FROM ANALOG TO DIGITAL: SCHOOL AND TECHNOLOGIES AS FABLE, PERVERSITY, AND RESISTANCE
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202501212128
Rafaela Locali1
Resumo
Este artigo propõe reflexões sobre como a adoção de tecnologias em sala de aula pode se configurar como fábula, perversidade e resistência nas culturas escolares, da mesma forma como a Globalização pode ser interpretada no mundo atual. Ao mesmo tempo, é traçado um paralelo com a história de vida pessoal, educacional e profissional da pesquisadora, dentro de uma perspectiva autobiográfica. O recorte temporal adotado foram as décadas de 1980 a 2020, marcando a transição do meio analógico ao digital nas escolas brasileiras e na sociedade como um todo. Tal enquadramento trouxe a necessidade de discutir sobre os riscos e benefícios dessas inovações observadas no período e, assim, um dos objetivos é abordar os impactos que essas tecnologias – como computadores, Internet, aplicativos, IAs e plataformas digitais – tiveram na cultura das escolas e nas gerações de muitos estudantes, enquanto que aspectos tradicionais nas práticas e posturas pedagógicas ainda permanecem. A perspectiva crítica, baseada na Geografia como pano de fundo, analisa essas transformações em escalas global e local, destacando as desigualdades regionais, socioeconômicas e socioemocionais experimentadas. Por meio de uma abordagem qualitativa e do método etnográfico, a adoção do estilo narrativo permite que o leitor se reconheça ou reflita criticamente sobre a temática abordada, buscando destacar o desafio contínuo de se determinar “até aonde ir” na incorporação de tecnologias no ensino, afim de encontrar um equilíbrio entre a adoção tecnológica e a preservação das práticas educacionais tradicionais.
Palavras-chave: Ensino de Geografia. Tecnologias em sala de aula. Pesquisa etnográfica. Narrativas.
Abstract
This article proposes reflections on how the adoption of technologies in the classroom can be understood as fable, perversity, and resistance within school cultures, much like how Globalization can be interpreted in the contemporary world. At the same time, it draws a parallel with the researcher’s personal, educational, and professional life history, adopting an autobiographical perspective. The temporal focus spans from the 1980s to the 2020s, highlighting the transition from analog to digital environments in Brazilian schools and society as a whole. This framework brings the necessity to discuss the risks and benefits of innovations observed during this period. One of the objectives is to examine the impacts of these technologies – such as computers, the Internet, applications, AI, and digital platforms – on school culture and on generations of students, while traditional aspects of pedagogical practices and approaches remain. A critical perspective, grounded in Geography, analyzes these transformations on both global and local scales, emphasizing regional, socioeconomic, and socioemotional inequalities experienced. Through a qualitative approach and ethnographic method, the narrative style adopted allows readers to either identify with or critically reflect on the theme addressed. The aim is to underscore the ongoing challenge of determining “how far to go” in incorporating technology into education, striving to find a balance between technological adoption and the preservation of traditional educational practices.
Keywords: Geography Education. Classroom Technologies. Ethnographic Research. Narratives.
Introdução
Por ser a Narrativa considerada uma forma de as pessoas experimentarem o mundo, esse estilo de escrita foi considerado o mais adequado para a divulgação e compartilhamento da experiência que passei. Isso se explica porque a narrativa vai mais além da fidelidade, da validade e da generalização, próprias dos textos descritivos. Ela implica também clareza, verossimilhança e transferibilidade, possibilitando aos leitores conseguirem tirar dela aquilo que lhes fez sentido, e transferirem para sua experiência (CONNELLY e CLANDININ, 1995, p. 32).
Isso só seria possível na medida em que eu conseguisse produzir uma narrativa que configurasse um “convite a participar”, e que este texto de fato fosse lido, mas também vivido por essas pessoas. Para alcançar essa qualidade, tive que desenvolver um processo de compreensão acerca do que envolve esse tipo de escrita, bem como ampliar minhas concepções de que, em vez de me distanciar do texto, deveria também dizer-me na narração.
A saída que encontrei foi deixar as memórias virem e, com elas, os sentimentos, que não foram deixados de lado, mas que se consolidaram na presente escrita em formas de verdadeiras confissões, desabafos, opiniões pessoais, críticas, posicionamentos polêmicos e percepções bastante particulares sob a minha ótica, em cada contexto específico, dentro das minhas crenças e lentes. Diversas foram as passagens que me perguntei se estaria respeitando o estilo acadêmico esperado aos olhos de qualquer leitor que, porventura, viesse a se interessar pelo meu tema. Imediatamente me lembrava que, ao optar pela escrita nos moldes de Narrativas, me resguardava de estar no caminho (cientificamente) seguro, conferindo-lhe, outrossim, sobriedade.
De acordo com Connelly e Clandinin (1995), ainda, a escrita de narrativas exige um processo de colaboração entre os participantes, que leva a uma mútua explicação e reexplicação de histórias. Dentro da atmosfera de sala de aula, significaria recontar, de formas novas, as mesmas histórias, de maneira a revelar como os sujeitos puderam se relacionar de forma produtiva. Em outras palavras, procurei narrar experiências narrando minhas lições dessas experiências, ao revelar as múltiplas vozes que me constituiu, nas escolhas que fiz, e adequá-las para cada determinado momento.
Este é o sentido central da narrativa, a compreensão de que as pessoas são constituídas a partir de fragmentos de histórias e que também seus fragmentos constituirão outras vidas e outras histórias. Nesse sentido, a narrativa significa a construção e a reconstrução de vidas de modo cambial e ilimitado, renovando-se a cada nova reescrita e a cada nova leitura (BONDÌA, 1995).
Sob esta ótica, acrescento que os dados, uma vez que não podem falar por si mesmos, precisaram estar relacionados com o que pensei a respeito. Serão, na verdade e aqui, traduzidos graças à presença dos múltiplos “eus” (CONNELLY e CLANDININ, 1995, p. 40), possibilitada pelas interlocuções entre alunos, professores, tecnologias e conhecimento. Aproximo, mais uma vez, em alguns aspectos da escrita narrativa, já que procurei fazer uma releitura dos acontecimentos que me foram revelados, buscando enfocar algumas particularidades daquelas vidas e da minha. A intenção é datar historicamente tal processo enquanto uma possibilidade, na tentativa de estabelecer um diálogo em que outras pessoas pudessem compreender e se reconhecer.
