REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202411261740
Larissa Ferreira Rodrigues Gomes1
Elaine Ferreira Wetler Pereira2
Bianca Pereira Carvalho3
Bruno Henrique Ferreira dos Santos4
Michael Freire Santos5
RESUMO
Este artigo aborda a importância da organização do espaço escolar como um elemento na construção de um currículo inclusivo na Educação Infantil. A partir da concepção de que a criança é protagonista de seu processo de aprendizagem, exploramos a reconfiguração do ambiente escolar, em uma perspectiva acessível e inclusiva. O estudo utiliza uma Cartografia de pesquisa como metodologia, com base nas perspectivas de Deleuze e Guattari (1996) e Kastrup (2009), para analisar os processos de subjetivação das crianças no ambiente escolar. A pesquisa situa o tema em um contexto histórico e social, discutindo as concepções de infância ao longo do tempo e as transformações ocorridas na educação infantil no Brasil, especialmente após os marcos legais estabelecidos pela Constituição de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996. Este artigo realiza uma revisão bibliográfica para situar teoricamente o tema, articulando contribuições de autores como Kohan (2008, 2011, 2019, 2020) e Nunes (2015, 2019), que discutem as infâncias e suas relações com os espaços escolares. A revisão busca mapear as principais discussões e teorias sobre os conceitos centrais, além de identificar os diálogos entre diferentes perspectivas. O objetivo é estabelecer um referencial teórico que fundamentará a análise e a construção de mapas formativos e existenciais ao longo do estudo. Como considerações finais consideramos que a criação de espaços e currículos que atendam as infâncias em uma perspectiva de uma educação mais inclusiva.
Palavras-chave: Currículo; Espaços Inclusivos; Educação Infantil.
O ESPAÇO ESCOLAR COMO TERRITÓRIO INCLUSIVO: CARTOGRAFIAS DE SUBJETIVIDADE E PROTAGONISMO INFANTIL NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Este artigo tem como propósito problematizar a importância da oferta de um espaço escolar inclusivo e de qualidade na educação infantil, partindo da concepção de infância e de criança como protagonista das ações pedagógicas. Propomos relacionar como o espaço escolar, enquanto elemento estruturante do processo de ensino-aprendizagem influência nas relações pedagógicas e a tessitura de currículos inclusivos.
A principal intencionalidade é tensionar a organização do espaço escolar como território inclusivo, onde se promova desenvolvimento das crianças em suas subjetividades, garantindo-lhes ambientes acessíveis, dinâmicos e sensorialmente adequados. Tais espaços devem favorecer experiências pedagógicas lúdicas e prazerosas, assegurando a participação das crianças na construção do ambiente, respeitando suas especificidades e promovendo sua autonomia. É essencial considerar as particularidades das infâncias no processo de decisão e organização desses espaços, ampliando suas possibilidades de interação, escolha e pertencimento no contexto escolar.
Ao relacionar a educação infantil às demais etapas da educação básica, nota-se que as suas conquistas são bem recentes e insuficientes para atender às demandas específicas das infâncias, especialmente no que tange às garantias legais relacionadas à inclusão e acessibilidade. Ainda é necessário “atentar para várias questões […] principalmente, assumir as especificidades da educação infantil e rever concepções sobre infância e aprendizagem” (Brasil, 1998, p. 17).
A metodologia se fundamenta na Cartografia de pesquisa, conforme as perspectivas de Deleuze e Guattari (1996) e Kastrup (2009), privilegiando o acompanhamento dos processos de subjetivação e a construção de mapas formativos e existenciais. Essa perspectiva metodológica se distingue por seu foco no acompanhamento dos processos de subjetivação, ou seja, nas formas de construção e transformação dos sujeitos ao longo de suas trajetórias. A Cartografia, nesse contexto, visa mapear as múltiplas relações, movimentos e mudanças que ocorrem nas práticas e experiências, compreendendo-as como processos dinâmicos e não lineares.
