DOS PENSADORES DO ESTADO MODERNO OCIDENTAL À GOVERNANÇA ATUAL: ESTUDO COMPARATIVO DE ARISTÓTELES, MAQUIAVEL, HOBBES, LOCKE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102501250805


Danielle Piacentini Stivanin[i]
Daniel Piacentini Stivanin[ii]


RESUMO

Este artigo analisa as teorias de Aristóteles, Maquiavel, Hobbes e Locke aplicadas à governança contemporânea. O artigo busca entender a evolução do conceito de Estado, desde o estado de natureza até o estado civil, e suas contribuições na formação do Estado moderno. Nesse contexto, o conceito de governança é abordado como uma resposta aos desafios enfrentados pelo Estado e pela administração pública nos tempos atuais. O objetivo é conectar essas ideias filosóficas com as demandas por uma governança mais participativa e eficiente.

Palavras-chave: Estado, Contrato Social, Poder, Soberania, Direitos. Governança, Transparência, Participação Cidadã

ABSTRACT

This article analyzes the theories of Aristotle, Machiavelli, Hobbes and Locke applied to contemporary governance. The article seeks to understand the evolution of the concept of State, from the state of nature to the civil state, and its contributions to the formation of the modern State. In this context, the concept of governance is approached as a response to the challenges faced by the State and public administration in current times. The objective is to connect these philosophical ideas with the demands for more participatory and efficient governance.

Key words: State, Social Contract, Power, Sovereignty, Rights, Governance, Transparency, Citizen Participation.

1. INTRODUÇÃO

O conceito de Estado ainda é impreciso e é comum confundirmos Estado com governo (Pereira, 1995). Muito embora persista tal divergência é inegável que as contribuições filosóficas têm contribuído com diferentes visões do papel do Estado ao longo dos séculos. Para tanto, temas como a formação de instituições políticas e a consolidação do poder soberano foram alçados a temas centrais para pensadores como Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Locke.

Nesse contexto, este artigo almeja analisar tais ideias e como elas contribuíram com as bases do Estado Ocidental Moderno, sobretudo com relação à atributos conferidos ao Estado como soberania, legitimidade e capacidade de garantir a paz e a justiça entre os indivíduos. Para tanto, busca-se correlacionar os pensamentos dos autores clássicos do Estado com os conceitos de governança, que nos tempos contemporâneos, vai além da administração pública eficiente e do controle estatal.

Ademais, o artigo também pretende desenvolver uma crítica à governança e à evolução do Estado a fim de trazer uma reflexão sobre as divergências entre teoria e a prática. A temática desta investigação se desenvolve em torno do fato de que a governança moderna busca criar ambientes políticos nos quais o poder é exercido de forma colaborativa, envolvendo governos, sociedade civil e o setor privado.

Nesse particular, a evolução dessa prática pode ser compreendida à luz dos grandes pensadores da filosofia política, como Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Locke. Suas ideias sobre o poder, o contrato social e o papel do Estado ajudam a assentar as bases das discussões sobre governança na atualidade.

Portanto, a escolha deste objeto de estudo se justifica pela sua relevância no contexto atual de Estado, que vem enfrentando novos desafios impostos pela globalização, pela complexidade das interações sociais e econômicas e pela crescente desigualdade.

2. Aristóteles: Governança e Virtude

Aristóteles, em sua obra “Política”, argumenta que o homem é, por natureza, um ser político, e a formação do Estado (a pólis) é uma consequência inevitável de sua natureza social. Para ele, o Estado surge com o objetivo de promover a vida virtuosa e garantir o bem comum. A organização política é uma extensão da vida ética, e a justiça deve ser o eixo central da ação governamental. Aristóteles vê o Estado como uma comunidade de cidadãos que buscam, coletivamente, a eudaimonia (felicidade), por meio da participação na vida política.