Outra finalidade que busco através deste trabalho é eternizá-lo, enquanto documento e/ou fonte histórica, já que compreende o registro do olhar de uma professora que viveu a exata transição da não presença e do não uso para a presença e o uso de tecnologias na sala de aula. “[…] Le Goff, quando afirma que o “documento é monumento”, remete às representações que uma pessoa, instituição ou sociedade querem deixar de seu passado.” (LE GOFF apud GONÇALVES, 2013, p.29).
Dentro do presente artigo não será possível avaliar todos os aspectos que compuseram e que compõem os meus saberes. Além disso, compreendo que não é necessário, uma vez que tornaria o texto extremamente cansativo. Concentro, então, nos principais acontecimentos que a memória me permitiu trazer à escrita, mesmo que em ‘flashes’, ou sob uma penumbra, mas sempre perseguindo a lucidez. Para tanto, meus devaneios serão permeados pelos estudos de alguns autores, com destaque aos apontamentos de Nádia Gaiofatto Gonçalves (2013), com sua rica contribuição acerca da história da educação no Brasil.
Em linhas gerais, arrisco dizer que as últimas décadas foram cruciais para elucidar a introdução das tecnologias na escola e que, coincidentemente, foi vivida por mim na transição da vida de estudante para profissional. Cabe aqui esclarecer que esse recorte temporal (décadas de 1980 – 2020) engloba, quanto ao uso de tecnologias, as situações das escolas brasileiras em que passei, não se tratando, portanto, da realidade brasileira como um todo.
Dados do Censo Escolar de 2020 divulgados pelo INEP (2021) e, portanto, anteriores à Pandemia do COVID-19, revelam que a presença de Internet banda larga nas escolas do país é regionalmente desigual: em primeiro lugar se destaca a Região Centro-Oeste com 83,4%, seguida da Sudeste, com 81,2% e Sul, com 78,7%. Já os estados das regiões Nordeste e Norte são os que têm a menor conectividade, com 54,7% e 31,4%, respectivamente. Todavia, em apenas 10% do total delas os alunos têm acesso livre ao sinal de wifi, podendo ser considerados, efetivamente, como conectados. Esses dedos me fazem questionar a respeito das formas de reprodução do capital sobre os povos, territórios e governos, onde o acesso à Internet – um dos símbolos da Globalização – ainda não é para todos.
Santos (2003) nos presenteou com seus estudos sobre a Globalização trazendo um olhar crítico referente aos avanços tecnológicos, principalmente em relação às melhorias dos meios de comunicação e transporte como peças fundamentais de integração no mundo atual, ou seja, determinantes para esse fenômeno se tornar possível e próprias do meio técnico-científico-informacional. Contudo, muito embora seus benefícios apresentem-se como fábula – como a ideia de Aldeia Global e de tempo-espaço contraídos – concomitantemente concretizam-se como perversidade, quando não podem ser apropriadas para e por todos.
No âmbito escolar meus apontamentos extrapolam a oferta de Internet das escolas, uma vez que os estudantes – atualmente e de acordo com o que observo em meus alunos – podem não ter o acesso nesses ambientes, mas ainda o têm em seus dispositivos pessoais, com destaque aos celulares. Ou seja, eles estão excluídos nos territórios formais de aprendizagem, mas não em seu cotidiano.
Então a questão é: quais intencionalidades existem por trás das instituições/governos que não oferecem sequer Internet de maneira igualitária às escolas, muito menos uma educação digital de qualidade? Seriam por falta de políticas públicas engajadas nesse assunto, seja culpando as altas demandas de recursos financeiros voltados para possibilitar a estrutura material, bem como a capacitação dos profissionais de modo a torná-la realidade, ou seja, justamente pela escolha de não fazê-lo?
Essa escolha só faria sentido se levarmos em conta uma ideologia globalmente dominante que não só permite, como busca e posterga a alienação em massa da população perante as desigualdades sociais, próprias do modelo capitalista vigente. Este que, por sua vez, tem como consequência, a exclusão. Mesmo porque não faz sentido alegar falta de recursos em um país que, em 2024, passou a ocupar a oitava posição no ranking das economias mundiais – a menos que essa força maior seja a resposta difícil de aceitar que envolve a má gestão pública de nossas riquezas para benefício de alguns.
Esses métodos informacionais são adotados por certos Estados e diversas corporações, intensificando, assim, os mecanismos de geração de desigualdades – como revelaram os dados do INEP apresentados anteriormente. Dessa maneira, a periferia do sistema capitalista se torna ainda mais marginalizada, seja pela falta de acesso completo aos novos instrumentos de produção, seja pela impossibilidade de exercer controle. (SANTOS, 2003, p.39).
Como alternativa a essa perversidade, Santos (2003) sugere alguns pressupostos que poderiam representar limites a esta faceta da Globalização, como a resistência às fabulações e a mudança no denso sistema ideológico, através de uma luta contra a racionalização dominante e o uso das técnicas em conjunto com a política para a valorização da vida humana. Com base neles traçarei, a seguir, um paralelo com minha experiência profissional vivida, fazendo uma analogia entre as escolas que passei em relação à presença das tecnologias nesses espaços, caracterizando-as enquanto fábula, perversidade e resistência.
A Fábula
Na minha escala local, conheci diferentes realidades relacionadas à questão da chegada das tecnologias nos colégios que passei como professora:
Em um deles – uma escola particular tradicional e de elevado status do interior de São Paulo – o uso intenso de tecnologias começou a se fazer presente, a partir de 2014, superando, em muito, a tradicional sala de informática.
Muito embora seja aparentemente um colégio tradicional, pois foi fundado por alemães há quase 150 anos e sua estrutura impecável tenha conservado a arquitetura do século XIX, suas salas e corredores obcecadamente bem encerados contrastavam com a presença das inovações tecnológicas e dos recursos digitais mais modernos da atualidade.
Desde a iniciativa de tornar obrigatório a compra de iPads individuais como material didático pelos alunos – da Educação Infantil ao Ensino Médio – até todas as salas terem passado por uma reformulação em sua estrutura para permitir o acesso ao sinal de WiFi rápido e forte. Foram feitos grandes investimentos em datashows modernos e conectados a um aparelho de Apple TV, de modo que os iPads dos professores usariam essa conexão para transmitir seus slides, ou vídeos, ou o que desejassem passar para a sala. Outro ponto bastante importante foi a preocupação que pensaram em relação ao suporte para fazer tudo acontecer, como a contratação de uma equipe de TI capacitada e à disposição durante o período de aulas. Esses profissionais poderiam ser solicitados a qualquer momento para resolver quaisquer problemas técnicos – que não foram poucos – ou referentes às senhas e cadastros de estudantes e professores nos sistemas.
