LAW, DECOLONIAL THOUGHT AND BRAZILIAN DEMOCRATIC CRISIS.
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11644055
Adelson Silva Soares1
Resumo
O presente trabalho, tem como objetivo, buscar apresentar através de revisão bibliográfica as possíveis conexões entre componentes importantes que influenciam diretamente as relações sociais nos estados democráticos, em especial no Brasil no período pós redemocratização. Essas conexões partem da conceituação e abordagem dos termos de direito e pensamento decolonial, através de uma reflexão materialista sobre a Teoria do Direito. Através de contextualizações históricas busca-se encontrar elementos comuns aos acontecimentos desde a concepção do modelo capitalista, entendido neste trabalho desde o período das grandes navegações. Também são abordados os temas sobre independência de estados antes colonizados, bem como aos novos desafios apresentados pelo mundo digital.
Palavras-chaves: Direito; colonialismo; decolonialidade; crise; democracia.
Abstract
The present work aims to present, through a bibliographic review, the possible connections between important components that directly influence social relations in democratic states, especially in Brazil in the post-democratization period. These connections depart from the conceptualization and approach of the terms of law and decolonial thinking, through a materialist reflection on the Theory of Law. Through historical contexts, we seek to find elements common to events since the conception of the capitalist model, understood in this work since the period of the great navigations. Topics on the independence of formerly colonized states are also addressed, as well as the new challenges presented by the digital world.
Keywords: Law; colonialism; decoloniality; crisis; democracy.
1. Introdução
Os fenômenos que cercam as diversas formas de relações sociais, inclusive aquelas que resultam na formação e transformações dos Estados, não podem ser tomados de maneira simplificada, pois suas origens, existências e seus efeitos para posterioridade não o são. Dessa forma se torna importante a compreensão das interações e relações que estes três atores objetos deste trabalho possuem, levando em consideração a materialidade dessas relações, bem como fundamentações teóricas diversas a respeito dos mesmos. Com o entendimento de complexidade nas estruturas que compõem os estados pós-modernos cada vez mais perceptível, faz-se necessário abrir mão de analises mais profundas e transversais, não cabendo para aqueles que desejam demonstrar um olhar mais aproximado das realidades posturas e visões rasas e simplificadas.
2. O direito e seus elementos
Ao buscarmos contemplar a sociedade através de uma ótica materialista, nos deparamos com a necessidade do entendimento da sociedade contemporânea como uma forma de expressão da complexidade que são as relações sociais e seus produtos. Não podemos apartar dessa complexidade também aquilo que empreendemos e temos como Direito e sua compreensão e seus efeitos sobre as interações sociais resultantes das mais diversas relações. Ter a compreensão jurídica como fruto de reconhecimento que o direito é uma das formas que constituem as sociedades neoliberais, e não uma entidade a parte de toda a interação social é o que nos possibilitará ter o vislumbre de como este e sua filosofia podem trazer uma reflexão mais aproximada materialmente da realidade social, produzindo assim dessa reflexão um raciocínio jurídico:
O raciocínio jurídico é, portanto, essencialmente determinado por estruturas que são estruturas do raciocínio pratico geral. Essa é uma importante razão para não conceber o raciocínio jurídico como uma província autônoma, separada e distinta de outras províncias da racionalidade. (ALEXY, 2013 p. 35)
Dessa forma, abordar os diversos produtos advindos deste raciocínio jurídico, principalmente nas sociedades democráticas, onde a figura do Estado, passa a receber e se apossar de seus cidadãos o poder de coerção sobre os indivíduos dessa sociedade é que, podemos perceber que nesse dualismo simplificado, que podemos de maneira rasa, para fins das reflexões neste trabalho, traduzir em direitos e deveres que passam a ser o principal foco das massas quando se veem em alguma interação social de maneira objetiva. Sendo assim, o cidadão acaba limitando o seu campo de visão apenas a esses dois elementos (direitos e deveres) sem que na maior parte do tempo, reflita sobre os outros componentes das relações sociais em um estado democrático de direito, ficando assim a mercê de compreensões rasas e com grandes possibilidades de estarem eivadas de equívocos e distorções, fazendo assim com que esse individuo acabe, mesmo que de maneira tácita, ainda mais fortalecendo o poder coercitivo estatal como produto dessa falta de reflexão critica que se faz essencial para limitar a atuação de tal poder, identificando e prevenindo os excessos da atuação deste poder.
