HUMAN RIGHTS AND SUPPORT FOR FAMILIES VICTIMS OF CRIMES AGAINST LIFE
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202411101613
VALACIO, Lucas de Sales;
RODRIGUES, Claudio Vieira.
Resumo: O presente trabalho traz como escopo abordar os direitos humanos – centralidade de qualquer reflexão jurídica, afinal, todo direito tem condão antropocêntrico – em consonância com o amparo social e jurídico de famílias que tiveram entes com vidas ceifadas pela violência. Em especial, as famílias de vítimas de crimes contra a vida. Nas pegadas desse processo, o problema de pesquisa consiste na indagação de como se pode fortalecer meios de proteção social e jurídica para “aqueles que ficam”, isto é, os familiares das vítimas de homicídios consumados. O objetivo geral consubstancia em refletir os crimes contra a vida sob uma ótica de tutela penal diferente: aquela que se volta não para a vida ceifada, mas para a vida que, com dificuldade, precisa continuar. Daí a importância de uma apuração, investigação, processo, instrução e julgamento justos para garantir que a verdade seja reconstituída e esclarecida para os familiares. A metodologia empregada consiste em revisão bibliográfica, feita de modo crítico, sistêmico e integrativo da literatura pertinente, a partir de método indutivo, pesquisa explicativa e enfoque qualitativo. Primeiramente, faz-se uma discussão sobre a dignidade da pessoa humana como valor jusfilosófico. Em segundo lugar, reconhece-se a tutela do bem jurídico “vida” protagonizada pelo direito penal. Em terceiro, analisa-se formas de proteger social e juridicamente famílias de vítimas de homicídio. Como resultados, sedimenta-se que a proteção social e jurídica das famílias de vítimas de homicídio requer uma abordagem integrada e multifacetada. Em primeiro lugar, a dignidade da pessoa humana, enquanto valor fundamental, deve ser central nas políticas e práticas voltadas para essas famílias, garantindo que sua integridade e direitos sejam preservados e respeitados ao longo de todo o processo judicial. Em segundo lugar, é imperativo que o direito penal, ao tutelar o bem jurídico “vida”, não se limite apenas à punição do perpetrador, mas também considere o impacto duradouro sobre os sobreviventes e busque oferecer suporte contínuo. Além disso, a pesquisa evidenciou que, para fortalecer a proteção social e jurídica, é necessário implementar mecanismos efetivos de apoio psicológico, social e jurídico, que vão além das medidas paliativas.
Palavras-chaves: Crimes. Direitos humanos. Violência.
Abstract: The scope of this study is to address human rights – a central aspect of any legal reflection, after all, all rights have an anthropocentric nature – in line with the social and legal support of families whose lives were cut short by violence. In particular, the families of victims of crimes against life. In the wake of this process, the research problem consists of asking how to strengthen means of social and legal protection for “those who remain”, that is, the relatives of victims of completed homicides. The general objective is to reflect on crimes against life from a different perspective of criminal protection: one that focuses not on the life that was cut short, but on the life that, with difficulty, must continue. Hence the importance of a fair investigation, trial, instruction and judgment to ensure that the truth is reconstructed and clarified for the relatives. The methodology used consists of a bibliographic review, carried out in a critical, systemic and integrative manner of the relevant literature, based on an inductive method, explanatory research and a qualitative approach. First, the article discusses the dignity of the human person as a legal- philosophical value. Second, it recognizes the protection of the legal asset “life” as played by criminal law. Third, it analyzes ways to socially and legally protect families of homicide victims. As a result, it is established that the social and legal protection of families of homicide victims requires an integrated and multifaceted approach. First, the dignity of the human person, as a fundamental value, must be central to policies and practices aimed at these families, ensuring that their integrity and rights are preserved and respected throughout the entire judicial process. Second, it is imperative that criminal law, when protecting the legal asset “life”, is not limited to punishing the perpetrator, but also considers the lasting impact on survivors and seeks to offer ongoing support. In addition, the research showed that, in order to strengthen social and legal protection, it is necessary to implement effective mechanisms of psychological, social and legal support, which go beyond palliative measures.
