EDUCAÇÃO INFANTIL MULTISSERIADA NO CAMPO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8302446


Claudinei de Melo Souza


Resumo: O texto apresentado aborda um relato pessoal embasado em teorias, com o objetivo de despertar reflexões sobre a educação infantil multisseriada no meio rural. O foco está nos desafios e oportunidades enfrentados nesse contexto, buscando viabilizar e assegurar o direito de aprendizagem bem-sucedida para os alunos da Educação Básica nesse ambiente. Devido à contínua diminuição de estudantes no meio rural, a implementação de classes multisseriadas torna-se uma realidade periódica em muitas instituições da área. É imprescindível investigar diferentes formas de organizar o trabalho pedagógico em turmas com idades e níveis de aprendizado diversos. Além disso, é necessário reformular as propostas político-pedagógicas e os currículos dessas instituições, bem como desenvolver políticas públicas que visem à qualidade e à continuidade da educação infantil nas escolas multisseriadas rurais. Garantir que a população rural tenha acesso a uma educação que seja contextualizada e oriunda do próprio ambiente, defendendo o direito a uma educação pensada a partir de suas particularidades e com a participação ativa das comunidades locais, é fundamental. Isso significa conectar o ensino com a cultura e as necessidades humanas e sociais dessas populações.

Palavras-chave: Educação do campo. Educação infantil. Classes multisseriadas.

Introdução

Atualmente, estamos vivenciando um período de intensos debates em busca de uma educação pública de qualidade, e dentro desse contexto, a educação no campo assume um papel de destaque. Ao longo de muitos anos, no Brasil, o trabalho no meio rural foi associado à desigualdade social, refletindo uma sobreposição de classes, e a educação do campo frequentemente enfrentava condições precárias e desfavorecidas, sendo muitas vezes negligenciada pela sociedade (MOURA, 2009).

Contudo, nos últimos tempos, observamos um ressurgimento das reflexões acerca da educação no campo, impulsionado principalmente pelos movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) (PEREIRA, 2010).

Diante desse contexto, com base na experiência docente, pretendemos apresentar a realidade de uma escola no campo que oferece a Educação Infantil. Inicialmente, abordamos como a educação no campo tem sido tratada atualmente, bem como as políticas públicas que visam fortalecer a educação para os indivíduos que residem nesse espaço geográfico. Em seguida, compartilhamos a experiência docente com uma classe de Educação Infantil multisseriada no campo, destacando as oportunidades e desafios enfrentados nesse contexto.

Educação do e no campo

A história da educação no Brasil evidencia um cenário em que pouco foi feito em benefício da educação das comunidades rurais. É notável que “a educação na zona rural brasileira […] não tem conseguido manter o homem em seu ambiente original, nem tem reduzido significativamente o alto índice de analfabetismo […] e muito menos auxiliado esse homem a transformar sua realidade” (MARINHO, 2008, p. 10). Muitas propostas educacionais destinadas às populações rurais foram impostas como soluções prontas, ignorando as particularidades culturais do meio rural (MARINHO, 2008).

O educando do campo, frequentemente, enfrenta dificuldades para compreender e valorizar a realidade do lugar onde vive, bem como para preservar os saberes tradicionais, sua própria história, suas relações e experiências no espaço em que habita. Isso ocorre porque a educação no ambiente rural, em muitos casos, tem priorizado um ensino fundamentado em conhecimentos e práticas urbanas, negligenciando o estudo do contexto local, seus habitantes e seus conhecimentos sociais (HAGE, 2011).

Assim, Moura (2009) ao citar Kolling (1999) salienta que:

A educação deve buscar o fortalecimento da identidade do homem e do meio rural, partindo da preservação de seus valores e de sua cultura. Porém, esse resgate ético e cultural deve ocorrer à luz de novos conceitos provenientes do avanço técnico- científico, e das novas necessidades, que assinalam o mundo contemporâneo e que, direta ou indiretamente, modificam o meio físico e cultural. A escola do campo se converte em lugar de ensino, de difusão de conhecimentos, instrumento de acesso das camadas populares ao saber, aos processos de emancipação e de autonomia, cumprindo função não só de transmissão de conhecimentos. (MOURA, 2009, p. 13).

Ao longo da história, a educação no campo surgiu como resultado de intensas lutas e reivindicações realizadas pelo MST, um movimento engajado em reconstruir a democracia e garantir os direitos das comunidades rurais, que se opõem ao sistema econômico que desaloja famílias trabalhadoras de suas terras, buscando preservar a vida em todas as suas dimensões e necessidades (PEREIRA, 2010).

Para alcançar esse objetivo, os movimentos sociais do campo têm lutado por políticas públicas que garantam uma educação autêntica e adaptada às especificidades do campo. Nos últimos anos, tem sido objeto de intensos debates a respeito da educação no e do campo, buscando mais do que uma simples mudança de nomenclatura (de educação rural para educação do campo). Trata-se de um movimento em busca de políticas públicas que assegurem às comunidades rurais uma educação pensada e construída a partir de suas próprias realidades e com a participação ativa dos envolvidos, conectada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais, em vez de ser uma mera reprodução do modelo urbano que, de alguma forma, está apenas localizado geograficamente no campo (KOLLING; CERIOLI; CALDART, 2002).