Continuando ainda a identificar essas formas dualistas de interação, podemos perceber que também o Direito acaba se utilizando desse formato. Podemos compreender como elementos dualista do direito a coerção e a correção, elementos estes que são apropriados pelo aparato estatal através da forma-jurídica vigente, fazendo com que os indivíduos reforcem ainda mais a compreensão dualista entre direitos e deveres, onde um se torna indissociável do outro, ou até mesmo que um seria uma espécie de recompensa do outro, onde um individuo que não cumprisse com seus deveres, poderia ter em teoria os seus direitos prejudicados deixando espaço para que o aparato estatal quando não identificasse o cumprimento de seus mandamentos frutos de seu poder coercitivo, terreno para utilização de seu poder de correção.
Duas propriedades são essenciais para o direito: a coerção ou força, de um lado, e a correção ou retidão, por outro. A primeira concerne a um elemento central da eficácia social do direito, ao passo que a segunda expressa sua dimensão ideal ou crítica. (ALEXY, 2013 p.36)
O modelo de sociedade democrática costuma legitimar esses dois elementos ao estado através do direito, quando a forma-jurídica vigente, ainda na organização desse estado, procure estabelecer previsões de situações coercitivas e corretivas em seus textos constitucionais e ou outros atos normativos originários, demonstrando assim a abdicação daquelas populações sobre a tutela desse tipo de assunto, delegando ao estado recém-organizado essas atribuições. Nesse sentido, em um estado democrático não é possível vislumbrar um direito que não possua esses dois elementos na composição de seu ordenamento e raciocínio jurídico, fazendo com que estes sejam elementos basilares dos sistemas jurídicos encontrados nas sociedades neoliberais contemporâneas, mesmo em modelos de governos mais progressistas em seu ordenamento jurídico encontraremos elementos coercitivos, pois criou-se o costume social que é necessário que o estado faça essa limitação sobre as liberdades dos indivíduos, pois os mesmos abdicaram desta função ao delegarem esta ao estado em sua origem.
A coerção é o caso mais fácil. Parece ser bastante natural arguir que um sistema de regras ou normas que em nenhum caso autorize o uso da coerção ou de sanções – nem mesmo no caso de legítima defesa – não é um sistema jurídico, e isso é assim devido a razões conceituais baseadas no uso da linguagem. Incluir a coerção no conceito de direito é adequado ao seu objeto, o direito, porque ela reflete uma necessidade prática necessariamente conectada com o direito. A coerção é necessária para que o direito seja uma prática social que cumpre funções básicas, tais como definidas nos valores de segurança jurídica e eficiência, na máxima medida possível. (ALEXY, p.37)
Essa reflexão sobre essa definição do direito, se torna essencial para reconhecer que a forma-jurídica concebida nas sociedades neoliberais, mesmo que busquem de maneira mais dedicada a produção de dispositivos legais mais brandos, não poderão se dissociar da prática coercitiva pois esta é a prática do direito. Sem a presença deste elemento, o poder abdicado pelo Povo na origem e organização do Estado se encontraria a ermo, disperso em sua forma natural, trazendo a tona um dos maiores temores de estado democrático que é a insegurança, pois como podemos perceber, a sociedade se sente mais segura quando há uma previsão sobre quem compete tal obrigação, e nesse caso, estamos tratando da obrigação coercitiva, que deverá compelir os atores daquela sociedade a cumprirem determinado papel sob a ameaça continuada de ter seus direitos prejudicados e impedidos, passando assim a ser visto pelos demais membros daquele meio social, como alguém que não deseja cumprir aquilo que “todos” cumprem, não devendo assim permanecer entre estes, ou sem ao menos algum tipo de demarcação, onde essa acaba se tornando forma de “incentivar” os demais para cumprimento do ordenamento.
