REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202503180501
Gilmar Rosa De Araújo
Coordenação: Profº André Dafico de Almeida Ramos
RESUMO
O homem, enquanto ser social, sempre procurou viver em família. A sociedade moderna vem sendo paulatinamente modificada pela inserção de novas tecnologias e a absorção de novos saberes, causando o rompimento com os antigos paradigmas e com isso, a família vem ganhando novos formatos e concepções. As famílias que eram constituídas somente através do casamento ganharam hoje, como forma de opção às pessoas impedidas de formalizarem o matrimônio, novas formas de serem constituídas. Uma delas reconhecida pela Constituição Federal de 1988 e equiparada ao casamento para fins sucessórios é a união estável. Para haver o reconhecimento da união estável como entidade familiar é necessário que a união seja pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir família. Ocorre que o Código Civil que entrou em vigor em 2002, no art. 1790, promoveu a desequiparação ao tratar de forma diferenciada, as duas entidades familiares, trazendo para o companheiro em união estável forma menos vantajosa de suceder. Houve, portanto, o questionamento do mencionado artigo no STF, o qual declarou a inconstitucionalidade do dispositivo, equiparando para os efeitos sucessórios a união estável ao casamento, os quais serão regidos pelo artigo 1829 do Código Civil.
Palavras-chave: família; casamento; Constituição Federal; união estável; Código Civil; desequiparação; STF; equiparação; sucessórios.
ABSTRACT
Man, as a social being, has always sought to live in a family. Modern society has been gradually modified by the insertion of new technologies and the absorption of new knowledge, causing a break with the old paradigms and with that, the family has been gaining new formats and conceptions. Families that were constituted only through marriage gained today, as a form of option for people prevented from formalizing marriage, new ways of being constituted. One of them recognized by the Federal Constitution of 1988 and equated to marriage for inheritance purposes is the stable union. In order for the stable union to be recognized as a family entity, it is necessary that the union be public, continuous and lasting and established with the objective of constituting a family. It so happens that the Civil Code that came into force in 2002, in art. 1790, promoted disequilibrium by treating the two family entities differently, bringing to the partner in a stable union a less advantageous way of succeeding. There was, therefore, the questioning of the aforementioned article in the STF, which declared the unconstitutionality of the device and equated the stable union with marriage for the purposes of succession, which will be governed by article 1829 of the Civil Code.
Keywords: family; wedding; Federal Constitution; stable union; Civil Code; disequilibrium; STF; matching; successor.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88), inova ao inserir no regramento constitucional, o artigo 226 que reconhece a família como base da sociedade e por esse motivo dá ao Estado a obrigação de oferecer proteção especial. Equiparou os efeitos do casamento religioso aos do civil, reconheceu como entidade familiar a união estável entre homem e mulher para fins de proteção estatal, reconheceu a família monoparental, igualou homens e mulheres em direitos e deveres na sociedade conjugal e instituiu a possibilidade de dissolução do casamento por meio do divórcio. Mas nem sempre foi assim, antes da CF/ 88, as famílias formadas por pessoas impedidas de se casarem por serem separadas de fato ou judicialmente se uniam em nova sociedade conjugal, não contavam com as regras da proteção estatal e por esse motivo viviam às margens da sociedade.
Objetiva-se neste estudo, a análise do texto infraconstitucional inserido no artigo 1790 do Código Civil de 2002 (CC/02), o qual revogou as leis 8.971/94 e 9.278/96 que regulamentavam o texto constitucional. O dispositivo promoveu tratamento diferenciado para os companheiros em união estável, dispondo de regras menos vantajosas para estes, comparadas ao direito sucessório dos cônjuges na sucessão patrimonial. Portanto, este artigo científico promove a busca por respostas sobre os motivos do código civil atual ter efetuado essa desequiparação prejudicial aos companheiros, as formas encontradas pelo Estado na busca de superar essa controvérsia legislativa e como se dá, na atualidade, a sucessão patrimonial das famílias que vivem em união estável, incluindo para os efeitos sucessórios as homoafetivas.