Este artigo tem como ponto de partida uma revisão bibliográfica que visa situar teoricamente o tema em questão, articulando as contribuições de diversos autores que abordam as infâncias e suas relações com os espaços escolares. A revisão não apenas procura mapear as principais discussões e teorias sobre os conceitos centrais, como também identificar os diálogos entre diferentes perspectivas, especialmente como de Kohan (2008, 2011, 2019, 2020), Nunes (2015, 2019). Ao revisar e articular essas referências, busca-se estabelecer um referencial teórico que fundamente a análise e a construção dos mapas formativos e existenciais propostos ao longo do estudo.
Como resultados aborda a organização do espaço escolar como elemento essencial do currículo inclusivo na educação infantil, analisando os fatores que o constituem como tal. Busca-se compreender como arranjos espaciais planejados e intencionais podem favorecer o desenvolvimento de políticas de educação inclusiva.
CARTOGRAFIAS DA INFÂNCIA: ENTRE AVANÇOS E RETROCESSOS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Refletir sobre espaços de qualidade inclusivos e as dimensões curriculares que permeiam a Educação Infantil implica questionar seus objetivos e as concepções de infâncias e educação que adotamos para tencioná-los. As infâncias conforme concebemos nos dias atuais pertencem a uma construção histórica e social recente, produto da modernidade, gestadas por um processo de transformações, sobretudo no que tange a concepção de infância.
Retomando a história, Aries (1981), aponta que a criança na Idade Média era considerada um adulto em miniatura, um ser incompleto, que deveria ser preparado para a vida adulta, inferior ao adulto. Com o Renascimento na Idade Moderna surgem muitas transformações quanto a forma de se conceber a infância, surge como denomina o autor o sentimento de infância.
Segundo Narodowski “[…] O nascimento da infância moderna traz em si o alheamento necessário da criança com relação à vida cotidiana dos adultos: afastamento que implica um passo constitutivo na configuração da infância como um novo corpo” (Narodowski, 1993, p. 52). Neste mesmo entendimento Kohan (2008) concebe as infâncias como um território de experimentação, como modo de viver, como condição, como tempo presente e não como uma fase cronológica, preparatória para uma outra etapa que vindoura. Nesta vertente as infâncias não devem ser vistas como uma preparação para o futuro, mas como um tempo próprio, aberto a experiências e descobertas. Nesses espaços devem ser consideradas as infâncias em suas multiplicidades.
Segundo estudos de Kuhlmann Júnior (2015) até o final dos anos 1970, o Brasil contou com poucos estudos e legislações voltados à primeira infância. Foi somente na década de 1980 que movimentos em defesa dos direitos das infâncias ganharam força, impulsionados pelos avanços da comunidade acadêmica e por pesquisas que deram visibilidade à importância dessa etapa. Esses movimentos também foram marcados pela participação ativa da sociedade, que reivindicava uma educação de qualidade, em resposta às transformações socioeconômicas, como a industrialização e a inserção da mulher no mercado de trabalho. Estas transformações deram-se como agenciamentos coletivos, nos quais múltiplas forças — sociais, acadêmicas e políticas — se conectaram, criando linhas de fuga que tensionam e reconfiguraram as relações tradicionais de poder. Desta forma inicia-se processos que visibilizam as infâncias como território de singularidades, abrindo espaço para práticas educativas mais inclusivas e potentes.
Com o advento da constituição Federal de 1988, a educação das crianças de 0 a 6 anos, concebida, no geral como amparo e assistencialista, passou a figurar como direito da criança e dever do Estado, numa perspectiva educacional, a criança passa a ser considerada como sujeito de direito, o que possibilitou a inclusão da creche e da pré-escola no sistema educativo, versa em seu artigo 208, o inciso IV “[…] O dever do Estado para com a educação será efetivado mediante a garantia de oferta de creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade” (Brasil, 1988).