Nessa linha de pensamento Mascaro reforça que (2024, p. 84):

Assim sendo, a vida social, para Aristóteles, não tem por razão simplesmente ser um agrupamento quantitativo que sirva a socorrer os indivíduos em suas necessidades. A vida social tem uma razão mais profunda, que é a própria felicidade da comunidade. As sociedades vistam a um certo bem, que não é só o bem de cada indivíduo particularizado. Ao contrário dos modernos, que dizem que a vida social existe somente para o benefício de cada indívíduo, Aristóteles dirá que a comunidade existe para o benefício social.

Assim, o surgimento do Estado, de acordo com Aristóteles, é resultado natural da sociabilidade humana, na qual famílias e vilas se organizam para formar a pólis. Essa cidade-Estado representa o espaço onde os cidadãos podem viver plenamente e alcançar a vida boa, por meio de uma vida política ativa e ética. Além disso, Aristóteles utilizou sua análise empírica das cidades-Estado gregas para compreender as relações de poder e o desenvolvimento dos sistemas políticos, como destacado por Tierno (2010).

Somado à família, dentro da pólis, para Aristóteles, justiça e amizade constituem a subjetividade do indívíduo:

A amizade, tanto quanto o juto, se perfazem em comunidade, se realizam e se praticam com o outro; a noção de alteridade é precipuamente formativa da essência do significado de amizade, e o mesmo ocorre com o justo. Ao se mencionar a amizade, pressupõe o outro; ao se mencionar a justiça, pressupõe-se também o outro. Daí que o outro participa de toda forma de comunidade à qual o homem possa pertencer, quais, a dos familiares, a dos companheiros de navegação, a dos companheiros de armas. Para cada forma de comunidade, há uma forma diferente de amizade, bem como, até por decorrência do tipo diverso de relação de confiança e interesse, uma forma diferente de justiça. A amizade, na mesma medida da justiça, varia conforme o tipo de comunidade à qual pertença o homem. (Aristóteles, 1999, p. 153).

Entretanto, é importante registrar que Aristóteles é um filósofo que está inserido em um modo de produção escravocrata, daí que suas lições sobre justiça e Estado são destinadas apenas aos cidadãos gregos, havendo, portanto, requisitos que devem ser alcançados pelos indivíduos para que possam usufruir de suas categorias filosóficas e políticas.

Nesse contexto, a legitimidade do Estado está atrelada à sua capacidade de garantir a virtude dos cidadãos, rejeitando-se a ideia de que o poder deva ser concentrado em uma única pessoa ou classe.  O pensador sugere então uma forma de governo mista, onde a aristocracia, a monarquia e a democracia coexistem em equilíbrio.

Aristóteles introduziu a ideia de que o Estado deve servir ao bem comum e ser uma entidade moral que busca a virtude e a felicidade dos cidadãos. Embora o Estado moderno se distancie de sua visão teleológica, a noção de que o governo deve promover o bem-estar da sociedade continua a influenciar as teorias políticas contemporâneas. Portanto, a contribuição aristotélica é fundamental para a compreensão do Estado como uma entidade que não apenas organiza a sociedade, mas que também tem um papel moral e ético em sua condução.

3. Maquiavel: Poder e Pragmatismo

Maquiavel, no século XVI, rompe com a tradição filosófica e aristotélica de que o Estado deve ser guiado por princípios morais. Em “O Príncipe”, ele argumenta que o governante deve focar na manutenção do poder e na estabilidade do Estado, independentemente dos meios utilizados para alcançar esses fins. Para Maquiavel, o sucesso de um governo depende de sua capacidade de manipular as circunstâncias e exercer o poder de maneira estratégica. A moralidade, na visão maquiaveliana, é secundária ao pragmatismo político, sendo o principal objetivo a preservação do Estado.

Assim, Maquiavel apresenta uma visão mais pragmática e realista do Estado. Para ele, o Estado não é uma entidade natural ou ética, mas uma construção humana que deve ser compreendida em termos de poder e sobrevivência. Ele argumenta que o principal objetivo do governante, ou príncipe, é garantir a estabilidade e a segurança do Estado, mesmo que isso signifique empregar meios moralmente questionáveis.