Keywords: Crimes. Human rights. Violence.
1 INTRODUÇÃO
A proteção dos direitos humanos é um pilar essencial em qualquer reflexão jurídica, dado que todo direito é intrinsicamente antropocêntrico. No contexto jurídico, a centralidade dos direitos humanos se manifesta de forma particularmente aguda quando se considera o impacto da violência sobre os indivíduos e suas famílias. A perda de um ente querido devido a crimes contra a vida não apenas desestabiliza a estrutura familiar, mas também exige uma resposta jurídica e social adequada que vá além da simples punição dos perpetradores. Este trabalho se propõe a explorar a interseção entre a tutela penal dos crimes contra a vida e o suporte às famílias das vítimas, abordando as necessidades dessas famílias que enfrentam as consequências duradouras da violência.
O contexto específico deste estudo é a necessidade urgente de amparo social e jurídico para as famílias que sofreram a perda de um ente querido em decorrência de homicídios. Em muitos casos, o sistema de justiça se concentra predominantemente na responsabilização dos responsáveis pelos crimes, muitas vezes negligenciando o suporte necessário para os sobreviventes e suas famílias. Este desequilíbrio evidencia a necessidade de uma abordagem mais holística e humanizada, que considere não apenas a justiça penal, mas também a justiça social e emocional para aqueles que ficam.
O problema de pesquisa é: Como se pode fortalecer meios de proteção social e jurídica para “aqueles que ficam”, ou seja, para os familiares das vítimas de homicídios consumados? Esta questão é central para entender como melhorar o suporte às famílias enlutadas e garantir que suas necessidades sejam adequadamente atendidas durante o processo judicial e além dele.
Possíveis respostas ao problema de pesquisa incluem a implementação de mecanismos mais robustos de apoio psicológico, social e jurídico para as famílias afetadas. A investigação pode revelar a importância de programas de apoio que abordem o trauma emocional, a assistência jurídica contínua e políticas de reparação que reconheçam o sofrimento das famílias. Também pode destacar a necessidade de uma abordagem integrada que conecte a justiça penal com o suporte contínuo para os sobreviventes.
O objetivo geral deste trabalho é refletir sobre os crimes contra a vida sob uma ótica de tutela penal que se volta não apenas para a vida ceifada, mas para a vida que, com dificuldade, precisa continuar. Para isso, os objetivos específicos incluem discutir a dignidade da pessoa humana como valor jusfilosófico, reconhecer a tutela do bem jurídico “vida” protagonizada pelo direito penal e analisar formas de proteger social e juridicamente as famílias de vítimas de homicídio.
A justificativa para a escolha do tema reside na importância de oferecer uma resposta jurídica e social mais completa às famílias enlutadas, reconhecendo que a proteção dos direitos humanos se estende não apenas à justiça pelo crime cometido, mas também ao suporte às vidas que permanecem e necessitam de cuidados contínuos.
A metodologia adotada é uma revisão bibliográfica crítica, sistêmica e integrativa da literatura pertinente, utilizando o método indutivo, uma abordagem explicativa e um enfoque qualitativo. Essa abordagem permite uma análise aprofundada das questões e a identificação de melhores práticas para fortalecer a proteção social e jurídica das famílias.
O artigo está estruturado em seções que incluem esta introdução, seguida pelo desenvolvimento, que abordará a dignidade da pessoa humana, a tutela do bem jurídico “vida”, e as formas de proteção das famílias de vítimas. A conclusão sintetizará os principais achados e proporá recomendações para melhorar o suporte às famílias afetadas.
2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – VALOR JUSFILOSÓFICO
A dignidade da pessoa humana, como valor jusfilosófico, ocupa uma posição central na construção e interpretação dos sistemas jurídicos contemporâneos, refletindo uma transformação significativa na percepção dos direitos e do papel do indivíduo na sociedade. Historicamente, a noção de dignidade tem sido afirmada e reconfigurada ao longo dos séculos, adquirindo uma relevância crescente à medida que as sociedades evoluíram e suas concepções de justiça e direitos humanos se expandiram (Comparato, 2020).
