabalhadores(as), capazes de solucionar problemas e de atuar principalmente de forma eficaz no mundo do trabalho, pois dessa forma, promoverão o desenvolvimento econômico da nação.

O objetivo desse texto é analisar as mudanças nas políticas educacionais, perpassando brevemente por algumas leis, até chegar na atual Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC) aprovada por meio da Lei nº. 13.415, de 2017, dando ênfase aos Itinerários Formativos, que traz em uma proposta de educação pautada por área do conhecimento, permitindo que os(as) alunos(as) façam suas escolhas a partir de seus interesses, considerando a realidade local em que a escola está inserida e, a partir disso, identificam se os itinerários realmente apresentam características que promovam uma educação integral.

Durante as análises, utilizou-se uma aproximação com a perspectiva dialética, procurando identificar as reais intenções dessa proposta, uma vez que a retórica trazida nos documentos oficiais é de uma Educação Integral, que irá resolver problemas inerentes a essa etapa da educação básica. 

É preciso levar em conta que o conceito de Formação Integral com o qual a BNCC está comprometida é definida como, “[…] à construção intencional de processos educativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as possibilidades e os interesses dos(as) estudantes e, também, com os desafios da sociedade contemporânea”. (BRASIL, 2018, p. 14). Para que se analise essa concepção, será examinada também a concepção de formação integral dentro do preceito da pedagogia histórico-crítica, a fim de identificar as contradições entre as diferentes perspectivas.

As discussões estão fundadas nos itens “Políticas Educacionais e Currículo”, fazendo uma explanação sucinta sobre algumas passagens históricas em torno das políticas educacionais e a compreensão de currículo. Posteriormente, no item “BNCC do Ensino Médio e os Itinerários Formativos” será dada uma explicação sobre os dizeres da nova lei, caracterizando principalmente os Itinerários Formativos. E não poderia ficar de fora uma discussão sobre as concepções de “Formação Integral e Flexibilização”, haja vista, este ser o alvo da análise. E, por último, será explicitada uma verificação das constatações feitas durante a pesquisa de mestrado, a partir de um projeto piloto de implantação dos Itinerários Formativos. Diante da estrutura de um artigo, serão consideradas apenas observações a partir dos Planos de Curso e suas matrizes curriculares.

Por fim, serão apresentadas as considerações a partir das análises feitas, porém, sem a pretensão de esgotar as discussões sobre a implementação dos itinerários, mas sim, oferecendo contribuições que possam fomentar debates importantes sobre os caminhos futuros da educação escolarizada, mais especificamente os caminhos do Ensino Médio.

Políticas Educacionais e o currículo

Compreender as movimentações históricas em torno das políticas educacionais e do currículo faz-se necessário, uma vez que essas mudanças estão atreladas a alguns interesses de cunho social. Por esse motivo, utilizar um método que interprete a realidade, a visão de mundo e as práxis apresenta-se coerente com essa análise, para que se identifiquem as contradições produzidas historicamente, auxiliando na compreensão dos feitios educativos. Dessa forma, justifica-se o uso do materialismo histórico-dialético.

A abordagem teórica-metodológica “Dialética” é uma corrente de pensamento marxista que propõe desenvolver uma análise crítica dos fenômenos sociais e se apresenta como um método de interpretação da realidade, visão de mundo e práxis. A abordagem traz como conjectura o movimento da contradição produzido na própria história e, consequentemente, auxilia na compreensão dos fenômenos educativos.

Considerando os objetivos deste artigo, o método abarca características para uma análise crítica no âmbito das práxis, na qual o olhar de desconfiança entre o que é empírico (aparentemente real) difere do concreto (pensado), buscando compreender realmente o que está por detrás do aparente, oferecendo ferramentas coerentes como propósito desse artigo.

Para que a análise se dê de forma satisfatória, é preciso buscar compreender o significado de currículo, no entanto, uma definição acabada é extremamente complexa de encontrar, pois o termo pode trazer diversas acepções, que podem estar relacionadas com uma teoria ou perspectiva. Inclusive Silva (2010, p. 14), justifica que o conceito de currículo,

Depende precisamente da forma como ele é definido pelos diferentes autores e teorias. Uma definição não nos revela o que é, essencialmente, um currículo: uma definição nos revela o que uma determinada teoria pensa o que o currículo é. […] A abordagem é muito mais histórica. Talvez mais importante e mais interessante do que a busca da definição de “currículo” seja a de saber quais questões uma “teoria” do currículo ou um discurso curricular busca responder. 

Uma definição apresentada por Sacristán, autor muito utilizado para essa produção, apresenta o termo decorrente do latim currere, que se refere à carreira, a um percurso que deve ser realizado e, por derivação, a sua representação ou apresentação. (SACRISTÁN, 1998).

Mas independente dos diversos significados, de forma ampla, entende-se que currículo é uma trajetória a ser seguida, ou seja, uma referência para as práticas escolares que acabam por determinar o que as escolas devem fazer, denotando um engessamento das atividades escolares e práticas pedagógicas, e que geralmente se apresenta com um modelo que deve ser seguido em esfera nacional. 

