DIREITO À MORADIA DIGNA: A POLÍTICA URBANA NO PROCESSO DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE INTERESSE SOCIAL NO BAIRRO VILA VITÓRIA NO MUNICÍPIO DE IMPERATRIZ/MA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7318013


Larissa Gabriele Sá de Sousa1
Jakeline Nogueira Pinto de Araújo2
Mariana Leal Conceição Nobrega3


Resumo: A irregularidade habitacional é um grande problema para o desenvolvimento social no Brasil, que, em decorrência do acesso e parcelamento ilegal de terras, resulta na consolidação de núcleos urbanos informais sem a devida segurança jurídica e saneamento básico adequado, ferindo o princípio máximo da dignidade da pessoa humana. Diante desse grande déficit, foi necessário a implementação de políticas habitacionais visando reduzir a segregação social e espacial, como um meio de inserir aquela parcela da população ao ordenamento urbano, dando eficácia aos art. 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, com a implementação da Lei Estadual de Regularização Fundiária Urbana de Interesse Social n. 11.140/2019, do Maranhão. O presente artigo tem como escopo a análise do direito à moradia digna com a implementação da política de regularização no município de Imperatriz, notadamente no bairro Vila Vitória, como instrumento efetivo da legitimação da propriedade e de inserção social, através das legislações vigentes. Para isso, foi necessário compreender alguns conceitos sobre o tema, demonstrando o direito à moradia digna como elemento de aplicabilidade da referida política, adotando-se como metodologia o estudo de caso da REURB-S no bairro Vila Vitória, a aplicação de questionários, análise documental, pesquisas bibliográficas de teóricos com o mesmo tema e análise das legislações que efetivam o referido direito. Ao final, constatou-se que o programa de regularização fundiária urbana de interesse social é efetivo quanto a legitimação do direito real de propriedade, mas há uma deficiência da gestão pública local quanto ao saneamento básico.

Palavras-chave: Direito à moradia digna; Regularização Fundiária; Legitimação da Posse; Imperatriz do Maranhão; Bairro Vila Vitória; 

Abstract: The irregular housing is a serious problem for social development in Brazil, which, as a result of illegal access and subdivision of land, results in the consolidation of informal urban centers without proper legal security and adequate sanitation, violating the maximum principle of the dignity of human person. Faced with this elevated deficit, it was necessary the implementation of housing policies aiming to reduce the social and spatial segregation and to insert the portion of the population into urban planning, giving effectiveness to art. 182 and 183 of the Federal Constitution of 1988, with the implementation of the State Law of Urban Land Regularization of Social Interest n. 11.140/2019, in Maranhão. The purpose of this article is to analyze the right to worthy housing with the implementation of the regularization policy in the county of Imperatriz, specifically in the Vila Vitória neighborhood, as an effective instrument for legitimizing property and social inclusion, through current legislation. For that, it was necessary to understand some concepts about the subject, demonstrating the right to appropriate housing as an element of applicability of the aforementioned policy, adopting as a methodology the case study of REURB-S in Vila Vitória, the application of questionnaires, documental analysis, bibliographic research from theorists with the same theme and analysis of the legislations that make this right effective. In the end, it was recognized that the urban land regularization program of social interest is effective in terms of legitimizing the real property right, but there is a deficiency in local public management regarding the basic sanitation and the public instruments.

Keywords: Right to dignified housing; Land regularization; Legitimation of Possession; Imperatriz of Maranhão; Vila Vitória neighborhood;

1 INTRODUÇÃO

A crise habitacional no Brasil é fato público e notório. O déficit de habitações e a quantidade de ocupações irregulares evidencia abismos sociais e refletem diretamente no direto à moradia, que se constitui em um direito humano, alicerçado em âmbito internacional pela Declaração dos Direitos Humanos de 1948 e pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º, promulgado pela Emenda Constitucional 26/2000, como direito fundamental à dignidade humana.

Desta forma, segundo a Cartilha de Regularização Fundiária Urbana a irregularidade das habitações no Brasil é marcada por pessoas socioeconomicamente vulneráveis, “que historicamente não tiveram acesso à produção formal de habitação, e, como consequência, são impedidas de concretizar, no quadro da legalidade, seus direitos à cidade e a exercer plenamente sua cidadania” (BRASIL, 2012, p. 6).