Hannah Arendt (2021) postulava que a gênese dos direitos humanos reside no “direito a se ter direitos”. Noutro vértice, Kant (2020), afirmava que as coisas têm “preço”, ao passo que as pessoas possuem “dignidade”. Nesta esteira que o filósofo alemão postulou seu imperativo categórico que se divide em duas partes. A primeira corresponde à ordem de ação segundo a qual o princípio desta possa se converter numa lei universal. A segunda se consubstancia na ação que conserve a humanidade, seja a própria ou a do outro.
A dignidade da pessoa humana, enquanto conceito jurídico e filosófico, tem suas raízes na tradição clássica e nas filosofias iluministas, mas sua concretização efetiva é um fenômeno mais recente. Na Grécia Antiga, a dignidade estava intrinsecamente ligada à ideia de areté, ou excelência moral e cívica, enquanto na Roma antiga, o conceito de dignitas referia-se ao prestígio e à honra dos indivíduos em posição de autoridade. No entanto, essas noções eram predominantemente elitistas e não abrangiam a totalidade dos indivíduos (Comparato, 2020).
A afirmação moderna da dignidade da pessoa humana encontra sua expressão mais explícita na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, um marco que consolidou a dignidade como um princípio fundamental e universal. Este documento, emergido das cinzas da Segunda Guerra Mundial, reflete uma tentativa de reconhecer e proteger a dignidade intrínseca de cada indivíduo, independentemente de sua origem, crenças ou status social. A inclusão da dignidade como um valor fundamental no preâmbulo da Declaração não é meramente simbólica; ela estabelece um padrão normativo que influencia legislações e jurisprudências globais (Comparato, 2020).
No entanto, a aplicação prática deste princípio revela a complexidade e as tensões inerentes ao conceito de dignidade. Em um mundo onde desigualdades persistem e violações de direitos humanos continuam a ocorrer, a dignidade da pessoa humana enfrenta desafios significativos. As legislações e políticas públicas, embora frequentemente ancoradas no princípio da dignidade, podem ser insuficientes ou inconsistentes na prática, revelando uma lacuna entre a teoria e a realidade. A dignidade, então, não é apenas um valor normativo, mas um critério de avaliação contínua das condições de vida e do respeito aos direitos humanos (Comparato, 2020).
A realidade histórica da dignidade como um valor jurídico é afirmada por uma constante evolução dos conceitos e normas que buscam assegurar e promover o respeito à integridade e ao valor intrínseco de cada indivíduo. Contudo, a implementação prática desse valor demanda uma vigilância contínua e uma reflexão crítica sobre como as leis e políticas impactam a vida das pessoas. Em última análise, a dignidade da pessoa humana como valor jusfilosófico não deve ser vista como um ideal abstrato, mas como um princípio dinâmico que orienta a construção de um ordenamento jurídico mais justo e equitativo, refletindo a complexidade e a diversidade da experiência humana.
O que se pode inferir desta reflexão é que a violência e o extermínio da vida é a negação da dignidade humana. O ser humano é essencialmente “vida”. Promove vida e congrega esforços éticos para convivência humana. Arendt (2022), em outra fonte, recorda que quando se parte para uma perspectiva de morte e banalização do mal, se está com um comportamento que reduz à trivialidade premissas axiológicas inegociáveis. Daí a necessidade de se estabelecer o outro como horizonte ético e constituir uma lógica de respeito e alteridade. O que se contrapõe, definitivamente, à violência. O direito tem como finalidade a paz. Não é à toa que se estabelece, dentro da ótica dos direitos humanos, as chamadas gerações ou dimensões destes direitos (Martins, 2021).
Deu-se preferência ao termo “dimensão” para se romper com uma tendenciosidade de sucessão entre elas, como dava a entender na utilização da terminologia “geração”. A primeira corresponde ao absenteísmo estatal, assegurando liberdades individuais, direitos civis e políticos. Nela, o Estado se afasta e confere ao indivíduo garantia de não intervenção arbitrária. Logo, há o valor da liberdade (Martins, 2021).
