REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202410151510
Bianca Martins Bueno
Nathália Vescia Bauer
Resumo
Este trabalho pretende apresentar um estudo comparativo entre os períodos do Romantismo e do Realismo brasileiros. Com base na análise de personagens femininas do romance “Senhora”, de José de Alencar, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e os contos “Singular Ocorrência”, “Senhora Galvão”, “Capítulo dos Chapéus” (livro “Histórias Sem Data”, publicado em 1884) e “Dona Paula” e “Mariana” (livro “Várias Histórias”, publicado em 1896), de Machado de Assis, procuramos analisar a diferença entre a perspectiva sobre a mulher das duas escolas. Buscamos contrastar a autonomia feminina nas duas Escolas e na transição do século XIX ao século XX, através de estudos sobre o contexto histórico, onde a mulher ganhava mais espaço e a sociedade se tornava menos patriarcalista; da postura feminina, que se tornava menos idealizada, mais autônoma e real; da estilística e da linguagem utilizada, que se tornou menos redundante e teatral. Para tais análises, utilizamos os estudos de críticos literários como Alfredo Bosi, Roberto Schwartz, Barreto Filho e Antonio Candido. “[…] É sempre válido dizer que as vicissitudes que pontuaram a ascensão da burguesia durante o século XIX foram rasgando os véus idealizantes que ainda envolviam a ficção romântica” a partir de tal citação de Alfredo Bosi, encontrada no livro “História Concisa da Literatura Brasileira”, e, uma vez que a literatura reflete os traços da sociedade, tentamos encontrar nas mudanças sociais e políticas uma resposta para as marcantes diferenças encontradas na literatura da época.
Palavras-chave: romance brasileiro, José de Alencar, Machado de Assis, realidade feminina.
INTRODUÇÃO
A partir de estudos realizados nas disciplinas de Literatura Brasileira A e B na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, percebe-se que, com a transição literária do século XIX ao XX, a mulher romântica: idealizada, submissa ao patriarcalismo, que não interferia na sociedade e que prezava o amor dos contos de fadas, deu lugar à mulher real: teimosa, imperiosa, áspera, que tem suas próprias vontades e que se preocupa, antes de tudo, com a própria imagem social.
Esse texto visa a mostrar alguns contrastes dessa mudança a partir de obras-símbolo da Literatura Brasileira: o romance romântico “Senhora”, de José de Alencar; o romance realista “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e os contos “Singular Ocorrência”, “Senhora do Galvão”, “Capítulo dos Chapéus”, do livro “Histórias Sem Data”, “Dona Paula” e “Mariana” do livro “Várias Histórias”, de Machado de Assis. Acreditamos que seja possível encontrar sinais dessa mudança em inúmeras outras obras do período, no entanto tais obras são, como veremos a seguir, obras de ruptura, que geraram certa tensão quanto à ousadia e à complexidade temática.
Análise da Complexidade de Aurélia no Romance Senhora, de José de Alencar
José de Alencar foi um versátil ícone do Romantismo brasileiro que compilou narrativas se preocupando com o propósito de formar uma identidade brasileira. Por essa razão, o autor compôs modelos de personagens que representassem diferentes regiões do Brasil. Além disso, também destinou enredos que entretiveram a burguesia em ascensão durante o Segundo Império. Em suas obras finais, como constata Antonio Candido, Alencar expressou situações pouco “elegantes” em suas histórias, porém as compôs com um toque mais humano e crítico comparadas às primeiras experiências escritas.
(…) o Alencar que se poderia chamar de adultos, formado por uma série de elementos pouco heroicos e pouco elegantes, mas denotadores dum senso artístico e humano que dá contorno aquilino a alguns dos perfis de homem e de mulher. Este Alencar, difuso pelos outros livros, se contém mais visivelmente em Senhora e, sobretudo Lucíola, únicos livros em que a mulher e o homem se defrontam num plano de igualdade, dotados de peso específico e capazes daquele amadurecimento interior inexistente nos outros bonecos e bonecas. (CANDIDO, 1957, p. 540)
Como pudemos constatar pela teoria de Candido, a obra analisada faz parte das fases finais dos escritos de Alencar.