Dessa forma, o conflito entre o povo e os grandes é inevitável, sendo o príncipe o mediador necessário para manter a ordem no Estado. O príncipe deve garantir que seu poder se sustente, independentemente dos meios que precise utilizar (Winter, 2006)​. Maquiavel separa a moral individual da política, afirmando que o governante deve tomar decisões baseadas no bem coletivo, e não em preceitos morais individuais.

Maquiavel ao desassociar a política da moral tradicional, propõe que o governante deve ser astuto e, se necessário, implacável, para manter o poder e proteger o Estado contra ameaças internas e externas. Sua contribuição é essencial para o desenvolvimento do pensamento político moderno, ao introduzir a ideia de que a política deve ser analisada independentemente das considerações morais, focando na realidade do poder.

4. HOBBES: O ESTADO COMO GARANTIDOR DA ORDEM E SOBERANIA ABSOLUTA

Thomas Hobbes é um filósofo da modernidade, tido como marco do Absolutismo. Possui dois livros de grande destaque: Do Cidadão de 1642 e Leviatã – ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, de 1651.

Inserido em um contexto histórico de conflitos internos na Inglaterra, a obra “Leviatã”, apresenta o estado de natureza como um cenário de guerra de todos contra todos, onde a vida seria “solitária, pobre, sórdida, bruta e curta” [1]. Para Hobbes, a formação do Estado é necessária para garantir a segurança e a paz. O contrato social, na visão hobbesiana, é um pacto entre indivíduos que abdicam de sua liberdade natural em troca da proteção oferecida por um soberano absoluto. O Estado, nessa concepção, é uma criação artificial, fruto da razão humana, para garantir a sobrevivência coletiva e a ordem social.

A maior parte daquele que escreveram alguma coisa a propósito das relações públicas ou supõe, ou nos pede ou requer que acreditemos que o homem é uma criatura que nasce para a sociedade. Os gregos chamam-no de zoon politikon; e sobre este alicerce eles erigem a doutrina da sociedade civil como se, para preservar a paz e o governo da humanidade, nada mais fosse necessário do que os homens concordarem em firmar certas convenções e condições em comum, que eles próprios chamariam, então, leis. Axioma este que, embora acolhido pela maior parte, é, contudo, sem dúvida, falso – um erro que procede de considerarmos a natureza humana muito superficialmente. (Hobbes, Do Cidadão, 2002. p. 25).

Ele justifica o poder absoluto do soberano como necessário para evitar o caos e a anarquia, afirmando que qualquer divisão ou limitação do poder soberano resultaria na destruição da ordem social. Nesse contexto, Hobbes foi pioneiro na formulação da teoria do contrato social, que se tornou um dos pilares da fundação do Estado moderno e fundamental para a justificativa da autoridade política e da legitimidade do Estado.

Dessa forma, o surgimento do Estado não seria um processo gradual ou evolutivo, mas sim uma ruptura entre o estado de natureza e a sociedade civil. Essa ruptura é baseada na razão e na necessidade de sobrevivência (medo – homo homini lupus), onde os indivíduos elegem um soberano para garantir a ordem e a paz (Castro, 2017). Ele argumentou ainda que os indivíduos, para escapar do estado de natureza caracterizado pelo caos e pela insegurança, concordam em submeter-se a uma autoridade soberana em troca de proteção.

Vivendo para a satisfação de suas vontades e para o resguardo de seus medos, os homens estariam em conflito permanente. O estado de natureza, assim sentido, é um estado bélico. A conhecida frase de Hobbes aqui então se revela: “não haverá como negar que o estado natural dos homens, antes de ingressarem na vida social, não passava de guerra, e essa não ser uma guerra qualquer, uma guerra de todos contra todos. Ela vai a par da outra conhecida frase sua, de que “o homem é lobo do homem”. (Mascaro, 2024, p. 164).

Entretanto, sua justificativa ao Poder Absoluto influenciou o desenvolvimento de Estados centralizados e poderosos. Embora a teoria de Hobbes justifique o poder absoluto, ela também abriu caminho para discussões sobre os limites do poder soberano e a necessidade de um governo que proteja os direitos dos cidadãos, influenciando tanto o absolutismo quanto as teorias posteriores de governança limitada.