Diante da expansão urbana informal, se fez necessário, de antemão, a mitigação do acesso ilegal às propriedades, para que assim possa evitar a proliferação da informalidade e o devido desenvolvimento necessário para os municípios. Desta forma, o Brasil conta com programas de habitação, estatutos, legislações Federais e municipais que visam assegurar o direito à moradia digna por meio de políticas públicas com fins sociais.

A Vila Vitória, objeto da presente pesquisa, é um dos bairros de Imperatriz demarcado como área de Zona Especial de Interesse Social – ZEIS e instrumento de Regularização Fundiária de Interesse Social – REURB S, regulamentada pela Lei Estadual nº 11.140/2019, instituída pela Federal nº 13.465/2017. Contudo, a implementação da presente política pública não se trata somente da legitimação da propriedade, ela deve atender aos direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, ou seja, o Estado tem o dever legal de garantir o mínimo existencial através das políticas públicas.

As inúmeras famílias que ocupam essa área de domínio da União não possuem segurança jurídica de suas moradias, uma vez que elas exercem apenas a posse que difere do direito de propriedade, no sentido em que o primeiro lhe confere somente o direito de uso das terras, mas não lhes dá direito absoluto, ou seja, não possui poderes para dispor e gozar do lote como no direito de propriedade. Para tanto, a Lei de regularização fundiária visa tanto a devida função social quanto o direito real de propriedade dos moradores do bairro Vila Vitória.

Nesse contexto, é perceptível que a elaboração de Leis específicas que tratam das políticas públicas de habitação, bem como a previsão constitucional que lhes garantem a dignidade humana ainda não se mostraram suficientes para mudar o quadro de irregularidades no Brasil, visto que os dados do IBGE (2010) comprovam que 77,1% da população urbana do Maranhão ainda vive em assentamentos precários, inadequados e informais.

Diante dessa problemática, o presente estudo de caso da política urbana implementada no Bairro Vila Vitória visa compreender “como a regularização fundiária de interesse social, diante da complexidade jurídica de legalizar núcleos urbanos informais, torna efetivo a garantia do direito à moradia e ao princípio da dignidade da pessoa humana das famílias de baixa renda?”

Assim, o artigo tem como objetivo geral analisar o direito à moradia digna relacionando-a às diretrizes do programa de regularização fundiária urbana de interesse social instituído pela Lei 11.140/19, nos termos da Lei 13.465/17, bem como nas legislações pertinentes, como um instrumento para a legitimação de propriedade dos moradores socioeconomicamente vulneráveis do bairro Vila Vitória no município de Imperatriz/MA.

No que concerne ao procedimento metodológico, a presente pesquisa possui abordagem quantitativa que, através de procedimento formal de coleta de dados disponibilizados pela AGEMSUL, foi possível traduzir em números as informações obtidas; bem como qualitativa, observando o procedimento de regularização fundiária urbana de interesse social implementado no bairro Vila Vitória, localizado em Imperatriz/MA, onde se fez necessário a aplicação de questionário com os moradores do bairro. Ademais, foi realizado uma pequena entrevista com um dos moradores mais antigo do bairro Vila Vitória, Sr. José Antônio Lopes Cardoso, para melhor entender como ocorreu a distribuição irregular dos lotes. Quanto ao procedimento técnico, para melhor desenvolver o estudo, foi realizado revisões bibliográficas com o mesmo objeto de pesquisa para levantamento de discussões e explicações acerca da política de legitimação de posse.

O presente estudo se organiza, inicialmente, pelo breve histórico da expansão urbana brasileira que ocasionou o surgimento de diversos loteamentos urbanos irregulares, parcelados indevidamente, gerando grandes consequências como a precariedade das habitações no interior desses bairros; no segundo tópico será abordado a moradia como garantia da dignidade da pessoa humana nos termos da Constituição Federal de 88 e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, também como parâmetro para a implementação de políticas públicas sociais; no terceiro tópico, fez-se necessário a distinção da função social da posse e da propriedade como direito fundamental, correlacionando a sua concretude face a Lei n.º 11.140/2019. O quarto capítulo versa as políticas de urbanização como meio de mitigação da irregularidade, analisando a eficiência jurídica do programa de regularização fundiária urbana de interesse social como uma política de inclusão social dos moradores do bairro Vila Vitória, sob a ótica legislativa e doutrinária. Por fim, no quinto e último capítulo, a apresentação do estudo de caso da REURBS no bairro Vila Vitória;

2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. Breve histórico da expansão urbana brasileira e a informalidade habitacional.

