REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202505311238
Matheus Bouchabki Morais1
Rafael Ademir Oliveira de Andrade2
RESUMO
Este trabalho pretendeu aditar uma perspectiva crítica e fundamentada ao debate contemporâneo sobre a dosimetria da pena, destacando a importância da clareza e da uniformidade nas decisões judiciais. Para tanto, teve como objetivo geral analisar como a dosimetria da pena é abordada na legislação e na prática judicial brasileira, além de discutir a problemática da insegurança jurídica que dela resulta. O presente artigo se caracteriza como uma pesquisa qualitativa, empregando o método hipotético-dedutivo, além de contar com uma abordagem bibliográfica e uma pesquisa documental. Essa estrutura visa verificar a situação-problema, permitindo assim a identificação de padrões nas decisões judiciais e contribuindo para o debate acerca da necessidade de uma maior harmonização na aplicação das penas. Neste estudo, foram analisadas objeções a entendimentos já consolidados que se mostram incompatíveis com o ordenamento jurídico, destacando-se a necessidade de modulação das decisões vinculantes e a aplicação de técnicas para sua superação. Portanto, para estabelecer normas verdadeiramente justas e eficazes em relação à aplicação de penas, é fundamental avaliar se a discricionariedade atribuída aos juízes não acaba por esconder lacunas legislativas, que foram tentadas, mas não preenchidas, pela jurisprudência. Para isso, é essencial que haja um diálogo contínuo e produtivo entre doutrinadores, magistrados e legisladores, bem como com a sociedade, promovendo o entendimento mútuo das dificuldades e necessidades envolvidas.
PALAVRAS-CHAVE: Dosimetria da pena. Decisões judiciais. Insegurança jurídica. Prática judicial brasileira.
ABSTRACT
This paper aimed to add a critical and well-founded perspective to the contemporary debate on sentencing, highlighting the importance of clarity and uniformity in judicial decisions. To this end, the general objective was to analyze how sentencing is approached in Brazilian legislation and judicial practice, in addition to discussing the problem of legal uncertainty that results from it. This article is characterized as a qualitative research, employing the hypothetical-deductive method, in addition to having a bibliographical approach and documentary research. This structure aims to verify the problem situation, thus allowing the identification of patterns in judicial decisions and contributing to the debate about the need for greater harmonization in the application of penalties. This study analyzed objections to already consolidated understandings that are incompatible with the legal system, highlighting the need to modulate binding decisions and apply techniques to overcome them. Therefore, in order to establish truly fair and effective rules regarding the application of penalties, it is essential to assess whether the discretion attributed to judges does not end up hiding legislative gaps that have been attempted but not filled by case law. To this end, it is essential that there be a continuous and productive dialogue between scholars, judges and legislators, as well as with society, promoting mutual understanding of the difficulties and needs involved.
KEYWORDS: Sentencing. Court decisions. Legal uncertainty. Brazilian judicial practice.
1. INTRODUÇÃO
A dosimetria da pena é um tema central no Direito Penal, refletindo um dos pilares da aplicação da justiça: a proporcionalidade e a individualização da sanção penal. No contexto jurídico brasileiro, a legislação prevê diretrizes específicas para a imposição de penas, mas, frequentemente, estas orientações são confrontadas com a realidade da prática judicial, onde a interpretação e a aplicação das normas podem divergir amplamente entre os magistrados (SCHEID, 2021; XAVIER, 2019).
A princípio, isso gera uma sensação de injustiça tanto para a sociedade quanto para os operadores do Direito, que se veem sob uma legislação passível de múltiplas interpretações, estas, por sua vez, sujeitas a mudanças que podem advir de casos concretos com nuances específicas (distinguishing) ou pela superação do entendimento anterior por uma nova norma (overrulling). Além disso, há evidências de que a individualização da pena muitas vezes pode albergar arbitrariedades que refletem questões sociais e raciais, “[…] além da precariedade do sistema carcerário, as políticas de encarceramento e aumento de pena se voltam, via de regra, contra a população negra e pobre” (BRASÍLIA, Câmara dos Deputados, 2018).
Essa situação gera uma série de questionamentos sobre a segurança jurídica, a equidade das decisões e a previsibilidade das penas, que se tornam variáveis em razão do entendimento individual de cada juiz. Diante disso, o presente estudo tem como objetivo geral analisar como a dosimetria da pena é abordada na legislação e na prática judicial brasileira, além de discutir a problemática da insegurança jurídica que dela resulta.
Para alcançar esse objetivo, são traçados os seguintes objetivos específicos: (i) Mapear e analisar a legislação pertinente à dosimetria da pena, visando compreender os fundamentos legais, critérios e diretrizes estabelecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro; (ii) identificar e examinar as principais divergências na aplicação da pena entre diferentes tribunais e magistrados; e (iii) avaliar as consequências da insegurança jurídica gerada pela falta de uniformidade nas decisões, com ênfase na proteção dos direitos dos indivíduos.
A justificativa para a realização desta pesquisa reside na necessidade de compreender a complexidade do sistema penal brasileiro, especialmente no que diz respeito às incertezas que permeiam a aplicação das penas. A análise crítica dessa situação é imprescindível, uma vez que a confiança da sociedade no sistema judiciário está diretamente atrelada à percepção de que essas decisões são justas, claras e previsíveis. A insegurança jurídica, que pode resultar de interpretações divergentes, não só impacta o réu, mas também afeta a credibilidade das instituições judiciais.