Pretende-se esclarecer, neste artigo, as dúvidas inerentes ao tema em estudo, aprofundando-se na análise de todo o conjunto de regras constitucionais, infraconstitucionais, a jurisprudência e a verificação das posições doutrinárias. Para isso serão consultadas a legislação vigente, os dados jurisprudenciais e os dados bibliográficos contidos em obras previamente catalogadas, que ensinam acerca da sucessão patrimonial na união estável.
Justifica-se este trabalho pela necessidade de se proceder à aplicação das regras jurisprudenciais ao trato da sucessão dos companheiros em união estável e encorajar as pessoas a buscar a efetivação de seus direitos, no contexto em que ainda prevalece a ideia, para as pessoas com pouco acesso às informações jurídicas, de que a união formada pelas pessoas impedidas de contrair o matrimônio, não gozam da proteção do Estado devido à ausência das formalidades matrimoniais.
Dividido em três capítulos, este trabalho apresenta no primeiro uma breve conceituação legal de família e a proteção oferecida pelo Estado aos novos modelos familiares surgidos na atualidade. No segundo, discorrerá sobre a União Estável e os elementos caracterizadores dessa entidade familiar e no último, apresenta o estudo sobre o tratamento da lei e da jurisprudência a respeito da sucessão patrimonial na União estável.
2. DA FAMÍLIA
Desde os primórdios das civilizações o homem busca a vida em sociedade, encontrando na família a primeira forma de organização, como meio de suprir a necessidade humana de se relacionar socialmente. A família é reconhecida constitucionalmente no artigo 226, caput da Constituição Federal de 1988, como base da sociedade, o que enseja a especial proteção do Estado.
A conceituação e a definição de família é uma tarefa árdua e muito dificultosa, uma vez que a própria Constituição Federal de 1988 e o Código Civil estabelecem a sua estrutura, porém não a define. Não há uma unicidade de conceitos, variando tanto conforme o ramo do direito, tanto em comparação com outros ramos da ciência como, por exemplo, a psicologia.
Lato sensu, o vocábulo família abrange todas as pessoas ligadas por vínculo de sangue e que procedem, portanto, de um tronco ancestral comum, bem como as unidas pela afinidade e pela adoção. Compreende os cônjuges e companheiros, os parentes e os afins. Segundo Josserand, este primeiro sentido é, em princípio, o único verdadeiramente jurídico, em que a família deve ser entendida: tem o valor de um grupo étnico, intermédio entre o indivíduo e o Estado. Para determinados fins, especialmente sucessórios, o conceito de família limita-se aos parentes consanguíneos em linha reta e aos colaterais até o quarto grau (GONÇALVES, 2021, p. 7).
O conceito supracitado identifica o modelo familiar existente em tempos passados, não tão distantes, cujas famílias concentradas principalmente na zona rural possuíam maior amplitude, abrangendo também os parentes em linha reta e colateral. A denominada “família extensa, envolvia todas as pessoas ligadas pelo vínculo de sangue e oriundas de um tronco ancestral comum” (MADALENO, 2022, p. 72).
A família extensa foi sendo reduzida paulatinamente, devido às transformações ocorridas nas sociedades, as quais foram migrando para as cidades para trabalharem nas indústrias, formando novos modelos de famílias.
A família stricto sensu compreende os consanguíneos em linha reta e os colaterais sucessíveis até o quarto grau, enquanto a família em sentido mais restrito, e modelagem mais frequente no atual entorno social, respeita ao grupo formado pelos pais e por seus filhos, cada vez em menor número de componentes. (MADALENO, 2022, p. 72).