O colégio firmou, ainda, um acordo com a empresa Apple e adquiriram, posteriormente, o selo de Apple Distinguished School, bem como incentivaram veementemente/obrigaram os professores a serem Apple teachers e, alguns, Apple distinguished educators. As capacitações para estimular o uso dos aplicativos Apple e as inúmeras possibilidades dos iPads em sala de aula eram frequentes, tais como treinamentos para o uso das ferramentas/aplicativos e palestras com temas aos moldes de educação finlandesa sobre o que havia de mais moderno nas escolas internacionais. Entre eles, destacavam-se a adoção de metodologias ativas e aulas diferenciadas baseadas na cultura maker, como rotação de estações, uso de post its, sala de aula invertida, brainstorms, criação mapas mentais, gamificação, aprendizagem por projetos e por aí vai. Os livros didáticos de todas as matérias foram substituídos por uma plataforma digital de layout semelhante à rolagem das redes sociais e cujos capítulos apareciam como filmes e séries de uma plataforma de streaming.
Todas as possíveis resistências, estranhamentos, críticas ou rejeições, por parte de alunos, pais ou professores foram fortemente combatidas uma a uma pela direção cujo objetivo único era estabelecer uma nova cultura naquela escola. Lecionei neste colégio de 2011 a 2021 e pude observar, quando saí, que o objetivo havia sido, de fato, alcançado.
Meu segundo exemplo foi quando lecionei, de 2022 a 2023, em um outro colégio particular localizado em um bairro nobre da capital paulista. Era nítida sua intenção de demonstrar ser uma instituição que fazia intenso uso de tecnologias na sala de aula – muito provavelmente para atrair matrículas – e, para tal, seu marketing era voltado totalmente a destacar a adoção das ferramentas Google for Education.
Os alunos deveriam portar em todas as aulas chromebooks compatíveis aos aplicativos Google, as apostilas estavam alocadas em uma plataforma educacional digital, as salas dispunham de datashow e todos tinham acesso à Internet com sinal de Wifi. Porém, em um ano lecionando lá pude observar como não bastava obrigar os alunos a terem esses recursos materiais digitais, a estrutura do prédio oferecer salas equipadas e a iniciativa da escola ser em direção de usar tecnologias no ensino-aprendizagem, quando a cultura da escola para tal não estava enraizada. Na prática, os alunos não levavam os chromebooks para as aulas, ou quando levavam, muitas vezes não estavam carregados e sempre era uma luta pedir para os abrirem. Muitos não sabiam suas senhas ou como acessar as apostilas, como navegar na plataforma, onde encontrar o capítulo, como acessar ao Classroom e a equipe de TI para nos ajudar com esses problemas técnicos era deficitária.
Não era comum ter capacitações para os professores e fui contratada sem saber mexer em nada do ambiente Google. Por sorte eu estava habituada com os recursos Apple e, por isso, rapidamente me adaptei, mas fico imaginando como seria com outro professor que não tivesse essa mesma expertise.
Fora isso, a indisciplina e a cultura do celular em sala de aula revelaram outro desafio. Como orientação da direção, seu uso era proibido, mas os alunos não respeitavam. Usavam o tempo todo, seja em redes sociais, joguinhos ou música em seus fones de ouvido, seja até mesmo para acessar a apostila de maneira mais fácil. Era um constante e desgastante pedir para guardarem, mas a maioria dos professores não levava às últimas consequências – como recolher o aparelho ou mandar o aluno para fora da sala – para não se indispor com a turma, não ser o professor carrasco e terminar ficando com a fama de chato. Então, acabávamos por fazer “vista grossa” e garantir nossos empregos que dependiam da aprovação de adolescentes – principalmente nos temidos Ibopes.
Ao final do dia, a maioria das famílias optava por comprar as pesadas apostilas físicas e as atividades transcorriam essencialmente aos moldes tradicionais típicos da boa e velha metodologia das aulas expositivas. Deixei esse colégio com a nítida sensação do “para inglês ver”, ou seja, de como o discurso era destoado da realidade.
Acredito firmemente que a cultura desta escola se constituiu justamente nos ruídos entre as falas e posturas da direção, dos alunos e dos professores perante à intencionalidade de usar recursos tecnológicos e de seu uso propriamente dito. Pude observar na pele que quando os objetivos não estão bem claros e a postura de todos não está bem alinhada, a cultura escolar idealizada não se concretiza, mas apenas se disfarça.
Arrisco identificar, nesse ínterim, uma quarta característica para além da Globalização como fábula, perversidade ou possibilidade de Milton Santos (2003): acrescento, ainda, a que se apresenta como disfarce. Aquela observada quando se diz e se faz presente, mas não de forma eficiente, tampouco, significativa.
Mas por que não o fazem? Por que não é significativa? A resposta é simples e direta: porque se todos os atores envolvidos não compreenderem a importância para suas vidas, não tiverem a visão de pertencimento a esse ecossistema e se não observarem os benefícios em sua apropriação – e não acreditarem verdadeiramente nisso – de fato não lhe serão relevantes e acabarão por não serem abraçadas. Elas apenas existirão unicamente porque é a nova exigência dos pais, ou porque a concorrência as tem adotado. O fator controle também é fundamental: se não existir uma cobrança mais expressiva da direção em um contínuo fazer acontecer, o objetivo maior se desfaz e as práticas facilmente voltam à zona de conforto das aulas tradicionais.
A título de comparação, enquanto naquele meu antigo colégio o diretor viajava para a Europa e entrava em contato direto com os exemplos mais avançados de uso de tecnologias em sala de aula, não só nos países nórdicos como também nos colégios mais conceituados – e com as mensalidades mais caras – do Brasil e nos apresentava em inúmeras reuniões pedagógicas essas novidades, ele estava criando as bases da cultura da escola que desejava.
Quando participávamos de capacitações e palestras com empresários que mostravam as exigências do novo mercado de trabalho, como saber trabalhar em grupo em um mundo repleto de colivings, coworkings, Design thinking e método Kanban visando a eficiência do trabalho e melhor gestão de equipe, bem como a necessidade real de alcançar consumidores através dos meios digitais de forma a atender às novas exigências de uma clientela que está hoje conectada, construíamos a percepção de que o ramo dos negócios mudara e que precisávamos preparar nossos alunos para essa nova realidade.