Partindo para a esfera histórica, dar-se-ão cronologicamente as transformações educacionais no Brasil, que se organizaram da seguinte maneira, de 1549 a 1822, teve o período “Colonial”, cujo modelo é jesuítico, voltado às elites. De 1822 a 1889, passa-se ao “Império”, caracterizado pela descentralização do ensino primário e secundário, surgindo a primeira escola pública, porém, destinada à elite dirigente. Na sequência, tem-se a “Primeira República” que ocorreu entre os anos de 1889 e 1930, cujo objetivo do poder público é a difusão do ensino a toda população, tornando-se visível, nesse momento, a descentralização, além do caráter da laicidade da educação. De 1930 a 1945, inicia-se a “Era Vargas”, sendo a União a maior protagonista nas tomadas de decisão e de 1945 a 1964, deu-se início a era “Democratização”, na qual se destaca dois marcos, sendo estes, a Constituição de 1946 e a aprovação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 4.024/ 1961). O “Regime militar” entra em vigor de 1964 a 1985, trazendo o ensino de 1º e 2º graus e propondo a profissionalização do ensino, porém o foco do ensino privado continua com o ensino de formato geral. A partir de 1985 em diante, inicia-se a “Redemocratização”, oferecendo alguns documentos norteadores, tais como, Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 9.394/ 1996) e dois Planos Nacionais de Educação (2001 e 2014). (FERNANDES; FERREIRA; NOGUEIRA, 2020).

Ao observar essa cronologia, consegue-se perceber aspectos desiguais no que se refere à oportunidade de acesso ao ensino, como, por exemplo, quando observados os modelos jesuíticos e o do período imperial que se destina às elites e o do regime militar, que faz a inserção da profissionalização ao processo educacional, que é destinado principalmente aos filhos(as) da classe trabalhadora. Eis alguns pontos que caracterizam tratativas discrepantes para as diferentes classes sociais.

Porém, foi na última década do século anterior e na primeira década deste século que a educação passou a sofrer influências da globalização e das teorias neoliberais sobre as políticas e reformas educacionais, cujo objetivo passa a ser o de ajustar os objetivos do ensino às necessidades relacionadas ao desenvolvimento econômico.  Nota-se que se utiliza como referência o conceito de competência, passando a adotar sistemas comparativos entre escolas e sistemas de ensino, num mecanismo de ranqueamento a partir de avaliações de aprendizagem. Inclusive Ramos e Frigotto (2016, p. 39) afirmam que “[…] com isto, uma tendência: os resultados da avaliação suplantam a importância da própria formação”.

Percebe-se que ao longo da história as mudanças que abarcavam o currículo escolar estão permeadas por intenções envoltas por condutas de controle e manipulação, onde o interesse é a manutenção do poder da classe dominante. A escola é utilizada como um local guardião das condutas alienantes. Para Apple (2006, p. 107),

[…], a escola foi considerada como instituição fundamental que resolveria os problemas da cidade, do empobrecimento e do declínio moral das massas, e que, cada vez mais, ajustaria os indivíduos em seus respectivos lugares em uma economia industrial.

Quando o objetivo é a educação integral, é pretensioso pensar o currículo de forma universal, num esquema simplista como ele veio se desenrolando ao longo dos anos, posto que, currículo é práxis e não um objeto estático. Para Sacristán (2017, p. 16), “Analisar currículos concretos significa estudá-lo no contexto em que se configuram e através do qual se expressam em práticas educativas e em resultados.” Daí a importância de que se analise essa nova proposta de Ensino Médio a partir dos Itinerários Formativos.

Olhar os Itinerários Formativos se faz necessário para que se identifiquem as reais intenções da sua implementação, sendo que a proposta apresenta em seus dizeres que a individualização do percurso formativo é uma ferramenta capaz de combater o fracasso escolar, uma vez que compreende a heterogeneidade e a pluralidade de condições, além dos diferentes interesses e aspirações dos jovens. Será realmente que o simples fato de uma organização curricular baseada em percursos formativos é suficiente para o sucesso da educação escolarizada? Os autores Fernandes; Ferreira; Nogueira (2020, p. 25) expõem que,

A proposta de oferta de itinerários formativos para os estudantes pode representar uma real flexibilização dos currículos do ensino médio. Contudo, os desafios para que essa possibilidade se materialize são imensos, indo desde a questão do financiamento educacional até a capacidade técnica dos estados e do Distrito Federal para sua coordenação e execução.

É válido ressaltar que existem diversos outros fatores que interferem nos aspectos de qualidade da educação escolar. Seria de extrema ingenuidade considerar que somente os estabelecimentos de alguns objetivos de aprendizagem seriam o suficiente.

Sacristán (1998, p. 25) afirma que as reformas educacionais são “[…] referentes chamativos para analisar os projetos políticos, econômicos, sociais e culturais daqueles que as propõem e do momento histórico em que surgem”. Então, o que se pretende com essa modalidade de ensino? Por que o Ensino Médio tem se tornado o alvo das políticas públicas e educacionais nos últimos anos? Quais os reais interesses nessa etapa da Educação Básica?

Quando estudadas mudanças, é coerente examinar o caráter em que se deu a implantação da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio. O processo de implantação aconteceu num formato impositivo, por meio da Medida Provisória (MP) nº 746/2016, cuja proposta era a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que aconteceu durante o governo de Michel Temer. Importante ponderar que esse dispositivo possui um caráter emergencial, que dispensa alguns processos e etapas, dando ao Poder Executivo prerrogativas para tomada de decisão.

As justificativas pautaram-se em argumentos como a melhoria dos índices nas avaliações aferidas em larga escala, como, por exemplo, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA). A MP faz alterações principalmente nas cargas horárias do Ensino Médio e na oferta dos Itinerários Formativos.

O caráter impositivo dessa MP confere uma interpretação de que a intenção é desconstruir as características de uma formação crítica e emancipadora, extraindo conteúdos formativos com aspectos tanto no que se refere à quantidade e qualidade da formação dos(as) alunos(as) de Ensino Médio, sob a alegação de que essa etapa do ensino se encontrava em uma suposta crise, e assim defendendo a necessidade de uma reformulação das diretrizes.