O fenômeno da expansão urbana no Brasil teve maior movimento entre as décadas 70 a 80 em decorrência da falta de oportunidade de empregos, visto que o país passava por uma intensa modernização das produções agrícolas. As pessoas que migravam para as cidades, em sua grande maioria, desproviam de condições financeiras para adquirir uma moradia digna, o que acabou ocasionando a formação de assentamentos urbanos por recorrerem à ilegalidade em busca da sobrevivência.

Dos 60 milhões de domicílios urbanos, 50% dos imóveis não possuem escritura pública registrada em cartório (BRASIL, 2019). Em suma, Santin (2007) preceitua que essa irregularidade decorre da desigualdade social porque, historicamente, as cidades brasileiras estavam preparadas apenas para receber as classes média e alta, sem maiores preocupações com a construção de habitações populares, destinadas àquelas pessoas que vinham do meio rural na busca de emprego e melhores oportunidades de vida nas cidades brasileiras.

O Estado do Maranhão não foge dessa realidade, os dados do último Censo realizado pelo IBGE em 2010, em uma comparação proporcional entre o Brasil e a Unidade da Federação, estima que o país possui cerca de 41,4% da população urbana vivendo em assentamentos precários, informais e em domicílios inadequados, enquanto o Estado perfaz 77,1% da população nessa situação. Essa segregação socioespacial interfere no planejamento sustentável dos municípios, dificultando também a urbanização digna de moradia. 

2.1.1. Expansão urbana em imperatriz/MA.

Segundo Adalberto Franklin (2005), Imperatriz começou a se desenvolver em 1960 com a construção da rodovia Belém Brasília, passando a receber migrantes das várias cidades e Estados que buscavam melhores condições de vida e trabalho. Desde então, o polo progressista triplicou sua população em 20 anos e passou a ser a segunda maior do Estado do Maranhão, com população estimada em 259.980 pessoas, segundo dados do IBGE (2010). Contudo, a crescente população passou a se concentrar em loteamentos irregulares nos bairros mais precários e afastados do centro, como o macroproblema do bairro Vila Vitória ocupado, na sua grande maioria, por famílias de baixa renda.

Esses loteamentos irregulares são considerados núcleo urbano informal e núcleo urbano informal consolidado que nos termos do art. 11, incisos II e III, da Lei de REURB:

II – Núcleo urbano informal: aquele clandestino, irregular ou no qual não foi possível realizar, por qualquer modo, a titulação de seus ocupantes, ainda que atendida a legislação vigente à época de sua implantação ou regularização”. 

III – núcleo urbano informal consolidado: aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo Município. (BRASIL, 2017).

Nesse contexto, denota-se que o bairro Vila Vitória é núcleo urbano informal consolidado uma vez que, de acordo com a breve entrevista com um dos moradores mais antigo da área, o período de ocupação data de 1992. Desta forma, pode se verificar os demais elementos que demonstram a irreversibilidade da ocupação, pois o bairro conta com vias de circulações, ainda que precárias, bem como alguns equipamentos públicos;

3. A moradia como garantia da dignidade da pessoa humana.

O direito à moradia digna é universal e indispensável, deve integrar socialmente as pessoas, desde aqueles que possuem condições financeiras aos considerados vulneráveis (população de baixa renda). É um dos direitos humanos reconhecido pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º, como direito e garantia fundamental que visa o bem-estar da pessoa, assegurando o acesso à moradia regular e aos benefícios dela provenientes, e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, conforme Artigo XXV – 1.

“Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle” (NAÇÕES UNIDAS, 1948). 

