REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202506141258
Thiago Pereira Dantas1
Resumo
A educação matemática no Brasil enfrenta desafios crônicos, caracterizados por baixos índices de desempenho, aversão discente e uma profunda desconexão entre o currículo e a realidade dos estudantes. Este artigo se baseia na análise crítica de autores como Thiago Pereira Dantas para diagnosticar as falhas de um modelo de ensino excessivamente formalista. Indo além do diagnóstico, o trabalho propõe e aprofunda um modelo de ensino integrado, estruturado em três pilares interdependentes: a Etnomatemática, como ferramenta de contextualização e valorização cultural; a Resolução de Problemas, como metodologia pedagógica central; e uma Formação de Professores crítica e reflexiva. Argumenta-se que a articulação desses pilares é capaz de resolver problemáticas concretas como o analfabetismo funcional em matemática e a percepção da disciplina como ferramenta de exclusão. Para construir este arcabouço teórico-prático, o artigo se fundamenta em fontes acadêmicas complementares, notadamente os trabalhos de Ubiratan D’Ambrosio, George Polya e Dario Fiorentini.
Palavras-chave: Educação Matemática; Modelo de Ensino; Etnomatemática; Resolução de Problemas; Formação de Professores.
Abstract
Mathematics education in Brazil faces chronic challenges, characterized by low performance indicators, student aversion, and a profound disconnection between the curriculum and the students’ reality. This article builds upon the critical analysis of authors like Thiago Pereira Dantas to diagnose the shortcomings of an excessively formalistic teaching model. Moving beyond diagnosis, this work proposes and elaborates on an integrated teaching model structured on three interdependent pillars: Ethnomathematics, as a tool for contextualization and cultural appreciation; Problem-Solving, as a central pedagogical methodology; and a critical and reflective approach to Teacher Education. It is argued that the articulation of these pillars can solve concrete issues such as functional illiteracy in mathematics and the perception of the discipline as a tool for exclusion. To build this theoretical-practical framework, the article draws on complementary academic sources, notably the works of Ubiratan D’Ambrosio, George Polya, and Dario Fiorentini.
Keywords: Mathematics Education; Teaching Model; Ethnomathematics; Problem-Solving; Teacher Education.
1. INTRODUÇÃO
O cenário da educação matemática no Brasil é consistentemente apontado como um dos maiores desafios da educação básica. Avaliações de larga escala, nacionais e internacionais, revelam um déficit de aprendizagem que se perpetua ao longo de décadas, transformando a disciplina no epicentro do fracasso escolar para uma parcela significativa dos estudantes. Essa realidade não apenas compromete o futuro acadêmico e profissional dos jovens, mas também reforça desigualdades sociais em um país que depende da capacidade de inovação e do raciocínio lógico de seus cidadãos.
Autores como Dantas (2017) apontam que a raiz do problema reside em um modelo pedagógico pautado na memorização de fórmulas e na execução de procedimentos desprovidos de significado para o aluno. A crítica se concentra na urgência de se conectar a matemática ao cotidiano, tornando-a uma ferramenta viva e útil. Contudo, para que essa transformação ocorra, é preciso ir além da constatação. É imperativo estruturar, com base em referenciais teóricos sólidos, um modelo de ensino que responda às seguintes questões: Como efetivar a conexão entre a matemática escolar e a realidade sociocultural do aluno? Qual metodologia pode substituir a aula expositiva tradicional de forma eficaz? E como preparar o corpo docente para sustentar essa nova prática? Este artigo objetiva responder a essas questões, aprofundando as soluções apenas esboçadas na literatura diagnóstica. Propõe-se aqui um modelo integrado, articulando três eixos fundamentais que, juntos, podem reconfigurar o processo de ensino-aprendizagem da matemática no contexto brasileiro.
2. PILARES PARA UM NOVO MODELO DE ENSINO
A superação de um paradigma exige a construção de outro que seja robusto e coerente. O modelo aqui proposto se assenta em três pilares que se reforçam mutuamente.
2.1 Etnomatemática: Da valorização cultural à aprendizagem significativa
O primeiro pilar aborda diretamente a problemática da “desconexão com a realidade”. A Etnomatemática, programa de pesquisa consolidado no Brasil por Ubiratan D’Ambrosio, oferece o caminho para essa reconexão. Para D’Ambrosio (2001), a matemática não é um saber único e monolítico, mas um conjunto de práticas e conhecimentos (“matemáticas”) desenvolvidos por diferentes grupos culturais para resolver seus problemas cotidianos.
