REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.12192971
Maria Beatriz Nader1
Renata Rangel Spelta Hackbardt2
RESUMO
Partindo da premissa de que são socialmente construídos, os conceitos de masculinidade e feminilidade encontram-se aptos a indicar os papéis sociais de homens e mulheres na sociedade sendo, ainda, reveladores de uma relação de poder e dominação existentes entre os gêneros masculino e feminino. A forma como os indivíduos se relacionam e as desigualdades que foram historicamente evidentes nos remetem, portanto, ao estudo do patriarcado e dos papéis sociais, sua evolução e, por fim, a eventual permanência de uma discriminação dos espaços públicos e privados. O objetivo do presente trabalho é analisar a influência da dominação masculina na definição dos papéis sociais de homens e mulheres na sociedade. A partir das análises feitas pelos estudos de gênero, pretende-se investigar a importância das estruturas de dominação impostas pelo patriarcado como fatores determinantes no controle do comportamento social feminino e sua manutenção no restrito espaço doméstico para o qual seu destino sempre esteve pré-estabelecido.
Palavras-chave: patriarcado; dominação masculina; papéis sociais.
1 PAPÉIS SOCIAIS DE HOMENS E MULHERES E SUA RELAÇÃO COM O PATRIARCADO
Na contemporaneidade, a adoção do termo gênero reforça o caráter relacional entre o masculino e o feminino. Como bem assinala a historiadora Maria Beatriz Nader, os campos de atuação de cada sexo são definidos a partir dos papéis que a sociedade atribui a homens e mulheres (Nader, 2014. p. 02).
O conceito de papel social foi adotado da literatura e do teatro e assinala comportamentos que os indivíduos exercem de forma contínua e cotidiana. Podemos estabelecer uma analogia com uma peça teatral, onde homens e mulheres são intérpretes que se expressam, de acordo com um roteiro pré-estabelecido, para um público que avalia seu desempenho. Papel social pode ser entendido também como o conjunto de direitos e deveres que determina o status, ou seja, a posição que o indivíduo ocupa na sociedade (Nader 2014, p. 02).
Como a masculinidade e a feminilidade são construções sociais e culturais, não há dúvidas de que são fortemente influenciadas pela educação recebida na infância e por outras influências externas obtidas ao longa da vida. Todo esse processo se principia já com a descoberta do sexo biológico da criança, fator este que se torna determinante na maneira pela qual esse novo ser será tratado pela família e pela comunidade a qual pertencem.
O processo de construção do gênero varia tanto dependendo do tempo histórico quanto do lugar onde o indivíduo está inserido (Hardy, 2001, p.78). De qualquer forma, a identidade de gênero começa a ser desenvolvida de maneira quase universal. Tal identidade é percepção por parte do próprio indivíduo de que pertence a um sexo e não a outro. Já na primeira infância, a pessoa recebe estímulos para reproduzir comportamentos culturalmente compatíveis com seu gênero (Nader, 2014, p. 4). As diferenças biológicas têm, portanto, enorme influência no desenvolvimento psicossocial e na emolduração de comportamentos de homens e mulheres.
Assim, por muito tempo, manteve-se uma construção social segundo a qual as mulheres seriam seres dóceis, frágeis, e sensíveis, o que só reforça seu papel social de esposa e mãe, ao passo que aos homens, o tratamento dispensado é sempre no sentido de reforçar sua força, virilidade e aptidão para exercer liderança e dominação, não só das mulheres como também de outros homens. Para Badinter, ser homem no sistema patriarcal implica não só exercer a dominação sobre as mulheres, mas exercê-la sobre outros homens, numa lógica onde a minoria faz lei para a maioria (Badinter, 1993).
Ao discorrer sobre o tema “natureza feminina”, Carla Pinsky aponta que não parecia haver dúvidas de que as mulheres eram “naturalmente” destinadas ao casamento e à maternidade. Segundo a autora
A família era tida como central na vida das mulheres e referência principal de sua identidade: uma moça solteira era, sobretudo, “a filha”, uma senhora casada, “a esposa”. A dedicação ao lar, decorrência óbvia e inescapável, fazia do papel de “dona de casa” parte integrante das atribuições naturais da mulher. Ainda em termos ideais, a masculinidade era associada à força, racionalidade e coragem, enquanto eram “características femininas” o instinto maternal, a fragilidade e a dependência (Pinsky, 2012, p. 229)
Importantes são as contribuições de Algranti sobre a relação entre o comportamento feminino, o casamento, a família e o confinamento da mulher casada no espaço doméstico. Na história do Brasil Colônia, por exemplo, a autora cita importância do casamento enquanto instituição social com múltiplas funções. Como a história de Algranti, numa colônia de população tão rala, não havia espaço para a vida contemplativa feminina. Embora a presença de religiosos tenha marcado a colonização desde o início, o estabelecimento de congregações de mulheres é bem posterior. Mesmo quando a colonização já ia avançada nos séculos XVII e XVIII, a Coroa procurou manter-se fiel à política de incentivo ao casamento, proibindo, sempre que possível, o surgimento de mosteiros para mulheres, principalmente nas zonas menos povoadas e pouco desenvolvidas (Algranti, 1992).