As mudanças advindas da constituição promovem um novo dimensionamento a educação infantil, tornando-a complementar a educação dada a família, não mais como simples paliativo, com condão assistencialista, como nos afirma Kuhlmann Júnior (2015)
“[…] Se a creche passa a fazer parte do sistema educacional do país, ela deixa de ser apresentada como alternativa para pobres incapazes, para ser posta como complementar à ação da família, tornando-se uma instituição legítima e não um simples paliativo. Mas não é por isso que as instituições se tornam educacionais, elas sempre foram e continuarão sendo, aonde quer que estejam. A passagem para o sistema educacional não representa de modo algum a superação dos preconceitos sociais envolvidos na educação da criança pequena”. (Kullmann Júnior, 2015, p. 186).
Segundo o autor, a simples mudança de gestão, por si só, não trouxe o fim do assistencialismo das creches e muito menos as práticas de antecipação do ensino fundamental, mas se constituiu como marco para amplos debates e reformulações do ensino infantil. Com a promulgação da constituição as creches, que estavam ligadas a assistência social, passam a ser responsabilidade da educação, que deveria não mais apenas cuidar, mas também promover um desenvolvimento educacional do aluno no tocante às suas práticas pedagógicas e na busca por padrões de qualidade.
Com a ampliação do direito à Educação Infantil no Brasil, garantido pela Constituição Federal de 1988 e consolidado posteriormente pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, um novo paradigma começou a se formar. A LDB passa a estabelecer a obrigatoriedade da educação para crianças a partir de quatro anos e enfatizar a necessidade de atender às especificidades de todas as crianças, respeitando suas singularidades. Esse movimento trouxe à tona a discussão sobre a inclusão de crianças com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades, inserindo o conceito de equidade caminhos possíveis a uma educação mais inclusiva.
O avanço das políticas inclusivas também foi impulsionado por documentos como o Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelece metas voltadas para a universalização do atendimento na Educação Infantil com qualidade, incluindo ações específicas para garantir o acesso e a permanência de crianças com necessidades educacionais especiais. Ao considerar as infâncias como territórios de multiplicidade e potência, conforme apontam autores como Kohan, a Educação Infantil inclusiva se preocupa não apenas com o acesso, mas com a criação de espaços que favoreçam a experimentação, a interação e a aprendizagem colaborativa, respeitando o tempo e o modo de cada criança.
Neste prisma Kohan (2008) enfatiza a importância de reconhecer a criança como participantes ativos em seu próprio aprendizado e desenvolvimento, se contrapondo as visões tradicionais que posicionam a criança como versões incompletas ou inferiores aos adultos, destacando as qualidades únicas e o potencial da infância, compreendo-as como uma fase distinta e valiosa da vida, com formas próprias e específicas de vivenciar o mundo e se envolver com o aprendizado. Assim
Neste artigo buscamos abordar as infâncias como multiplicidade e potência, não como uma etapa de vida ou etapa de projeção futura a uma vida adulta. Desta forma “[…] a infância é abordada como ‘experiência’, como um acontecimento intempestivo desvinculado da noção de idade e do tempo chronos (Tebet, 2017, p. 135).