Há efetivamente um heroísmo de virtude na altivez dessa mulher, que resiste a todas as seduções, aos impulsos da própria paixão, como ao arrebatamento dos sentidos. (ALENCAR,1875)
Quando o leitor do século XXI depara-se com essa mensagem ao iniciar sua leitura da obra, ele poderá inferir que a personagem principal provavelmente é um ícone de quebra de paradigma da época, haja vista que a mulher do século XIX era normalmente conivente com os impulsos do amor e com seu papel de “cuidadora” do lar, alienada dos acontecimentos do contexto social, econômico e político do período em questão. O romance se passa no auge do Segundo Império brasileiro, momento em que houve a grande modernização da urbe, a ascensão da burguesia e o ápice da economia cafeeira. Concomitantemente a esses acontecimentos de mudanças nos quadros social, econômico e político da época, as mulheres conquistaram espaço como público leitor, visto que não se preocupavam com assuntos ditos “masculinos” como finanças ou administração de lotes de terra. Dessa forma, essas leigas e novas leitoras desenvolveram grande apreço pelos romances folhetinescos, os quais abordavam situações do cotidiano burguês e conflitos amorosos. Nesse momento, a figura feminina configura-se nos ideais de casamento bem sucedido, família nuclear e dotes (físicos, culinários e artesanais), a fim de agradar o marido.
Aurélia decepciona os leitores modernos, pois inicialmente a personagem aparenta ser contra o sistema patriarcal (quase um projeto de feminista):
Aurélia era órfã e tinha em sua companhia uma velha parenta, viúva, D. Firmina Mascarenhas, que sempre a acompanhava na sociedade. Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipação feminina. Guardando com a viúva as deferências devidas à idade, a moça não declinava um instante do firme propósito de governar sua casa e dirigir suas ações como entendesse. (ALENCAR,1875, p. 5) (grifos nossos)
No entanto, logo percebemos que a moça é apenas contrária à ideia de não poder entender de assuntos masculinos e, assim, a obra cumpre seu papel entreter a burguesia leitora:
O senhor não me quer entender, meu tutor, replicou a moça com um tênue assomo de impaciência. Sei disso, e sei também muitas coisas que ninguém imagina. Por exemplo: sei o dividendo das apólices, a taxa do juro, as cotações da praça, sei que faço uma conta de prêmios compostos com a justeza e exatidão de uma tábua de câmbio (ALENCAR, 1875, p. 15) (grifos nossos).
Aurélia vangloria-se por saber de contabilidade não por defender alguma causa de igualdade entre os sexos, mas sim por querer se destacar na “disputa” por um bom pretendente como vemos a seguir:
A menina cumpria estritamente a obrigação que se tinha imposto, mostrava-se para ser cobiçada e atrair um noivo. Mas, além dessa tarefa de exibir sua beleza, não passava. Os artifícios de galanteio com que muitas realçam seus encantos; a tática de ratear os sorrisos e carinhos, ou negociá-los para irritar o desejo, nem os sabia Aurélia, nem teria coragem para usá-los (ALENCAR, 1875, pg. 57) (grifos nossos).
Thiengo (2008) traz a distinção teórica entre “busca feminina” e “busca feminista” presente nos escritos de Douglas (1990):
Veremos que se trata de uma busca feminina, que parece, em alguns pontos, antifeminina, dando a impressão de transgressão por parte da heroína. O que seria uma busca antifeminina? É aquela em que a mulher recusa o papel feminino para tornar-se o sujeito da busca masculina. Há uma inversão de papéis, permanecendo-se, porém, dentro dos parâmetros de gênero das narrativas do patriarcado, pois os estereótipos de masculinidade e de feminilidade, embora questionados, são mantidos, já que a busca antifeminina modela-se nos moldes da busca do herói masculino (THIEGO, 2008,apud DOUGLAS, 1990, pg 76.) (grifos nossos).