Inclusive Gomes; Lima; Souza e Rosito (2020, p. 615, grifos dos autores) colocam que,

Nesse processo esteve envolvida também uma discussão muito maior, relativa ao real objetivo nessa etapa, sendo sugerido o abandono de sua base propedêutica, e substituição por outra, tida pelos seus defensores como mais “alinhada” aos anseios da sociedade moderna industrial e digital.

BNCC do Ensino Médio e os Itinerários Formativos

Em alguns períodos históricos, as políticas públicas foram impostas, utilizando-se de violência para que elas fossem implementadas e aceitas. Os processos eram permeados por agressões e força bruta. Atualmente as mudanças não se apresentam de maneira violenta, no sentido da força bruta, porém, o aspecto da manipulação tem sido a ferramenta utilizada, a partir de belas palavras para envolver a população. Os discursos são baseados em um convencimento por meio de falas persuasivas, nos quais a ênfase são as “boas intenções” do que é proposto. Dessa forma, tem acontecido com as políticas educacionais.

É com esse contorno que os dizeres da BNCC do Ensino Médio estão redigidos. Quando se depara com termos como, autonomia, criticidade, flexibilização e resiliência, à primeira vista, a sensação é de que realmente essa lei irá resolver todos os problemas educacionais, oportunizando uma aprendizagem diferenciada e de forma igualitária a todos(as) jovens brasileiros(as).

A BNCC do Ensino Médio é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os(as) alunos(as) devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação – PNE (BRASIL, 2018). A BNCC define os “objetivos de aprendizagem”.

Assim a BNCC do Ensino Médio está organizada para dar continuidade à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental, centrando-se no desenvolvimento de competências e orientando-se a partir do princípio da educação integral. Segundo a BNCC (2018), a educação integral visa à formação e ao desenvolvimento humano global, o que implica compreender a complexidade e a não linearidade desse desenvolvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam a dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva.

A BNCC na direção do Ensino Médio estabelece uma organização para essa etapa de educação básica, a partir de uma organização por área do conhecimento. O discurso procura legitimar a reforma sob a alegação de que as escolas precisam ser auxiliadas na construção de propostas pedagógicas que atendam a uma sociedade complexa, visto as múltiplas identidades culturais, étnicas, linguísticas, raciais e de gênero sob o discurso da equidade e dos sujeitos únicos. A partir dessa retórica, foi introduzida a temática de flexibilização curricular e, por consequência, o conceito de Itinerários Formativos dispostos por área de conhecimento.

Dessa forma, os sistemas de ensino devem oferecer, de forma ampla, itinerários para que os(as) alunos(as) possam escolher o percurso mais adequado aos seus interesses para o futuro profissional. Atrelado a essa escolha está o conceito de protagonismo, uma vez que o(a) aluno(a) opta pelo percurso pelo qual quer seguir.

As áreas possíveis para a organização dos Itinerários Formativos são: Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Linguagens e suas Tecnologias; Ciências Humanas e Sociais Aplicadas; Matemática e suas Tecnologias e a Formação Técnica e Profissional.

O Ensino Médio com Itinerário Formativo organizado em áreas de conhecimento não exclui a necessidade das disciplinas, o que implica o fortalecimento das ações entre elas e requer um trabalho em conjunto e cooperativo entre os(as) professores(as) no planejamento e na execução dos planos de ensino. Contudo, mesmo com a necessidade das disciplinas e recomendação de habilidades, não estabelece necessariamente a indicação das séries a serem trabalhadas, deixando a cargo da escola a construção do seu próprio currículo e proposta pedagógica, para que assim possa ser adequada a sua realidade. (BRASIL, 2018, p. 32). De acordo com o documento, a não indicação em trabalhar as habilidades em séries específicas apresenta-se como garantia de autonomia para a escola na construção do próprio currículo.

Contudo, o fato de definir essas habilidades pode ser um entrave nessa autonomia, pois de uma forma ou de outra, existe um engessamento relacionado a essas habilidades. Sem contar que o § 2º do art. 12 das Diretrizes Curriculares Nacional do Ensino Médio (DCNEM) estabelece, ainda, que os itinerários formativos devem se organizar a partir de quatro eixos estruturantes, sendo eles, investigação científica, processos criativos, mediação e intervenção sociocultural e empreendedorismo. (FERNANDES; FERREIRA; NOGUEIRA, 2020). Eis aí, uma certa restrição na organização curricular pedagógica, o que gera um questionamento quanto ao aspecto da flexibilização. De fato, as escolas podem construir seu currículo de forma autônoma?

Mais um motivo para analisar o desenvolvimento dessa proposta e verificar se realmente é possível flexibilizar o ensino e alcançar a educação integral, que tanto é mencionada na nova base.

Outro ponto observado refere-se à flexibilização, uma vez que fica a cargo do Estado e dos Sistemas de Ensino definirem quais itinerários ofertar, sendo que a obrigatoriedade é de pelo menos um itinerário. Também existe a questão do georreferenciamento que obriga os(as) alunos(as) a estudarem em escolas próximas da sua moradia. Todas essas considerações trazem reflexões se realmente existe a flexibilização e até onde os(as) alunos(as) poderão escolher o percurso formativo a partir de seus interesses. Ainda é possível refletir se os itinerários não se apresentam como solução para os problemas de gestão e da carreira dos(as) professores(as), uma vez que o déficit desses profissionais cresce a cada dia.