O reconhecimento das infâncias também como elementos constitutivos das práticas curriculares exige uma abordagem educacional que respeite e estimule a sua autonomia, a curiosidade e a criatividade, evidenciando o seu papel na construção do conhecimento por meio da exploração ativa e da interação com o ambiente, com práticas educativas que estimulem o diálogo. Desta forma é preciso
Infanciar: estabelecer outras relações com a infância, agir, criar condições e modos para expandir e mapear as partículas infantis que se ramificam, se esparramam por todos os lados e traçam cenas infantis outras, não costumeiras, que abrem os corpos a uma infância não cronológica, molecular. Infanciar: ampliar o que se vive e o que se diz da infância pode promover outras vidas infantis, traçar cenas na vida, no cotidiano, nas telas e nas ruas […] (Kohan, 2020, p. 8)
Nesta perspectiva, é preciso tecer diálogos com os espaços escolares como parte integrante da ação pedagógica, tendo em vista que estes estão relacionados com os modos de aprendizagens vivenciados pela criança. Forneiro (1998 p .236) afirma que “o espaço já não é o lugar onde se trabalha, nem tampouco é somente um elemento facilitador, mas constitui um fator de aprendizagem”. A criança é elemento integrador deste espaço, e deve estar envolvida em sua elaboração, rompendo “com as concepções tradicionais de educação que, na sua essência, ignoram o direito da criança a ser vista como competente e a ter espaço de participação” (Oliveira-Formosinho; Formosinho, 2013, p. 32)Kohan (2004b) nos convida a uma ruptura com o modo de pensar currículo como forma de educar a criança, e pensa nas possibilidades de um currículo pensado a partir da infância:
“[…] Chegamos assim ao ponto culminante de nossa intervenção infantil, à invenção de uma ruptura com um modo dominante de pensar a infância e o currículo. Longe de pensar um currículo para educar a infância, estamos pensando uma infância que eduque ao currículo” (Kohan, 2004b, p. 8)
Essa perspectiva traz profundas implicações para a organização curricular e a prática docente. Um currículo educado pela infância deve ser dinâmico, flexível e permeável às experimentações que emergem das interações das crianças com o mundo. Além disso, essa proposta está alinhada com os princípios da educação inclusiva, pois reconhece a diversidade das infâncias em contrassenso modelos homogêneos e padronizados. Ao deslocar o centro da educação para a criança, criam-se possibilidades para uma prática educativa mais ética, sensível e conectada às necessidades reais de cada sujeito.
REPENSANDO ESPAÇOS
Repensar os espaços e ambientes na Educação Infantil, no âmbito da qualidade, é também repensar as relações que estabelecemos com esses espaços, concebendo-os não apenas como locais físicos, mas como territórios que produzem subjetividades e experimentações, em uma constante cartografia de afetos e encontros. Desta forma, podemos compreender os espaços escolares — salas de aula, pátio, refeitório, biblioteca e outros — como fluxos dinâmicos, que ultrapassam a mera funcionalidade e se constituem como elementos ativos na construção das aprendizagens e vivências. Assim, os ambientes escolares não apenas contêm a infância, mas são por ela atravessados e ressignificados, tornando-se fatores centrais na promoção de experiências que potencializam a qualidade educativa.
Lima (1998, p. 9) nos lembra que não existe um “espaço neutro”, pois todo espaço produzido pelo ser humano carrega intencionalidades, valores e significados que interferem diretamente no processo educativo. O espaço não é apenas um pano de fundo para as interações pedagógicas, mas um agente ativo que pode potencializar ou limitar as experiências de aprendizagem, assumindo formas positivas ou negativas conforme sua organização, estética e funcionalidade. Assim, ao desenhar ambientes escolares, é essencial considerar que cada escolha — desde a disposição dos móveis até os elementos decorativos e a circulação dos corpos — tem um impacto direto na subjetividade das crianças e no modo como elas interagem com o mundo e com os outros.
Nesse sentido, a criação de espaços inclusivos na Educação Infantil precisa ir além de questões práticas, como conforto e segurança, para incorporar elementos que promovam experimentações, autonomia e trocas, reconhecendo-o como um fator central na constituição de práticas pedagógicas de qualidade e na valorização das singularidades infantis.
A organização dos espaços escolares na Educação Infantil não é um aspecto meramente funcional, mas desempenha um papel central na construção das aprendizagens e na promoção de uma educação inclusiva. Forneiro (1998, p. 237) destaca que “a forma de organização do espaço e a dinâmica que for gerada da relação entre os seus diversos componentes irão definir o cenário das aprendizagens”. Sob essa perspectiva, os espaços escolares precisam ser pensados como territórios de acolhimento e pertencimento, onde todas as crianças, independentemente de suas condições ou especificidades, possam explorar, criar e interagir.