Em seguida, tem-se a dimensão dos direitos sociais e econômicos, que demandam uma prestação positiva por parte do Estado na concessão de um mínimo existencial. Aqui, há destaque para o Estado do bem-estar social, professado em Constituições como a de Weimar na Alemanha e a do México, ambas na primeira metade do século XX. Assim, há o valor da igualdade, mas não meramente formal, e sim material, correspondente à premissa de isonomia – tratar de modo igual os iguais e de modo desigual os desiguais na medida de suas desigualdades (Martins, 2021).
Ainda, tem-se a terceira dimensão, que é a dos direitos transindividuais, sendo realidades que abarcam a coletividade, como o direito ao “meio ambiente equilibrado”. Aqui, o valor postulado é de fraternidade, completando a tríade da Revolução Francesa. Outrossim, existe a quarta dimensão, que corresponde aos direitos de globalização, bioética, biodireito, engenharia genética etc. (Martins, 20210.
Por fim, autores defendem a existência de uma quinta dimensão: a do direito à paz, que pode parecer utópico ou até inatingível (Martins, 2021). Contudo, essa posição revela a assunção de uma postura dotada de beleza e significado: a finalidade do direito é a paz universal. Ele existe para buscá-la incessantemente.
Em meio a tempos líquidos, em meio a tanta fluidez informacional, como recorda o sociólogo polonês Zigmunt Bauman (2021), tem-se uma fragilidade nas relações humanas, sejam elas pessoais ou organizacionais. Tudo se mostra efêmero e as realidades sólidas acabam sendo escassas. O direito então aparece com a difícil tarefa de conferir proteção, portanto, solidez, a realidades que merecem atenção e zelo. O direito penal surge para viabilizar uma tutela ainda mais grave e significativa, sendo a ultima ratio das sanções.
3 A TUTELA DO DIREITO PENAL E A PROTEÇÃO DO BEM JURÍDICO “VIDA”
O direito penal, na sua essência, é concebido como um ramo do direito que se ocupa da tutela de bens jurídicos, sendo este o seu papel fundamental e distintivo dentro do sistema jurídico. A proteção dos bens jurídicos, enquanto objetivo do direito penal, reflete a tentativa de preservar valores essenciais para a convivência social e a ordem pública, ao mesmo tempo em que busca equilibrar a necessidade de punição com a justiça e a dignidade humana (Roxin, 2023).
Historicamente, o direito penal emergiu como uma resposta institucionalizada à transgressão de normas sociais, com o intuito de proteger o que é considerado valioso para a coletividade. A noção de bens jurídicos tutelados pelo direito penal evoluiu ao longo do tempo, adaptando-se às mudanças sociais, culturais e econômicas. No período clássico, o foco estava predominantemente na proteção da ordem pública e da segurança, com ênfase na repressão e punição. Com o avanço da modernidade e o surgimento de novas teorias jurídicas, o direito penal passou a reconhecer a necessidade de uma abordagem mais diferenciada e contextualizada na tutela dos bens jurídicos (Roxin, 2023).
No cenário contemporâneo, a identificação e a definição dos bens jurídicos a serem protegidos pelo direito penal são frequentemente objeto de debates e revisões. A noção de bem jurídico não é estática; ela reflete os valores e as preocupações predominantes de uma sociedade em determinado momento histórico. O direito penal não apenas protege bens tangíveis, como a vida, a propriedade e a integridade física, mas também bens intangíveis, como a honra, a liberdade e a dignidade, demonstrando uma ampliação e sofisticação na compreensão do que constitui o interesse coletivo a ser resguardado (Roxin, 2023).
O desafio reside na determinação dos limites da atuação penal e na definição dos bens jurídicos que merecem tutela. O direito penal, ao buscar proteger esses bens, enfrenta a constante tensão entre a necessidade de controle social e a garantia dos direitos fundamentais. A questão central é como garantir que a intervenção penal seja proporcional e adequada à gravidade dos crimes, evitando o excesso e a aplicação desmedida das normas punitivas. A prática penal muitas vezes revela a complexidade dessa tarefa, com a necessidade de balancear a proteção dos bens jurídicos com a preservação das garantias constitucionais e dos direitos humanos (Roxin, 2023).