Nesse sentido, a moradia digna não deve se restringir somente à um lar em perfeitas condições, deve-se atender as necessidades inerentes a dignidade da pessoa humana provendo uma infraestrutura adequada, saneamento básico, bem como a implantação de instrumentos públicos que integram a população de baixa renda à sociedade. Desta forma, é obrigação dos entes federativos assegurar a dignidade da pessoa humana, instituindo políticas de habitações dignas e de saneamento básico, conforme elucida o art. 23, inciso IX, in verbis:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

IX – Promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico. (Vide ADPF 672). (“Art. 23, inc. IX da Constituição Federal de 88 – Jus Brasil”)

Conforme explanado, é dever do Estado assegurar a dignidade da pessoa humana instituindo políticas de habitação que as integram à sociedade. Contudo, esse dever do Estado não os obriga a construir habitações para toda a população brasileira, mas o direito à moradia poderá ser implementado por meio de programas que viabilize, visto que os programas habitacionais instituídos “abrange medidas que são necessárias para evitar a falta de moradia, proibir as remoções forçadas e a discriminação, focar nos grupos mais vulneráveis e marginalizados, garantir a segurança da posse a todos, e garantir que a habitação de todos seja adequada” (BRASIL, 2013, p. 17).

Nesta seara, é importante salientar que o direito à moradia digna difere do direito de propriedade, conforme elucida o caderno Por uma Cultura de Direitos Humanos:

“O direito à moradia adequada é mais amplo do que o direito à propriedade, já que aborda direitos não relacionados à propriedade, visando a garantir que todos tenham um lugar seguro para viver em paz e dignidade, incluindo os não proprietários do imóvel.” (“Direito à moradia adequada – UNESCO”) Segurança da posse, um dos pilares do direito à moradia adequada, pode tomar uma variedade de formas, incluindo alojamento de aluguel, cooperativa de habitação, arrendamento, ocupação pelo dono, habitação de emergência ou assentamentos informais.” (BRASIL, 2013, p.18).

Diante desse contexto, desde a intensificação do fenômeno de urbanização no Brasil na década de 60, comprovado pelos estudos do IBGE (2010), o direito à propriedade tem se tornado um macroproblema relacionado ao acesso inadequado de espaços urbanos. Essa mazela decorre das desigualdades sociais, onde as pessoas que viviam no campo se deslocaram para a cidade em busca de trabalhos, objetivando melhores condições de vida. Desta forma, passaram a compor o quadro populacional dos municípios, desencadeando a expansão desta sem o devido planejamento estrutural. Portanto, “além de um direito social, podemos dizer que a moradia regular é condição para a realização integral de outros direitos constitucionais, como o trabalho, o lazer, a educação e a saúde”. (BRASIL, 2010, p. 8). 

4. Função social da propriedade e da posse como direito fundamental

A propriedade não está limitada apenas à moradia no que diz respeito ao mínimo existencial, é ligada à função social como um dos direitos basilares da dignidade da pessoa humana. Desta forma, Flávio Tartuce expõe que “a propriedade é o direito que alguém possui em relação a um bem determinado. Trata-se de um direito fundamental, protegido no art. 5.º, inc. XXII, da Constituição Federal, mas que deve sempre atender a uma função social, em prol de toda a coletividade”. (2014, p. 96).

Dito isso, o art. 5º, caput, da Constituição federal de 1998 dispõe acerca da inviolabilidade dos direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, do qual tutela a imprescindibilidade da propriedade, devendo esta atender a sua função social:

 Art. 5º “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes […]  

XXII – é garantido o direito de propriedade; 

XXIII – a propriedade atenderá a sua função social”. (BRASIL, 1988).

Assim, pode-se dizer que a área de domínio da União, que hoje compreende o grande bairro Vila Vitória, não estava atendendo a devida função social, o que levou ao parcelamento irregular das terras por pessoas em situações de vulnerabilidade socioeconômica. Daí a necessidade de legislação e políticas públicas, visando desacelerar a urbanização desordenada e regularizar a população de baixa renda que ali se estabeleceu.

Dando continuidade ao direito à propriedade, o Código Civil de 2002, no art. 1228, in verbis, enfatiza os atributos que a propriedade deve atender em consonância a outros direitos consubstanciados na carta magna.

Art. 1228 [..] § 1 o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.” (CÓDIGO CIVIL, 2002). 

Nesse sentido, a “propriedade não é só um direito, mas também um dever. É um direito do proprietário de ter para si a coisa e, também, um dever dele para com a coletividade de que essa propriedade produza frutos e atinja sua função social” (MARTINS, 2019). Contudo, o direito à propriedade não é absoluto, é necessário ter a posse de título do imóvel devidamente registrada pelo cartório de registro de imóveis para que se tenha segurança jurídica.