Nesse contexto, a inclusão demanda que o ambiente escolar seja desenhado para atender às diversidades, rompendo barreiras que segregam, construindo possibilidades de acesso e possibilidades de participação plena. É necessário ir além do simples oferecimento de recursos físicos e materiais adaptados, buscando criar condições que promovam o florescimento das singularidades e do protagonismo infantil. Isso implica em repensar práticas pedagógicas, relações e espaços, de modo que não apenas atendam às necessidades das crianças, mas também as envolvam como sujeitos ativos na construção de seus próprios processos de aprendizagem e experiências.
Nesse sentido, Kohan (2019, p. 89) direciona que:
“Uma escola não é verdadeiramente pública quando coloca exigências que desigualam os iguais, quando expulsa em lugar de acolher, ou quando uma parte de seus estudantes pode mais que outra em termos de relações pedagógicas que dentro dela se estabelecem por algum critério imperante na sociedade na qual a escola se insere e que acaba reproduzindo” (Kohan, p 89, 2019).
Essa reflexão ressalta que uma escola inclusiva não pode reproduzir as desigualdades estruturais da sociedade, mas deve se transformar em um espaço de equidade e justiça social. A inclusão não é apenas uma política, mas uma prática diária que questiona critérios hegemônicos e cria novas formas de convivência e aprendizado. Assim, o espaço escolar torna-se um agente ativo no processo educativo, promovendo relações pedagógicas que reconhecem e valorizam as diferenças, ao invés de padronizá-las. Esse movimento exige um comprometimento coletivo com a construção de um currículo flexível e de práticas pedagógicas que sejam sensíveis às necessidades de cada criança, reforçando o papel da escola como um lugar de pertencimento e transformação social.
TERRITÓRIOS DE APRENDIZAGEM: REPENSANDO OS ESPAÇOS INCLUSIVOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Forneiro (1998) apresenta o espaço escolar como um elemento do currículo, do qual o professor deve “tomar posse” e se relacionar. Segundo o autor o professor diante do espaço físico existente deve carregar de significações e propor ações pedagógicas intencionais, criando um espaço enriquecedor, prazeroso, tendo como centralidade o desejo infantil.
A concepção de infância na modernidade, ainda encontra entraves na velha concepção de infância, as escolas por exemplo, onde muitas crianças passam grande parte de sua infância ainda tem práticas evidenciadas no modo adulto de ser, agir e pensar, Tomás e Soares (2009) alertam que:
“[…] o paradigma do protagonismo infantil colide com as práticas sociais, havendo um hiato acentuado entre a teoria e a prática no que concerne aos direitos de participação das crianças, explicado pela herança sociocultural da invisibilidade e “afonia” das crianças, que é muitas vezes perpetuada em função dos próprios interesses dos adultos. (Tomás e Soares, 2009, p. 4)
Os avanços inerentes às concepções de infância ainda convivem com o protagonismo do professor, onde velhas práticas resistem, perpetuando a educação bancária, apontada por Freire onde
“Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos, que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” de educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem depósitos, guardá-los e arquivá-los. […] Na visão “bancária” da educação o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber.” (Freire, 1987, p. 33)
Mister se faz romper com o paradigma de professor como detentor do saber e de criança como agentes que apenas “recebem depósitos” do saber, é preciso “aprender com as crianças é um convite para a ampliação de sentidos outros, para deslizar nos escapes que a vida é capaz de produzir e, ainda mais, é um alerta para que abandonemos as tentativas de enquadramentos das infâncias” (Nunes, 2019, p.9)
Pensar os espaços escolares tendo a infância como presença, partindo dos anseios infantis e não a partir dos anseios e olhares adultos, desmistificando a imagem de infância inferior, negando a presença da criança e a sua pertença ao espaço habitado, entendendo a educação infantil como espaço também da criança. Neste entendimento nos direciona Kohan (2007)
“[…] pensar a infância desde outra marca, ou melhor, a partir do que ela tem, e não do que lhe falta: como presença, e não como ausência; como afirmação, e não como negação, como força, e não como incapacidade. Essa mudança de percepção vai gerar outras mudanças nos espaços outorgados à infância no pensamento e nas instituições pensadas para acolhê-las” (Kohan, 2007, p. 101).