Em todas as fases do romance, a moça baseou suas ações em função de Seixas, o que reforça a ideia de que ela não é uma mulher diferente das suas contemporâneas quando se trata de amor. Ela é, portanto, antifeminina justamente por entender de áreas não compreendidas pelas mulheres burguesas, objetivando atenção dos homens pretendentes. Dessa forma, Aurélia aparenta estar revolucionando quando recebe a herança de seu avô e consegue literalmente comprar Seixas, pois assim poderia dominar as ações do marido comprado. Entretanto, percebemos, ao longo do desfecho da obra, que a protagonista do romance apenas segue o óbvio de mulher daquela época. Ela então concentra todo seu potencial em prol de uma vingança por amor; vive um casamento por contrato, até que ela e seu amado, Seixas, depois de terem sido corrompidos pelo dinheiro, deixam-se levar pelo amor que sentem um pelo outro. Assim, chegamos ao típico final folhetinesco dos romances da época: homem e mulher felizes para sempre numa sociedade enraizada nos preceitos do patriarcalismo.
Análise da Complexidade Feminina nos Contos de Machado de Assis
O conto Singular Ocorrência gira em torno de um adultério entre Andrade e sua amante, ex-prostituta, Marocas. Uma história de amor marcada por desentendimentos, reconciliações e um final que poderíamos encaixar na transição entre romântico e realista, pois, diferentemente do final “politicamente correto” que os autores do romance romântico deveriam dar a suas histórias, a amante continua viva, enquanto Andrade e o filho morrem.
José Barreto Filho, o maior crítico de Machado de Assis, segundo Antonio Candido, talvez tenha a explicação para alguns fatos peculiares no conto, como o de que a mulher de Andrade sequer aparece no conto:
O conto participa mais do intemporal; a substância mesma do romance é a duração, e daí o seu valor eminente, que não revela somente o essencial, mas a existência concreta, com as suas últimas determinações. o conto é uma linha melódica; o romance, uma estruturação harmônica (BARRETO FILHO, 1952, p. 1-2).
Logo, a falta de personagens e de possibilidades de interpretação, uma vez que lemos o conto com certa linearidade, dá-se pela intenção de intemporalidade: Machado de Assis, em Singular Ocorrência, queria descrever o enlace amoroso que era comum na sociedade da época, mas que pouco era retratado de forma tão realista e, muito menos, sem final moralizante; o autor não tinha a intenção de que o leitor prendesse-se em outro foco e, por isso, não relatou fatos que estivessem fora da esfera dos amantes.
No conto Senhora do Galvão, Maria Olímpia, uma mulher com a “vocação da vida exterior”, casada com Eduardo Galvão, recebe ao longo da narrativa diversas cartas anônimas contando do caso extraconjugal do marido com a viúva de um brigadeiro. Ainda sob a temática do adultério, dessa vez, podemos depreender que Machado de Assis tenha pretendido expor a estratégia vingativa da mulher que, apesar da sensibilidade, não deixa o curto-circuito emocional abalar o casamento. Manter o status social e a vida boa que levava era imprescindível à M. Olímpia, por isso, não deixou que a “alma interior” – teoria popularmente conhecida sobre as obras de Machado – se tornasse maior que a “alma exterior,” mostrando o controle da mulher quanto às atitudes e decisões.
O Capítulo dos Chapéus pode ser lido como um retrato da transição da mulher na sociedade da época e consequentemente na literatura romântico-realista. A caracterização de Mariana evidência passividade quanto à ideia de mulher em um mundo marcado pelo patriarcalismo: “meiga, de uma plasticidade encomendada, capaz de usar a mesma divina indiferença tanto um diadema régio como uma touca” (ASSIS, 1884, p. 29) (adaptado); fútil, uma vez que tratava seus objetos, cortinas e tapetes como filhos.
Os hábitos mentais seguiam a mesma uniformidade. Mariana dispunha de mui poucas noções, e nunca lera senão os mesmo livros: — A Moreninha de Macedo, sete vezes; Ivanhoé e o Pirata de Walter Scott, dez vezes; O Mot de L’énigme, de Madame Craven, onze vezes. (ASSIS,1884, p. 29)
A caracterização de Sofia, por outro lado, é de uma mulher “forte, dona de si”, como o próprio narrador admite, fazia valer das próprias vontades e não se submetia às vontades de seu marido, Ricardo.