Assim, para Tartuce, “é cediço que determinada pessoa pode ter a posse sem ser proprietária do bem, uma vez que ser proprietário é ter o domínio pleno da coisa.” (2014, p. 40), ou seja, a pessoa que a possui poderá utilizar o imóvel para fins de moradia ou se beneficiar socioeconomicamente dos frutos dela provenientes, mas o domínio pleno ainda será da União, conforme art. 1.228 do Código Civil. 

Nesse sentido, Sarlet explica que a propriedade:

“[…] se constitui em dimensão inerente à dignidade da pessoa, de modo que a violabilidade considerando que a falta de uma moradia decente ou mesmo de um espaço físico adequado para o exercício da atividade profissional evidentemente acaba, em muitos casos, comprometendo gravemente – senão definitivamente – os pressupostos básicos para uma vida com dignidade”. (SARLET, 2013, p. 50).

Desta forma, a função social da propriedade urbana no Estatuto das Cidades, Lei n.º 10.257/2001, estabelece que a habitação deve atender as necessidades dos cidadãos, assegurando-lhes condições de vida adequada, bem como o direito fundamental à justiça social e ao pleno desenvolvimento das atividades econômicas, atendendo às exigências expressas do Plano Diretor. Ademais, de acordo com a Lei n.º 13.465/2017, art. 10, inciso VII, a regularização fundiária tem como objetivo “garantir a efetivação da função social da propriedade”. 

5. Políticas de urbanização como meio de mitigação da irregularidade de núcleos urbanos.

As políticas de urbanizanização visam a redução das desigualdades sociais em decorrência das ocupações irregulares que surgiram ao longo dos anos. Desta forma, além de conferir o direito fundamental a uma moradia digna, as políticas de urbanização não só englobam o ordenamento jurídico como, também, urbanísticas, ambientais e sociais, estudando meios eficases para mitigar a irregularidade dos nucleos urbanos consolidados, bem como impedir o surgimento de novos.

A Constituição Federal de 88, em seu Art. 1º, inciso III, prevê como um dos principais fundamentos a dignidade da pessoa humana. Logo, em termos de políticas de urbanização e habitação, erradicar as desigualdades sociais, conforme art. 3º, III, da Carta Magna, objetifica tanto a dignidade da pessoa humana quanto a redução das irregularidades habitacionais, bem como a futuras ocupações indevidas. Desta forma, conforme art. 21, inc. XX, da referida Constituição, demonstrado os pressupostos fundamentais, cabe aos entes federativos seguir as diretrizes que objetivam o pleno desenvolvimento urbano, dentre elas a regularização das moradias irregulares, visando incorporar os núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial através da legitimação da propriedade.

Ainda na referida Carta Magna, em termos de competência mencionada no parágrafo anterior, o art. 23, inc. IX, visa a promoção de construção de moradias como solução necessária para a redução do acesso indevido às terras privada ou de domínio da União, que vão em desencontro às normativas jurídicas vigentes. Quanto a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico, as políticas devem trabalhar em conjunto atendendo as necessidades dessa população economicamente vulnerável, visando assegurar o mínimo existencial.  Portanto, é notório que as legislações que visam manutenção dessa tutela estão em conformidade com a Constituição Federal.

  A Lei Federal 10.257 de 2001, que instituiu o Estatuto da Cidade, visa conferir eficácia, no que concerne a ordem urbanística, aos artigos 182 e 183, da Constituição Federal de 1988, in verbis, que institui princípios e diretrizes objetivando o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade em benefício de seus habitantes.

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. Art. 183. “Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.” (BRASIL, 1988).

Assim, segundo Tartuce (2017), é certo que o Plano Diretor é um dos instrumentos básicos da política de desenvolvimento e de expansão urbana adequada. Quanto a função social da propriedade, a sua posse constitui um direito, quem a tem goza de proteção jurídica. Desta forma, o nosso ordenamento jurídico traz a possibilidade de adquirir o direito real de propriedade por meio da regularização fundiária urbana de interesse social. 

O município de Imperatriz/MA tem em média 250 mil habitantes (IBGE, 2010) e conta com o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, aprovado em 2018. Desta forma, o art. 6° da referida Lei elenca um rol de diretrizes, dos quais a “regularização fundiária de ocupações espontâneas, irregulares e/ou áreas de risco, com a consequente relocação de titulação” faz parte da política de desenvolvimento municipal. Contudo, o interesse para reverter a situação do bairro Vila Vitória partiu do Governo do Estado, por meio da SECID – Secretaria de Estado das Cidades e Desenvolvimento Urbano, através do projeto de regularização e reprogramação fundiária do núcleo urbano informal consolidado.