A sociedade moderna se constitui pelo resultado paulatino de muitas mudanças ocorridas e a família vem acompanhando essas modificações de paradigmas inclusive com adaptações na legislação constitucional e infraconstitucional, as quais trazem o reconhecimento dos novos modelos de família que estão surgindo na atualidade. Dessa forma o conceito de família adquire um novo entendimento que inclui num rol exemplificativo e sempre aberto a nova tendências os novos modelos que surgem. De acordo com Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf (2021, p. 28), essa maneira moderna de pensar a família transcende a família tradicional matrimonial para chegar à “outras modalidades, muitas vezes informais, tendo em vista o respeito à dignidade do ser humano, o momento histórico vigente, a evolução dos costumes, o diálogo internacional, a descoberta de novas técnicas científicas, a tentativa da derrubada de mitos e preconceitos”. A soma de todos esses aspectos é que transforma o mundo um lugar de mais inclusão e faz as pessoas se sentirem amparadas legalmente e socialmente.
A constituição Federal de 1988 consagrou, no artigo 226, caput a proteção do Estado à família como base da sociedade, admitindo-se que a sua origem possa se dar através do casamento civil, com celebração gratuita, equiparando ao casamento civil, os efeitos do religioso e “reconhecendo a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento” (BRASIL, 1988). Reconhece também o núcleo familiar formado pela monoparentalidade, ou seja, quaisquer dos pais e seus descendentes. Para Gonçalves (2022, p. 72), a lei nem sempre teve toda essa extensão, pois durante muito tempo o sistema jurídico brasileiro reconhecia apenas a legitimidade da família unida pelo casamento civil, e os filhos originados dessa união por concepção genética ou através da adoção.
O Código Civil de 1916 proclamava, no art. 229, que o primeiro e principal efeito do casamento é a criação da família legítima. A família estabelecida fora do casamento era considerada ilegítima e só mencionada em alguns dispositivos que faziam restrições a esse modo de convivência, então chamado de concubinato, proibindo-se, por exemplo, doações ou benefícios testamentários do homem casado à concubina, ou a inclusão desta como beneficiária de contrato de seguro de vida. Os filhos que não procediam de justas núpcias, mas de relações extramatrimoniais, eram classificados como ilegítimos e não tinham sua filiação assegurada pela lei, podendo ser: naturais: os que nasciam de homem e mulher entre os quais não havia impedimento matrimonial; e espúrios: os nascidos de pais impedidos de se casar entre si em decorrência de parentesco, afinidade ou casamento anterior e se dividiam em: a) adulterinos; e b) incestuosos (GONÇALVES, 2022, p. 318)
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o casamento deixou de ser a única forma de se constituir uma família, passando então a figurar como uma das espécies do gênero. Diante das mudanças nos paradigmas sociais e o surgimento de uma nova realidade, onde muitas famílias se encontravam desamparadas e discriminadas socialmente, o legislador constituinte inovou ao inserir no texto constitucional a regularização da união entre o homem e a mulher com vínculo afetivo e a intenção de formar família, sem possuir vínculo matrimonial, reconhecendo a União estável como entidade familiar.
Apesar do artigo 226, § 3° da CF/88 dispor na parte final que deverá a lei facilitar a conversão da união estável em casamento, não há concorrência entre este e aquela, representando apenas, “mais uma opção a ser tomada, embora vozes doutrinárias sigam afirmando que se união estável e casamento fossem a mesma entidade familiar não seria necessário poder converter uma em outro” (MADALENO, 2022, P. 73).
Supremo Tribunal Federal ao julgar os REs 878.694 e 646.721, na relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, em 10 de maio de 2017, parece haver equiparado os efeitos jurídicos do casamento e da união estável, e não apenas no âmbito do direito das sucessões, mas, espraiando estes mesmos efeitos para a seara do direito familista, restando somente as diferenças presentes na formação e extinção judicial ou extrajudicial das duas entidades familiares (MADALENO, 2022, P. 73).