A problemática a ser abordada neste estudo concentra-se em compreender até que ponto as divergências na aplicação da dosimetria da pena impactam a segurança jurídica no Brasil e quais são as implicações dessa falta de firmeza na aplicação penal. O presente artigo se caracteriza como uma pesquisa qualitativa, empregando o método hipotético-dedutivo, além de contar com uma abordagem bibliográfica e uma pesquisa documental. Essa estrutura visa verificar a situação- problema, permitindo assim a identificação de padrões nas decisões judiciais e contribuindo para o debate acerca da necessidade de uma maior harmonização na aplicação das penas.
Iniciamente é apresentado como deve ser feito o cálculo da dosimetria da pena no sistema trifásico, conforme as diretrizes legais, destacando suas vantagens e limitações, além de explicar a origem da discricionariedade atribuída ao juiz ao proferir uma sentença penal condenatória e ao estabelecer a pena.
Logo após são apresentados exemplos de incoerências nos tribunais, assim como as divergências de entendimento entre diferentes cortes, que interpretam a legislação de maneiras distintas na hora de dosar a pena. Também se discutirá a necessidade de uniformização por parte dos tribunais superiores e a modulação da jurisprudência e dos precedentes, especialmente os que vinculam outras instâncias, finalizando com uma análise das críticas, resultados e debates gerados por estudiosos sobre a abordagem dos julgamentos.
Por último, são discutidas as causas e os efeitos da arbitrariedade e sua relação direta com aspectos estruturais da sociedade. Ao avaliar os dados jurisprudenciais coletados e as críticas doutrinárias que alimentam o debate sobre o tema, este trabalho busca propor soluções viáveis para minimizar e resolver os conflitos de interpretação que podem prejudicar o adequado funcionamento da justiça. Assim, este trabalho pretendeu aditar uma perspectiva crítica e fundamentada ao debate contemporâneo sobre a dosimetria da pena, destacando a importância da clareza e da uniformidade nas decisões judiciais.
2. DOSIMETRIA DA PENA: SISTEMA TRIFÁSICO DA APLICAÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE
A dosimetria da pena consiste em calcular a sanção penal por meio de um método trifásico, que divide a pena em três etapas para se chegar à decisão final, determinando qual será a pena, qual o regime a ser aplicado e quanto tempo o condenado deverá cumprir. Portanto, é fundamental ressaltar que sua aplicação deve ocorrer de maneira humana e justa, considerando que os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal também são garantidos aos detentos.
A pena é aplicada a um crime que está claramente previsto no Código Penal ou em uma legislação específica e possui três objetivos: o de retribuição, que consiste em a pessoa que cometeu um crime receber uma sanção por sua conduta inadequada; o de prevenção, que busca evitar que o delito ocorra, uma vez que o indivíduo tem consciência de que será punido e, além disso, sua punição pode servir de exemplo para dissuadir outros de cometerem o mesmo ato; e, por fim, a ressocialização, que abrange a função educativa da pena, pela qual se espera que o indiciado esteja apto a reintegrar-se à sociedade após cumprir sua pena, visto que a perpetuidade da pena é proibida no Brasil (MASSON, 2019; NUCCI, 2022).
Além das diversas modalidades de punição, como multa e penas restritivas de direitos, quando se fala em pena privativa de liberdade, o Brasil adota um sistema trifásico de aplicação de pena, cujas diretrizes estão explicitamente descritas no Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/40), contendo orientações a serem seguidas pelo juiz ao proferir a sentença.
Inicialmente, é determinado o crime e a respectiva pena em termos abstratos – ou seja, a pena mínima e máxima prevista para o delito – que servirá de base para o cálculo. Na primeira etapa do sistema de dosimetria, são consideradas as oito circunstâncias judiciais dispostas no artigo 59: a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do réu, as circunstâncias e consequências do crime, além do comportamento da vítima.
Essas circunstâncias são avaliadas de forma positiva ou negativa, resultando na chamada “pena-base”. Na sequência, se existirem, serão aplicadas as agravantes, como a reincidência (art. 61, inc. I), ou as atenuantes, como a confissão espontânea (art. 65, inc. III, alínea “d”), na segunda fase da dosimetria. Por último, o juiz verifica a existência de causas que possam aumentar ou diminuir a pena, conhecidas como majorantes ou minorantes, que constituem as últimas possibilidades de alteração da pena (BRASIL, 1940; NUCCI, 2022).
Conquanto esse sistema tenha a virtude de eliminar as discussões, até então existentes no Brasil e na doutrina comparada, ele complica muito as coisas, pois, frequentemente, pensa-se na necessidade de se construir, por primeiro, uma escala abstrata, e, em seguida, determinar a pena dentro dela. E isso tem alguns inconvenientes lógicos, que pode ocorrer quando a terceira etapa remeta novamente a uma revisão ou reavaliação da primeira, particularmente, quando se trata de determinar a categoria da pena aplicável, uma vez que a escala normal pode estabelecer uma pena cuja quantidade não permita sua substituição, e, logo em seguida, como decorrência de uma escala alterada, isso se torna possível. Por outro lado, frequentemente se torna difícil estabelecer a pena-base no caso concreto, pois, às vezes, deve-se imaginar resultados ou efeitos que não tinham ocorrido, como no caso da tentativa (ZAFFARONI, 2021, p. 979-980.)
É importante destacar que as circunstâncias judiciais, também conhecidas como inominadas, serão consideradas apenas na ausência de qualificadoras, privilégios, agravantes ou atenuantes genéricas, além de não configurarem causas de aumento ou diminuição da pena. Essas últimas categorias têm prioridade, pois são definidas de forma explícita na legislação, tornando-se, portanto, subsidiárias (MASSON, 2019).