5. LOCKE: O ESTADO COMO PROTETOR DOS DIREITOS NATURAIS E GOVERNANÇA LIMITADA

John Locke (1632-1704), por sua vez, oferece uma visão mais otimista do estado de natureza, onde os indivíduos possuem direitos naturais, como a vida, a liberdade e a propriedade. O Estado surge para proteger esses direitos, e seu poder deve ser limitado pelo consentimento dos governados. Segundo Locke, o Estado não pode ser absoluto e deve operar com base no consentimento dos governados e garantir os direitos naturais, como a propriedade, que são inalienáveis e anteriores à sua criação (Arruda, 2013)​.

Locke, assim como Hobbes, são filósofos que aderem ao empirismo. Rejeitam, assim, qualquer fundamento ideal, ou seja, teorias derivadas de ideias inatas. Locke refuta concepção de que os indivíduos, em suas mais diferentes origens, possam partilhar das mesmas ideias universais. Nesse ponto, assemelha-se a Hobbes no sentido de que não há um direito divino (vindo de Deus) que legitime o Estado. Hobbes, conforme visto, é admite um poder absoluto, porém, sua fonte não é Deus, mas o medo, o estado de natureza. Ao mesmo tempo em que se assemelham, Locke e Hobbes discordam acerca da origem do poder: se para Hobbes, o poder deriva do estado de natureza, Locke entende que o contrato social é aferido a partir de homens livres, não necessariamente submetidos à uma guerra constante, e que diante da possibilidade da guerra, optam por pactuar viver em sociedade.

Diante da origem distinta do contrato social (que não derivado da luta de homens contra homens, mas sim da vontade do ser livre) Locke, ao contrário do absolutismo hobbesiano, introduz a ideia de um governo limitado e dividido em poderes, como forma de evitar abusos de autoridade. O contrato social, para Locke, é um acordo em que o governo tem o dever de proteger os direitos inalienáveis dos cidadãos, sendo o próprio povo a fonte de legitimidade do poder.

Locke é foi um pensador que esteve diretamente envolvido no movimento da Revolução Gloriosa de 1688, a qual, foi a pá de cal do Absolutismo, tendo como ponto culminante, esse movimento político, a declaração do Bill of Righs inglês.

Assim, Locke refuta totalmente a ideia de um poder que venha de Deus, de um poder inato. Para Locke, o poder é fruto de uma construção humana.

 Assim,  o  contrato  social    assume  a  forma  de  um  pacto  de  consentimento  em  que  os  homens concordam  livremente  em  formar  a  sociedade  civil  para  preservar  e  consolidar  ainda  mais  os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. Ressaltando ainda que para  garantir  a  liberdade,  deverá,  neste  Estado,  haver  a  separação  de poderes (legislativo, executivo e federativo), pois só assim se evitaria o absolutismo e possibilitaria maior liberdade  aos  indivíduos.

Ainda imerso em desconfiança com o Estado, prevê direitos naturais que podem ser opostos até mesmo contra o próprio Estado, o qual tem o dever de garantir o contrato social pactuado com seus cidadãos, respeitando-lhes a vida, a propriedade e proporcionando uma vida em paz e segura. Prevê, pois, mecanismo de desconcentração do poder até hoje utilizados na contemporaneidade: legislativo, executivo e judiciário, os quais, mais tarde vieram a influenciar Montesquiet (1689-1755) na criação dos mecanismos de freios e contrapesos.

Sob  esse  arcabouço,  nota-se o  surgimento  de  diferença  entre  o  público  e  privado,  pois  a  sociedade  civil    se  entorna  na  ideia  do  predomínio  do  particular  e  da  propriedade privada,  é  aqui  que  se  dá  a  realização  do  homem.  Mas,  para  a  regulamentação  desses  direitos,  é necessária a existência do mundo político, representado pelo Estado, que assume a função de mediador e regulador, garantindo que os direitos privados e as liberdades individuais sejam respeitados dentro de uma estrutura de leis e normas que visam ao bem comum. Nesse sentido, o Estado atua como um árbitro entre os interesses particulares e coletivos, evitando que os conflitos entre as esferas pública e privada degenerem em caos social.