Ressalte-se que a justiça restaurativa é uma tentativa de tornar a visão do direito penal mais humanizada e focada em desfazer as consequências negativas do crime, ao invés de estabelecer uma punição ensimesmada:
Ao propor um mecanismo que devolva os conflitos às partes, Christie pensa um sistema constituído por tribunais comunitários (neighbourhood courts), situados o mais próximo possível das comunidades, de forma que os valores locais possam sempre ser levados em consideração. Este modelo de justiça teria uma orientação à vítima, respeitando um procedimento próprio e escalonado, atendendo tanto os interesses das partes (vítimas e ofensores), sem descuidar da comunidade. As cortes locais apresentariam “uma mistura de elementos de tribunais civis e penais, mas com uma forte ênfase nos aspectos civis”, e os conflitos seriam previamente analisados por profissionais do direito para evitar punições indevidas (Carvalho; Anchiuti, 2021. p. 11).
Ora, como no caso de crimes contra a vida, pensando-se especificamente em homicídios consumados, a reparação em face da vítima é impossível, deve-se pensar nas vítimas secundárias da conduta delitiva. Isto é, os familiares, que precisam ser objeto de tutela, respeito e zelo por parte não só das ações assistenciais, mas dos esforços jurídicos.
Outrossim, a proteção dos bens jurídicos pelo direito penal não deve ser vista de forma isolada, mas integrada a um contexto mais amplo de políticas públicas e sociais. O direito penal, por si só, não é suficiente para abordar questões complexas como a violência, a desigualdade e a criminalidade. A eficácia da tutela penal está intrinsecamente ligada à existência de sistemas de justiça que promovam a reabilitação, a reintegração social e o apoio às vítimas, bem como à implementação de medidas preventivas que atuem sobre as causas subjacentes dos comportamentos criminosos (Roxin, 2023).
A tutela penal do bem jurídico “vida” no contexto do crime de homicídio é um tema que ilustra a complexidade e a centralidade do direito penal na proteção dos valores fundamentais da sociedade. Esta premissa, enquanto valor primordial e inalienável, ocupa um lugar de destaque no sistema jurídico, refletindo a importância que a sociedade atribui à preservação da existência humana e à integridade física do indivíduo. A abordagem penal do homicídio, portanto, não se limita apenas a uma resposta punitiva, mas envolve uma reflexão profunda sobre a natureza da proteção oferecida e suas implicações sociais e jurídicas. Não é à toa que a própria Constituição traz que o Tribunal do Júri, portanto, o povo de modo solene e soberano, deve emitir veredicto sobre condenar ou absolver quem comete crime doloso contra a vida (Martins, 2021).
A a proteção da vida tem sido uma das razões primordiais para a intervenção penal. O crime de homicídio, ao envolver a privação deliberada e ilícita da vida humana, representa uma violação direta e irreparável deste bem jurídico fundamental. No entanto, a forma como o direito penal aborda e trata o homicídio é fruto de um processo evolutivo e de complexas discussões sobre moralidade, justiça e direitos humanos. O direito penal contemporâneo busca equilibrar a necessidade de retribuição com os princípios de proporcionalidade e humanidade, refletindo uma compreensão mais sofisticada da dignidade humana e dos limites da intervenção estatal (Bortoncello, 2022).
A tutela penal do bem jurídico “vida”, ao lidar com o crime de homicídio, enfrenta desafios significativos relacionados à definição do que constitui uma ofensa adequada e justa. O sistema penal deve não apenas identificar e punir os responsáveis pelo homicídio, mas também assegurar que a punição seja proporcional à gravidade do crime e às circunstâncias envolvidas. A distinção entre homicídios dolosos e culposos, bem como a consideração de atenuantes e agravantes, são reflexões dessa tentativa de calibrar a resposta penal com a seriedade da infração e as condições particulares do caso (Roxin, 2023).