Além disso, a competitividade entre os professores, principalmente em relação aos que dominam e aos que não dominam as novas tecnologias – sendo essa uma das habilidades e competências cruciais para se manterem em seus cargos nos dias de hoje, ainda que de forma velada, forçava-nos a aprimorar nossos conhecimentos e elevar o patamar de nossas práticas. Esse inconsciente coletivo que ali foi criado, era a cultura da escola, outrora desejada, se estabelecendo.
Já no dia a dia o foco era reconhecer que os jovens de hoje não são mais uma “pequena versão de nós mesmos” como foram no passado. Mas o fato de serem nativos digitais e de terem na tecnologia sua língua materna, traz mudanças profundas que tornam definitivamente obsoletas todas as abordagens pedagógicas do velho mundo. Hoje, os estudantes não são mais as pessoas que nosso sistema educacional se preparou para ensinar e, “para preservar alguma eficácia (e credibilidade), o sistema escolar deve, imperativamente, se adaptar a essa revolução” (DESMURGET, 2021, p.12).
Assim, a ideia era tornar as aulas mais atrativas a partir da elaboração de atividades de ensino mais próximas daquilo que os alunos de hoje em dia consomem: um conteúdo rápido, imagético, atrativo e, majoritariamente, virtual. E a cada aula elaborada com esse objetivo e realizada nesse estilo, a cultura escolar ia se tornando cada vez mais forte.
Com o passar do tempo, não era mais necessário pedir para os alunos pegarem os iPads das mochilas, muito menos averiguar se os mesmos estavam carregados. Já era automático. Pesquisas a sites para buscar informações pertinentes ao conteúdo em pleno decorrer da aula eram normais e iniciativas de muitos deles. Boletins, eventos, avisos, lembretes de tarefas, agendas, cronogramas de provas e calendários eram alimentados pelos professores e consultados pelos pais e alunos em programas digitais adotados pela escola ou no Classroom de forma natural. Atividades de ensino lançando mão dos mais variados recursos tecnológicos ocupavam grande parte do planejamento dos professores.
O caráter fábula se desenhava, enfim, nessa superação propriamente dita de uma escola que, enquanto instituição, ainda permanece analógica em pleno 2020, para alunos e sociedade que são, hoje, digitais.
Quando me deparei, em contrapartida, inserida em uma outra realidade onde os recursos tecnológicos existiam, mas não estavam apropriados como cultura daquela escola, significou para mim quase que um “dar pérolas aos porcos”.
Mas até que ponto a inserção e adoção de tecnologias nas escolas são mesmo “pérolas”?
A Perversidade
A outra realidade por mim vivenciada são os colégios públicos da Rede Estadual de São Paulo, pois sou professora concursada e efetiva desde 2004 até os dias de hoje, lecionando para EFII e EM. Muito embora tenha passado por vários deles – me removendo conforme minha necessidade com o passar dos anos – posso englobá-los em um só perfil no que se refere à presença (ou não) de tecnologias, pois em todos os onze que dei aulas nesses vinte e um anos de carreira, as características que observei foram praticamente as mesmas.
A começar pelo sinal de Wifi que é restrito apenas à direção e à coordenação pedagógica, fazendo com que os alunos tenham acesso à Internet somente em computadores (bastante antigos, lentos e defasados) em uma sala ou laboratório de informática. Para poder acessar esse laboratório, todavia, o professor deveria fazer uma reserva prévia em um caderno e torcer para que em seu dia e horário planejado já não estivesse sido preenchido por outro professor.
Em todas essas salas que conheci a realidade era a mesma: salas sujas, mal organizadas, geralmente eram mal ventiladas, com cadeiras quebradas. Não havia números suficientes de máquinas para um acesso individual e os alunos deveriam agrupar-se em duplas ou trios para usá-los. Era comum nem todos os computadores funcionarem, a bancada estar empoeirada e o monitor responsável não estar presente.
Igualmente difícil era desenrolar uma atividade de ensino criativa e de qualidade nesses ambientes, pois a indisciplina era constante: os alunos ficavam contentes de terem aula lá, mas, por sentarem em duplas, conversavam muito, conectavam seus fones de ouvido na caixinha, falavam alto e se dispersavam. Acabava por ser uma sala subutilizada por mim e por muitos professores, perante toda a mão de obra que envolvia levá-los, desde fazer a reserva prévia em um caderninho que sempre sumia, depois ir procurar pela chave que ninguém sabia onde estava, até o desgaste pelo tempo de deslocamento dos alunos até a sala, pela morosidade de conexão, por ter que lidar com a inevitável bagunça e desatenção dos alunos, por todo stress que me causava e a constatação desanimadora de que a finalidade pedagógica, infelizmente, acabava por ser ínfima e não valer a pena.
Esse é um exemplo de como a Globalização enquanto perversidade pode ser observada nos espaços educacionais. Além da minha percepção pessoal, dados oficiais advindos de pesquisas feitas em território nacional, por instituições como o Comitê Gestor de Internet no Brasil (2022), ou a Agência Nacional de Telecomunicações (2022), apontam que quase a metade das escolas brasileiras não possui Internet com velocidade suficiente para uso pedagógico em sala de aula: “O Brasil tem 138 mil escolas públicas. Três em cada dez não têm laboratório de informática”, segundo a Anatel (2022).
Já a pesquisa do CGI.br (2022) mostrou que 94% das instituições de Ensino Fundamental e Médio estão conectadas à rede, mas apenas 58% contam com computador e Internet para uso dos estudantes.
Tal qual a minha percepção, os docentes que responderam à pesquisa – feita em aproximadamente 1.400 escolas – também elencaram alguns aspectos relacionados à conectividade como obstáculos ao uso das tecnologias digitais em atividades de ensino e de aprendizagem. Entre os principais motivos para não utilizarem tais recursos com os estudantes estão a falta de disponibilidade de computadores para uso dos professores ou dos alunos na escola (84%), e a falta de acesso à Internet para uso em atividades educacionais (53%). A dispersão dos alunos durante o uso de tecnologias digitais nas aulas é também citada por 46% destes profissionais.
Outro ponto relevante trazido pela pesquisa foi em relação à formação continuada sobre o uso de tecnologias digitais em atividades de ensino: para 75% dos professores, a falta de um curso específico também dificulta a adoção de tecnologias digitais em suas atividades educacionais com os alunos.