A gente pode viver bem com seu marido, respeitando-se, não indo contra os desejos um do outro, sem pirraças, nem despotismo. Olhe; eu cá vivo muito bem com o meu Ricardo; temos muita harmonia. Não lhe peço uma coisa que ele me não faça logo; mesmo quando não tem vontade nenhuma, basta que eu feche a cara, obedece logo. (ASSIS, 1884, p. 31)
Podemos pensar que Mariana e Sofia representam a transição literária: a primeira submissa e presa à sociedade patriarcal; a segunda tentando se desprender desse ideal e provar que tem sua própria complexidade. Diferentemente de Mariana, Sofia encara o novo papel da mulher que, assim como M. Olímpia, preza a “alma externa”, a vida social.
Olhava para fora através dos vidros, e via só o clarão dos lampiões, de quando em quando, e afinal nem isso mesmo; via os corredores do teatro, as escadas, as pessoas todas, e ele ao pé de mim, cochichando as palavras, duas palavras só, e não posso dizer o que pensei em todo esse tempo; tinha as ideias baralhadas, confusas, uma revolução em mim… (ASSIS, 1896, p. 70) (grifos nossos)
Através dessas pequenas frases, encontramos uma tendência em Machado de Assis para a descrição complexa e psicológica do que supostamente uma mulher sentiria na situação em questão. A mulher no realismo já apresentava ideias baralhadas, confusas, já queria uma revolução de sentimentos, diferentemente da mulher no romantismo, que não podia expor essas vontades.
Dona Paula foi um conto publicado em 1896, no livro “Várias Histórias”, e mostra a desconexão dúbia entre o interno e o externo: entre o que Venancinha sente e o que deveria sentir. A partir disso, podemos perceber uma complexidade em questões como “o que é moral e o que é imoral”. Tal conto pode ser visto como uma antecipação de Machado de Assis, talvez com o intuito de prever a reação do público, sobre o tema adultério, que foi base para “Dom Casmurro”, o romance mais famoso do autor, publicado na forma de folhetim entre março e dezembro de 1899.
Ventava um pouco, as folhas moviam-se sussurrando, e, enquanto não fossem as mesmas do outro tempo, ainda assim perguntavam-lhe: “Paula, você lembra-se do outro tempo?” Que esta é a particularidade das folhas, as gerações que passam contam às que chegam as coisas que viram, e é assim que todas sabem tudo e perguntam por tudo. Você lembra-se do outro tempo?
Lembrar, lembrava, mas aquela sensação de há pouco, reflexo apenas, tinha agora cessado. Em vão repetia as palavras da sobrinha, farejando o ar agreste da noite: era só na cabeça que achava algum vestígio, reminiscências, coisas truncadas. O coração empacara de novo, o sangue ia outra vez com a andadura do costume. Faltava-lhe o contato moral da outra. E continuava, apesar de tudo, diante da noite, que era igual às outras noites de então, e nada tinha que se parecesse com as do tempo da Stoltz e do Marquês de Paraná; mas continuava, e lá dentro as pretas espalhavam o sono contando anedotas, e diziam, uma ou outra vez, impacientes:
– Sinhá velha hoje deita tarde como diabo!(ASSIS, 1896, p. 71)
Os dois últimos parágrafos do conto levam o leitor a refletir sobre o passado de Dona Paula. A hipótese é que talvez a tia de Venancinha também tenha tido histórias “imorais” de amor, à sombra do casamento. A leitura que fazemos a partir disso é que o autor quer mostrar o quanto romances às escondidas são comuns e rotineiros, mas que anteriormente, por razão da idealização romântica, não podiam ser relatados.