6. INFLUÊNCIA DOS PENSADORES NO MODELO ATUAL DE GOVERNANÇA

As visões de Aristóteles, Maquiavel, Hobbes e Locke sobre o Estado continuam a influenciar as teorias contemporâneas de governança, especialmente no que diz respeito à legitimidade do poder e à relação entre ética e política.

A concepção de Aristóteles, que vê o Estado como uma comunidade ética voltada para o bem comum, ainda se encontra em discussões sobre a responsabilidade social dos governos e a importância da justiça e da virtude na administração pública.

Em termos de governança, sua abordagem remete à busca por um governo justo, voltado para o bem comum, com cidadãos ativos e virtuosos que participam diretamente da vida política. Nesse sentir, a governança pública é caracterizada pela cooperação entre atores públicos e privados, que trabalham em rede para criar soluções para problemas comuns e implementar políticas públicas eficazes (Buta & Teixeira, 2020).

Por outro lado, a visão pragmática de Maquiavel, que dissocia a política da moralidade tradicional, molda o realismo político moderno e o entendimento de que, em certos contextos, a eficácia e a estabilidade podem exigir decisões difíceis que não necessariamente seguem normas éticas convencionais. Isso é evidente nas práticas de governança que priorizam a segurança e a estabilidade do Estado, mesmo que para isso sejam necessários compromissos éticos.

Já na teoria do contrato social de Hobbes justifica-se a existência do Estado moderno como uma necessidade para evitar o caos e garantir a segurança, o que fundamenta a ideia de que a legitimidade do poder reside na capacidade do Estado de proteger seus cidadãos. No entanto, a máxima de Hobbes na soberania absoluta também levanta questões sobre os limites desse poder, influenciando debates contemporâneos sobre direitos civis, liberdade individual e o papel do Estado na vida dos cidadãos.

A contribuição de Hobbes para a governança reside na ideia de um poder central eficiente que possa coordenar a convivência social e proteger os cidadãos. Contudo, as práticas modernas de governança refinam sua abordagem ao combinar essa necessidade de autoridade com princípios de transparência, responsabilidade e participação cidadã, aspectos que Hobbes não contemplou em sua visão mais autocrática de poder.

Por fim das ideias de Locke observa-se um modelo de governança em que o poder do Estado é limitado e deve respeitar os direitos naturais dos indivíduos, como a vida, a liberdade e a propriedade. O governo, segundo Locke, deve atuar com o consentimento dos governados e ser responsável perante eles, o que introduz a noção de accountability, um princípio essencial da governança moderna que obrigação dos governantes, gestores ou instituições de prestar contas de suas ações, decisões e resultados à sociedade ou a autoridades superiores. Locke também defende a separação dos poderes, como forma de evitar abusos de autoridade, o que forma a base para sistemas democráticos contemporâneos.

Assim, as ideias desses pensadores continuam a fornecer uma base para analisar como os governos modernos podem equilibrar poder, ética e responsabilidade em suas práticas de governança.

7. GOVERNANÇA NO CONTEXTO CONTEMPORÂNEO

No cenário político contemporâneo, a governança vai além da simples administração pública eficiente. Sob esse prisma, ela pode ser caracterizada pela cooperação entre atores públicos e privados, que buscam soluções colaborativas para os problemas sociais e econômicos, com foco na eficiência e transparência (Pereira, 2011).

Portanto, ela envolve a criação de mecanismos que garantam transparência, prestação de contas e participação cidadã. Modelos modernos de governança, como os implementados em democracias avançadas, buscam garantir que o governo atenda às necessidades dos cidadãos e seja responsável por suas ações.