Outro aspecto significativo é que, embora na primeira e segunda fase da dosimetria a pena seja limitada ao mínimo e máximo previstos para o delito, na terceira fase a presença de causas de aumento e diminuição pode levar a uma pena que não se mantenha necessariamente dentro desses limites, podendo ser aumentada ou reduzida além do que a lei prevê (MASSON, 2019; NUCCI, 2022).
Essa questão é objeto de controvérsia na doutrina e já foi amplamente debatida na jurisprudência. Atualmente, há um entendimento consolidado por meio da Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, cuja redação será analisada em um tópico específico desta pesquisa.
As sanções mínimas e máximas para cada crime são estipuladas ao longo do Código Penal e são proporcionais à gravidade do ato infracional, assim como ao impacto que causa ao bem jurídico protegido. Conforme Beccaria (2010, p. 42), essas penas devem refletir a seriedade da ofensa de forma que esses individuos “inclinados ao crime” não vejam como vantajoso o cometimento de crime mais grave, “maiores” são aqueles que tendem à “destruição da própria sociedade” e os menores seriam meras “ofensas feitas a particulares”.
Esse fato é considerado um aspecto positivo, uma vez que, ao se avaliar um criminoso habitual, que reincide diversas vezes, em comparação a um réu primário com bons antecedentes, mesmo que ambos tenham cometido o mesmo crime, a pena aplicada será diferente. O réu primário terá uma vantagem em relação àquele que comete delitos de maneira frequente ou de forma profissional “[…] Se as penas forem matematicamente aplicadas, somente com critérios objetivos, até mesmo entre primários, sem antecedentes, haverá injustiça, pois os comportamentos de ambos, no cometimento do mesmo crime, podem ser totalmente diversos” (NUCCI, 2022, p. 689).
Por outro lado, essa mesma autonomia para avaliar um caso e definir a pena de forma individual pode gerar diversas dúvidas e contestações, especialmente quando realizada de maneira inadequada e desrespeitosa em relação à jurisprudência e à legislação.
O Brasil vive um sistema jurídico esdrúxulo. Os juízes julgam sem se preocupar com o que foi decidido anteriormente. Não é incomum casos semelhantes serem julgados de forma diferente. Cada juiz tem a sua visão particular do direito e reproduz no seu julgado esta particularidade. As partes ficam à mercê de uma “roleta judicial”, com flagrante insegurança jurídica. Além disso, quando buscam julgados anteriores o fazem sem se preocupar com os fatos que foram objeto do processo, julgado com base na ementa, exclusivamente. Ou seja, em regra, não se preocupam com os precedentes e, quando fazem, não os aplicam corretamente (PRIMENTEL, 2015, p. 195).
No que diz respeito à dosimetria da pena, quanto mais subjetivo for o critério, maior será o espaço para interpretações variadas. Ao abordar os antecedentes criminais, há certo nível de objetividade. No entanto, existem outros fatores que possuem uma alta subjetividade interpretativa, como a personalidade do agente. Avaliar essa característica na imposição da pena é uma tarefa complexa, pois requer que o juiz faça juízos de valor que transcendem o âmbito jurídico, envolvendo conhecimentos de outras áreas do saber (SCHEID, 2018).
2.1 A DISCRICIONARIEDADE ATRIBUIDO AO SENTENCIANTE E AS DIVERGÊNCIAS NA VALORAÇÃO DA PENA PROVENIENTE DELA
A Lei nº 4657/42, comumente chamada de Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), serve como referência em diversas áreas do Direito. Essa legislação busca proporcionar ao juiz uma autonomia decisória que não se restringe apenas ao texto da lei, uma vez que é natural que em várias situações existam lacunas jurídicas.
A legislação prevê no artigo 4º “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” (BRASIL, 1942). Nesse sentido, em relação à dosimetria da pena, considerando que a legislação não especifica de forma precisa a quantidade da pena ou define os fatores a serem considerados ao aplicá-la, a LINDB orienta o juiz a fundamentar sua decisão com base em analogia, costumes e princípios.
Contudo, essa abordagem pode levar a divergências entre diferentes juízes e tribunais, além de possíveis contradições com a própria legislação. Atualmente, por exemplo, existe um debate sobre a relevância das circunstâncias relacionadas à personalidade do agente e à conduta social, com muitos magistrados desconsiderando esses aspectos, uma vez que são de difícil identificação apenas através da análise dos autos do processo. Isso demanda um grande esforço não apenas do juiz, mas de todos os participantes do processo (NUCCI, 2022).
Nesta senda, é aplicável à valoração da Personalidade do agente a mesma crítica feita à Conduta Social. Uma vez que, não havendo no processo, até a sentença condenatória, o laudo criminológico necessário à verificação de sua medida, seria por meio da aplicação do contraditório dinâmico que se tornaria possível apresentar o referido laudo para que o magistrado valore a circunstância fundamentando-se em elementos aptos a configurá-la, e não em meras especulações sobre a agente do fato (XAVIER, 2019, p. 37).
Dentro dessa mesma perspectiva, alguns autores argumentam a favor da abolição de diversas circunstâncias que influenciam a valoração da pena, enfatizando a confusão causada pelas variáveis presentes no artigo 59 do Código Penal, devido à subjetividade que as envolve.