A necessidade de coerção, como já se mencionou, está baseada em uma necessidade prática definida por uma relação entre meios e fins. Nesse sentido, ela possui um caráter teleológico. A necessidade da pretensão de correção é uma necessidade que resulta da estrutura dos atos jurídicos e da argumentação jurídica. Ela possui caráter deontológico. Tornar explicita essa estrutura implícita no direito é uma das tarefas mais importantes da filosofia do direito. (ALEXY, 2013 p. 37)
Essa missão transferida a filosofia do direito de tornar explicito estes dois elementos basilares e que coexistem de maneira implícita de forma a independer de um modelo especifico de governo, dentre os vários possíveis em um estado democrático não é simples. É necessária uma reflexão e debates de maneira extensiva, pois estes elementos podemos sofrer atenuações em sua percepção a depender da forma em que é a estrutura estatal é constituída em sua forma-jurídica. Têm-se a coercitividade como elemento necessário para a garantia da reprodução do raciocínio jurídico e sua continuidade, através da segurança que a prática social exige, se tornando essa necessidade também prática do direito. Dessa forma, o elemento de correção é tido como pretensão, de forma a demonstrar que o direito e a estrutura estatal por ele legitimada deseja corrigir e demonstrar a maneira desejável de se interagir socialmente, mas transferindo ao indivíduo a escolha de como se portar, como maneira de afirmação da preservação de sua liberdade que estaria a ser garantida e respeitada pelo estado em sua atuação, trazendo a coerção como necessidade consequente do uso indevido das liberdades individuais, mas indispensável para a garantia da segurança e plenitude do direito.
3. Pensamento decolonial: origens e desafios
Ao fazer uso de qualquer termo que tenha em sua composição o radical “colônia” se torna muito difícil de dissociar das invasões realizadas nos períodos das “grandes navegações” capitaneadas pelas potencias europeias em detrimento a outras nações desconhecidas até então pelos primeiros “conquistadores”, que passaram a ser chamadas de colônias, mesmo que fossem povos com sociedades complexas, detentoras de seus próprios sistemas (sociais, culturais, religiosos, tecnológicos, científicos etc), mas que mesmo assim foram propagadas por séculos com este status, um status de subserviência há uma metrópole e a figura de um governos estranho, que não mediu esforços para desconstruir todos os tipos de identidades pré-existentes, com o intuito de impor os seus costumes, visando a perpetuação do seu modo de exploração. Esses modos de exploração, não cessaram com as “proclamações de independências” desses povos, ao contrário do que costumam contar os livros. Com os adventos modernos, também se modernizaram as formas de exploração, não sendo a ocupação a única forma de “colonização”, fazendo esse novo colonialismo um fruto da modernidade.
A modernidade possui uma face oculta e violenta: a colonialidade, sendo a modernidade e a colonialidade, então, partes indissociáveis, os dois lados de uma mesma moeda. Isto é, somente é possível a compreensão adequada da modernidade à luz da colonialidade (MIGNOLO, 2003, p. 74), pois uma não existe sem a outra (QUIJANO, 2000b, p. 343). No mesmo sentido, somente foi possível o desenvolvimento da economia capitalista (QUIJANO e WALLERSTEIN, 1992, p. 549–557) e a construção de uma história mundial, a partir de 1492, com a invasão e com a colonização das Américas, consequentemente, com a criação de um sistema-mundo moderno/colonial e capitalista (DUSSEL, 2000, p. 46). (CARVALHO, 2020 p. 12 – 13)
Essa reflexão de origens da colonialidade com o modelo capitalista datando de 1492, nos traz a contraposição há ideias clássicas, onde a origem do modelo capitalista estaria na modernidade da industrialização. Ao remeter à época das navegações, podemos instituir uma relação de meios mais selvagens e bárbaros da prática capitalista, com o emprego de sequestro, escravização e extermínio em nome da acumulação de riquezas. Há nesse momento o emprego da coercitividade exacerbada, no sentido da garantia da forma-jurídica vigente neste período, ou sejam os códigos e tratados comerciais. Essa coercitividade exercida pelo “colonizador” justificada pela garantia da aplicação plenitude da forma-jurídica vigente, possui legitimação em quesitos de racialidade, onde os nativos das terras invadidas, são afastados do reconhecimento de sujeitos de direito, transferindo a estes a qualidade de inferioridade, não-humanos, objetos etc. Há então o estabelecimento de uma supremacia imperialista, determinada por origem e racialidade, legitimados por uma forma-jurídica que esta voltada para os interesses econômicos da elite dominante. Esses elementos se tornam indissociáveis por todo desenrolar social dos séculos a seguir até os dias de hoje.