No art. 2º do Estatuto das Cidades, em consonância aos princípios constitucional, nos traz um rol de diretrizes que se constituem em direitos, objetivando desenvolver plenamente as funções da cidade e propriedade, desde a garantia do direito à cidade sustentável, visto que também é uma questão socioambiental. Nesse sentido, Lisboa e Lima discorrem que:

A cidade sustentável ideal seria aquela ambientalmente equilibrada onde não há respaldo para o crescimento desordenado que traga efeitos negativos ao meio ambiente com o uso inadequado dos imóveis; bem como é a que preserva e recupera o patrimônio natural e construído na medida do possível, proporcionando aos habitantes e visitantes um permanente bem-estar em razão de sua funcionalidade, em face da disposição de equipamentos urbanísticos facilitadores da mobilidade e do transporte urbano, e da segurança e do lazer. Esse ideal de cidade um tanto utópico apresenta-se como objetivo a perseguir diante das inúmeras dificuldades decorrentes do processo de urbanização meramente capitalista (LISBOA; LIMA, 2016, p.6).

Ademais, é necessário o desenvolvimento de ações em conjunto que atendam as medidas jurídicas, urbanísticas e sociais. Assim, em âmbito federal, foi sancionada a Lei n.º 13.465/2017, que “institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União” (BRASIL, 2017), em conformidade às diretrizes do Estatuto das Cidades. Desta forma, o art. 10 da Lei Federal n.º 13.465/2017 tem como objetivos, em termos do direito à moradia digna:

VII – garantir a efetivação da função social da propriedade; VIII – ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes; IX – Concretizar o princípio constitucional da eficiência na ocupação e no uso do solo; X – Prevenir e desestimular a formação de novos núcleos urbanos informais; XI – conceder direitos reais, preferencialmente em nome da mulher; 

Além das legislações anteriormente abordadas, há também o Decreto Federal n. 9.310/2018, que “institui as normas gerais e os procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana e estabelece os procedimentos para a avaliação e a alienação dos imóveis da União” (BRASIL, 2018), visando detalhar nos seus 110 artigos todo o procedimento da REURB.

Diante desta finalidade, em âmbito Estadual foi promulgada a Lei 11.140/2019, nos termos da Lei n. 13.465/2017 e Decreto n. 9.310/2018, que institui o programa de regularização fundiária urbana no Estado do Maranhão de competência da SECID para executar o referido instituto, que também abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais, onde será mais bem trabalhada nos próximos capítulos. Ademais, importa dizer que a Leis anteriores não são recentes, o que se pode observar é que sofreram mudanças para se readequarem as situações da atualidade buscando aprimorar e reforçar a efetividade do referido instituto jurídico. 

Desta forma, como discutido anteriormente, é necessário a intervenção popular ou de interessados nas causas para que o Poder Público, que na maioria das vezes encontra-se inerte, aplique medidas efetivas que impeçam novas ocupações irregulares, fazendo a devida fiscalização, bem como a devida assistência às pessoas em situação de vulnerabilidade social e habitacional, visando sua dignidade.

6. Regularização fundiária urbana de interesse social no bairro Vila Vitória.

Grande parte do município de Imperatriz é composta por bairros que, inicialmente, foram formados por meio de loteamentos e parcelamento do solo urbano inadequados. Diante desse macroproblema, em conformidade com o Estatuto da Cidade, foi elaborado o Plano Diretor municipal, Lei complementar nº 01/2018, como instrumento normativo que visa a orientação dos processos de transformação e promoção do desenvolvimento, nos seus aspectos políticos, econômicos e sociais, físico-ambientais e administrativos, prevendo mecanismos para a sua implementação. 

Com a aprovação da Lei Federal nº 13.465, de 2017, regulamentada pelo decreto nº 9310, de 2018, que dispõe sobre a Regularização Fundiária, foi possível intensificar o processo de legitimação dos núcleos urbanos informais, por meio de um “conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes” (BRASIL, 2020, p.3).