Sob a percepção de Fernandes; Ferreira e Nogueira (2020), é preciso refletir sobre os aspectos que as escolas podem se especializar apenas na oferta de um determinado itinerário formativo, uma vez que muitos municípios brasileiros só possuem uma escola de Ensino Médio. E nesta condição, ao particularizar na oferta de um itinerário, ou mesmo em dois ou três, no momento de matricular-se, o(a) aluno(a) pode não concordar com as opções, e isso poderá provocar um aumento no número de alunos(as) evadidos(as), o que seria ainda mais trágico.

Diante de todas as reflexões anteriores, é de grande relevância ajuizar que a flexibilização curricular não pode se limitar à oferta de itinerários formativos de acordo com a demanda dos(as) alunos(as). Sem propriedade do que é fundamental para o desenvolvimento da aprendizagem, os itinerários formativos podem não representar uma saída, mas apenas um caminho com falsa sensação de autonomia, e assim, perpetuar as desigualdades no que se refere ao processo de aprendizagem. (FERNANDES; FERREIRA; NOGUEIRA, 2020).

Castilho (2017, p. 9) afirma,

[…] ao contrário do que o governo divulga, os itinerários formativos não serão necessariamente escolhidos pelo estudante. Serão contemplados conforme as condições da escola em ofertá-los. A premissa de escolha, especialmente em escolas públicas, portanto, é um engodo – uma ficção. Diante do déficit histórico e estrutural de recursos humanos nas escolas públicas, não é difícil prever o cenário nessas instituições. Por outro lado, no ensino privado esse quadro poderá configurar-se como novo nicho de mercado e até mesmo como bandeira de marketing tendo em vista que poderá ofertar maior leque de itinerários.

Implicitamente, identificam-se os possíveis resultados dessa proposta. O risco de aumentar a desigualdade nos processos escolares vai sendo identificado à medida que se observa para além do evidente. Pois a autonomia, com certeza, permitirá às escolas privadas escolherem caminhos que promoverão uma aprendizagem diferenciada, como já acontece. Sendo assim, o atendimento diferenciado para as diferentes classes sociais se manterá.

Formação Integral

Ao observar a BNCC do Ensino Médio, se identifica a narrativa de que ela está orientada pelo princípio da educação integral, onde está descrito que a educação integral visa à formação e ao desenvolvimento humano global, o que implica compreender a complexidade e a não linearidade desse desenvolvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam a dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva. (BRASIL, 2018).

Ainda de acordo com a BNCC:

Independentemente da duração da jornada escolar, o conceito de educação integral com o qual a BNCC está comprometida se refere à construção intencional de processos educativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes e, também, com os desafios da sociedade contemporânea. Isso supõe considerar as diferentes infâncias e juventudes, as diversas culturas juvenis e seu potencial de criar novas formas de existir. (BRASIL, 2018, p. 14).

Para que se possa avaliar essa concepção de formação integral, é necessário analisar outras visões que abarcam esse conceito, além de compreender a diferença entre formação integral e educação integral, uma vez que a segunda expressão pode ser entendida com a ampliação do tempo escolar e do conteúdo, com o atendimento durante o longo de um dia. O conceito o qual essa análise tem como foco, refere-se ao da formação integral, na qual o objetivo volta-se ao processo de humanização dos cidadãos e cidadãs, e ao desenvolvimento e preparação para a plena vivência em sociedade.

A BNCC do Ensino Médio anuncia que a forma de alcançar a formação integral deve acontecer “[…]por meio do incentivo ao protagonismo, à autonomia e à responsabilidade do estudante por suas escolhas no futuro.” (BRASIL, 2018, p. 6).

Deve ser reforçado que, a partir da BNCC a aprendizagem fica submetida a uma proposta orientada pelas competências, o que promove uma integração curricular com formato instrumental. Sem contar que, ao se pautar em conhecimentos, habilidades e valores em situação de trabalho, é reduzido o valor de uma formação focalizada nos saberes. Isso passa a ser confirmado quando se reduz os componentes curriculares de aspectos artísticos e culturais, uma vez que eles têm um valor expressivo no que tange a uma formação humana integral. (CARVALHO; GALVÃO, 2022). Dessa forma, se nota que a nova proposta pouco ou nada considera as questões que realmente são importantes para a formação integral.

Mas de volta ao termo Integral, cotidianamente compreende-se que o significado está envolto por algo que é inteiro, sem divisões, mantendo suas propriedades. No entanto, ao pensar o termo dentro do processo educacional, é preciso explicações mais completas e elaboradas. Apesar do termo aparentemente ter o mesmo significado, no campo educacional, elas possuem entendimentos específicos. Como argumenta Freitas (2009), o termo educação integral e/ou integrada não possui uma compreensão universal, mas assume diferentes sentidos e significações, conforme o contexto sócio-histórico e teoria que estão sendo empregados.

É preciso compreender que existe uma percepção do termo dentro da concepção escola- novista, cujo embasamento está na defesa da escola integrada ao meio social, onde o sistema de ensino brasileiro deveria organizar-se no âmbito administrativo, curricular e pedagógico, promovendo aos cidadãos e cidadãs um ritmo produtivo. Assim, a formação escolar dos jovens deveria vir ao encontro da qualidade exigida pela sociedade industrial e democrática. A defesa nesse cenário é a de um ensino com metodologias ativas, no qual o(a) aluno(a), guiado pelo(a) professor(a) pudessem aprender a aprender, concepção que está de acordo com a nova BNCC.