Nesse sentido, cita-se importante análise da historiadora
O casamento era visto, portanto, não só como uma maneira de aumentar a população, mas de aumentá-la por meio das leis da Igreja Católica, de forma a disciplinar os colonos, torná-los mais assentados, presos aos laços familiares, dificultando sua volta à metrópole. O sacramento do matrimônio ligava-se, assim, à política de povoamento e exploração da Colônia e destinava às mulheres o papel bem nítido de esposas e mães. Como bem esclareceu Mary Del Piore, “O casamento como mecanismo de ordenamento social, e a família como palco para uma revolução silenciosa de comportamentos, fechavam-se em torno da mulher, impondo-lhes apenas e lentamente o papel de mãe devota e recolhida. (Algranti, 1992, p. 78)
Acerca da necessidade de manter o controle sobre o comportamento social feminino, cumpre destacar o fato de que conselhos e advertências sobre a conduta ideal e a necessidade de manter a honra das mulheres sempre existiu. Antes de serem escritos e agrupados em corpos sistemáticos e em textos estatais ou religiosos, com certeza devem ter sido transmitidos oralmente, baseados nas tradições das sociedades e nos papéis que se esperavam que as mulheres desempenhassem no seio familiar e na sociedade.
Na maior parte das vezes, os compêndios de comportamento feminino foram redigidos pelos homens e resumem as imagens ideais que estes possuíam sobre as mulheres. Filósofos, moralistas, sacerdotes e médicos e demais homens de letras ou ciências jamais deixaram de se preocupar com as ações e posturas das mulheres, e exprimiam em seus escritos crenças e dúvidas sobre a natureza feminina; estabeleceram também regras e relacionamento entre os sexos. Mas, embora em menor número, não faltaram mulheres para se preocupar com a questão. (Algranti, 1992, p. 109)
Exemplo disso é o livro de Christine de Pizan, escrito no início do século XV e dirigido às mulheres de todas as origens e classes, que reúne um conjunto de advertências sobre a conduta e a moral femininas. Como os compêndios que a sucederam, ela reflete os valores morais e culturais das sociedade de origem judaico-cristã, nas quais as mulheres deveriam ser submissas aos homens, fiéis e honradas, independentemente do status ou do destino de cada uma (Algranti, 1992).
Isso tudo evidencia como o patriarcado era identificado como fundamento de um sistema sexo/gênero que tinha por objetivo dividir o humano em seres sexuados e, a linha divisória se encontrava na reprodução da mulher que, de modo ambíguo, a marcava como um ser “divino” para dar à luz novos seres humanos, mas com o preço de manter-se eternamente vinculada à função maternidade. Tania Swain em sua obra A invenção dos corpos, apresenta a importância da maternidade na manutenção do sistema patriarcal de controle de corpos e na emolduração dos comportamentos sociais,
Fundadas nas premissas da heterossexualidade e nas matrizes de inteligibilidade do patriarcado, a reificação contínua destas categorias deixa um espaço de significação onde as mulheres não podem “estar no mundo” senão para responder ao masculino, a seus desígnios, para dar-lhe uma descendência. A maternidade é assim seu destino e sua transcendência, a prostituição, a imanência na impureza de seu sexo. (Swain, 2000, pag. 07)
O corpo feminino, confinado no papel de esposa e mãe, revelava um estado de assujeitamento próprio para reproduzir o binário, em um mundo desenhado no masculino que distribuía as tarefas segundo essa modelagem de utilização dos corpos, disserta Swain. Nesse contexto, a instituição “casamento” e seu corolário, a maternidade, marcaram o “ser mulher” no patriarcado, situação que apenas se alterou muito tempo depois, com a urbanização e a crescente ida das mulheres para o trabalho externo. (Swain, 2000)
O que se verifica, nesse contexto de preservação da honra feminina é a importância que se dava à domesticidade. Enquanto a mulher estava presa ao âmbito doméstico, a situação do homem era o oposto. Para ele, o trabalho era a base de sua própria identidade. Segundo Nolasco
Para os homens, o trabalho tem uma dimensão cartográfica, pois define a linha divisória entre as vidas pública e privada, e, ao mesmo tempo, tem uma dupla função para as suas vidas. A primeira é ser o eixo por meio do qual se estruturará seu modo de agir e pensar. A segunda função é inscrever sua subjetividade no campo da disciplina, do método e da violência, remetendo-os a um cotidiano repetitivo. (Noasco, p. 50)
É, pois, o trabalho que define, no universo masculino, a primeira marca de masculinidade, viabilizando sua inserção social e representando a saída do ambiente doméstico. Nas palavras de Nader (2014), o trabalho remunerado é uma função que culturalmente atribui-se ao homem. É o trabalho que constitui a base da respeitabilidade masculina na sociedade, na medida que permite ao homem obter reconhecimento, segurança e autonomia.