Não há capitalismo sem colonialismo, e por sua vez, não há colonialismo sem racismo, e ambos estão interligados dialeticamente por uma relação de determinações reflexivas. Para se entender a sociedade contemporânea, é fundamental, portanto, analisar a gênese e a função do sistema colonial no “complexo de complexo” que constituiu historicamente a totalidade concreta da sociedade capitalista. Assim o sistema colonial é pautado, de início, por um corte supostamente essencial na relação entre sujeito e objeto, fixando de maneira racializada o primeiro no colonizador e o segundo no colonizado. Esse corte autoriza uma suspensão ética, política e estética do colonizado para legitimar e sustentar o pacto social capitalista. (FAUSTINO 2023, p. 51-52)
Apesar da compreensão de que o colonialismo tem sua origem com as invasões às américas em 1942, durante meados do século passado, mais precisamente durante o auge das investidas do Terceiro Reich houve um fato que não poderíamos deixar de mencionar para aprofundamento da reflexão do tema. Como já falamos anteriormente, a exploração se adapta ao contexto histórico a qual ela está acontecendo, nesse sentido, naquele período de tensões na Europa onde constavam os países mais desenvolvidos aquela época, também houve a reprodução do colonialismo naquele cenário. Quando as tropas nazistas começaram as investidas e as ocupações dos países em seu entorno, ficou percebido que o fenômeno do colonialismo não era algo suscetível apenas a países tido como subdesenvolvidos, essa afirmação ganha ainda mais robustez, quando relembramos a ocupação da França, histórica potência colonizadora, industrial, democrática e desenvolvida aos padrões da época, não teve apenas a violação dos seus territórios, mas como o ataque coordenado à suas instituições e seus sistemas, assim como promovera na época das invasões americanas e africanas.
Por mais industrializada ou antiga que fosse sua civilização, não havia pais a salvo do risco de se transformar em colônia ou semicolônia; nem mesmo uma potência colonialista e imperialista podia se considerar em segurança. De fato, após a vitória “napoleônica” de Hitler na primavera de 1940, a França tornava-se uma colônia ou semicolônia do Terceiro Reich. (LOSURDO 2023, p. 179 – 180)
Após séculos de demonstração da pratica colonial, e da constante aprimoração de suas técnicas e acessórios, nos deparamos ao contexto das democracias, onde os aspectos que estamos abordando ao decorrer deste trabalho como direito e seus elementos, se tornam os legitimadores da implementação de determinados comportamentos nessas sociedades. Assim como nos períodos históricos anteriores, que o sistema capitalista se encontrava vigente, com o passar do tempo as formas de exploração se adaptaram. Nesse contexto de estado democrático de direito, é natural que a colonialidade se apresente de maneira contemporânea, pois, apesar de que o contexto histórico-social possa ter passado por alterações, o sistema de produção ainda continua sendo o capitalismo e como podemos perceber, esses aspectos estão atrelados de forma complexa e continuada, um transformando o outro, corroborando sempre com a finalidade da reprodução do sistema de acumulação por exploração. Nas democracias, as principais ferramentas para o alcance da dominação é a política e a economia, apesar de termos distintos, ambas têm influência direta e determinante uma sobre a outra, fazendo destas, parte importante do foco a ser direcionado pelos estudos a respeito do colonialismo nas democracias.
Essa categoria central para a realização do giro decolonial, a colonialidade, se reproduz em diferentes dimensões: “a colonialidade do poder (econômico e político) a colonialidade do saber e a colonialidade do ser (do gênero, sexualidade, subjetividade e conhecimento)” (MIGNOLO, 2010, p. 11), se estruturando a partir do entrelaçamento entre o “controle da economia”, o “controle da autoridade”, o “controle da natureza e dos recursos naturais”, o “controle do gênero e da sexualidade” e “controle da subjetividade e do conhecimento” (MIGNOLO, 2010, p. 12). (CARVALHO, 2020 p. 12 – 13)
Essa disponibilização de esforços nos estudos dedicados a entender o fenômeno colonialista, formando o pensamento decolonial que se faz necessário para substanciar a luta e resistência contra tal fenômeno. Essa resistência a essa forma de dominação é o que passa a ser chamado de decolonialismo. Esse aspecto de reação se dá pelo entendimento que em um plano idealista não deveriam haver invasões ou tentativas de dominação de quaisquer tipos sobre qualquer comunidade. Serviria este pensamento decolonial, como forma de desconstrução de todos os efeitos causados pelos séculos do colonialismo e imperialismo, e serviria de arma protecionista contra novas e constantes investidas que o sistema cíclico do capitalismo impõe a sociedade em sua natural reprodução.