O conto Mariana trata, assim como Dona Paula, sobre o adultério. No entanto, enquanto em Dona Paula temos apenas um prólogo de um adultério, como diz o narrador: “Não era um livro, não era sequer um capítulo de adultério, mas um prólogo, – interessante e violento.” (p. 70), em Mariana encontramos o capítulo inteiro. Mariana de “belos e grandes amores” (p. 54), como o próprio narrador admite, apesar de casada com Xavier, mantém um relacionamento há quatro anos com Evaristo. Trata-se de um adultério lúcido, pois, diferentemente de Venancinha, a mulher entende, aceita e deseja o que está se passando. Trata-se de uma forma mais realista do tema, onde até mesmo a morte é cogitada, como podemos observar nos trechos a seguir:
– Não venhas outra vez com essa eterna desconfiança, atalhou Mariana sorrindo, como na tela, há pouco. Que quer você que eu faça? Xavier é meu marido; não hei de mandá-lo embora, nem castigá-lo, nem matá-lo, só porque eu e você nós o amamos. […] – Tu o amas, tornou-se Evaristo, e esta ideia apavora-me, ao mesmo tempo em que me aflige, porque eu sou capaz de matá-lo, se tiver certeza de que ainda o amas. (ASSIS, 1896, p 56) (grifos nossos)
Além disso, Mariana afirma não sentir remorso: “– Podias supor que eu os tinha; mas não os tenho, nem os terei jamais.” (p. 57)
A partir de Dona Paula e Mariana, podemos notar que no mesmo livro de contos, Várias Histórias, encontramos um Machado de Assis que evolui quanto à descrição da complexidade feminina: no primeiro, mostra-se receoso quanto à descrição do adultério em si e opta por deixar nas entrelinhas; no segundo, descreve claramente o adultério.
Análise da Complexidade de Virgília na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
Depois da análise dos contos machadianos, foi possível perceber que a mulher do Realismo era representada de uma forma menos idealizada e comportada. Júnior (2008) faz uma síntese das mulheres presentes nos romances da segunda fase da obra machadiana:
Diante do conservadorismo, o retrato do poder privado. Aparentemente submissas, são profundamente vaidosas e ambiciosas. Oblíquas e dissimuladas puderam atender ao público de gazetilhas e infundir questões filosóficas. O olhar do narrador, quando concentrado nessas figuras, enxergava os mecanismos de funcionamento da sociedade, como as mais fortes venciam e alcançavam seus objetivos e como muitas mulheres tinham a exata medida do lócus social de cada indivíduo. (DA SILVA JÚNIOR, 2008, 28)(grifos nossos)
Virgília é, de fato, vaidosa e ambiciosa, visto que, apesar de amar outro homem, ela escolhe casar-se com Lobo Neves pelas razões de ele estar envolvido com assuntos políticos e de ser mais importante socialmente. Ela é ousada e astuta por manter um relacionamento extraconjugal com Brás Cubas, que a define por meio de olhos, embora realistas, apaixonados:
Era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas (…). Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza (…). Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção (…). (ASSIS, 1881, p. 108)
Brás e Virgília passam grande parte do romance numa trama de encontros e desencontros. Assim, mesmo optando por viver sua vida ao lado de Lobo Neves, viajando e ficando longe do amante, ela está sempre envolvida com os acontecimentos do cotidiano de Brás. Ao longo do enredo do romance, tanto o marido como o amante morrem. A viúva vela o corpo de Lobo Neves e é julgada pelo olhar irônico do narrador. Quando o defunto-autor narra sua própria morte, consequência de uma pneumonia, ele relata a presença dela e de seu olhar melancólico. Podemos, então, dizer que Virgília destaca-se como uma das mulheres mais importantes do romance por ser mais independente e autêntica em suas decisões. Diferentemente de Dona Plácida e de Marcela, que são absorvidas pelo meio monetário, e de Eulália, que sofre com os preconceitos sociais por sua condição física e vive presa ao ninho protetor da mãe.
Enfim, Virgília: bonita, fresca, clara e pueril. No entanto, não se preocupava em ferir o marido e traía-o dentro da própria casa. Uma personagem burguesa, com valores burgueses românticos, mas com instinto animal apurado a tal ponto de fazê-la esquecer das regras sociais. Virgília é uma evidente crítica ao ideal de mulher que o romance-romântico insistiu em fomentar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como diz Isabel de Jesus (2012) em seu artigo “Novas Cartas Portuguesas – Uma Abordagem Feminista”, “A literatura sempre falou de mulheres e sempre as colocou no cerne das narrativas, explorando vivências, sentimentos e afetos, mas a construção dessas personagens correspondeu, quase sempre, ao olhar dos homens escritores” (p 7). É uma lástima que tenhamos que analisar a ascensão da complexidade, intrínseca à natureza feminina, apenas no final do século XIX através do olhar masculino. No entanto, precisamos lembrar que se tratava de uma sociedade patriarcalista, onde a mulher burguesa deveria ocupar-se principalmente das tarefas domésticas e dificilmente tinha espaço em uma sociedade para além do seu próprio lar e, muito menos, no processo de criação cultural brasileira.