Estava claro, portanto, a divisão sexual do trabalho masculino e feminino fundado no patriarcado: à mulher competia ser uma mulher honrada, boa esposa e boa mãe, ao passo que o cônjuge varão deveria cumprir fielmente com o papel de provedor do lar ocupando, assim, os espaços públicos.
2- A DOMINAÇÃO MASCULINA E SUA INFLUÊNCIA NA DEFINIÇÃO DOS PAPÉIS SOCIAIS
As relações de gênero não ocorrem com igualdade e simetria. Elas são permeadas por relações de poder e dominação dos homens sobre as mulheres. No âmbito doméstico e conjugal/amoroso, o ato sexual pode em algumas situações específicas, tornar-se coercitivo e configurar-se como meio eficaz de se estabelecer essa dominação (Nader, 2014, p. 01).
Mas, para que a relação de poder seja efetivada, é necessário que exista um meio que a conduza, que pode ser ideológico, econômico ou coercitivo (força). Além disso, o polo “B” (aquele sobre o qual o poder é exercido) deve mudar seu comportamento em decorrência da vontade do polo “A” (aquele que exerce o poder), conforme cita a Nader no artigo Gênero e poder: a construção da masculinidade e o exercício do poder masculino na esfera doméstica (Nader, 2014, p. 08).
Pierre Bourdieu também utiliza o conceito dominação para analisar as relações de gênero. Para o autor, ainda na atualidade, o gênero masculino domina o feminino. A dominação masculina não é apoiada prioritariamente na força bruta, nas armas ou na dependência financeira. Esses fatores possuem seu grau de influência, entretanto, se fossem determinantes, quando cessados, a mulher deveria adquirir sua total libertação (Nader, 2014, p. 10).
A dominação dos homens sobre as mulheres, via de regra, ocorre no campo do simbólico. O dominado (no caso, a mulher) adere a dominação de maneira irrefletida e passa a considerar que aquilo seja natural . A violência simbólica é fruto da exposição prolongada e precoce às estruturas de dominação (Bourdieu, 2003, p. 26).
Saffioti, ao explicar a teoria de Bourdieu, aponta para o uso do conceito de dominação simbólica, pois a força da ordem masculina pode ser aferida pelo fato de que ela não precisa de justificação: a visão androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade de se enunciar, visando sua legitimação. A ordem social funciona, assim, como uma imensa máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina na qual se funda: é a divisão social do trabalho, distribuição muito restrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu lugar, seu momento, seus instrumentos (Saffioti, 201, p. 116)
Neste sentido, a própria dominação constitui, por si só, uma violência. Nas palavras de Safiotti,
A violência simbólica institui-se por meio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominador3 (logo, à dominação), uma vez que ele não dispõe para pensá-lo ou pensar a si próprio, ou melhor, para pensar sua relação com ele, senão de instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo senão a forma incorporada da relação de dominação, mostram esta relação como natural; ou, em outros termos, que os esquemas que ele mobiliza para se perceber e se avaliar ou para perceber e avaliar o dominador são o produto da incorporação de classificações, assim naturalizadas, das quais seu ser social é o produto (Safiotti, 2001, p. 117)
Nesse contexto, tudo na gênese do habitus feminino e nas condições sociais de sua realização, concorre para fazer da experiência feminina do corpo o limite da experiência universal do corpo para o outro, incessantemente exposto à objetivação operada pelo olhar e pelo discurso dos outros (Bordieu, 2003, p. 39).