As ideias de Aristóteles sobre o bem comum e a virtude cívica ainda ecoam nas discussões sobre ética na governança. Maquiavel contribui com a noção de eficácia política, especialmente em tempos de crise. Hobbes destaca a importância de um governo forte e centralizado para garantir a ordem, enquanto Locke introduz a limitação do poder do governo e a proteção dos direitos naturais, elementos essenciais para a governança democrática. No .entanto, há de se analisar o contexto apresentado sem olvidar-se à crítica dos autores mencionados.

8. CRÍTICA À GOVERNANÇA E À EVOLUÇÃO DO ESTADO: LIMITES E DISSONÂNCIAS ENTRE TEORIA E PRÁTICA

A trajetória da evolução do Estado, desde as reflexões filosóficas de Aristóteles até as teorias modernas de governança, revela um avanço teórico significativo, mas também aponta para uma série de contradições e desafios. Embora o conceito de governança tenha se expandido nas últimas décadas, destacando-se por valores como transparência, participação cidadã e prestação de contas, a aplicação prática desses princípios nem sempre corresponde às expectativas filosóficas que fundamentaram sua criação.

8.1 O Ideal Versus a Realidade

A filosofia política de Aristóteles, Maquiavel, Hobbes, Locke oferece modelos teóricos para a compreensão do Estado e da governança. No entanto, o fosso entre a teoria e a prática da governança moderna é, muitas vezes, profundo. A proposta aristotélica de um governo orientado pela virtude, por exemplo, é difícil de aplicar em um contexto globalizado, onde os interesses econômicos e políticos frequentemente prevalecem sobre as preocupações éticas. A busca pelo “bem comum”, que deveria ser a base da governança, acaba por ser sacrificada em prol de interesses particulares, especialmente em regimes políticos onde o controle sobre os recursos é centralizado em uma elite governante.

Maquiavel, por sua vez, traz uma visão pragmática e realista sobre a política que, ao mesmo tempo em que é admirada por sua clareza, pode ser criticada por fomentar a legitimidade de práticas autoritárias. Sua defesa do poder pelo poder, independentemente da moralidade, ainda ressoa em muitos regimes políticos, onde a governança é guiada pela manipulação, pela supressão da dissidência e pela perpetuação de uma classe política no controle, longe da ética e da responsabilidade social que deveriam marcar a governança moderna.

8.2 Governança Democrática e Accountability: Um Ideal Longe da Prática

Enquanto Locke defende a ideia de que o governo deve agir em prol dos cidadãos, respeitando os direitos inalienáveis e buscando refletir a vontade geral, a realidade política atual frequentemente se afasta desse ideal. Em muitos sistemas democráticos, há uma crescente desconfiança dos cidadãos em relação às instituições públicas, com crises de representatividade e accountability. Governos que, teoricamente, deveriam ser limitados e responsáveis, muitas vezes encontram formas de contornar mecanismos de controle, criando ambientes propícios à corrupção e à concentração de poder.

A governança contemporânea, especialmente nos contextos democráticos, deveria garantir um equilíbrio saudável entre a autoridade estatal e a participação cidadã. No entanto, mesmo em democracias mais avançadas, vemos uma dificuldade estrutural em promover a verdadeira participação popular. Na prática, vemos um afastamento da população dos processos decisórios, muitas vezes devido à complexidade burocrática e à falta de mecanismos efetivos de participação.

8.3 Governança Global: Entre a Inclusão e a Desigualdade

Outro ponto crítico na análise da governança atual é o desequilíbrio entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento. As teorias de governança que pressupõem inclusão e justiça social enfrentam um cenário global em que as desigualdades estruturais são cada vez mais evidentes.

As teorias clássicas, ao focarem no Estado-nação, pouco consideraram a interdependência global, as cadeias econômicas transnacionais e a crescente influência de corporações no processo de governança. Assim, governança global se torna um desafio em si, com instituições internacionais, como a ONU ou o FMI, muitas vezes acusadas de servirem aos interesses de um grupo restrito de países, em vez de promoverem um verdadeiro equilíbrio de poder e justiça (Kaldor, 2003).