Ou seja, a decolonialidade pode ser compreendida de um modo duplo. Ela é a forma de resistência à dominação constituída simultaneamente à modernidade/colonialidade. Ao mesmo tempo, a decolonialidade ou pensamento decolonial é a organização e a produção acadêmica que desvela e se opõe à lógica da matriz de poder colonial moderna. (CARVALHO, 2020 p. 17)
O pensamento decolonial não busca desqualificar a primeira onda de independência das antigas, assim denominadas “colônias”, mas conscientizar de que essa independência se encontra incompleta, pois ela visava a desocupação de seus territórios, quando o capitalismo já não se dava apenas pela a ocupação objetivamente para a exploração dos recursos naturais in loco. No sistema-mundo globalizado, as formas de dominação e exploração se dão por outros meios, como vimos anteriormente, especialmente com o domínio da economia e da política, fazendo necessário a realização de uma nova independência, promovendo assim o fim das formas hierárquicas de descriminação criadas e aprofundadas após as primeiras independências.
Partindo do entendimento de que a decolonialidade nasceu em reação ao primeiro esforço da empreitada colonialista sobre as américas, temos a compreensão que suas origens são da luta latino-americana pela libertação de seus opressores. Mas é importante ressaltar que apesar de que sua origem tenha ocorrido nas américas essa não está atrelada geograficamente a esta, trata-se de uma luta que perpassa e deverá perpassar por todos os territórios e povos que vivem sob dominação ou no risco iminente desta, trazendo à prática a luta idealizada no pensamento decolonial.
Apesar de sua origem geopoliticamente determinada, a América Latina, o movimento decolonial não é uma teoria sobre essa região e produzida exclusivamente para ela. Trata-se, em verdade, de uma teoria do sistema-mundo, uma vez que a única possibilidade de se realizar uma compreensão adequada da modernidade e do tempo presente é ter em vista a sua contraparte oculta: a colonialidade (CARVALHO, 2020 p. 19)
Além do desafio que se torna clássico no atual modelo democrático vigente na maioria dos países, onde a façanha é se opor as elites que dominam os cenários políticos e econômicos, onde muitas vezes dominam de maneira multinacional, se apresentam na era da informação uma nova forma de colonialismo: o digital. Trabalhos recentes demonstram que as informações fornecidas de maneira consentida por bilhões de utilizadores constantemente, minuto a minuto formam uma nova forma de exploração e dominação através dos meios digitais. Além dos países tradicionalmente imperialistas, a tecnologia possibilitou o aparecimento de novas potências imperialistas, que é o caso das “big techs” trazendo o status de superpotências à essas gigantes corporações de tecnologia. Esse debate apresenta uma nova trincheira para o pensamento decolonial em um ambiente onde os desafios políticos e econômicos nem foram superados e acabam até mesmo sendo potencializados pela ação fortíssima da tecnologia.
O colonialismo digital não é mera metáfora ou discurso de poder, mas um dos traços objetivos do atual estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Para o sociólogo sul-africano Michael Kwet, trata-se do uso da tecnologia digital para a dominação política, econômica e social de outra nação ou território.
4. Crise democrática brasileira
A democracia brasileira, apesar de seus quase 35 anos, é considerada em comparação com outros estados democráticos uma democracia recente, principalmente pelo fato de ter sido antecedida por um longo período ditatorial militar, onde se deu através de um regime violente, onde seus efeitos ainda refletem sobre o cotidiano brasileiro. Através de uma constituição elaborada e promulgada ao fim dos anos 80, a mesma sofreu influencias em sua origem por aspectos neoliberais, chamados popularmente de globalização, onde força-se a abertura de suas fronteiras e diminui aspectos de soberania fomentando o conceito da ideia de capitalismo comunitário, onde não estariam os países, principalmente os do grupo em desenvolvimento, como o Brasil, mais suscetíveis somente ao seu próprio interesse, mas na verdade deveriam buscar estar alinhados aos interesses dos países imperialistas, que vendiam a ideia de como se o interesse seria da comunidade global.
Essa transição tanto a no ambiente interno, quanto no aspecto externo, acabam por trazer grande movimentação em torno da nova Constituição e dos direitos e garantias que ela apresentara. Ao passar do tempo, demonstrou-se que alguns temas que chocavam-se diretamente com os interesses regionais, traziam consigo a busca por um olhar reformista sobre a recente Carta brasileira. Aspectos sobretudo nos interesses econômicos e políticos iniciam os debates que começam a trazerem consigo as Emendas Constitucionais que com o passar do tempo e o aprimoramento do novo sistema de representação politica no Congresso Nacional, se tornam importantes ferramentas de exploração desse domínio politico no cenário brasileiro.