Portanto, desenvolver um modelo de educação que seja genuinamente para o campo nos dias atuais requer uma abordagem que considere as transformações necessárias em todos os aspectos que envolvem o processo de ensino, levando em conta as particularidades econômicas, políticas, sociais e culturais de cada contexto histórico. A identificação política e a integração geográfica com a realidade cultural do campo são condições fundamentais para que esse modelo seja efetivo (COUTINHO; ABREU, 2011).

Dessa forma, as escolas do campo precisam trabalhar a partir dos interesses políticos, sociais, econômicos e culturais das comunidades rurais, valorizando e respeitando as diversidades presentes, suas diversas formas de trabalho e organização de vida. Esse processo deve ser contínuo, gerando valores e conhecimentos que atendam ao desenvolvimento das populações rurais (MOURA, 2009).

Nesse contexto, o modelo de ensino multisseriado ganha destaque, sendo a modalidade predominante de oferta, especialmente nos primeiros anos do Ensino Fundamental, em áreas rurais (FAGUNDES; MARTINI, 2003). Nas turmas multisseriadas, um único professor muitas vezes assume múltiplas funções, desde o ensino para duas, três ou até quatro séries ou níveis diferentes até tarefas de manutenção da escola, como limpeza e preparo da merenda (FAGUNDES; MARTINI, 2003).

Essa configuração de classe se tornou uma solução adotada em várias regiões do país para garantir o acesso à educação à população rural, diante da baixa densidade demográfica e do consequente número reduzido de alunos, tornando inviável a criação de turmas específicas para séries ou faixas etárias (HAGE, 2011).

No entanto, apesar da necessidade no meio rural, a educação multisseriada ainda é uma extensão do paradigma da escola seriada urbana, não recebendo um tratamento diferenciado. Ela é uma realidade frequentemente ignorada, inclusive nas estatísticas sobre educação no país. No entanto, a história das classes multisseriadas nas escolas do campo foi sustentada por políticas compensatórias, visando solucionar o acesso à escolarização de um número reduzido de crianças e jovens presentes no campo (HAGE, 2011).

Diante desse cenário, fica evidente que a educação no campo tem sido negligenciada, marginalizada e desprovida de reconhecimento e de políticas públicas adequadas. O poder público tem historicamente negado a identidade e os direitos das comunidades rurais.

Portanto, é claro que há muito a ser feito em relação à educação no e para o campo, bem como à qualidade do ensino multisseriado no Brasil. Essa educação precisa ser debatida não apenas como um instrumento para fixar as pessoas ao campo, mas sim como algo que deve ser moldado e direcionado pelos próprios sujeitos do campo, considerando seus interesses sociais, políticos, culturais e grupais, a fim de estabelecer pedagogias vinculadas a objetivos políticos e emancipatórios.

Educação infantil multisseriada no campo

A educação é de extrema importância para os seres humanos, pois permite o acesso a informações variadas e a construção de conhecimentos, o que leva à compreensão das ações humanas na sociedade. Ela não é apenas uma oportunidade de descoberta, mas também um direito social garantido por lei, que deve atender às particularidades de cada indivíduo, independentemente de ser do campo ou da cidade, adulto, jovem ou criança.

Dentro desse contexto, a Educação Infantil é assegurada pela Constituição de 1988 como um direito da criança, dever do Estado e opção da família, sendo a primeira etapa da educação básica, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/9.394/96). Seu objetivo é promover o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, abrangendo aspectos físicos, psicológicos, intelectuais e sociais, complementando a ação da família e da comunidade (BRASIL, 1996). No entanto, na prática, os investimentos nessa área ainda são limitados, especialmente no ensino público rural. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pnera) de 2005, apenas 5% das crianças com até seis anos de idade frequentam escolas de Educação Infantil no campo, e somente 3% têm acesso a creches.

Silva e Pasuch (2012) apontam que a oferta de Educação Infantil só começou a ter mais consistência com as novas Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Infantil (DCNEI), aprovadas em 2009, que buscam superar essa realidade e tornar a Educação Infantil obrigatória a partir dos quatro anos, o que impõe o desafio de ampliar a rede e melhorar a qualidade do ensino, especialmente no campo.

Os desafios enfrentados ao trabalhar com a Educação Infantil em classe multisseriada são significativos. Primeiramente, a política pública municipal impõe essa modalidade de organização do trabalho pedagógico nas escolas do campo, estabelecendo classes multisseriadas como uma necessidade devido ao reduzido número de alunos, sem proporcionar oportunidade de escolha pedagógica.

Outra dificuldade está relacionada ao trabalho de um único professor atendendo um grupo de crianças de faixas etárias heterogêneas entre quatro e seis anos. É complexo atuar com crianças em diferentes estágios de aprendizagem sozinho, sem auxílio de monitores, abrangendo tanto o cuidado quanto a educação.