Porém, se for observada a perspectiva marxiana, a Formação Integral foca no desenvolvimento de toda potencialidade humana, ao passo que se considera o crescimento de toda a sociedade, superando a divisão dos bens sociais produzidos historicamente. “Com base neste princípio, a educação integral é definida como uma forma de levar o homem a se apropriar de forma omnilateral do seu ser omnilateral e, por conseguinte, do homem total”. (LIZZI; FAVORETO, 2018, p. 133)

Assim, percebe-se que essa corrente de pensamento, pressupõe refletir os conceitos e regras em relação ao contexto histórico e interesses sociais desiguais, não limitando alunos(as) apenas em conhecer conceitos e leis científicas. Para Lizzi e Favoreto (2018, p. 134) “[…] a condição alienante capitalista se contrapõe à formação omnilateral”.

É interessante, mesmo que de forma breve, esclarecer que a concepção omnilateral seja entendida de forma similar ao da educação integral. E a partir da perspectiva histórico-crítica, de acordo com Galvão (2019), requer a construção de uma prática docente que envolva a defesa da escola, um domínio do conteúdo de sua especialidade que propicie uma atuação mediadora diante dos conhecimentos a serem transmitidos e a valorização do indivíduo/local em diálogo com as obras reconhecidas e inseridas no arcabouço dos saberes da humanidade.

Dessa forma, nota-se que a educação é um fator condicionante da humanização e para ser integral deve estar atrelada à reprodução da existência. Ou seja, a educação é um instrumento de sobrevivência e para se dar de forma plena é preciso uma apreensão teórica e prática, pois a humanização não é inata, uma vez que o indivíduo se torna homem à medida que aprende e produz conhecimento.

Esse conceito de formação integral, dentro da concepção histórico-crítica, apresenta-se contra uma sociedade fragmentada e de indivíduos alienados e fundamenta-se como luta política na qual se busca a transformação social.

Em suma, a compreensão que se tem é de que a reforma do Ensino Médio procura articular uma proposta de educação integral que tenha como centro o conceito de competências, a qual está delimitada por um aspecto pragmático e utilitarista, abarcando apenas as demandas do mercado de trabalho. O que falta ou não está presente no documento é uma diretriz que define com precisão como se dará a esperada integração, pois a concepção histórico-crítica não coaduna com o conceito de formação integral dos documentos oficiais a partir do ano 2000.

Um outro ponto é que a BNCC passou a articular políticas de formação de professores(as), de material escolar didático e de avaliação, logo, isso evidencia que não existe autonomia, pois esses movimentos acabam por cercear os processos educacionais no geral.

Um panorama das alterações disciplinares e de carga horária a partir de um estudo de caso

Este item foca considerações em um contexto, cuja análise volta-se a um projeto piloto em uma escola pública de Nível Médio e Técnico do Estado de São Paulo. A partir de uma pesquisa em andamento no Mestrado em Educação, analisou-se planos de curso que regem a modalidade de ensino com Itinerários Formativos, cujas ofertas nessa unidade são Ciências Exatas e Engenharia, Linguagens, e Ciências Humanas e Sociais.

No entanto, para fazer as verificações, observar-se-á brevemente o Currículo Paulista (CP), uma vez que esse é o documento que norteia especificamente a proposta pedagógica desse sistema de ensino.

O CP teve seu primeiro volume homologado em agosto de 2019, que contemplava as etapas Educação Infantil e Fundamental e, somente após a homologação da BNCC do Ensino Médio, iniciou-se o processo de definição dos currículos dessa etapa pelo Estado, cujas orientações vieram do Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum Curricular (ProBNCC), instituído pela portaria nº 331, de 2018, que estabelece  as  diretrizes,  os  parâmetros  e  os  critérios  para  a  implementação  da BNCC em âmbito estadual e municipal.

Segundo o documento, houve a participação de 98.856 pessoas da sociedade civil, incluindo estudantes, professores(as) e demais profissionais da educação, contribuindo para a produção deste currículo.

Segundo o CP (2020, p. 18),

Nesse processo de melhoria da qualidade da educação, o Currículo Paulista representa um marco importante para a redução das desigualdades educacionais no Estado, uma vez que explicita as aprendizagens essenciais que todos os estudantes devem desenvolver.

O CP destina-se a todos(as) os(as) profissionais da educação que atuam no Estado e traz as competências e as habilidades essenciais para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional dos (as) estudantes paulistas do Ensino Médio, com foco em sua formação integral na perspectiva do desenvolvimento humano.

As redes de ensino devem consultar o CP, a fim de estabelecer suas Propostas Pedagógicas, a partir das suas necessidades e dos interesses dos(as) estudantes, segundo suas identidades linguísticas, étnicas e culturais, porém, considerando o aspecto da superação das desigualdades educacionais. E para isso, segundo o CP (2020, p. 21), “Para essa superação, é necessário que o planejamento mantenha claro foco na equidade, o que pressupõe reconhecer que as necessidades dos estudantes são diferentes”.

Um dos preceitos pedagógicos descritos no CP é o compromisso com a Formação Integral, afirmando estar comprometido com o desenvolvimento do(a) estudante “[…] em suas dimensões intelectual, física, socioemocional e cultural, elencando as competências e as habilidades essenciais para sua atuação na sociedade contemporânea e seus cenários complexos, multifacetados e incertos”. (SÃO PAULO, 2020, p. 23).

A proposta ainda enfatiza a necessidade de atrelar ao desenvolvimento cognitivo as competências socioemocionais, uma vez que este perfil está previsto nas competências gerais.