No ano de 2008, o sistema financeiro mundial sofre um grande impacto com o fechamento de importantes bancos estado-unidenses, por concentrar grande volume de operações, as reverberações dessa onda de impacto é sentida por todo o mundo. No Brasil, a politica econômica implementada no segundo mandato do Presidente Lula, traz a sensação estabilidade frente ao cenário exterior, levando ao presidente a diminuir as proporções da onda de danos financeiros que o mundo vivia, relativizando que no Brasil, não foi sentida onda alguma e sim, apenas uma “marolinha”. O fato é que o capitalismo vive em ciclos, onde durante as revoluções de seu movimento, são criados enormes altos e baixos. No momento citado pelo presidente Lula, o país estava na crista dessa onda, mas no segundo mandato da presidenta Dilma Roussef o país mergulhou no vale da mesma onda de 2008, trazendo uma crise financeira que seria utilizada de forma friamente planejada para se criar uma instabilidade politica que levaria ao golpe político-parlamentar que iria depor o segundo presidente da nossa jovem democracia.
O capitalismo porta necessariamente crise. Pode-se ler o capitalismo como crise constante, por sua natureza exploratória e conflituosa que faz, então, com que a instabilidade social seja sua marca, onde há exploração e dominação, há incomodo, instituições não lhe são suficientes, nem estáveis, e isso é um viver sobre crise. (MASCARO, 2018, p.25)
Dado esse período de consolidação que nossa democracia ainda vive, talvez não seja possível ainda que a população brasileira compreenda o conceito de democracia em sua plenitude. Apesar de haverem varias formas e definições de democracia, a população brasileira se acostumou com um modelo eleitoral, onde dentre os vários poderes que a população abdicou na formulação da Constituição Federal de 1988 e delegou também à nova República Federativa que ali se organizara o poder de representação delegado ao Poder Legislativo nos termos da Constituição, passando a forma da população opinar nos caminhos do país através das eleições e escolhas dos seus representantes, onde estes seriam encarregados de levar as demandas de seus eleitores para a discussão nos locais de Poder.
Para ser mais preciso, provavelmente se trata de um problema relacionado a democracia em sua versão eleitoral, sistema que gira em torno do voto e disputa pela representação via partidos políticos e não um problema que atinja a ideia de democracia per se, especialmente em suas modalidades participativas. (RODRIGUEZ, 2019, p. 25)
Em condições idealistas, não haveriam problemas de haverem levantes populares que visassem a reforma de instituições que não estivessem atendendo as reais necessidades do Povo naquele determinado momento histórico. Mas não é o ambiente que percebemos no decorrer dos recentes anos. A população que delegou e delega poder a seus representantes, democraticamente eleitos pelas regras do sistema eleitoral nacional, não tem conseguido a contemplação de suas pautas e suas demandas coletivas e nem se fala em demandas individuais nos espaços de debate. Sem que haja uma grande mobilização regional ou nacional, dificilmente matérias que estejam no anseio popular são trazidos para o debate. Nesse ponto, se faz necessário a reflexão de qual motivo, apenas as pressões populares têm sido mais efetivas nos momentos das reinvindicações. É possível que seja uma situação onde a crise esteja ocorrendo no sistema democrático eleitoral, pois tem sido necessário atuação redundante da sociedade ao eleger seus representantes e realizar mobilizações populares para que suas pautas sejam colocadas em discussão e não raramente está sendo necessário novas mobilizações a cada turno de votação. Além da crise do sistema eleitoral, não podemos apartar das crises contidas nos outros sistemas, como o direito e outras práticas colonialistas.