O Código Civil Brasileiro dispõe no artigo 1.723, que “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2002). O § 1 º do mesmo artigo veda a constituição da união estável, quando ocorrer qualquer dos impedimentos listados no artigo 1521 do CC/02, excetuando o inciso VI.
Art. 1.521. Não podem se casar: I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II – os afins em linha reta; III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V – o adotado com o filho do adotante; VI – as pessoas casadas; VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte (BRASIL, 2002).
O § 2 º do artigo 1723 do CC/02 afasta a aplicação das causas suspensivas do art. 1.523 que impedem a realização do casamento, a saber:
Art. 1.523. Não devem casar: I – o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II – a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III – o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV – o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas (BRASIL, 2002).
Portanto fica reconhecida pelo Código Civil de 2002 nos termos do artigo 1723, § 1 º, a união estável entre pessoas que se encontram casadas, porém separadas de fato ou judicialmente. E o § 2º ao afastar os motivos geradores da suspensão do casamento, traz uma maior flexibilização ao reconhecimento, caracterizando então o caráter humanizador, desmarginalizador e de inclusão familiar presentes na união estável.
3. DA UNIÃO ESTÁVEL
Num passado histórico recente a única forma de se constituir uma família reconhecida pela lei e pela sociedade era ao casamento, o que obrigavam as pessoas separadas de fato ou judicialmente a serem marginalizadas. Porém, o aumento dos casos, e a evolução do pensamento social foi encorajando as pessoas a se livrarem das amarras que as prendiam ao relacionamento indesejado e a iniciarem novas uniões, mesmo que fora da proteção do Estado. “Não só os desquitados começaram esse novo tipo de união, mas também as pessoas casadas e solteiras, que em razão de um acentuado empobrecimento não podiam pagar pelo custoso processo de desquite” (JUNIOR, 2020, p. 57).
Antes do advento da Constituição de 1988 a família formada fora da legalidade não gozava de nenhum direito. “Durante décadas, o Estado preferiu ignorar os fatos e os problemas em potencial que estes poderiam trazer, mantendo vetado o divórcio e negando qualquer direito aos filhos e aos participantes deste tipo de união” (JUNIOR, 2020, P. 57). Mas o crescimento da quantidade de uniões informais fez aumentar os problemas sociais que decorriam das dissoluções destas unidades familiares, gerando mulheres e filhos abandonados pelo companheiro em situação de total desamparo.
Diante da inércia do legislador civil, buscou-se no direito comercial amparo para o ajuizamento de uma ação de “reconhecimento e dissolução de sociedade de fato”. A lógica era simples: se era negada a existência da sociedade conjugal, seria forçoso reconhecer que ao menos havia uma sociedade comercial informal entre os companheiros. Neste tipo de ação, a mulher buscava uma indenização por serviços prestados ou a meação dos bens do companheiro asseverando que havia ajudado, por meio de seu trabalho, diretamente na aquisição dos bens. A solução, que hoje pode parecer injusta e absurda, representou o primeiro passo na busca de uma solução jurídica para o evidente desamparo em que se encontrava a mulher companheira (JUNIOR, 2020, p. 57).
Neste contexto, segundo Júnior, foi logo se firmando uma forte jurisprudência a qual favorecia a mulher companheira a qual precisava apenas provar algum tempo de convivência com o companheiro para conseguir o direito à meação dos bens. Surgiu então a necessidade de se editar leis para a normatização dos novos arranjos familiares dentre os quais se insere a união estável.
A constituição Federal de 1988 reconheceu no § 3º do artigo 226 que “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar”. A partir de então surgiram as regras regulamentadoras da união estável.
A primeira regulamentação da norma constitucional que trata da união estável adveio com a Lei n. 8.971, de 29 de dezembro de 1994, que definiu como “companheiros” o homem e a mulher que mantenham união comprovada, na qualidade de solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos, por mais de cinco anos, ou com prole (concubinato puro). A Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996, alterou esse conceito, omitindo os requisitos de natureza pessoal, tempo mínimo de convivência e existência de prole. Preceituava o seu art. 1º que se considera entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e de uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família. Usou-se a expressão “conviventes” em substituição a “companheiros” (GONÇALVES: 2022, P. 773).