Quando abordadas as características da juventude no documento, a retórica se dá sob a alegação de que se deve considerar as condições sócio-histórico-cultural desses(as) alunos(as), diluindo o olhar homogêneo sobre essa fase. E a partir daí, promover ações que fomentem e respeitem as múltiplas culturas juvenis ou muitas juventudes. Portanto, a escola deve se aproximar desse universo.

O CP (2020, p. 44-45) descreve que, 

As aprendizagens adquiridas nas áreas, tanto no currículo comum como nos itinerários formativos, possibilita ao(a)aluno(a) consolidar e realizar o seu projeto de vida.  É fundamental compreender que o projeto de vida do estudante é um objetivo que percorre toda a Educação Básica e, portanto, se apresenta ao longo de todo o Currículo Paulista.

No que se refere aos Itinerários Formativos, o Ensino Médio deve atender às demandas da contemporaneidade e aos anseios do estudante, fortalecendo seu interesse, engajamento e protagonismo, para assegurar as aprendizagens na formação geral básica e nos itinerários formativos, cujos objetivos são: 

[…] aprofundar as aprendizagens relacionadas às competências gerais; consolidar a formação integral do estudante, desenvolvendo a sua autonomia para a realização do seu projeto de vida; desenvolver habilidades que permitam ao estudante ter uma visão ampla do mundo para saber agir em diversas situações e tomar decisões em sua vida escolar, profissional e pessoal. (SÃO PAULO, 2020, p. 196).

Voltando o olhar aos Planos de Curso das diferentes ênfases utilizadas por esta unidade de ensino, notadamente temos a descrição das competências gerais básicas previstas na BNCC. Os Planos de Curso, descrevem as seguintes competências básicas:

O desenvolvimento do aluno em seus aspectos físico, intelectual, emocional e moral; a formação da sua identidade pessoal e social; a sua inclusão como cidadão participativo nas comunidades onde atuará; a incorporação dos bens do patrimônio cultural da humanidade em seu acervo cultural pessoal; a fruição das artes, da literatura, da ciência e das tecnologias; o preparo para escolher uma profissão e atuar de maneira produtiva e solidária junto à sociedade. (SÃO PAULO, 2019, p.9).

Ao observar essas competências, é possível perceber distorções e inconsistências que provocam alguns questionamentos. As competências básicas não trazem embutidos feitios globalizadores no processo de escolarização?

Conforme pode ser visto, elas expõem dizeres quanto ao desenvolvimento moral, emocional, além da incorporação dos bens do patrimônio cultural da humanidade. Ao se pensar o aspecto moral, constata-se certa subjetividade, haja vista que esses conceitos dependem de um contexto que pode ser diferente nas diferentes perspectivas, e aí, se pode perguntar: O que é moral numa perspectiva curricular?

Já no que se refere ao patrimônio cultural, será que não poderá existir uma maior valorização de uma cultura em detrimento de outra? A realidade é que considerando as características de uma sociedade marcada por modelos conservadores e que valorizam apenas determinadas culturas e saberes, a escola acaba por estar longe de cumprir essa função de forma plena.

Ainda sobre os planos de curso, é importante prestar atenção nos componentes curriculares e nas cargas horárias.

Quando se compara as matrizes curriculares do Ensino Médio Propedêutico com os Itinerários Formativos, se tem a dimensão das alterações sofridas, principalmente, em relação à alteração da carga horária dos componentes, assim, é necessário considerar quais são os impactos possíveis no processo de formação.

A tabela a seguir apresenta a comparação entre as duas propostas voltadas ao Ensino Médio da unidade de ensino investigada.

Tabela 1: Comparativo das Cargas Horárias Propedêutico x Itinerários.

Fonte: De autoria própria a partir dos dados das matrizes curriculares. (2021)

Ao analisar as matrizes curriculares, é perceptível a redução da carga horária em todas as disciplinas, porém, nas disciplinas de Artes, Educação Física, História, Geografia, Física, Química, Biologia e Espanhol, o percentual foi reduzido em quase metade se comparado com a carga horária do ensino médio propedêutico. As disciplinas de Inglês e Matemática foram as que menos sofreram com as reduções. Já a redução nas disciplinas de Filosofia e Sociologia se mostram assustadoras. A seguir, a tabela 2 traz a apresentação dos dados em percentuais, facilitando a análise.

Tabela 2: Percentual de redução da carga horária dos componentes no Ensino Médio com Itinerários Formativos

Fonte: De autoria própria. (2021)

O quadro mostra o quanto a carga horária foi suprimida e, consequentemente, o mesmo acontece com os conteúdos das disciplinas, principalmente daquelas que possibilitam reflexões e entendimento de teorias importantíssimas para a compreensão dos percursos históricos e mudanças sociais. Logo, temos a sensação de que a intenção é a de retirar ainda mais as oportunidades dos(as) alunos(as), de entenderem as mudanças políticas e sociais, conteúdos estes que os tornam capazes de fazer reflexões críticas importantes para o desenvolvimento da capacidade de analisar, refletir ou buscar informações, antes de tirar uma conclusão sobre o mundo em que vivem, e, dessa forma, alcançar uma formação emancipadora. Notadamente e de forma escancarada, retiram-se disciplinas importantes, fundamentais na formação humana, ou seja, de uma formação integral. 

Na concepção marxiana, quando retirado o acesso ao conhecimento historicamente produzido, se mantém o domínio dos poderosos, pois os sujeitos não discutem a organização social capitalista, uma vez que estes não se entendem nem como sujeitos, não pensam sua realidade e, portanto, não fazem mudanças concretas nesse meio.