Como se vê, nas democracias, se as instituições funcionarem bem, todos os direitos estarão permanentemente em tensão e em risco. Toda naturalização de direitos, veremos adiante, será sinal de patologia e, a depender de sua forma, de uma perversão do direito; sinal de que grupos sociais ou indivíduos estão tentando imunizar sua posição em relação à luta por direitos por meio de uma estratégia furtiva que procura apresentar como legais atos meramente autárquicos. É provável que estejamos vivendo hoje um momento em que o descompasso entre instituições formais e a sociedade esteja se mostrando de forma ainda mais aguda, no entanto, algum descompasso sempre haverá. (RODRIGUEZ, 2019, p. 35-36)
Essa redundância que se demonstra de cada vez mais constante em nosso País, onde as manifestações ocorrem de forma cada vez mais intensa, podem acabar por denunciar falhas estruturais no modelo democrático vigente. Olhando a partir de modelos de democracias mais participativas e não apenas a eleitoral, a qual no Brasil tem demonstrado ineficiência por diversas vezes, os momentos de crises que ensejam insurreições, podem acabar por se tornarem momentos oportunos para uma reforma estrutural da qual os representantes eleitos não demonstram interesses em realizar, nesse sentido, faz necessário ressaltar que há aqui a atuação não apenas dos representantes eleitos, estão aqui presentes as entidades citadas anteriormente que possuem poder de influência sobre o estado, como o Direito e corporações diversas. Assim como nos ciclos do capitalismo, a democracia promove seus altos e baixos, onde os momentos de crise antecedem momentos de estabilidade institucional, fazendo necessária a crise para a constante consolidação do regime democrático, bem como a atualização quando a população entender que necessária for.
Porque avançar além das instituições políticas já dadas e alcançar o espaço do confronto estrutural são questões não previstas em agendas, e sim ensejadas por realidades históricas muito especificas – raramente advindas de direta consciência política, mas quase sempre a partir de extrema crise, miséria ou ocupação territorial, insurgindo-se contra forças dominantes nacionais e internacionais. A política revolucionária, em tempos não revolucionários deve se manter investindo em fundamentos para a transformação social, sendo a mobilização das massas seu mais decisivo mister. (MASCARO, 2018, p. 31)
O direito, a decolonialidade e a crise democrática devem ser constante devido a volatilidade das relações sociais, não podendo perdurar para sempre períodos de instabilidade institucional, com risco de se perder ainda mais poderes do individuo para apropriação Estatal e outras entidades que buscam deter o poder para a continuidade de seus interesses legitimados por políticas públicas e diretrizes econômicas.
5. Conclusão
Os três elementos que figuram como objeto deste trabalho, demonstram que não são atores isolados e que seus elementos não se movem de maneira autônoma, tampouco os seus produtos não são percebidos pela sociedade.
O direito não poderá ser dissociado de seus elementos coercitivos e corretivos, correndo o risco de este não se apresentar de fato como o Direito pois ele tem sua essência assentada nestes elementos. A decolonialidade necessita ser difundida de maneira mais ampla, para que a fantasia de que as ex-colônias já são independentes, quando na verdade, outras maneiras de exploração são adaptadas a cada contexto histórico onde estão inseridas, neste momento de expansão tecnológica, há o risco de haver uma dominação acelerada como nunca antes vista, fazendo com que o pensamento decolonial necessite ser expandido com a mesma velocidade ao risco de ser atropelado. A crise democrática brasileira sofre poderosas influencias sobre os dois aspectos anteriores, não a toa que os dois últimos momentos de maior tensão política no país (deposição da presidenta Dilma e prisão do presidente Lula) estiveram cercadas de fatos jurídicos e interpretações sobre as normas vigentes, bem como os interesses estrangeiros através das influencias das gigantes mundiais e por meio das redes sociais interferiram diretamente sobre os seus andamentos.
Portanto, por uma perspectiva histórica, estas entidades são derivadas da prática capitalista, onde seus entranhamentos se dão de maneiras complexas e profundas, não sendo possível em uma abordagem materialista uma concepção isolada nem tentar encontrar justificativas de maneira autônoma devendo estes serem observados com a atenção que as relações sociais necessitam, principalmente quando se deseja compreender as transformações constantes que nos cercam.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. O Conceito e a Natureza do Direito. São Paulo: Marcial Pons, 2014;
CARVALHO, Rayann Kettuly Massahud de. Direito e Pensamento Descolonial: aspectos introdutórios. Revista de Direito Viçosa, vol. 12, n. 2, pp. 1–30, 2020.
RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das Lutas: democracia, diversidade e multinormatividade. São Paulo: LiberArs, 2019;
MASCARO, Alysson Leandro. Crise e Golpe. São Paulo: Boitempo, 2018
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.
FAUSTINO, Deivison. Colonialismo Digital. São Paulo: Boitempo, 2023LOSURDO, Domenico. Imperialismo e questão europeia. São Paulo: Boitempo, 2023
1Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) UFPA.