Além disso, a tutela penal do bem jurídico vida não pode ser compreendida isoladamente do contexto mais amplo de proteção aos direitos humanos e às vítimas. A intervenção penal deve ser contextualizada dentro de um sistema de justiça que busque não apenas a punição, mas também a reparação e o suporte às vítimas e suas famílias. A resposta penal ao homicídio deve ser acompanhada por políticas e práticas que abordem as consequências duradouras do crime e ofereçam apoio contínuo aos sobreviventes, reconhecendo a complexidade do sofrimento humano e as necessidades de justiça restaurativa.
No âmbito da prática judicial, a tutela do bem jurídico vida frequentemente revela tensões entre a busca por justiça e as limitações do sistema penal. O direito penal deve se esforçar para garantir que a proteção da vida seja efetiva e não meramente simbólica. A prática demonstra que, muitas vezes, a aplicação das leis e o sistema de justiça podem ser influenciados por fatores como desigualdades sociais, preconceitos e deficiências estruturais, que podem impactar a efetividade da tutela penal e a proteção adequada do bem jurídico vida. Em última análise, o direito penal como aquele que tutela bens jurídicos é um campo em constante evolução, refletindo a dinâmica da sociedade e a necessidade de proteger valores fundamentais enquanto se respeitam os direitos dos indivíduos. A contínua reflexão crítica sobre os bens jurídicos e a forma como são tutelados pelo direito penal é essencial para garantir que o sistema penal funcione de maneira justa, equilibrada e efetiva.
4 O DIREITO NA TENTATIVA DE AMPARAR “OS QUE FICAM”
A tentativa de acolher juridicamente os familiares de vítimas de homicídio consumado representa um desafio significativo e uma área de crescente importância no direito penal contemporâneo. A proteção do bem jurídico da vida, quando consideramos não apenas a vítima direta, mas também os “que ficam” — os familiares que sobrevivem à perda de um ente querido — exige uma abordagem mais abrangente e humanizada do sistema de justiça. Esta reflexão sobre a tutela dos sobreviventes destaca uma lacuna crucial na aplicação do direito penal, que tradicionalmente se concentrou predominantemente na punição do agressor e na preservação da ordem pública (Bortoncello, 2022).
Falar em homicídio é não só falar em morte, mas em uma sofrida “sobrevida”:
A perda de um familiar por homicídio é um evento de grande potencial traumático, capaz de desencadear sofrimento intenso e importantes impactos à saúde física e mental, problemas financeiros e enfraquecimento dos laços sociais. Os sobreviventes do homicídio, como são conhecidos na literatura, estão em maior vulnerabilidade para o desenvolvimento de transtornos mentais como o transtorno de estresse pós-traumático, cuja prevalência, segundo investigações internacionais, pode chegar a 39% bem como depressão, comportamento suicida e abuso de substâncias químicas (Costa; Njaine; Souza, 2020. p. 1).
Como visto, o direito penal tem oferecido respostas punitivas às infrações contra a vida, centrando-se na responsabilidade criminal do perpetrador e na imposição de sanções. Contudo, a noção de justiça não pode ser completa sem uma consideração igualmente significativa do impacto duradouro sobre os familiares das vítimas. A perda de um ente querido em decorrência de homicídio não apenas resulta em um sofrimento imensurável, mas também desencadeia uma série de consequências emocionais, sociais e econômicas que exigem uma resposta jurídica adequada. O acolhimento dos familiares como parte da resposta jurídica ao homicídio representa um avanço na compreensão da justiça, que deve englobar a reparação e o suporte contínuo para os afetados (Bortoncello, 2022).
A importância de tutelar o bem jurídico da vida dos “que ficam” está intrinsecamente ligada à necessidade de reconhecer e atender as necessidades dos sobreviventes. O sofrimento e as perdas que esses indivíduos enfrentam são profundos e multifacetados, incluindo traumas psicológicos, impactos financeiros e a desestruturação de suas redes de apoio. A resposta jurídica, portanto, deve ir além da condenação do agressor e incorporar mecanismos de suporte e reparação que visem mitigar essas consequências adversas. Programas de apoio psicológico, assistência jurídica e políticas de reparação são componentes essenciais para oferecer um acolhimento significativo aos familiares.