Diante disso, personalidade e conduta social, por violarem à materialização do fato, devem ser removidos da fixação da pena-base. A mesma solução deve ser tomada quanto aos critérios “circunstâncias, motivos e consequências do crime”, por traduzirem-se no juízo de culpabilidade. Já o comportamento da vítima é circunstância inócua, sob qualquer prisma que seja vislumbrada, sem distanciar-se de considerá-la culpabilidade, entendida esta como grau de reprovabilidade da conduta (SCHEID, 2018, p. 96).
Ainda assim, apesar de todas as críticas e reconhecendo que as circunstâncias judiciais, muitas vezes subjetivas, podem perder sua relevância devido à dificuldade de serem avaliadas e relacionadas aos elementos contidos nos autos do processo, Guilherme Nucci, ex-juiz e então desembargador, destaca que não se pode simplesmente desconsiderar a lei por conveniência ou descontentamento.
Se, um dia, o legislador resolver transformar a fixação da pena num universo puramente objetivo, basicamente matemático, haveremos de aplicá-lo também. O que não pode acontecer, enquanto isso, é o desprezo pela personalidade e outros elementos pura e simplesmente, porque não se aprecia esse dado legal na individualização da pena. A doutrina pode muito, mas não pode tudo. Negar a aplicação da lei, pura e simplesmente, sem tomar atitudes práticas de questionamento aos órgãos judiciários competentes é lamentável (NUCCI, 2022, p. 708).
Além disso, para complicar ainda mais a questão, não há um acordo sobre a necessidade de certas circunstâncias judiciais, e também há discussão sobre a quantidade de pena a ser imposta. O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul adota um critério chamado “pena média”. Na Apelação Criminal n. 0001553- 07.2021.8.12.0012, o relator do acórdão menciona em sua ementa que esse critério é uma fração equitativa “que leva em consideração as oito circunstâncias judiciais igualmente, motivo pelo qual a fração de exasperação deve ser 1/8 do intervalo abstrato da pena prevista no tipo, partindo do mínimo legal” (BRASIL, Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 2023, p. 1).
Para tanto, parece-nos o melhor entendimento o método de divisão do espaço entre o termo médio e o mínimo legal pelo número de circunstâncias judiciais existentes (oito) e multiplicação deste resultado pelo número de vetores considerados negativos ao réu no caso concreto, cabendo ainda liberdade ao julgador para não se restringir à mera matemática, mas sempre que optar por se afastar dela, atrai para si um ônus maior de fundamentação. Esse método restringe a possibilidade de arbitrariedade sem, contudo, limitar o princípio da individualização da pena (CENTENO, 2019, p. 71).
Ao considerar de maneira equilibrada as oito circunstâncias judiciais estabelecidas no artigo 59 do Código Penal, a “pena média” se apresenta como uma alternativa eficiente, pois utiliza o intervalo teórico entre o mínimo e o máximo da pena. Por exemplo, se um crime tem pena de detenção que varia de um a nove meses, esse intervalo teórico é de oito meses. Dividindo esse intervalo pelo número de circunstâncias, que são oito, resulta em um aumento de um mês de pena para cada circunstância judicial negativa. Portanto, se o réu não tem nenhuma circunstância, a pena permanece em um mês; se ele possui maus antecedentes, isso eleva para dois meses; se há antecedentes e as consequências foram desfavoráveis, a pena sobe para três meses e assim por diante (BRASIL, Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 2023).
No caso do crime de tráfico de drogas, a dosagem da pena apresenta uma particularidade na primeira fase da dosimetria. A Lei de Tóxicos, ou Lei de Drogas (Lei nº 11.343/09), em seu artigo 42, determina que, além das circunstâncias judiciais, devem ser consideradas mais duas variáveis: a natureza e a quantidade da droga. Assim, as oito circunstâncias passam a ser dez, fazendo com que a fração aplicada ao intervalo de pena abstrata, que era de 1/8, se transforme em 1/10 para o aumento da pena referente a cada circunstância judicial negativa. Esse entendimento foi corroborado pela Apelação Criminal nº 0002593-55.2020.8.12.0013 e tem sido repetido no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (BRASIL, Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 2023).
A pena média não se configura como uma norma obrigatória nem impõe um compromisso ao juiz de um determinado tribunal. Contudo, tem demonstrado ser uma diretriz justa e coerente, alinhando-se aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (CENTENO, 2019). A partir da análise das jurisprudências e doutrinas, observa-se que um juiz pode aplicar a pena média para mitigar os efeitos dos maus antecedentes em até 1/8 do intervalo definido, mas pode optar por uma fração ligeiramente maior caso o réu apresente diversos antecedentes negativos, desde que justifique claramente os motivos dessa aumento (BRASIL, Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 2023).
Entretanto, é importante ressaltar que a aplicação da pena média não ocorre uniformemente em todos os estados do Brasil; o Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, se manifestou sobre isso na Apelação Criminal nº 1513937- 23.2019.8.26.0071:
Na esteira do disposto no artigo 42 da Lei 11.343/06, considerar-se-á na fixação das penas, com preponderância sobre o previsto no art. 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto. Assim, a exasperação na primeira fase pela fração de 1/6 se mostra adequada para maior repressão ao crime. Assim, fixa-se a pena-base em 05 (cinco) anos e 10 (dez) meses de reclusão e pagamento de 583 (quinhentos e oitenta e três) dias-multa, no valor mínimo unitário (BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 2023, p. 17).