Como nos afirma Kohan (2008) ao concebermos a infância neste prisma os espaços destinados à educação infantil geram outras percepções, auxiliando a prática docente na transformação de suas práticas, construindo outras possibilidades, currículos inventivos, que permitam o estreitamento entre a criança e a escola, do agir pedagógico e as vivências das infâncias.
Desta forma mudanças de paradigma na concepção da infância também implicam em uma nova forma de relação entre o espaço escolar e as crianças. Em vez de um ambiente rígido, disciplinado e distante, o espaço escolar deve ser um local de acolhimento, onde a criatividade, a curiosidade e o brincar são valorizados. Nesse sentido, os ambientes educacionais precisam ser personalizados de maneira flexível e dinâmica, permitindo que as crianças se apropriem deles e os transformem conforme suas necessidades e desejos. Estes não devem ser considerados como um espaço relacional, que possibilite o protagonismo infantil, a autonomia e o reconhecimento das crianças como sujeitos ativos no processo de ensino-aprendizagem.
A criação de ambientes escolares que promovam essa relação dialógica entre a criança e o espaço envolve um trabalho pedagógico que deve ir além da simples adaptação física. Como aponta Forneiro (1998), o professor tem o papel de “tomar posse” do espaço, mas isso não significa dominar ou controlar o ambiente. Significa, na verdade, tornar o espaço um lugar de encontros e trocas, onde o desejo e a ação infantil permeiam as experiências. Isso exige uma escuta atenta às manifestações das crianças, um olhar sensível para suas necessidades e um questionamento constante sobre o que significa educar para as crianças, respeitando suas especificidades e potencializando suas capacidades, […] não apenas o saber adulto nem somente as possibilidades infantis, mas o que pode ser produzido nessa relação, que é mobilizada pelo devir-criança, que não sabemos onde vai dar […] (Nunes, 2015, p.198).
A construção de currículos inventivos e flexíveis implica uma ruptura com as práticas tradicionais e rígidas, em que o professor é o único detentor do conhecimento e a criança é vista apenas como receptora passiva de informações. A educação deve ser um processo colaborativo, no qual professores e crianças estão envolvidos em uma troca constante, aprendendo uns com os outros, criando um ambiente de descobertas mútuas. Tecer construções curriculares “a partir da criança, com a criança, desde a infância, dentro da infância. Essa educação traz à infância efeitos que potencializam o novo, o acontecimento, o encontro e a permanente possibilidade de produzir experiências” (Nunes, 2015, p.201). Nesse cenário, o currículo não é apenas um conjunto de conteúdos a ser transmitido, mas um espaço de construção coletiva, onde o conhecimento é vivido, experimentado e compartilhado em diálogo com o cotidiano das crianças e suas experiências de vida.
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS: RECONFIGURAÇÕES DO ESPAÇO ESCOLAR E O PROTAGONISMO DAS INFÂNCIAS
Iniciamos a tessitura das considerações finais deste artigo, tecendo os questionamentos: De que forma a pergunta “o que você vai ser quando crescer?” reforçar a ideia de que a criança ainda não é nada, validando a concepção de infância como uma fase de preparação para a idade adulta, e como podemos subverter esse discurso para dar voz à criança no agora? Partindo da citação de Kohan (2011)
A pergunta-fórmula “o que você vai ser quando crescer (ou for adulto)?”, com a qual costumamos martirizar as crianças escolarizadas, simboliza toda uma relação com a infância: o “vai ser” esconde uma potencialidade e uma ausência: “vai ser” significa que a criança pode ser alguma coisa no futuro e isto só faz sentido na medida em que ela ainda não é isso no presente. Estas são as duas formas prediletas de negar o que a infância é: afirmar seu ser em potência e sua ausência de ser em ato (Kohan, 2011, p. 6).