O artigo 5º da lei 9278/96, tratava da meação do patrimônio formado durante a convivência, desde que não houvesse contrato estipulando o contrário e os bens não fossem adquiridos em momentos anteriores à constância da união.
O código Civil de 2002 revogou as leis supracitadas e disciplinou nos artigos 1723 a 1727, a união estável, no livro de família. O código vigente não estabelece como requisito o tempo de convivência, mas que “seja pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (BRASIL, 2002).
O que se extrai do artigo 1723 do CC é que, para se caracterizar a união estável é necessário que haja:
a) A publicidade do relacionamento – É aquele relacionamento em que o companheiro e a companheira se apresentam publicamente como se fossem casados. Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2022, p. 156), “a ideia de o casal ser reconhecido socialmente como uma família, em uma convivência pública, é fundamental para a demonstração, eventualmente judicial, da existência de uma união estável”. Pelo caráter estritamente protetivo às famílias, a lei não alcança as relações privadas e ocultas, realizadas por encontros clandestinos, o que não significa desconsiderar que a vida na união estável não possa ter um caráter discreto.
b) União contínua e duradoura – O prazo mínimo de 5 anos fixado pela lei 8971/94 para haver o reconhecimento da união estável foi revogado pelo código civil de 2002 o qual não fixa o elemento temporal para a configuração da união estável, restando ao magistrado a dura tarefa de reconhecer a continuidade do relacionamento através de caracteres subjetivos. Para Gagliano e Filho (2022, p. 156), “a união estável não se coaduna com a eventualidade, pressupondo a convivência contínua, sendo, justamente por isso, equiparada ao casamento em termos de reconhecimento.” Porém não se deve levar em conta os pequenos lapsos temporais de ruptura, pois é normal inclusive nos casamentos formais, os desentendimentos, com rápida separação sucedida de reconciliação
c) Objetivo de constituir de família – O código Civil de 2002 traz para a união estável os motivos de impedimento à realização do casamento, com exceção do cônjuge em separação judicial ou de fato e afastou os efeitos suspensivos do artigo 1523, deixando clara a intenção de facilitar e incluir no seio da sociedade e no sistema de proteção legal do Estado o novo modelo familiar, desta forma seria inviável o pensamento de se criar um novo instituto familiar o qual não possuísse o objetivo finalístico de constituição de família. De acordo com Valdemar P. da Luz, o objetivo de constituir família é reconhecido pela jurisprudência na existência de coabitação, ressalvados os casos de exercício profissional em localidades distintas, mas com regulares reencontros.
Importante ressaltar que a diversidade de sexos até recentemente era relacionada como requisito à configuração da união estável. Tanto a Constituição Federal (art. 226, § 3o) quanto o Código Civil (art. 1.723) são bastante claros ao consignar que a união estável que pode ser reconhecida como entidade familiar é apenas aquela havida entre um homem e uma mulher. Embora se trate de questão muito polêmica e que com frequência é levada ao Poder Judiciário, a diversidade de sexos sempre foi admitida como um requisito indispensável para a caracterização da união estável. A união entre pessoas do mesmo sexo, também denominada de união homoafetiva ou união homossexual, segundo os tribunais, configurava simples sociedade de fato, entre sócios, e assim deveriam ser tratadas as relações dela decorrentes (JUNIOR e TEBALDI, 2012, P. 66)
Sobre esse tema, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou em 05 de maio de 2011 a ADI 4277, e a decisão, publicada em 14 de outubro de 2011, foi no sentido de excluir do artigo 1723 do Código Civil, a possibilidade de interpretação preconceituosa, interpretando-o conforme a constituição, reconhecendo a união homoafetiva, estabelecida sob as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetivas, como entidade familiar.