Diferente do entendimento do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) adota a fração de 1/6 para as circunstâncias previstas no artigo 42 da Lei de Drogas, considerando-as preponderantes em relação às circunstâncias do artigo 59 do Código Penal. Um aspecto adicional que se observa no julgamento mencionado é que não se leva em conta o intervalo entre a pena mínima (5 anos de reclusão e 500 dias-multa) e a pena máxima (15 anos de reclusão e 1500 dias-multa) prevista para o crime de tráfico. O TJSP aumentou a pena com base no mínimo legal, sem considerar a variação existente entre o limite inferior e o superior.
Esta disparidade pode resultar em penas diferentes apenas devido à divergência na interpretação jurídica sobre um ponto ainda não resolvido. Essa situação é ainda mais preocupante, pois a definição da pena-base influencia diretamente as fases subsequentes da dosimetria penal, em virtude da natureza do sistema trifásico, e também impacta a execução penal, o que representa uma violação direta aos princípios democráticos e ao próprio sistema jurídico-político do país.
2.1.1 A relação conflituosa da jurisprudência com a lei
O critério de exasperação da pena-base ilustra a falta de consenso que existe em relação ao cálculo das penas, sendo que outro exemplo desse conflito é a divergência entre a Súmula 231 e a redação da própria lei. O artigo 65 do Código Penal brasileiro estabelece um conjunto de circunstâncias atenuantes, afirmando que são circunstâncias que sempre atenuam a pena e as detalha em seus incisos e alíneas (BRASIL, 1940).
Embora muitos considerem essa súmula ultrapassada e superada, ela continua a ser aplicada reiteradamente pelos juízes.
Apesar de firmado o entendimento de que as atenuantes não reduzem a pena abaixo do mínimo legal, vimos que a discussão ainda se mostra atual e implica em sérias violações ao direito brasileiro, inclusive, ferindo direitos subjetivos dos réus, como o direito à correta individualização da pena. […] Assim, colocamos em contraposição o entendimento que embasa a manutenção do enunciado de súmula com vários posicionamentos contrários a tal enunciado, o que permitiu concluir que existem muito mais argumentos no sentido de superação da súmula, que de manutenção (OLIVEIRA, 2013, p. 58).
A crítica à súmula é válida, pois ela contraria a legislação ao proibir a diminuição da pena na segunda fase, mesmo quando o réu, sem circunstâncias negativas na pena-base, mantém a pena no mínimo legal, mesmo possuindo atenuantes. Essa incongruência está em desacordo com o que estabelece o Código Penal, que usa o advérbio “sempre” para indicar que, na presença de qualquer uma das atenuantes listadas, a pena deve ser reduzida.
2.2 CONSEQUÊNCIA DA PENA NA EXECUÇÃO PENAL
O Código de Processo Penal (Lei nº 3.689/41) estabelece as diretrizes para o processo durante a fase de conhecimento, que se encerra com a prolação da sentença definitiva. Após essa etapa, inicia-se o processo de execução penal regulado pela Lei nº 7.210/83, onde o cumprimento parcial da pena pode permitir que o réu usufrua de certas benesses, tais como saídas temporárias, progressões de regime ou até mesmo o livramento condicional (BRITO, 2022).
Como já mencionado anteriormente, a punição aplicada a um mesmo criminoso por um delito pode variar não apenas em função das circunstâncias do crime, mas também devido à jurisdição em que ocorreu. Por exemplo, se A comete um crime cuja pena mínima é de um ano e máxima de dois anos, e possui uma condenação anterior (maus antecedentes), o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul determinará uma pena-base de um ano (mínimo legal) acrescida de 1/8 do intervalo previsto, resultando em 45 dias adicionais. Assim, sem considerar atenuantes, agravantes ou outras variáveis, a pena final seria de um ano, um mês e quinze dias (BRASIL. Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 2023).
Em contraste, se A cometer o mesmo crime em outra jurisdição, como no Tribunal de São Paulo, os maus antecedentes podem ser avaliados de forma diferente, considerando uma fração de 1/6 do mínimo legal. Nesse caso, a pena mínima somada a 1/6 de um ano resultaria em uma pena total de um ano e dois meses, que é quinze dias a mais do que o cálculo realizado anteriormente (BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 2023).
3 JURIMETRIA: O ESTUDO DA JURISPRUDÊNCIA
No que diz respeito à segurança jurídica, tanto os profissionais do Direito quanto a sociedade em que esse Direito se aplica esperam previsibilidade nas normas e estabilidade nas relações estabelecidas pela própria legislação. Embora as normas não sejam imutáveis, elas precisam ser justificadas e plausíveis, e o processo de sua alteração deve ser conduzido de forma a modular seus efeitos, garantindo que as mudanças passem a valer a partir de um determinado momento (RIBEIRO, 2010).
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) determina um prazo de quarenta e cinco dias para que uma nova lei entre em vigor, contados a partir da data de sua publicação. Contudo, no que diz respeito a decisões judiciais, uma nova jurisprudência de um tribunal que altera seu entendimento ou que vincula tribunais inferiores não possui um período de vacatio legis (BRASIL, 1942).
Uma mudança abrupta na jurisprudência pode gerar insegurança; por exemplo, se o STJ decidir uniformizar o entendimento do Tribunal de Mato Grosso do Sul sobre a aplicação da pena média, isso pode causar estranhamento entre os profissionais que atuam na jurisdição de São Paulo, que não estão familiarizados com essa abordagem e precisarão se adaptar a ela. Por outro lado, o Código Penal estabelece que, se uma nova norma for benéfica, seus efeitos retroagirão a favor do réu, enquanto uma nova norma que seja prejudicial não terá efeito retroativo, independentemente de ser oriunda de uma lei ou de jurisprudência (NUCCI, 2022).