Se no estado mais desenvolvido do Brasil eu pude presenciar a defasagem na utilização dos recursos digitais por alunos e professores na geração de oportunidades de aprendizado e na formação de conhecimentos, posso imaginar como é a realidade no interior dos estados mais remotos localizados em regiões menos desenvolvidas do país. Com base nas informações, pode-se perceber o quanto a falta e a baixa qualidade da conectividade nas escolas podem influenciar negativamente as oportunidades de uso dos recursos educacionais nas atividades de ensino e aprendizagem.
Tanto os resultados dessa pesquisa, como a experiência vivida por mim nas escolas estaduais contribuíram para corroborar o conceito de exclusão digital, que é uma dimensão importante da globalização como perversidade abordada por Santos (2003). Muito embora tenha sido abordada dentro da esfera escolar, ainda assim se revelou capaz de demonstrar as desigualdades sociais de uma parcela marginalizada da sociedade.
A Resistência
Em maio de 2023 recebi um convite para lecionar em uma escola particular bastante conhecida em Campinas – SP, nas turmas de Ensino Fundamental, Médio e Pré-vestibular distribuídas em todas suas cinco unidades – e nela estou até hoje. A classifico como a simbologia da resistência, pois muito embora apresente uma megaestrutura contemporânea, colorida e dinâmica, semelhante aos colégios dos filmes teenagers americanos, ela é avessa à tecnologia em suas práticas pedagógicas.
Quando cheguei, fiquei impressionada: é de fato um colégio enorme, que chama muito a atenção pelos ambientes e serviços diferentes que oferece: desde a cantina e restaurante que parecem a praça de alimentação de um shopping, com stands charmosos de pipoqueiro tipicamente uniformizado, ponto de milk-shake e salgadinhos vendidos em cones, deslumbrantes estátuas em tamanho real do Einstein e outros personagens, gigantes dinossauros em réplicas realistas do Jurassic Park, letreiros enormes iluminados com mini lâmpadas amarelas, parquinhos equipados para os alunos mais novos, fliperamas e mesas de pebolim espalhadas pelos corredores, telões exibindo as propagandas do colégio, até várias salas de estudos decoradas de forma linda e divertida. É, sem dúvida, a escola mais vibrante, bonita e moderna que já dei aula na vida.
Seu marketing é muito forte, pois os donos investem pesado em propagandas de tv, redes sociais, outdoors com personalidades famosas espalhados pela cidade toda e no principal shopping da cidade, contando, ainda, com um exuberante teatro que leva seu nome. Toda essa empolgação do primeiro contato me fez ficar vislumbrada e ter a sensação de que seria outro colégio fábula, mas, para a minha surpresa, foi totalmente o oposto.
Os alunos não usam nenhum dispositivo eletrônico como tablets ou chromebooks nas aulas, não são adotadas plataformas digitais de ensino, mas somente apostilas físicas, caderno e estojo.
É, inclusive, terminantemente proibido o uso de celulares em sala de aula, tendo como consequência a perda da bolsa, caso o aluno seja pego usando. Esse apoio efetivo da direção foi muito importante e os professores não se sentiram acuados em fazer acontecer. Com esse respaldo, todos tivemos a mesma postura: começamos a mandar os primeiros disruptivos para fora e não demorou muito para todos os estudantes entenderem que a regra, de fato, estava valendo.
Essa se refletiu com mais uma forma do caráter de resistência da cultura desta escola aos dias atuais: foi necessário um controle mais rigoroso, com direito à punição, para ir contra o uso excessivo, descontrolado e desrespeitoso do celular em sala de aula.
Outra forma velada de resistência pode ser observada nos obstáculos de se conseguir usar o pouco de tecnologia que esse colégio oferece: as salas de aula contam com datashow, mas seu uso me parece ser pouco incentivado, por uma série de fatores. Primeiramente, é necessário chamar um monitor do corredor para poder ligá-lo e às vezes ele não se encontra lá, ou está ocupado resolvendo outros problemas. Quando vem, já se passaram muitos minutos da aula, atrapalhando o planejamento para tal. Não há computador conectado a esses datashows para uso dos professores nas salas. Nós temos acesso a poucos chromebooks que ficam disponíveis para a escola inteira e não há garantia de que na aula que você planejou usá-lo, terá algum disponível. Então alguns professores levam seus notebooks pessoais que, além de ser cansativo, nem sempre são compatíveis com as conexões dos cabos. Eu, por exemplo, cansei de levar meu notebook antigo e pesado e comprei um iPad para essa finalidade. Para minha triste surpresa ele não era compatível com os cabos e o projetor não o reconhecia. Tive que vendê-lo e comprar meu próprio Chromebook. Mesmo assim, às vezes ele não é reconhecido em determinadas salas, pois os modelos de adaptadores e datashows são diferentes.
Muito embora eu goste de passar slides atrativos para meus alunos, ou poder buscar uma imagem, um dado, uma informação que surge naqueles insights que temos durante a aula, enfrentar todas essas dificuldades acabaram por me desestimular a fazê-lo e assim eu ajo como a maioria dos demais professores deste colégio: priorizando as tradicionais aulas expositivas, passando lousa e explicando a matéria.
Em relação às notas, é padronizada a cobrança de duas provas, sendo uma dissertativa e outra optativa, preparada pelos professores, e um simulado geral por bimestre, de todas as disciplinas, com questões objetivas. O professor não pode inventar trabalhos ou atividades lúdicas/práticas para compor essa nota, engessando, dessa forma, o modelo avaliativo.
Por último, não há laboratórios de informática ou aulas voltadas para o uso de tecnologias e, por todas essas razões, a enquadrei como resistência ao processo, nadando contra a correnteza das escolas privadas do país que cada vez mais investem em tecnologias – seja na estrutura, seja no currículo.
Essa característica se difere daquela outrora classificada como perversidade, porque não se trata de excluídos digitais por razões econômicas, como observado nas escolas estaduais. Pelo contrário, a clientela é majoritariamente composta por famílias abastadas da cidade – como pude perceber pelos carrões delas na hora da saída, ou pela fala dos alunos contando sobre suas viagens internacionais, shows, restaurantes que frequentam, cursos que fazem e que, definitivamente, não são baratos. Embora tenha um número de bolsistas, não é a maioria. Deste modo, os alunos teriam condições de comprar dispositivos tecnológicos para usar nas aulas e, a escola, de equipar com o que fosse necessário sua estrutura física. Foi, portanto, uma opção em não as usar. Quais seriam, então, as razões dessa resistência? Levei um semestre para compreender a cultura desta escola e a resposta está tanto em sua origem, como em seu propósito.