Para Ramos e Frigotto (2016, p. 39),

Tais medidas somente introduzem a violência desferida contra a dura conquista do ensino médio como educação básica universal para a grande maioria de jovens e adultos, cerca de 85% dos que frequentam a escola pública. Uma agressão frontal à Constituição de 1988 e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que garantem a universalidade do ensino médio como etapa final de educação básica a que todos têm direito. Nesse sentido, até o último ano da educação básica e, no caso do ensino médio, ao longo das suas 2.400 horas até então determinadas pela LDB, haveria que se ter princípios curriculares e conteúdos comuns que abrangessem universalmente os estudantes. Isto não elide a diversidade, a qual, por sua vez, só adquire sentido quando sustentada por uma concepção unitária da formação. Mas os dispositivos legais em questão retiram da formação geral comum do currículo do ensino médio inicialmente metade e posteriormente, um quarto da carga horária definida pela LDB (a MP dizia que a carga horária correspondente à BNCC não poderia ultrapassar 1400 horas e no PLC este limite foi ajustado para 1800 horas).

Os autores analisam que essa nova política se apresenta como “a regressão das regressões”. Considerando que quem define os itinerários são os sistemas de ensino, e para resolver os problemas de gestão e carreira, estes certamente vão optar por itinerários nos quais há mais disponibilidade de professores(as). Dessa forma, fica nítido que os aspectos da flexibilização e possibilidades de escolha do percurso formativo são apenas um engodo, pois os(as) alunos(as) não terão todas as possibilidades disponíveis para escolher o que realmente lhes interessa e sim, apenas a de escolher o que foi disponibilizado pela escola, que certamente definirá itinerários os quais têm possibilidade de desenvolver.

Todas essas reduções trazem diversas implicações, tais como a compactação dos conceitos e/ou teorias trabalhadas nos componentes e, por conseguinte, reduções na jornada de trabalho do(a) professor(a), responsável pela área.

Um outro problema no âmbito das reduções volta-se à questão da jornada de trabalho dos(as) professores(as), que correm o risco de ter seus salários afetados, uma vez que terão os números de aulas reduzidos. E, geralmente, para não ter um impacto grande no orçamento, acabam ministrando aulas que não dominam, comprometendo não só o seu trabalho e sua reputação, mas também todo o processo de ensino. 

Um outro olhar que pode ser trazido para esse aspecto das mudanças na carga horária das disciplinas, pode ser balizado pela fala de Varani, Campos e Rossin (2019, p. 183), quando afirmam.

Entretanto, na constituição histórica da escola, verificamos seu papel reprodutor, materializado nos tempos e espaços fixos e rígidos; na divisão da teoria e da prática; nos currículos fechados em conteúdo que se distanciam da vida e dos problemas advindos da complexidade do cotidiano; no aligeiramento da formação para constituir um sujeito produtivo e consumidor; na subsunção da dimensão humana pelo conteúdo curricular que visa preparar mecanicamente o educando para servir um tal futuro do trabalho; e na consigna do amoldamento do sujeito para adequar-se, sem crítica, às correias da engrenagem que sustenta o funcionamento da sociedade.

Sobretudo, é preciso ponderar se essa reorganização curricular, permeada por uma redução de conteúdos, pode ou não compactuar com tal intencionalidade, já que, se de um lado a lei estabelece uma redução da carga horária da base comum, de outro tem uma ampliação de horas da parte diversificada.

A inserção de disciplinas da parte diversificada e a ampliação da carga horária destas, sob a alegação de que os projetos trabalharão com os projetos de vida desses(as) alunos(as) e assim, isso tornará o ensino mais interessante, o que promoverá redução nos índices de evasão, desconsidera toda uma complexidade de fatores que provocam tal evasão nessa etapa do ensino básico. O trabalho com projeto de vida dos(as) alunos(as) não é suficiente para redução da evasão.

Não estão sendo levados em conta fatores como infraestrutura da escola, preparação de professores(as), aspectos relacionados às necessidades básicas de subsistência, uma vez que alguns e alguns jovens precisam trabalhar para ajudar nas despesas da família, por exemplo.

É preciso abrir um parêntese para mencionar um movimento que tem chamado a atenção no processo de migração para as novas modalidades de Ensino Médio, que diz respeito ao fato do Estado abrir salas no período noturno para atender à demanda de alunos(as) trabalhadores(as). Caberia aqui uma análise mais específica, porém, considerando que esses aspectos não foram levados em conta na pesquisa, foram utilizados apenas para confirmar que a justificativa para a aprovação da nova proposta não está muito bem fundamentada em dados da realidade do ensino médio brasileiro, especialmente, o ensino público e noturno.

No que se refere ao tempo de permanência na escola, sob os olhares de Ramos e Frigotto (2016), em relação a ampliação da carga horária de forma a manter alunos(as) em tempo integral, não se pode ser contrário de forma imediata e absoluta, uma vez que a escola deveria ser o melhor lugar para jovens e crianças. Porém, é preciso questionar sob quais condições e finalidades, já que a Portaria que estabelece o horário integral visa especificamente o reforço de Língua Portuguesa e Matemática, certamente para responder e trazer melhores resultados das avaliações internacionais.

Todavia, o reconhecimento da relevância inconteste da formação dos(as) alunos(as) nessas áreas não torna as demais negligenciáveis. Entretanto, é isto que faz a contrarreforma, pois a MP retira a obrigatoriedade dos ensinos de Artes, Educação Física, Sociologia, Filosofia e Estudos da História da África e Cultura Afro-brasileira, importantes conquistas acrescidas ao texto original da LDB.

Assim, não se sabe em que perspectiva, face à hegemonia conservadora, tais conteúdos serão negados aos(às) jovens.