O Poder Judiciário é responsável por interpretar as leis elaboradas pelo Legislativo. No entanto, ao aplicar essa interpretação a um caso concreto, o juiz pode, na prática, acabar por criar uma norma “nada mais lógico então que as normas veiculadas pelo Poder Judiciário sejam capazes de gerar expectativas e, por conseguinte, orientar o sentido a ser tomado pelos jurisdicionados em questões similares às já decididas” (RIBEIRO, 2010, p. 6).
Quando um tribunal já possui um entendimento consolidado e repetido sobre determinada questão, o advogado que atua em um processo pode, desde o início, prever qual será a pena aplicada no caso de condenação do réu. “Esta capacidade das decisões judiciais em gerar expectativas ganha ainda mais força quando veiculada, em casos idênticos, de modo uniforme e repetidas vezes. Nessa hipótese forma-se a jurisprudência” (RIBEIRO, 2010, p. 6).
Atualmente, muito se discute sobre jurimetria, que é o exame da jurisprudência e das interpretações de diferentes tribunais. Essa nova área do Direito que está emergindo propõe a análise estatística e a reflexão em torno das decisões judiciais.
A Jurimetria quebra o paradigma alienante que se encontra a ciência jurídica na atualidade propondo um método para a compreensão da realidade social. Esta nova metodologia busca suprir uma lacuna nas pesquisas na área do Direito que hoje consiste, basicamente, na revisão bibliográfica de obras clássicas. O referencial teórico que fundamenta o direito é esquecido nas Faculdades, as quais o resumem à lei, especialmente a positiva, imposta pelo Estado (BARBOSA; MENEZES, 2016, p. 8).
No âmbito do Direito e do Processo Penal, a jurimetria pode desempenhar um papel fundamental ao assegurar transparência e controle na atuação de todos os envolvidos, por meio da previsão, filtragem e análise de dados estatísticos que vão desde os registros de ocorrências criminais até as decisões finais dos tribunais superiores (DE MORAES; DEMERCIAN, 2017).
Os resultados desse tipo de análise podem ser benéficos, contribuindo para a redução de conflitos jurisprudenciais, inclusive fora do contexto penal. Isso se deve ao fato de que a jurimetria pode identificar padrões de decisões em tribunais com relevância similar que necessitam urgentemente de uma uniformização em seus entendimentos conflitantes, através das instâncias superiores. Além disso, essa prática pode incentivar o avanço do conhecimento acadêmico e o aprofundamento no estudo da hermenêutica jurídica, que se refere à interpretação de leis e normas jurídicas.
3.1 JURISPRUDÊNCIA PACIFICADA SOBRE APLICAÇÃO DA PENA E AS CRÍTICAS DECORRENTES
A jurisprudência pacificada refere-se àquela situação em que uma controvérsia já foi resolvida de forma definitiva por um tribunal superior, sendo que essa decisão se torna obrigatória para os tribunais de instâncias inferiores. Essa jurisprudência é considerada estável, embora não seja imutável, e é fruto de debates jurídicos. Quando se alcança esse entendimento, ele pode se tornar um precedente, exercendo influência sobre decisões futuras (MELLO, 2005; PIMENTEL, 2015). Um exemplo significativo de súmula no campo do direito penal, que atua como complemento à lei, é a Súmula 231 do STJ, que estabelece que: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”.
O artigo 65 do Código Penal estabelece que as atenuantes genéricas devem ser sempre levadas em conta na dosimetria da pena. Essa mesma preocupação é refletida na Súmula 545, que afirma que “Quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no art. 65, III, d, do Código Penal”. Isso significa que são estabelecidas condições para a configuração da atenuante de confissão. Ademais, além da objeção legal, surgem dúvidas sobre a necessidade do juiz reconhecer a confissão, mesmo que não a considere para a aplicação da pena. Afinal, se os efeitos penais não são diretamente relacionados à atenuante, o reconhecimento não teria utilidade, exceto para a execução da pena (DE ALMEIDA; DE BRITO, 2022; OLIVEIRA, 2013).
A discussão sobre esse tema não é nova, mas, até hoje, as súmulas mencionadas continuam gerando controvérsias, e a jurisprudência ainda parece distante de alcançar um consenso. Atualmente, muitas decisões ainda se baseiam nas súmulas vigente. Outro posicionamento que tem sido considerado ultrapassado é o da Súmula 444 do STJ: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”.
Isso ocorre porque, na ausência de uma condenação transitada em julgado, não se pode considerar a existência de maus antecedentes na primeira fase da dosimetria, nem mesmo em relação à agravante da reincidência. No entanto, em contrariedade à súmula, diversos julgadores utilizam esses inquéritos e ações penais como indicadores de uma conduta social negativa ou como sinal de que a personalidade do autor tende ao comportamento criminoso. Essas são duas diretrizes bastante controversas previstas no artigo 59 do Código Penal (VIANNA; MATTOS, 2015).
Importante ressaltar que ao taxar a conduta social e personalidade do acusado como desfavoráveis, estar-se-ia concebendo a existência de ideias e valores superiores, que são aqueles adotados pela maioria, num verdadeiro atentado contra a liberdade e a identidade do cidadão. […] Ademais, além de aceitar a intromissão estatal na autonomia moral de cada cidadão, Bitencourt ainda admite a relativização do Princípio da não culpabilidade, ao afirmar que meras acusações possam ser levadas em consideração para majorar sua pena, pois indicativas de sua má-índole. É importante observar que meras acusações não são capazes de ensejar a valoração sequer no critério “antecedentes”, também elencado no art. 59 do Código Penal, sendo imprescindível a existência de condenações transitadas em julgado e inadmissível sua averiguação para fins de constatação da personalidade ou conduta social do agente (VIANNA, MATTOS; 2015, p. 318-319, apud, Bitencourt, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, v. 1, p. 556).