Ela surgiu como curso Pré-vestibular e com o passar do tempo foram ampliando as unidades e abrindo turmas de Ensino Médio. Depois de uns anos, abriram-se turmas de Ensino Fundamental II e só mais tarde de Ensino Fundamental I. Ou seja, o caminho foi o inverso do que acontece com a maioria dos colégios particulares brasileiros, que começam com turmas dos anos iniciais e vão evoluindo de nível conforme a demanda. Assim, ela conservou suas origens de estilo “aulas de cursinho”, cuja intenção é conseguir um maior número de aprovados nos principais vestibulares do país e, para tanto, sua missão foi manter-se essencialmente conteudista.
Para se ter uma ideia, não há mesa e cadeira para os professores nas salas de aula e nenhum deles contesta o fato de doer os pés e a lombar por ficar até 7 horas de pé ou ter que colocar suas bolsas e materiais no chão. Estão acostumados. É mais um exemplo de como a cultura de uma escola é implantada e como a desta se construiu: tudo é pensado para que se perpetue seu modelo original, de modo a atingir seu propósito único que são as aprovações.
Todavia, ela distancia-se da minha ideia de analogia inicial que fiz com a Globalização como resistência de Santos (2003), já que, para esse autor, esta se refere à capacidade das populações locais e dos movimentos sociais de usar a própria lógica da globalização para contestar e transformar o sistema hegemônico imposto pelas grandes corporações e Estados dominantes. Essa lógica envolve a utilização das mesmas tecnologias e redes globais que sustentam a globalização hegemônica, mas de uma maneira que empodere as comunidades locais, promova justiça social e econômica, e preserve a diversidade cultural – ou seja, tudo o que esse colégio privado e reprodutor de um modelo hegemônico que perpetua as desigualdades e concentra poder naqueles que podem pagar as altas mensalidades, não é.
Após refletir sobre isso, decidi manter sua classificação como resistência, desde que seja interpretada como uma analogia dentro da analogia: A Globalização hegemônica miltoniana seria a massa dos colégios privados cheios de tecnologias – tanto as fabulosas, quanto as disfarçadas – e a contra hegemonia emergiria da aversão às tecnologias próprias deste colégio, cuja resistência não é proveniente das populações marginalizadas, obviamente, tampouco para promover uma justiça social, mas sim, dos interesses únicos e exclusivos de seus mantenedores.
Tal como os Jesuítas
Mais do que pontuar a origem e descrever o fato – a chegada das tecnologias na escola – o que importa é a mudança de paradigmas que esse acontecimento causou. Gonçalves (2013, p. 25) aponta que as origens ou a veracidade dos fatos já não configurariam mais questão principal, mas sim, a existência de sua crença ao longo do tempo.
[…] as mudanças, transformações, permanências etc. que colaboraram para que ela se tornasse realidade, e como a mesma aconteceu em distintos tempos, espaços, sociedades e culturas – se torna uma questão importante, ou uma das mais relevantes para um historiador investigar, e sua explicação deve considerar diversos elementos que contribuíram para a crença nesse processo.
A crença na presença das tecnologias em escala global e nas diversas esferas socioeconômicas assentou-se mais rapidamente no imaginário coletivo do que nas escolas brasileiras. Por aqui ela não surgiu ou foi construída de repente, mas caracterizou-se como um processo moroso e desigual. Desigual em vários sentidos, como quando pensamos no abismo que existe entre escolas que adotam tecnologias e as que não adotam e em que medida o fazem.
O sentido pode ser geográfico, quando comparamos as regiões mais e menos desenvolvidas do Brasil, ou mesmo os bairros mais e menos favorecidos de uma cidade. Dentro desta perspectiva georreferenciada, ecoa o viés econômico: o elevado poder aquisitivo de algumas famílias e a existência de colégios engajados em adotá-las para atender a essa nova demanda que surge a partir das exigências do Capitalismo vitorioso pós-Guerra Fria se contrapõe àquelas excluídas do processo. O novo mercado de trabalho passa a exigir profissionais aptos a entender, trabalhar com e produzir novas tecnologias, nas mais diversas áreas e a formação escolar não poderia mais deixar de oferecer e desenvolver tais habilidades. Atrelado a esse, outro sentido seria o social, observado na mudança do comportamento das pessoas perante um mundo que vem se tornando cada vez mais globalizado. As tecnologias invadiram as casas, indústrias e serviços e modificaram a forma de consumir, de se locomover e de se comunicar das pessoas. O mundo tomando o formato digital e a escola no formato analógico não faz mais sentido na Nova Ordem Mundial. Entretanto, muito permaneceu.
Um grande exemplo do que permaneceu entre as inúmeras práticas, rotinas e modus operandi de uma sala de aula, podemos observar quando Gonçalves (2013, p. 26) descreve o bastante familiar modo como os jesuítas aplicavam suas provas no Brasil Colônia do século XVI:
Em suas orientações elencavam a importância do tempo de prova, de o aluno não faltar (a não ser em caso grave), de chegar com antecedência, de não conversar com o colega que está sentado ao lado e não poder pegar a prova de volta quando entregá-la ao professor (naquela época, denominado “prefeito”). Classifico-o como incrivelmente familiar, no sentido de que como pode esse procedimento ter perdurado por tanto tempo! Semana passada eu orientei meus alunos do Ensino Médio exatamente da mesma forma que os jesuítas do século XVI!
Todavia, existem hoje possibilidades outras de aplicação e realização das provas – que é o que quero mostrar acerca das inovações tecnológicas. Os professores podem elaborar avaliações, por exemplo, no Google Forms que foi, inclusive, muito utilizado durante a quarentena. Esse é um programa através do qual, basicamente, permite ao professor criar questões tanto dissertativas, como objetivas, a copiar gráficos, imagens, tabelas da Internet, adicionar textos, etc. e compartilhar na lista de e-mails dos alunos ou no próprio Google Classroom da sala. É possível agendar o “disparo” do acesso à prova, embaralhar as questões e definir o valor de cada uma. Os alunos podem respondê-la, por sua vez, em um notebook, chromebook, tablet ou celular, desde que tenha acesso a um sinal de Internet, seja Wifi ou 4G. Nada impede, também, deste aluno abrir a prova e respondê-la em uma folha de papel que será entregue ao professor ao final do tempo permitido. Caso o aluno precise faltar, pode receber a prova na casa dele e respondê-la remotamente. Claro que isso implicaria em uma postura de honestidade deste aluno em casa, uma vez que poderia, facilmente, “colar”, já que não estava sob o olhar vigilante do professor. Esses e outros problemas dessa natureza os jesuítas, obviamente, não tinham que se preocupar.