Ao examinar o quadro das disciplinas das duas propostas de itinerário, é percebido que são as mesmas em ambas, inclusive com a mesma carga horária e contemplando as mesmas competências, habilidades e sugestão de conhecimento.  Os demais componentes, que são específicos de cada área, não possuem ementas e, portanto, denotam algo que deve ser construído e planejado em cada unidade escolar, considerando suas aspirações e realidade local, conforme a BNCC enfatiza, com base no artigo 26 da LDB, diz que,

os currículos da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e do Ensino Médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos (BRASIL, 2020, p. 20). 

Ao ser feita a análise das ementas, não se pode deixar de observar criticamente tais alterações, no sentido de entender os seus objetivos, procurando perceber além do “belo” discurso em que a proposta se ancora. E mais uma vez a reflexão deve nos conduzir para as diversas implicações que toda essa alteração traz consigo e os possíveis resultados que produzirá.

Considerações finais

Ao analisar todas as informações discutidas por esse material, evidenciam-se as razões pela qual os olhares têm se voltado às Políticas Educacionais do Ensino Médio. Essa etapa da Educação Básica geralmente mostra-se comprometida com o aprofundamento do Ensino Fundamental, e possibilita o prosseguimento dos estudos como uma base para o trabalho. De acordo com o Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 2000, p. 9-10.)

O Ensino Médio passa a ter a característica da terminalidade, o que significa assegurar a todos os cidadãos a oportunidade de consolidar e aprofundar os conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental; aprimorar o educando como pessoa humana; possibilitar o prosseguimento de estudos; garantir a preparação básica para o trabalho e a cidadania; dotar o educando dos instrumentos que o permitam “continuar aprendendo”, tendo em vista o desenvolvimento da compreensão dos “fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos”.

Ao considerar a citação acima, é perceptível que os PCNs estão pautados no desenvolvimento de metas de qualidade da educação.

Logo, ao analisar esses objetivos e compará-los com a proposta de ensino baseado em Itinerários Formativos e, principalmente, com o conceito de formação integral, verificam-se algumas contradições. Primeiro, porque os itinerários reduzem significativamente a carga horária das disciplinas,o que consequentemente promove a redução de conteúdos historicamente construídos, que são extremamente importantes para uma formação ampla e pautada na integralidade. E depois é possível enxergar que se priorizam algumas disciplinas e se secundariza outras.

Um segundo ponto, refere-se à retórica apresentada nos PCN’s (BRASIL, 2000, p. 9-10) que diz “[…] dotar o educando dos instrumentos que o permitam “continuar aprendendo”, tendo em vista o desenvolvimento da compreensão dos “fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos”. Aqui fica nítida a intenção de utilizar o ensino para instrumentalizar alunos(as) para o trabalho. E quando o foco passa a ter o caráter profissional, naturalmente as características que abarcam o desenvolvimento humano e intelectual são desconsideradas.

Em especial, quando na BNCC são considerados os princípios da educação pautada em “Competências”, usando a equiparação desses pressupostos ao direito à aprendizagem, trazendo temáticas multiculturalistas para balizar a proposta de educação Integral, seguindo com a marca da “flexibilização”, implicitamente nota-se uma intenção de disfarçar o que realmente se pretende.

Como afirma Newton Duarte (2001), o lema “aprender a aprender” vincula as necessidades do mercado às políticas educacionais, que por conseguinte promovem as reformulações que levam à supressão do conhecimento como objeto do trabalho pedagógico. É a partir do “aprender a aprender” que se faz a pedagogia da competência.

A ideia da flexibilização e da autonomia é o terceiro indicador com face manipuladora, dado ao fato de que, conforme apresentado, a definição dos itinerários é prerrogativa dos estados e sistemas de ensino e a falta de infraestrutura acaba por limitar a diversificação dos itinerários, ademais, a disponibilidade ou não de professores(as) é capaz de interferir e restringir as ofertas.

A ideia de autonomia sob o olhar dos(as) professores(as) pode gerar insegurança nas construções de suas práticas pedagógicas, uma vez que estes estão habituados com modelos e referências, e isso se deve principalmente aos problemas em torna da sua formação, cuja temática poderia ser foco de outra análise e discussão.

Se houvesse conhecimento por parte desses(as) profissionais, os itinerários poderiam ser utilizados como uma ferramenta de modificação das questões sociais. No entanto, este modelo está promovendo uma desigualdade maior ainda na formação dos jovens. Nitidamente, as escolas particulares procuraram organizar suas propostas, direcionadas ao ingresso de seus alunos(as) para a educação superior. Dessa forma, o abismo entre a qualidade da educação para alunos(as) de classes sociais que não podem pagar escola privada, torna-se maior. É evidente que as classes menos favorecidas serão as mais afetadas por essa manobra.

Contrária da pedagogia por competência, a pedagogia histórico-crítica combate a alienação e defende o direito ao conhecimento objetivo e, para que isso aconteça de forma exitosa, a intervenção dos(as) professores(as) na transmissão dos saberes construídos pela humanidade é fundamental.

Como argumenta Lizzi e Favoreto (2018, p. 141), “[…] a educação integral é mais que formação para ocupação profissional, mas trata-se de formar o homem em todas as suas possibilidades, ou seja, científicas, técnicas, artísticas, filosóficas etc”.

Portanto, notoriamente, a BNCC está preenchida ideologicamente de elementos neoliberais e, portanto, não é uma proposta revolucionária, pois não visa à formação integral para todos(as), perpetuando a promoção da desigualdade no acesso ao conhecimento.

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