8.4 O Papel do Estado: De Guardião da Ordem a Facilitador Econômico?

Finalmente, a própria função do Estado passou por mudanças profundas, especialmente a partir das reformas neoliberais das últimas décadas. O Estado que, segundo Hobbes e Locke, deveria garantir a segurança e proteger os direitos dos cidadãos, passou a ser visto, em muitos contextos, como um facilitador do mercado. Isso gera um paradoxo: enquanto a governança defende a inclusão social, o papel do Estado na economia globalizada muitas vezes aprofunda as desigualdades, relegando a proteção dos direitos sociais a um segundo plano.

9. CONCLUSÃO

A evolução do Estado ocidental, desde os primeiros filósofos como Aristóteles até os teóricos contratualistas como Hobbes e Locke, demonstra uma transformação significativa na forma como o poder é legitimado e exercido. Cada um desses pensadores contribuiu para a construção do conceito de Estado moderno, oferecendo diferentes perspectivas sobre a relação entre governantes e governados, a ética do poder e a necessidade de uma autoridade central.

No entanto, quando aplicadas ao cenário contemporâneo, as teorias que fundamentam o Estado moderno enfrentam novos desafios impostos pela globalização, pela complexidade das interações sociais e econômicas e pela crescente desigualdade. A ideia de governança, que se desdobra a partir desses princípios, exige uma adaptação constante às demandas de transparência, participação cidadã e responsabilidade. Embora Locke visse a governança como um exercício de poder limitado e responsável, a prática moderna muitas vezes se distancia desses ideais, enfrentando crises de representatividade e accountability.

A crítica à governança contemporânea, portanto, se concentra na disparidade entre os princípios filosóficos que moldaram o conceito de Estado e a sua aplicação no mundo atual. Governança, idealmente, deveria promover inclusão social, justiça e equidade, mas a realidade prática mostra um cenário onde interesses econômicos e políticos frequentemente prevalecem sobre o bem comum. Para que a governança moderna cumpra seu papel, é necessário um retorno aos princípios de ética e participação popular, conforme delineado pelos grandes pensadores, e uma adaptação dessas ideias às demandas e desafios do mundo atual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos. Brasília: Ed. UNB, 1999.

ARRUDA, Andreia Aparecida D’Moreira. A formação do estado moderno sob a concepção dos teóricos contratualistas. Revista do Curso de Direito UNIFOR, Formiga, v. 4, n. 1, p. 51-57, jan./jun. 2013.

BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Estado, sociedade civil e legitimidade democrática. LUA NOVA: Revista de cultura e política, p. 85-104, 1995.

BUTA, Bernardo Oliveira; TEIXEIRA, Marco Antonio Carvalho. Governança pública em três dimensões: conceitual, mensural e democrática. Organizações & Sociedade, v. 27, p. 370-395, 2020.

CASTRO, Susana de. A origem do Estado moderno em Maquiavel e Hobbes. Sofia, Vitória (ES), v. 6, n. 2, p. 13-22, jul./dez. 2017.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2002.

HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

KALDOR, Mary. The idea of global civil society. International Affairs, v. 79, p. 583-593, 2003.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre Governo Civil. Petrópolis: Vozes, 1992.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito 11ª ed., São Paulo: Editora Atlas, 2024.

PEREIRA, Romilson Rodrigues. Governança no Setor Público – origem, teorias, modalidades e aplicações. Revista do TCU, n. 122, p. 122-133, 2011.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

TIERNO, Patricio. Aristóteles, teoria política e história. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo, n. 17, p. 189-202, 2010.

WINTER, Lairton Moacir. A concepção de Estado e de poder político em Maquiavel. Tempo da Ciência, v. 13, n. 25, p. 117-128, 2006.


[1] Hobbes constrói sua filosofia política em franca oposição à tradição filosófica estabelecida, que remonta a Aristóteles. Nos tempos modernos, Hobbes é justamente um dos primeiros a se insurgir violentamente contra o pensamento aristotélico (Mascaro, 2024, p. 162).


[i] ID Lattes: 0262181601078976

[ii] D Lattes: 4985631355196171