No entanto, a tentativa de acolher juridicamente esses indivíduos enfrenta desafios complexos. A integração efetiva desses mecanismos no sistema jurídico requer uma reavaliação dos princípios e práticas tradicionais do direito penal. É necessário um modelo de justiça que não apenas pune, mas também oferece um suporte holístico aos afetados pela violência. A implementação de políticas que contemplem as necessidades dos sobreviventes pode ser prejudicada por questões como a falta de recursos, a resistência institucional e a dificuldade em balancear a resposta penal com a reparação emocional e social (Bortoncello, 2022).
Além disso, é mister que o sistema de justiça penal reconheça que a proteção dos familiares das vítimas é uma questão de dignidade humana e respeito aos direitos fundamentais. A justiça não deve ser meramente reativa, mas proativa em atender às necessidades daqueles que, embora não sejam diretamente responsáveis pelo crime, enfrentam as consequências devastadoras da violência. A criação de estruturas jurídicas e sociais que promovam o acolhimento e o suporte contínuo aos sobreviventes é uma medida de justiça que reflete um compromisso com a integridade e o valor da vida humana em toda a sua extensão (Bortoncello, 2022).
Registre-se:
A violência é um fenômeno social complexo que varia ao longo do tempo e afeta diretamente a vida humana e os sistemas de saúde, pois demanda recursos de hospitais, emergências e ambulatórios, além de prejudicar a qualidade de vida das pessoas, promovendo danos à saúde física e mental das vítimas diretas e indiretas, e influenciando na taxa de anos potenciais de vida perdidos. Entre as expressões da violência, pode-se citar o homicídio como uma das formas mais brutais, pois nega o direito básico à vida. É definido como destruição da vida humana por uma pessoa que teve intenção de matar ou ferir outra (Souza; Poltronieri; Bueno, 2024. p. 2).
Ainda, continuam os autores sobreditos, destacando um problema que ocorre com esse tipo de vítima, qual seja, a invisibilidade:
Ao ocorrer um homicídio, o Estado frequentemente negligencia os familiares da vítima. O discurso a seguir exemplifica um caso em que o marido policial foi baleado (pouco antes de o genro policial ser vítima letal em um confronto) e teve assistência psicológica, porém nenhuma outra pessoa do núcleo familiar foi contemplado: Ele teve tratamento psicológico. Ele tem, até hoje. Eu não tenho nenhum. Tipo assim, focaram nele, esqueceram que ele tem família. E eu por sua vez não disse nada. Ele foi no psiquiatra, no psicólogo. Até hoje ele vai. (Josélia-G2). O relato acima reforça a invisibilidade das vítimas indiretas de violências que sequer são reconhecidas como vítimas, e não recebem qualquer tipo de amparo por parte das instituições (Souza; Poltronieri; Bueno, 2024. p. 10).
Isso ainda que se está falando no estudo destacado sobre um homicídio funcional, em que a vítima primária está a serviço do Estado. Mesmo assim, ele se omite em socorrer as vítimas secundárias. Por óbvio, infere-se que nos demais tipos de homicídio, sem vinculação funcional, a assunção de protagonismo estatal no amparo é ainda menos expressiva.
É pertinente salientar:
O reconhecimento da situação singular de sofrimento vivenciada pelas famílias em decorrência da violência do homicídio é o primeiro passo para que se possa garantir espaços protegidos de fala, escuta e cuidado. A investigação mostrou, no entanto, que a atenção a esse público é frágil e comprometida, primeiramente, pela perpetuação na atuação profissional do estigma em relação às mortes por homicídio. A violência no território e o poder que exerce na opressão e silenciamento de moradores e profissionais e a pouca clareza sobre o papel dos serviços na atenção às vítimas indiretas do homicídio funcionam como importantes barreiras ao cuidado. Desse modo, produz-se não só um sofrimento silencioso − pela interiorização do estigma do homicídio pelos familiares −, mas também silenciado pelos enunciados e posicionamentos que ignoram, negam e invalidam o sofrimento nessas circunstâncias (Costa; Njaine; Souza, 2020. p. 13).