Como o poder masculino atravessa todas as relações sociais, transforma-se em algo objetivo, traduzindo-se em estruturas hierarquizadas, em objetos, em senso comum (Safiotti, 2001, p. 119). E é exatamente na esfera doméstica que tradicionalmente ocorre o exercício desse poder e da dominação masculina.
Essa é, pois, a razão para o patriarcado ter imposto às mulheres a função de cuidadora e gestora do lar conjugal. A capacidade feminina para maternar e suas habilidades para retirar disso um reconhecimento da sociedade vão sendo fortemente internalizadas no sistema patriarcal, ao mesmo tempo em que o trabalho externo feminino é desqualificado.
Por essa razão, grandes esforços foram realizados com vistas ao enquadramento da mulher no espaço privado. Para Pinsky, médicos, juristas, religiosos, professores e demais autoridades preocupadas com a ordem pública alegavam questões de moralidade, discursos que tinham por objetivo restringir a atuação das mulheres no âmbito doméstico. Ainda quando circulasse em espaços públicos, para atender a obrigações sociais, domésticas, religiosos ou mesmo culturais, seu movimento era vigiado, controlado e constantemente vinculado à imagem ideal da “mulher casta” (Pinsky, 2012).
Como esposa e mãe devotada, garantia-se sua subordinação ao seu marido, numa relação de poder e submissão que sempre caracterizaram a estrutura patriarcal de família.
São, portanto, conclusivos os estudos de Elizabeth Badinter4 para quem a construção do mito do amor materno foi imprescindível na consagração de um modelo de divisão sexual do trabalho baseado nas diferenças biológicas de cada indivíduo. Subordinada ao marido e com suas funções adstritas ao trabalho doméstico tem-se o controle do corpo feminino, de seu comportamento social e principalmente, de uma moralidade social que perdurou, e até hoje perdura, embora em menor medida, na sociedade brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A relação entre os gêneros é caracterizada pelo poder dos homens sobre as mulheres, o que caracteriza o processo de dominação masculina. Essa dominação, calcada pela tradição, é reforçada pelo Estado, pela Igreja e se baseia na naturalização de um fenômeno que, na verdade, é social.
Não há dúvidas de que o patriarcado foi um sistema fundamental na manutenção do privatismo doméstico e da rigidez na divisão de papéis sociais masculinos e femininos. Desse modo, o primeiro antagonismo de classes surgiu na família, quando o modelo patriarcal impôs a submissão da mulher ao homem. A família matrimonial e monogâmica surge, não de ideais afetivos, mas sim da necessidade de submeter o corpo da mulher ao controle de um homem que também controlava os demais membros da entidade familiar.
E, nesse contexto de dominação e submissão, manter os papéis sociais bem definidos e deixar a mulher casada restrita ao âmbito doméstico foi, durante séculos, um dos meios mais eficientes de manter a supremacia masculina. Indubitavelmente, houve avanços recentes na flexibilização desses papéis, o que certamente será objeto de estudos em trabalhos futuros. Neste momento, nos propusemos apenas a destacar a importância da divisão sexual do trabalho e da segregação dos espaços – público e privado – nos processos de dominação do homem sobre a mulher, a partir das importantes teorias de Bourdieu e de outros teóricos dedicados aos estudos de gênero.
3 É exclusivamente neste contexto que se pode falar em contribuição de mulheres para a produção da violência de gênero. Trata-se de fenômeno situado aquém da consciência, o que exclui a possibilidade de se pensar em cumplicidade feminina com homens no que tange ao recurso à violência para a realização do projeto masculino de dominação-exploração das mulheres. (Saffioti, p. 116)
4 BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
REFERÊNCIAS
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BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
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PINSKY, Carla Bassanezi. A Era dos Modelos Rígidos. In Nova História das Mulheres no Brasil. 1. ed., 1ª reimpressão. São Paulo : Contexto, 2013.
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SWAIN, Tânia Navarro. A Invenção corpo feminino ou “a hora e a vez do nomadismo identitário. TEXTOS DE HISTÓRIA, vol 8, n° 1/2, 2000.
1 Doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo e Pós-doutora em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense.
2 Mestre em História pela Universidade Federal do Espírito Santo.
“O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES)- Código de Financiamento 001”