Esse é, entretanto, um exemplo descrito de forma bastante resumida – principalmente se pensarmos na enorme gama de outros programas semelhantes e métodos de preparação e aplicação de provas parecidos ao Forms que existem. Mas é apenas para ilustrar como um processo tão discutido e tão presente nas escolas brasileiras – a aplicação de provas – pode apresentar, ao mesmo tempo, permanências e transformações.
A discussão a ser feita é: até quando essas práticas serão repetidas e postergadas pelos professores sem passar por uma reflexão sobre a real efetividade de seus resultados? Seria apenas a simples imitação do que sempre foi dado ou configuram-se como ações escolhidas intencionalmente e isso, simplesmente, faz parte da Cultura de uma Escola?
Com ou sem intencionalidade, com ou sem reflexão, é possível observar que hoje em dia pode-se, tranquilamente, repetir um processo tal qual era realizado no Brasil Colonial, como também pode-se fazê-lo de outra forma, com o advento das novas tecnologias. Essa outra forma exigiu, por sua vez, um domínio do novo.
Exigiu que professores se familiarizassem com as ferramentas digitais, aprendessem a mexer, testassem seus recursos, perdessem o medo, encarassem os desafios, vencessem os obstáculos, superassem as dificuldades e se aventurassem, acima de tudo, em um mundo nunca antes experimentado. Eu vivi tudo isso, junto aos meus colegas de profissão – alguns com mais facilidade, já outros, com mais estranhamentos.
Inteligência Artificial na Educação: Adeus aos Professores?
Essa é a primeira vez que, oficialmente, estou professora-pesquisadora, no sentido de refletir sobre minha prática e escrever sobre ela, fazendo, ainda, uma ponte com minha vida pessoal. Escrevo aqui, sob uma perspectiva narrativa e qualitativa, perpassando por cada fase da minha história escolar, acadêmica, profissional, individual, particular. Indissociadas. Híbridas. Belas. Uma beleza que floresce justamente dessa indissociação e que, certamente, nenhuma Inteligência Artificial seria capaz de reproduzir.
Para mim, é muito importante trazer à tona e não fragmentar em caixas separadas, pois é assim que acontece na vida real. Já existem teorias fragmentadas e específicas demais na Educação sobre isso, o que, claro, é ótimo. Contribui, enriquece, permite avanços práticos e científicos, não só na Educação, como na vida. As ciências insistem em compartimentar quando, no fundo, nada é separado. A própria Geografia é um exemplo disso.
Desde a graduação observei a dicotomia entre Geografia Física e Humana. Mas como dissociar as características naturais da Geomorfologia ou da Pedologia de uma região sem relacioná-las com seu potencial agrícola? Ou a oferta de rios navegáveis ou não e sua relação com o potencial hidroviário ou hidrelétrico de um país? Nas escolas, continuam: “Geo Geral”, “Geo Brasil”, Geopolítica, Atualidades. Isso sem mencionar o tanto de interdisciplinaridade em cada assunto: Vegetação com Biologia; Indústria com Economia; Escala com Matemática; Clima com leis da Física; Cartografia com Artes e Geometria; Orientação no espaço com Educação Física; IDH com Sociologia; Ciclos econômicos na formação do Brasil com História. Vida pessoal e vida profissional.
Ao meu ver, não são dissociáveis. Nunca foram e nunca serão. A menos que o professor seja substituído por robôs – o que já não é uma possibilidade restrita aos filmes de ficção científica: recentemente, graças aos avanços incrivelmente rápidos (e assustadores) da Inteligência Artificial, pesquisadores do Google Brain criaram três robôs (Eve, Alice e Bob) que, pela primeira vez na história, essas entidades conseguiram se comunicar, sozinhas, de forma secreta e confidencial! (GARATTONI, 2016).
Deixando de lado a possibilidade apocalíptica das máquinas dominarem o mundo e a raça humana como em Exterminador do Futuro, na prática elas já se mostram capazes de reproduzir com maior rapidez e excelência as habilidades de diversas profissões. Dizem que, muito em breve, muitas delas não existirão mais, inclusive as criativas. Mas o que é, afinal, essa Inteligência Artificial que tanto se fala e de que modo pode impactar na vida das pessoas, nas profissões existentes e até no risco de deixarem de existir por causa delas? Será que a profissão docente corre esse risco?
A inteligência artificial (IA) é um campo da ciência da computação que se concentra no desenvolvimento de sistemas capazes de executar tarefas que, normalmente, requerem inteligência humana. Esses sistemas são projetados para aprender, raciocinar, reconhecer padrões, tomar decisões e resolver problemas de forma autônoma, utilizando algoritmos e técnicas avançadas.
A IA tem o potencial de impactar significativamente várias áreas e setores, incluindo a força de trabalho e as profissões. À medida que a tecnologia avança, é possível que algumas tarefas e atividades realizadas por humanos sejam automatizadas e assumidas por sistemas de IA. Essa perspectiva tem levantado debates sobre a substituição de profissões no futuro e, ao meu ver, a profissão docente não estaria imune a essa discussão, mas colocarei meu ponto de vista.
No contexto educacional, a IA já está sendo explorada para oferecer recursos e ferramentas que auxiliam no processo de aprendizagem. Por exemplo, sistemas de tutoria inteligente podem fornecer feedback personalizado aos alunos, adaptando-se às suas necessidades individuais de aprendizagem. Além disso, chatbots educacionais podem ajudar a responder dúvidas dos alunos e fornecer suporte em tempo real, como o Chat GPT da Open ai. Algo semelhante ao que uma pesquisa no Google faz, ou os vídeos-aula e tutoriais buscados no YouTube, porém, esses sistemas já oferecem a resposta pronta, não uma lista de sites e páginas que trazem o assunto buscado. Se antes nós, professores, já reclamávamos dos famosos “Ctrl C, Ctrl V”, agora então será mais difícil ainda identificar a cópia. Existem programas que identificam supostos plágios, mas mesmo estes podem não ser seguros.