4. DOS DIREITOS PATRIMONIAIS NA UNIÃO ESTÁVEL
Disciplina o Código Civil Brasileiro de 2002 que “na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens” (BRASIL, 2002). Portanto, na dissolução da união estável, bem como na morte de um dos companheiros, o sobrevivente, assim como acontece no casamento sob o regime de comunhão parcial de bens, terá direito à meação de todo o patrimônio adquirido durante a união, salvo se houverem celebrado contrato de convivência estipulando outra forma de regime de bens.
Destarte, a habilitação do companheiro no inventário não ocorre de forma automática como no casamento. De acordo com Arnaldo Rizzardo (2019, p. 187), para salvaguardar o direito à metade do patrimônio adquirido durante a união é “indispensável a prova ou a definição de que existiu a comunhão conjugal”, a simples alegação da existência de união estável não habilita a meação, necessitando então da declaração e reconhecimento da união estável.
Até entrar em vigor o Código Civil de 2002, vigoravam no Brasil as leis regulamentadoras 8.971/94 e 9.278/96 que dispunham sobre a proteção estatal dada à família pela Constituição Federal, bem como o reconhecimento legal da união estável como entidade familiar no Brasil. “Nessa época, os direitos de herança daqueles que eram casados eram idênticos aos daqueles que viviam em união estável, ou seja, não havia qualquer discriminação entre eles” (NIGRI, 2020, p. 72). Porém, o Código Civil de 2002, trouxe regras distintas, as quais disciplinaram a sucessão patrimonial dos cônjuges em detrimento dos conviventes. Sem prejuízo à meação, a referida lei inseriu o cônjuge sobrevivente em terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, o qual concorre também na primeira ordem, com os descendentes em todos os bens particulares do falecido, salvo se casado no regime de separação obrigatória dos bens. Não havendo descendentes também haverá, em segunda ordem, a concorrência com os ascendentes. Por último os colaterais.
Sobre a sucessão dos conviventes em união estável, disciplinou o Código Civil:
Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança (BRASIL, 2002).
Portanto, segundo Nigri, o Código Civil de 2002 passou a permitir ao cônjuge sobrevivente a posição de herdeiro necessário, concorrendo em igualdade com os descendentes e ascendentes, gerando a disparidade em relação aos companheiros, os quais passaram a herdar sob condições menos vantajosas, já que participariam da sucessão, somente em relação aos bens adquiridos onerosamente no período de duração da união estável, sob as seguintes condições: “Se eles tivessem filhos comuns, teriam direito à mesma quota atribuída aos seus filhos, mas, se concorressem com descendentes só do falecido, ficariam apenas com a metade do que coubesse a cada um daqueles” (NIGRI, 2020, p. 64). Caso não houvesse descendentes herdariam um terço da herança em concorrência com outros herdeiros e ficaria com toda a totalidade somente na falta de qualquer parente na linha de sucessão.
Ponto importante que merece especial atenção é que o que traz o caput do artigo 1790 do Código Civil, que restringe a participação do companheiro ou companheira na herança, o qual herda somente em relação aos bens adquiridos onerosamente durante o período de convivência comum. De acordo com Rizzardo (2019, p. 189), fica afastada a possibilidade de sucessão sobre os bens particulares do falecido, tanto os adquiridos anteriormente quanto os recebidos de herança ou doação, que na falta de qualquer parente na linha sucessória se incorporaria aos bens do Município ou do Distrito federal.
Essa diferença relacionada ao direito de herança entre os cônjuges e os conviventes em união estável, levou o Supremo Tribunal Federal a julgar recursos extraordinários, entre eles o RE 878694, que questionava sobre a provável existência de discriminação entre as formas sucessórias do casamento e da união estável, quando ficou decidido pela inconstitucionalidade de tal distinção.