Incorporar a Etnomatemática significa que o docente passa a atuar como um mediador entre a cultura do aluno e o conhecimento acadêmico. Por exemplo, a geometria pode ser estudada a partir das formas presentes na cestaria indígena ou na arquitetura vernacular; as noções de proporção e escala, a partir de receitas culinárias da comunidade; e o raciocínio combinatório, a partir das regras de jogos e brincadeiras locais. Ao validar o saber que o aluno traz de casa, a escola legitima sua identidade e transforma a aprendizagem em um ato de dar sentido ao mundo, resolvendo a questão da aplicabilidade de forma orgânica (D’AMBROSIO, 2001). Isso não se restringe apenas a comunidades tradicionais; pode-se explorar a matemática presente em atividades urbanas, como o cálculo de orçamentos em construções civis informais, a organização de feiras de rua ou a lógica por trás de jogos de tabuleiro populares. Em um contexto mais amplo, é possível analisar as estruturas geométricas presentes em padrões de grafites, a otimização de rotas para entregadores de aplicativo, ou a estatística informal utilizada por vendedores ambulantes para prever a demanda.
2.2 A Resolução de Problemas como metodologia pedagógica central
Este segundo pilar ataca o “formalismo excessivo” do ensino tradicional. A proposta, fundamentada nos preceitos de George Polya (1995), é utilizar o problema não como um exercício de fixação, mas como o ponto de partida e o motor de todo o processo de aprendizagem. A lógica tradicional de “explicar, exemplificar e exercitar” é substituída por um ciclo investigativo:
- Problematização: O professor lança um problema desafiador e aberto, que admite diferentes caminhos de resolução. Um exemplo seria propor a questão de como dividir uma pizza em partes iguais para um número ímpar de pessoas, levando à discussão de frações e ângulos. Ou, ainda, um problema que envolva a otimização de recursos para a construção de um pequeno projeto comunitário (como um canteiro de horta escolar), incentivando a aplicação de conceitos de área, volume e proporção.
- Investigação: Os alunos, em colaboração, mobilizam seus conhecimentos prévios, testam hipóteses, argumentam e negociam significados. O erro é ressignificado como uma etapa fundamental da busca pela solução. Neste estágio, os alunos podem experimentar diferentes estratégias para resolver a divisão da pizza, utilizando desenhos, dobraduras ou cálculos, e debater qual abordagem é mais eficiente ou justa. Para o canteiro da horta, eles poderiam prototipar layouts, calcular custos estimados de materiais e discutir a melhor disposição para maximizar o espaço.
- Formalização: Após a fase exploratória, o professor media a discussão, ajudando a turma a organizar as descobertas, a identificar os padrões e a formalizar os conceitos e procedimentos matemáticos que emergiram da atividade. A partir da discussão sobre a pizza, o professor pode formalizar o conceito de frações irredutíveis, ângulos centrais ou mesmo a ideia de proporção. No caso da horta, a discussão pode levar à formalização de conceitos de área de figuras planas, cálculo de perímetro para cercas, ou até mesmo noções de otimização linear para a distribuição das plantas.
Esta abordagem desenvolve competências que transcendem a matemática, como o pensamento crítico, a comunicação e a resiliência. O aluno assume uma postura ativa e investigativa, tornando-se protagonista de sua própria aprendizagem.
2.3 A Formação de Professores como eixo da transformação
Os dois pilares anteriores, por mais robustos que sejam, dependem inteiramente de um terceiro: a formação docente. Um professor que foi educado sob um modelo conteudista dificilmente conseguirá orquestrar uma sala de aula baseada na investigação etnomatemática e na resolução de problemas sem o suporte adequado.
Como salienta a pesquisa em educação matemática, notadamente em trabalhos como os de Fiorentini e Lorenzato (2006), a formação de professores precisa ser um continuum que integre teoria e prática de forma indissociável. Isso implica em reformular tanto a formação inicial (graduação) quanto a continuada. É essencial que os professores em formação e em serviço vivenciem essas metodologias como aprendizes, reflitam sobre seu potencial e suas dificuldades, e recebam orientação para planejar e aplicar essas abordagens em suas próprias salas de aula. Por exemplo, workshops práticos onde os futuros professores resolvem problemas usando Etnomatemática ou participam de sessões de formalização de conceitos após uma investigação podem ser cruciais. A criação de “comunidades de prática” nas escolas, onde docentes colaboram no planejamento e na análise de suas aulas, é uma estratégia poderosa para sustentar a inovação pedagógica (FIORENTINI; LORENZATO, 2006). Essas comunidades podem, por exemplo, analisar em conjunto gravações de suas aulas, discutir as dificuldades encontradas e propor soluções baseadas nos princípios da Etnomatemática e da Resolução de Problemas, fortalecendo a autonomia pedagógica.