Esse é o exato ponto em que gostaria de chegar. Se pararmos para pensar, eu vivenciei o recorte temporal da transição do analógico para o digital nas escolas e, o que diferencia o eu aluna, na década de 1990, que ia à biblioteca e copiava da enciclopédia Barsa, (em folha de papel almaço!), o assunto solicitado pela professora, do meu aluno da década de 2020 que copia do Chat GPT? Nada. Quer dizer, a ferramenta e a velocidade são outras e, definitivamente ele não o faz em folha almaço (elas ainda existem?) – mas a ideia, a intencionalidade é a mesma! Está intrínseca no imaginário coletivo do que é ser aluno, justificada pela necessidade evolutiva da maioria das pessoas em buscar atalhos, desde que o mundo é mundo. E o problema não está nesta atitude postergada por gerações, mas sim, na finalidade da entrega deste trabalho, por exemplo. O porquê da atividade e o como se tornar significativa de fato para a aprendizagem discente é que deveria ser repensado. Como já dizia Maquiavel, “os fins justificam os meios”. Para piorar, em tempos de tecnologia onde os trabalhos são feitos em ambientes digitais, até mesmo o fato da escrita no papel é prejudicada.
No entanto, é importante ressaltar que a IA não pode substituir completamente o papel do professor. A educação é um processo complexo que envolve não apenas a transmissão de conhecimento, mas também a criação de um ambiente de aprendizagem estimulante, o desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais, e o estabelecimento de uma conexão humana significativa. Esses aspectos são essenciais para a formação integral dos alunos e vão além da capacidade atual dos sistemas de IA – pelo menos, por enquanto. A interação entre o professor e os alunos desempenha um papel crucial no processo de aprendizagem, influenciando diretamente o engajamento dos estudantes, sua motivação e seu desempenho acadêmico. Além disso, a presença de um professor qualificado pode fornecer orientação, apoio emocional e um modelo positivo para os alunos – desde que, claro, sua terapia esteja em dia.
Embora a IA possa ajudar na automação de algumas tarefas administrativas e oferecer recursos complementares no ensino, acredito que a presença de um professor humano é fundamental para promover a aprendizagem significativa e o desenvolvimento integral dos alunos. A interação humana, a empatia, a capacidade de se adaptar às necessidades individuais dos estudantes e de criar um ambiente seguro e inspirador são características que dificilmente podem ser replicadas por sistemas de IA. Será que os robôs conseguirão identificar aquele olhar tristinho de algum aluno que, por algum motivo, não está bem naquele dia? E valorizar aquela resposta meio atrapalhada, mas com um raciocínio certo, que dá para considerar na prova? E incentivar aquele aluno a continuar, apesar de suas limitações, ressaltando e desenvolvendo outras de suas múltiplas habilidades? Por outro lado, certamente essas formas de Inteligências Artificiais não se indignarão com os baixos salários, nem sentirão raiva, cansaço, dores nos pés, na garganta, na lombar e nos ouvidos com o barulho ensurdecedor de uma sala de aula lotada de alunos indisciplinados.
Portanto, é mais provável – e assim espero – que a IA atue como uma ferramenta para aprimorar e apoiar o trabalho dos professores, em vez de substituí-los. Os professores podem aproveitar as tecnologias baseadas em IA para otimizar sua prática, personalizar o ensino, acessar recursos educacionais avançados e lidar com a diversidade dos alunos de forma mais eficiente e atrativa, uma vez que é senso comum entre os professores a dificuldade que temos em competir com a dopamina oferecida pelas redes sociais e pelos jogos eletrônicos, por exemplo.
Em suma, embora a inteligência artificial possa ter um impacto significativo na forma como a educação é conduzida, a substituição completa dos professores pela IA é, ao meu ver e pelo menos por enquanto, improvável. O papel do professor continua sendo fundamental na promoção da aprendizagem significativa e no desenvolvimento dos alunos, uma vez que habilidades humanas, como empatia, criatividade e habilidades sociais, ainda são indispensáveis para uma educação de qualidade. A combinação da expertise dos professores com as potencialidades da IA pode trazer benefícios e transformar positivamente o cenário educacional, preparando os alunos para os desafios do futuro.
Conclusão
Com base nessas observações, provêm daí a importância de um constante refletir sobre nossas práticas, de modo a torná-lo o pano de fundo desta pedagogia 4.0, sem perder de vista o intuito de desenvolver práticas de ensino inovadoras, promover a inclusão e a equidade, entre outros temas relevantes para a melhoria da educação. Mais que uma cena de um filme futurista, onde professores e robôs disputam seus lugares em um cenário catastrófico, esse argumento pode ser usado como uma proposta de trabalho em conjunto e não em substituição um pelo outro. Não adianta, portanto, sair quebrando as máquinas, como no início da Revolução Industrial do século XVIII.
Enquanto esse futuro não chega, gostaria de voltar à questão do professor de carne e osso em toda sua complexidade que, inevitavelmente, é trazida direta ou indiretamente à sala de aula refletindo a indissociabilidade da vida pessoal e profissional. Não quero dizer, obviamente, que não tenha que haver determinadas posturas próprias de sala de aula e próprias de um churrasco sábado à tarde. Uma coisa é o discernimento entre essas situações e outra são seus sentimentos, valores, momentos de vida, marcas da história de vida de um professor que, invariavelmente, entram com ele na sala de aula e se refletem na ação. A questão é: até aonde ir? Qual o limite deve ser estabelecido entre o eu professor e o eu indivíduo, ser social, com seus esforços, metas, sonhos, medos e preços a pagar?
A ressignificação de experiências e a necessidade de escuta como ferramenta fortalecedora da identidade docente, tornam-se essenciais para o respeito e valorização que esses profissionais carecem.
Referências
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DESMURGET, M. A fábrica de cretinos digitais: Os perigos das telas para as nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2021.
GARATTONI, B. Robôs do Google aprendem a se comunicar – secretamente – entre si. 2016. Disponível em www.super.abril.com.br.
GONÇALVES, N. G. Constituição Histórica da Educação no Brasil. Curitiba: InterSaberes, 2013.
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SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. 174 p.
1 Professora de Geografia há 21 anos, com Graduação, Mestrado e Doutorado em andamento em Geografia pela Unesp – Rio Claro/SP. E-mail: ralocali@yahoo.com.br.