Segundo o relator de um dos recursos, o ministro Luís Roberto Barroso, depois da promulgação da Constituição foram editadas duas leis que equipararam os direitos de herança da união estável e do casamento. O quadro mudou com o Código Civil, que acabou com a equiparação, já que, apesar de ele ter sido sancionado no ano de 2002, havia sido elaborado nos anos 1970, por isso teria “chegado atrasado” em muitas questões de Direito de Família (NIGRI, 2020, p. 65).
O resultado do julgamento foi o acórdão, pelo qual firmou-se em repercussão geral a tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002” (BRASIL, 2018). Fica, portanto, para efeitos sucessórios, equiparada a entidade familiar formada pela união estável, ao casamento, aplicando-se desde então às duas instituições as regras sucessórias do artigo 1829 do Código Civil.
Conclui-se, portanto, que ao ocorrer a morte do cônjuge ou companheiro, sem que tenha deixado testamento, a sucessão se dará de acordo com a ordem sucessória que se segue: Primeiro os descendentes e o cônjuge ou companheiro sobrevivente. Na falta de descendentes, são chamados os ascendentes e o cônjuge ou companheiro sobrevivente. Na falta de descendentes ou ascendentes, o cônjuge ou companheiro herda sozinho e somente na falta destes a herança será transmitida aos colaterais.
Estende-se à união homoafetiva, quando presente os requisitos caracterizadores da união estável, os efeitos da equiparação para fins sucessórios, pois esta já havia sido reconhecida pelo STF, no julgamento da ADI 4277, como entidade familiar, nos termos das regras civis para a configuração da união estável.
CONCLUSÃO
Na sociedade moderna, diferentemente do que acontecia há algum tempo, quando a família era formada apenas através da celebração do matrimônio, vem aumentando o surgimento de novos modelos familiares, como é o caso da união estável, a pouco tempo atrás era confundida com o concubinato. Por esta razão a legislação brasileira vem sempre passando por renovação para que possa acompanhar a evolução da sociedade.
A CF/88 foi inovadora ao equiparar a união estável ao casamento para os fins da proteção estatal. Logo após, houve a regulamentação infraconstitucional através das leis 8.971/94 e 9.278/96 que tratavam da união estável e do casamento em igualdade. Porém o novo código civil que entrou em vigor no ano de 2002 revogou estas leis e por alguma razão inseriu no regramento civil, normas sucessórias que davam aos conviventes em união estável participação menos vantajosa na sucessão patrimonial.
Conclui-se, portanto que as novas regras em vigor, possui características de inconstitucionalidade, devido o código civil ser recente, mas a sua elaboração datar do ano de 1970, data que antecede à elaboração da Constituição de 1988, chegando em atraso, não somente em relação à constituição como também nas questões sociais, que passaram por grande evolução.
Houve, portanto, no STF através da ADI 4277, o questionamento da constitucionalidade do artigo 1790 do CC/02, quando ficou decidido pela inconstitucionalidade do dispositivo, ficando equiparados para os efeitos sucessórios a união estável e o casamento, os quais serão regidos pelo artigo 1829 do CC/02. Quando presente os requisitos caracterizadores da união estável estende-se à união homoafetiva, os efeitos da equiparação para fins sucessórios, pois esta já havia sido reconhecida pelo STF, no julgamento da ADI 4277 como entidade familiar.
Então quando ocorrer a morte do cônjuge ou companheiro, sem deixar testamento, serão chamados a suceder, os descendentes e o cônjuge ou companheiro sobrevivente. Não havendo descendentes, os próximos da linha sucessória são os ascendentes juntos com o cônjuge ou companheiro sobrevivente. Se não houver descendentes ou ascendentes, o cônjuge ou companheiro sucede na totalidade dos bens e somente será transmitida aos colaterais na falta de todos os anteriores da linha sucessória.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Código Civil Brasileiro. IN: Vade Mecum. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
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