3. PROBLEMÁTICAS E SOLUÇÕES: UMA ANÁLISE PRÁTICA
A implementação articulada do modelo proposto tem o potencial de endereçar diretamente os principais nós górdios da educação matemática brasileira, conforme sintetizado na Tabela 1.
Tabela 1: Relação entre Problemáticas Crônicas e Soluções do Modelo Integrado
Problemática Identificada | Solução Proposta pelo Modelo Integrado |
Analfabetismo Funcional em Matemática: Alunos que calculam, mas não interpretam nem aplicam o conhecimento. | A centralidade na Resolução de Problemas e na Etnomatemática garante que o aprendizado parta do contexto e da aplicação, desenvolvendo o raciocínio e a capacidade de modelagem. Por exemplo, em vez de apenas ensinar fórmulas de juros, o professor pode propor problemas reais de orçamento familiar, investimentos em pequenos negócios locais ou a análise de planilhas de gastos de uma comunidade, onde os alunos precisam aplicar os conceitos de juros para tomar decisões informadas e justificadas. |
Altas Taxas de Evasão e Aversão: Percepção da matemática como disciplina inalcançável e punitiva. | A Etnomatemática gera identificação e relevância, mostrando que a matemática está presente em suas culturas e cotidianos. A Resolução de Problemas promove um ambiente colaborativo e menos ansiogênico, valorizando o processo em detrimento da resposta única. Atividades como a análise matemática de padrões em jogos populares (como o dominó ou jogos de cartas), a criação de um projeto comunitário que exija medições e cálculos (como o planejamento de um evento escolar) ou a investigação de problemas relacionados à sustentabilidade local podem aumentar significativamente o engajamento e a percepção de utilidade da disciplina. |
Percepção da Matemática como Elitista: A disciplina é vista como um campo para poucos “iluminados”. | A abordagem etnomatemática é intrinsecamente democrática, pois reconhece e valoriza múltiplas formas de saber. A colaboração na resolução de problemas quebra a lógica da competição individual. Ao estudar as técnicas de tecelagem de uma etnia, as estratégias de um jogo de cartas local, a lógica por trás de rituais religiosos ou a construção de moradias tradicionais, os alunos percebem que o raciocínio matemático é inerente a diversas culturas e não se restringe a um grupo seleto de “gênios”. |
Desmotivação e Prática Docente Reprodutiva: Professores que, por falta de suporte, recorrem ao modelo tradicional. | Uma Formação Docente sólida e continuada, focada na reflexão sobre a prática, oferece o repertório e a segurança necessários para que o professor se torne um autor de sua pedagogia. Isso pode incluir a participação em redes de apoio onde professores experientes compartilham suas práticas inovadoras e oferecem mentorias para colegas que estão implementando as novas metodologias. Além disso, a formação deve incluir o desenvolvimento de materiais didáticos contextualizados e a experimentação de diferentes estratégias de avaliação que valorizem o processo investigativo. |
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou ir além da reiteração de um diagnóstico já conhecido sobre as mazelas da educação matemática no Brasil. Partindo das provocações de autores como Dantas, foi proposto um modelo de ensino integrado, prático e teoricamente fundamentado, capaz de reorientar o ensino da disciplina.
A articulação entre a Etnomatemática, a Resolução de Problemas e uma Formação Docente adequada não deve ser vista como uma fórmula mágica, mas como um caminho estruturado para a transformação. Tal modelo demanda uma mudança de cultura escolar, investimento na formação de professores e a coragem de romper com práticas sedimentadas. O objetivo final transcende a melhoria em indicadores de desempenho: trata-se de formar cidadãos com autonomia de pensamento, capazes de ler o mundo de forma crítica e de usar a linguagem matemática como uma poderosa ferramenta para a vida, a cidadania e o trabalho no século XXI. A dívida histórica da educação brasileira com seus estudantes passa, necessariamente, por essa ressignificação.
REFERÊNCIAS
D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: Elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
DANTAS, Thiago Pereira. Educação Matemática. Editora Abrindo Página, 2017.
FIORENTINI, Dario; LORENZATO, Sergio. Investigação em educação matemática: percursos teóricos e metodológicos. Campinas, SP: Autores Associados, 2006.
POLYA, George. A Arte de Resolver Problemas: Um novo aspecto do método matemático. Tradução de Heitor Lisboa de Araújo. Rio de Janeiro: Interciência, 1995.
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