Além disso, é fundamental ter cuidado para não confundir a conduta social com os maus antecedentes, que se restringem ao histórico criminal do réu (MASSON, 2019). No Brasil, tanto o legislativo quanto o judiciário são pautados pelo princípio da não culpabilidade antes do trânsito em julgado da sentença; assim, qualquer pessoa cuja condenação não tenha se tornado definitiva é considerada inocente. Nesse sentido, não se pode punir com base em acusações ou suposições, mesmo que essas sejam consideradas circunstâncias judiciais.
É igualmente importante evitar a dupla valoração de um mesmo fato, tratando- o tanto como conduta social quanto como mau antecedente, o que caracterizaria o inaceitável bis in idem ou seja, a punição dupla pelo mesmo ato, o que é claramente proibido pela legislação brasileira. (MASSON, 2019).
4 INCIDÊNCIA DO DISTINGUISHING E OVERRULING
Com o surgimento de conflitos jurisprudenciais e considerando que o Direito se configura como uma ciência social em constante transformação, torna-se essencial que ele seja passível de adaptação por meio de métodos que superem entendimentos antiquados. Não se busca a adoção de normas instáveis, mas é fundamental que elas reflitam a evolução da sociedade. Ou seja, embora as normas não possam ser arbitrárias e volúveis, devendo sempre observar a isonomia e a segurança jurídica, também não podem ser rígidas e imutáveis (MELLO, 2005; PIMENTEL, 2015).
Quando se trata das técnicas de superação do precedente, pode-se afirmar que elas não só equilibram o sistema de precedentes como também garantem a evolução do direito e a qualidade das decisões. Essas técnicas permitem a flexibilidade do ordenamento jurídico ao abandonar o precedente que, em determinado momento histórico, mostrouse ultrapassado ou injusto e, assim, é promovida a segurança jurídica (PIMENTEL, 2015, p. 122).
Uma das abordagens mais comumente utilizadas nas decisões judiciais é o distinguishing (do inglês: distinguir ou diferenciar). Essa técnica se refere a uma exceção a uma regra estabelecida, ocorrendo quando existe um entendimento consolidado que não se aplica ao caso específico em questão, devido ao fato de que a matéria em análise é distinta daquelas previamente entendidas. Nesse cenário, o precedente ou a norma não são pertinentes ao caso concreto em razão de “fatos relevantes” ou da “lógica da decisão e de sua fundamentação” que é essencialmente diferente (MELLO, 2005, p. 189).
Outra técnica utilizada, que representa uma forma comum de superar precedentes ou jurisprudência simples, é o overruling (do inglês: revogar ou anular). Essa situação ocorre quando uma regra se torna obsoleta ou inexequível por quaisquer motivos. Assim, o entendimento anteriormente consolidado deixa de ser aplicado em virtude da promulgação de uma nova lei ou por um novo entendimento, como no caso do surgimento de uma nova súmula mais atual, o que leva um tribunal a reconsiderar os seus métodos de julgamento. Nesse contexto, a interpretação anterior é completamente anulada – denominado overruling – ou parcialmente – chamada de overriding, que é uma variação do overruling (MELLO, 2005).
Por exemplo, as súmulas mencionadas anteriormente, se forem declaradas superadas ou inconstitucionais, podem resultar em diversas situações de overruling e overriding.
Mudando-se o entendimento dos Tribunais Superiores sobre determinado tema, superando-se o precedente judicial, em virtude do próprio amadurecimento jurisprudencial, tal fato, se for mais benéfico ao condenado, deve ser aplicado ao caso penal, mesmo sem previsão expressa em legislação específica. […] Só com a aplicação do overruling será possível realizar o acesso à justiça visto em seu conteúdo material (PIMENTEL, 2015, p. 79).
Certamente, a segurança jurídica é um dos principais alicerces da justiça, e não é simples alterar um entendimento que já está consolidado. É necessário avaliar as consequências que essa mudança traria para casos previamente decididos, ou se seus efeitos se restringiriam ao futuro.
4.1 OS EFEITOS DA RETROATIVIDADE E IRRETROATIVIDADE NAS ALTERAÇÕES LEGAIS EM MATÉRIA PENAL
Diferentemente das leis processuais penais, as leis penais têm efeito retroativo quando favorecem o réu e efeito irretroativo quando lhe são desfavoráveis. Isso implica que qualquer disposição que beneficie o réu deve ser aplicada a casos anteriores à promulgação da norma (NUCCI, 2022). Em outras palavras, “a lei penal produz efeitos a partir da data em que entra em vigor. Daí deriva a sua irretroatividade: não se aplica a comportamentos pretéritos, salvo se beneficiar o réu (CF, art. 5º, XL)” (MASSON, 2019, p. 101).
Embora o Código mencione de forma clara a retroatividade da lei, a jurisprudência, devido ao seu processo de elaboração e publicação ser consideravelmente mais ágil, tende a ser mais rápida. Nesse cenário, surge a questão de como lidar com uma sentença condenatória em relação à dosimetria da pena (uma questão penal), levantando a dúvida se a nova norma deve ser aplicada apenas a partir daquele momento ou se deve ser retroativa aos casos já existentes. A aplicação retroativa poderia demandar uma reavaliação de todas as condenações em andamento ou já decididas, incluindo aquelas em que a pessoa já cumpre pena, o que parece ser uma tarefa inviável (MELLO, 2005; PIMENTEL, 2015).