Trata-se de um sofrimento que não deve somente ser ouvido e acolhido, mas protegido juridicamente. O Estado não pode se omitir em face de seu dever de dar suporte multidisciplinar às famílias que tiveram suas vidas ceifadas em virtude de uma incapacidade do Estado de proporcionar segurança e efetivar o mais basilar dos direitos fundamentais.
Posto isto, a tentativa de acolher juridicamente os familiares de vítimas de homicídio consumado e a importância de tutelar o bem jurídico da vida dos “que ficam” exigem uma abordagem crítica e reformista. O direito penal deve evoluir para reconhecer e atender as complexas realidades dos sobreviventes, assegurando que a justiça penal não se limite à punição, mas se estenda à proteção e ao suporte contínuo daqueles que enfrentam o impacto duradouro da perda. A eficácia e a humanidade do sistema de justiça dependem da sua capacidade de integrar a proteção dos sobreviventes como um aspecto fundamental da tutela penal.
5. CONCLUSÃO
A análise da proteção social e jurídica para as famílias de vítimas de homicídios revela um panorama complexo e desafiador. A reflexão sobre a dignidade da pessoa humana e a tutela do bem jurídico “vida” sublinha a necessidade de uma abordagem mais ampla e integrada, que transcenda a mera responsabilização penal e busque ativamente a reparação e o suporte contínuo para os sobreviventes. No entanto, questões cruciais permanecem: estamos realmente oferecendo o suporte adequado às famílias enlutadas? As políticas públicas e práticas judiciais estão suficientemente alinhadas com a necessidade de uma justiça que vá além da condenação do perpetrador?
O que nos impede de avançar na integração entre a justiça penal e o apoio contínuo para as vítimas? A falta de recursos, a burocracia e a fragmentação dos serviços podem ser barreiras significativas, mas até que ponto a verdadeira dificuldade reside na nossa capacidade de reconhecer e priorizar o sofrimento das famílias em luto? Será que estamos prontos para adotar uma abordagem que não apenas faça justiça pelo crime cometido, mas também compreenda e mitigue o impacto devastador sobre aqueles que ficam?
As respostas a essas questões emergem da nossa revisão crítica e das evidências encontradas. Primeiramente, é claro que a dignidade da pessoa humana deve ser central em todas as práticas jurídicas e sociais relacionadas às vítimas de crimes contra a vida. Isso implica não apenas um reconhecimento formal do sofrimento, mas uma implementação eficaz de mecanismos de apoio psicológico, social e jurídico que vão além do mero suporte paliativo.
Em segundo lugar, a proteção social e jurídica das famílias de vítimas deve ser integrada de forma mais coesa com a justiça penal. A análise demonstrou que políticas de reparação e programas de apoio contínuo são essenciais para lidar com o trauma emocional e fornecer assistência prática. Essa integração requer um compromisso institucional para assegurar que as necessidades das famílias sejam abordadas de maneira eficaz e sistemática.
Finalmente, a justificativa para a abordagem proposta é robusta: ao reconhecer que a proteção dos direitos humanos deve incluir um suporte contínuo para os sobreviventes, estamos afirmando um compromisso com uma justiça verdadeiramente holística. As recomendações desta pesquisa apontam para a necessidade de uma abordagem mais humanizada e sistemática, capaz de unir a justiça penal com um suporte contínuo e integrado às famílias afetadas.
Concluímos, dessarte, que, ao avançar na implementação dessas recomendações, poderemos não apenas melhorar a resposta jurídica e social para as famílias de vítimas de homicídios, mas também fortalecer a própria concepção de justiça em nossa sociedade. O desafio é grande, mas a necessidade de uma resposta mais completa e eficaz é inegável. O caminho a seguir exige uma reflexão contínua e um esforço coletivo para assegurar que as vidas que permanecem, apesar da perda, sejam devidamente amparadas e respeitadas.
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