A pergunta-fórmula “o que você vai ser quando crescer?” carrega em si uma visão linear e progressiva do tempo, que transforma a infância em uma preparação para algo que ainda está por vir, e não um acontecimento singular, vivido e experimentado no agora. Esse “vai ser” opera como um vetor, uma linha de fuga que projeta o futuro em uma dimensão de possibilidades, mas também de ausências. O “vai ser” não diz respeito ao que a criança já é, mas àquilo que ela ainda não se tornou, como se a infância fosse uma preparação contínua, sem a potência de existir no presente.
Em Deleuze; Guattari (1995) somos convidados por esta escrita a pensar as infâncias pelos fluxos de intensidades, onde o que é, não é dado, mas se desdobra no processo de vir a ser. A infância não pode ser aprisionada pela ideia de que “vai ser”, pois ela é, antes de tudo, um campo de potências, um devir imerso em uma multiplicidade de possibilidades e linhas de fuga.
Ao considerar os espaços escolares como territórios de cocriação, a pesquisa revela que a transformação nas práticas pedagógicas se dá pela multiplicação de fluxos que, ao contrário da tensão do currículo tradicional, se abrem em alternativas imprevisíveis e criativas. O movimento que se dá entre os corpos e os saberes, entre as crianças e os ambientes, não mais se submete, mas movimenta as forças do desejo infantil.
Uma mudança de paradigma, ao passar da infância como ausência para a infância como presença, permite que o espaço escolar se torne uma zona de intensificação de forças, onde esta não é mais uma promessa do que será, mas uma potência em ato, capaz de interagir com os elementos do ambiente e de criar novos sentidos. Os currículos endurecidos, cede lugar a um fluxo coletivo de saberes, que não se fixa em um único ponto, mas se espalha, se transforma e se recria constantemente.
Essa flexibilidade curricular, ao abrir brechas para o desejo das crianças, cria um rizoma de aprendizagem que se entrelaçam e se transformam em novos mapas de saber. Ao invés de um conjunto de conteúdos a serem assimilados, o currículo se torna uma máquina de invenção, um dispositivo que se ajusta, se dobra e se estende ao encontro das multiplicidades que a criança traz consigo. O espaço da escola não é mais apenas um lugar passivo de imposição de normas, mas um território no qual os corpos das crianças se deslocam, interagem e criam junto aos professores. A troca não é mais uma simples transmissão de saberes, mas uma cartografia de afetos e conhecimentos, onde o encontro das infâncias com as práticas pedagógicas é o próprio processo de aprendizagem.
Finalmente, a pesquisa nos indica que é uma formação docente que precisa ser redesenhada para acompanhar esse movimento. O professor não ocupa mais a posição de autoridade do saber, mas se torna um cartógrafo, capaz de mapear as singularidades das crianças, acompanhando-as como agentes criativos de suas próprias trajetórias educacionais. A criação de espaços e currículos que respondem ao protagonismo infantil não é uma adaptação, mas uma verdadeira criação de mundos, onde o processo de ensino-aprendizagem não é linear, mas rizomáticos, como a própria infância, que se desvia das linhas rígidas e segue pelo fluxo de sua multiplicidade. A escola, então, se torna um campo aberto, onde as crianças não são apenas participantes, mas coautoras de uma experiência vívida, que se faz e se refaz continuamente.
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1Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atualmente é professora da Educação Básica Técnica e Tecnológica na UFES, no Centro de Educação Infantil CRIARTE e professora do Programa de Pós Graduação de Mestrado Profissional em Educação (PPGMPE/UFES), e mail: larissa.rodrigues@ufes.br
2Mestranda em educação pela Universidade Federal do Espírito Santo, e-mail: elainefwp@gmail.com
3Mestranda em educação pela Universidade Federal do Espírito Santo, e-mail: biancapecarvalho@gmail.com
4Mestrando em educação pela Universidade Federal do Espírito Santo, e-mail: bruno.clps.henrique@gmail.com
5Especialista em Educação Física escolar pela faculdade de Vitória, e-mail: michaelferiresantos@gmail.com