Embora a coisa julgada mereça total proteção do ordenamento jurídico, em alguns casos excepcionais, o overruling demonstra claramente a superação do entendimento jurisprudencial, sendo uma ofensa à liberdade a mantença da condenação criminal. Nestes casos, a proteção à coisa julgada não se justifica pela ofensa à liberdade ambulatorial, bem com, em última análise, ao próprio sentimento de justiça (PIMENTEL, 2005, p. 14).
O Código Penal prevê uma solução para essas situações por meio do instituto da Revisão Criminal, que permite a reanálise da sentença condenatória e de todo o processo judicial. Uma das situações que permite essa revisão é a promulgação de uma nova norma que seja benéfica ao réu, com efeitos retroativos.
Essa é a única forma, exceto no caso de habeas corpus, para modificar uma condenação definitiva, e, normalmente, a reavaliação da condenação não é feita de ofício; cabe ao Poder Judiciário ser instado a tomar essa ação por meio da Revisão Criminal. Contudo, quando a matéria envolve questões de interesse público, não é necessário que o réu entre com a ação, pois os efeitos retroativos da legislação mais favorável ao réu se aplicam automaticamente, ou seja, sem a necessidade de solicitação pela parte interessada (ZAFFARONI, 2021).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As questões relativas aos métodos procedimentais na dosimetria das penas, especialmente aquelas que envolvem a discricionariedade dos juízes, evidenciam as falhas do ordenamento jurídico em fornecer diretrizes claras para o cálculo penal sem comprometer a individualização da pena.
Os desafios mais significativos estão relacionados à interpretação dos critérios estabelecidos no artigo 59 do Código Penal, que muitas vezes apresenta circunstâncias judiciais intangíveis e subjetivas, além de eventuais lacunas que levam a diferentes resultados nos tribunais. Embora uma simples menção a critérios de aumento para a pena-base possa servir como um ponto de partida, é lamentável que o Legislativo permaneça inativo nesse cenário.
Ademais, é importante ressaltar que o Código Penal já conta com mais de oitenta anos e, em muitos aspectos, encontra-se obsoleto. As críticas às circunstâncias judiciais mencionadas alegam que aspectos como a personalidade do agente e sua conduta social precisam ser repensados, indicando a urgência de uma reformulação legislativa na área da dosimetria penal.
Outro ponto crucial reside nas lacunas legais que conferem ao julgador um espaço de discricionariedade excessiva. Essa situação nem sempre resulta de atividades judiciais ou legislativas, mas é frequentemente originada por falhas nos sistemas e métodos jurisprudenciais existentes.
A superação de precedentes, por meio das técnicas de distinguishing e overruling, representa uma alavanca para adaptar o Direito às transformações sociais e jurídicas. Nesse sentido, a Revisão Criminal emerge como um recurso imprescindível para a reavaliação de cálculos penais em condenações já assentadas.
Independentemente disso, qualquer mudança em normas aplicáveis deve ser disponibilizada de forma equânime a todos os condenados, mesmo que isso implique a nulidade de determinados processos. Esse entendimento não representa um impede do funcionamento adequado do ordenamento jurídico, nem vai de encontro à coisa julgada, pois a essência do Direito é buscar a justiça, e o próprio Código contempla a possibilidade de Revisão Criminal.
Em resumo, a introdução da jurimetria como ferramenta analítica no Direito Penal se revela vital para entender e reduzir conflitos interpretativos, possibilitando alcançar melhores soluções em reformas legislativas.
Portanto, para estabelecer normas verdadeiramente justas e eficazes em relação à aplicação de penas, é fundamental avaliar se a discricionariedade atribuída aos juízes não acaba por esconder lacunas legislativas, que foram tentadas, mas não preenchidas, pela jurisprudência. Para isso, é essencial que haja um diálogo contínuo e produtivo entre doutrinadores, magistrados e legisladores, bem como com a sociedade, promovendo o entendimento mútuo das dificuldades e necessidades envolvidas.
REFERÊNCIAS
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BRASIL, Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Apelação Criminal n. 0000032- 69.2022.8.12.0019. EMENTA: Apelação Criminal. Recurso da defesa. Tráfico de drogas. Pedido de Absolvição por insuficiência de provas. Conjunto probatório firme e coeso. Condenação mantida. Tráfico privilegiado. Não reconhecimento. Recurso. Confissão espontânea. Redução da pena intermediária. Fração 1/6. Devida. Interestadualidade. Majorante mantida. Detração da pena. Regime fechado. Mantido. Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Indevida. Prisão domiciliar. Matéria do juízo da execução da pena. Recurso do réu Luiz conhecido e improvido. Recurso dos réus Ademir e Josiane conhecido e parcialmente provido. Ponta Porã, 3ª Câmara Criminal, Relator: Des. Jairo Roberto de Quadros. Data do Julgamento: 15/12/2023, Data da Publicação: 19/12/2023. Disponível em: https://esaj.tjms.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=1499408&cdForo=0. Acesso em 25 abril. 2025.
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1 Matheus Bouchabki Morais graduando do curso de Direito do Centro Universitário São Lucas, 2025. Email: Bouchabkimatheus@gmail.com.
2 Rafael Ademir Oliveira de Andrade, Orientador deste artigo e professor do Curso de Direito do Centro Universitário São Lucas, 2025. Email: rafael.andrae@saolucas.edu.br.