Nem todas as mulheres tiveram a coragem da potiguar Nísia Floresta, que abandonou o marido e foi repudiada pela família, mas teve seu nome marcado na história brasileira da época por, além de ser republicana e abolicionista, ter sido educadora e fundadora de colégio, escritora dos jornais da época e autora de “Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens”, publicado em 1832; ou da gaúcha Benedicta Bormann, que atendia ao pseudônimo de Delia, e teve diversos romances publicados no final do século. Encontramos nas literaturas poucos relatos de mulheres expoentes na história cultural da época, visto que a sociedade era fundada em preconceitos sexistas. Além disso, acredita-se que muitas escritoras utilizavam pseudônimos masculinos a fim de não sofrerem preconceitos e de terem suas obras lidas.
A visão que os autores realistas paulatinamente deram às mulheres contribuiu para que elas conquistassem espaço na sociedade e, até mesmo, para que reivindicassem por seus direitos na explosão feminista que ocorreu a partir da década de 70. Enfim, por razão de serem os autores homens os populares relatores da sociedade da época, este artigo analisou a visão feminina pelo olhar de dois grandes autores da época, José de Alencar e Machado de Assis.
Não há dúvidas de que as mudanças na literatura ocorrem por uma necessidade social. A partir do momento em que as mulheres começaram a conquistar outros lugares na sociedade, a literatura teve a necessidade de mostrar isso em suas obras. Como podemos perceber ao longo do texto, foi um processo lento e gradual, mas de fundamental importância à ascensão feminina.
REFERÊNCIAS
ALENCAR, José de. (1875) Senhora. 2ª Ed. São Paulo: Ciranda Cultural, 2008, 192 p.
ASSIS, Machado de. (1884) Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II:Histórias Sem Data. Disponível em: <http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn004.pdf>Data de acesso: 01/11/2015.
ASSIS, Machado de. (1896)Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II: Várias Histórias. Disponível em: <http://machado.mec.gov.br/images/stories/pdf/contos/macn005.pdf>Data de acesso: 25/10/2015.
ASSIS, Machado de. (1881) Memórias Póstumas de Brás Cubas. 3ª Ed. Porto Alegre: L&PM, 2010.
BARRETO FILHO, José. O romance brasileiro: Machado de Assis. Disponível em: <http://machadodeassis.net/download/numero09/num09artigo01.pdf>Data de acesso: 13/11/2015
BOSI, Alfredo. (1970) História Concisa da Literatura Brasileira. 48ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2012, 567 p.
CANDIDO, Antonio. (1957) Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014, 799 p.
CADIDO, Antonio. Vários Escritos. Esquema de Machado de Assis. 15-32 p.
DA SILVA JUNIOR, Augusto Rodrigues. Mulheres Póstumas de Brás Cubas: Virgília redescoberta. Revista de Estudos Literários, v. 13, 2008, 26-37 p.
DACANAL, José Hildebrando. Romances Brasileiros I. 1ª Ed. Porto Alegre: Novo Século, 2000, 42-70 p.
GUIMARÃES, Thalita Moraes. D. Paula. Disponível em: <http://www.passeiweb.com/estudos/livros/d_paula> Data de acesso: 25/10/2015.
JESUS, Isabel de. Novas Cartas Portuguesas – Uma Abordagem Feminista”. In: Faces de Eva, N.O 28, Edições Colibri/ UniversidadeNova de Lisboa(2012), 43-52 p.
NEVES, Jussara. Mulheres Escritoras no Brasil Romântico. Disponível em: <http://www.jussaraneves.com.br/2012/03/mulheres-escritoras-no-brasil-romantico.html> Data de acesso: 13/11/2015.
THIENGO, M. .O perfil de mulher no romance Senhora, de José de Alencar. Disponível em: <e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/download/3016/2362> Data de acesso: 13/11/2015.