Além disso, o professor de classe multisseriada enfrenta isolamento e sobrecarga de trabalho devido ao acúmulo de funções e à carga horária excessiva. A falta de estrutura física das escolas multisseriadas também prejudica o processo de ensino-aprendizagem, com salas de aula inadequadas, falta de espaço para recreação e banheiros não adaptados à faixa etária dos alunos.

Enquanto professores e alunos de instituições multisseriadas do campo enfrentam esses desafios, é necessário encontrar possibilidades de intervenção e soluções contextualizadas e viáveis. A educação infantil oferecida nas escolas rurais é um grande desafio nacional, especialmente em áreas onde sequer existem escolas voltadas para esse segmento da sociedade.

Um aspecto positivo da multissérie é a oportunidade de desenvolver um processo educativo diferente, no qual alunos de faixas etárias e experiências diversas podem participar e criar formas coletivas de organização do conhecimento. A diversidade e heterogeneidade das classes multisseriadas podem ser utilizadas de forma positiva, buscando cooperação e aprendizagens significativas. Para tanto, é essencial que o professor não centralize a aprendizagem em si, mas valorize a troca entre os alunos.

Nesse contexto, a complexidade está presente em cada ser e em sua interação social, e é necessário considerar a diversidade no processo pedagógico, evitando a separação em classes homogêneas, que reforça os privilégios e desconsidera as trocas de experiências e a valorização do sujeito e sua cultura.

Por fim, a organização do currículo precisa ser redirecionada, respeitando o ritmo individualizado dos alunos e não simplesmente adaptando o currículo das classes regulares unisseriadas. É importante trabalhar para superar os desafios enfrentados na Educação Infantil do campo, buscando promover um ensino de qualidade que atenda às necessidades e expectativas de todos os envolvidos nesse processo educacional.

Conclusão

É notório que o trabalho em classes multisseriadas de Educação Infantil no campo enfrenta inúmeros desafios que requerem superação. Iniciando com a necessidade de oferta adequada de vagas e condições funcionais nas instituições rurais, surge um desafio que demanda uma profunda reflexão sobre como conceber uma educação básica que atenda aos interesses, desenvolvimento sociocultural e econômico das comunidades que habitam e trabalham no campo, respeitando suas diferenças históricas e culturais, visando proporcionar uma vida digna.

Diante dessa realidade incontornável de turmas multisseriadas no campo, é imprescindível abordar essa nova perspectiva de educação e buscar uma prática educativa efetiva para atender os educandos. A eficácia desse modelo de ensino reside na capacidade do educador de mediar a inter-relação entre diferentes faixas etárias e níveis de conhecimento, tornando o processo pedagógico mais dialógico, fomentando o respeito ao outro, valorizando as diversidades e compreendendo a necessidade de partir do individual para o coletivo.

Para alcançar esse objetivo, as escolas rurais precisam desenvolver uma nova proposta educativa, organizada em multisseriação, levando em consideração aspectos como investigar as diferentes formas de organização do trabalho pedagógico em turmas diferenciadas por idade e aprendizado, reformular a proposta político-pedagógica e o currículo das instituições e implementar políticas públicas voltadas à qualidade do ensino.

No entanto, os desafios decorrentes do cotidiano pedagógico precário tornam-se ainda mais complexos quando os docentes não têm acesso a uma formação profissional que aborde a realidade do campo como tema de estudo e não estimula uma pedagogia mais crítica e criativa para as turmas multisseriadas. Isso levanta a questão de como enfrentar esses desafios de forma mais efetiva, considerando que os cursos de formação de educadores, tanto inicial quanto continuada, não contemplam a realidade das escolas rurais em seu conteúdo formativo.

É fundamental que os professores sejam incentivados a refletir constantemente sobre sua prática, em parceria com outros profissionais, como colegas de profissão ou coordenadores, questionando suas atitudes e abordagens pedagógicas e estando abertos a reformulá-las quando necessário. A problematização da prática oferece uma oportunidade contínua de formação profissional, permitindo uma maior interatividade no processo de formação do educador.

Embora enfrentar visões negativas sobre o campo e suas escolas seja uma tarefa desafiadora, visto que essas visões frequentemente reproduzem estereótipos prejudiciais sobre seus povos e instituições, acredita-se que, por meio de estudos e intervenções mais específicos, é possível modificar essa imagem, considerando a oportunidade de promover a interdisciplinaridade com alunos de faixas etárias diferentes e experiências diversas, viabilizando uma forma coletiva de inovação e apropriação do conhecimento.

Para implementar essas mudanças, sugere-se abrir frentes de pesquisa que articulem a política de Educação Infantil com a educação no campo, bem como adaptar os currículos dos cursos de formação de professores para considerar a realidade da educação no campo, oferecendo estágios em escolas rurais para futuros docentes. Além disso, deve-se discutir a adoção de medidas para universalizar o acesso à Educação Infantil no meio rural, garantindo uma educação de qualidade a todas as crianças.

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