Essas áreas deverão ser devidamente demarcadas, com o intuito de promover o desenvolvimento sustentável do município, bem como a sua expansão correta.  Assim, a cartilha de regularização fundiária explica que essas delimitações perfazem as áreas urbana correspondente à parcela do território, devendo ser incluídas no perímetro urbano pelo plano diretor ou pela lei municipal específica. Desta forma, foram denominadas zonas especiais de interesse social (ZEIS) que “são perímetros demarcados em Lei, onde se aplicam regras especiais para favorecer a produção de Habitação de Interesse Social – HIS ou para sua regularização, quando se trata de áreas de assentamento informal”. (SILVA, et al., 2020, p.5).

A ocupação do bairro Vila Vitória é objeto de regularização fundiária de interesse social – REUBS pelo governo do Estado do Maranhão, por meio da Secretaria de Estado das Cidades e Desenvolvimento Urbano – SECID em conjunto com a Agência Executiva Metropolitana do Sudoeste Maranhense – AGEMSUL, como uma das modalidades de parcelamento do solo urbano, visando integrar os beneficiários, que em sua grande maioria são pessoas bem carentes, à cidade.

O procedimento para a implementação do instrumento jurídico deve seguir, inicialmente, conforme dispõe o art. 21 do Decreto Federal n.º 9.310/2018, todas as fases da REURB Social. Desta forma, desde a demarcação da ZEIS e a devida caracterização do loteamento, de acordo com os dados obtidos no projeto de regularização fundiária e reprogramação elaborado pela SECID, o bairro Vila Vitória é caracterizado como núcleo urbano informal consolidado que demostra a sua irreversibilidade, ou seja, possui cerca de 3000 lotes que são divididos em 122 quadras, dos quais contam com a infraestrutura necessária para dar continuidade ao procedimento.

Para tanto, foi necessário identificar quem poderia ser beneficiário da legitimação do direito real de propriedade, sendo aqueles que detiveram a posse mansa e pacífica do lote, localizado em área de domínio da União, sem a oposição de outrem como sendo sua moradia. Nesse sentido, aquela determinada área deverá atender à função social de propriedade e ainda o marco temporal, comprovando ser “integrante de núcleo urbano informal existente em 22 de dezembro de 2022”, nos termos do art. 16 do referido Decreto.

Para dar continuidade, deve-se seguir todas as fases da REURB elencadas no art. 21 do Decreto acima citado para que o programa venha ser implementado. Assim, é necessário que os legitimados, através das pessoas jurídicas de direito público da administração pública ou privada, demostrem interesse requerendo ao poder público a realização da regularização naquela área em específico. Os legitimados para requerer poderão ser os próprios beneficiários, por interesse dos proprietários da terra, bem como loteadores, o Ministério Público e a Defensória Pública, conforme art. 14 da Lei n. ° 13.465/ 2017.

Adiante, haverá a devida notificação dos titulares de direitos reais sobre o imóvel e dos confrontantes, por meio de procedimento administrativo, podendo ser pessoal ou, caso a pessoa não seja localizada, por edital, para que querendo, se manifeste dentro do prazo de 30 dias, podendo concordar ou discordar da titulação dos que já ocupam a área. Contudo, caso não tenha manifestação ou confronto em relação ao lote a demarcação será averbada; superada essa fase, será necessário a elaboração do projeto de regularização fundiária, desenvolvido por meios de pesquisas que englobam não só medidas jurídicas, ou seja, são uma série de elementos que devem ser trabalhados em conjunto, como a descrição dos imóveis e seus confrontantes.

Desta forma, o procedimento contará ainda, com:

IV – Saneamento do processo administrativo;

V – Decisão da autoridade competente, por meio de ato formal, ao qual será dado publicidade;

VI – Expedição da CRF pelo Município ou pelo Distrito Federal; e

VII – Registro da CRF e do projeto de regularização fundiária aprovado no cartório de registro de imóveis em que se situe a unidade imobiliária com destinação urbana regularizada. (BRASIL, 2019). 

Saneamento do processo administrativo significa dizer que este passará por avaliação da autoridade competente objetivando analisar possíveis pendências no decorrer do procedimento. Caso tenha decisão favorável, poderá ser expedido a certidão de regularização fundiária – CRF de responsabilidade do município e, em seguida o seu devido registro, conforme projeto de regularização fundiária de interesse social do núcleo urbano informal consolidado, do bairro Vila Vitória, aprovado e registrado no Registro de Imóveis do Cartório do 7° ofício de Imperatriz. 

A área passa a ter o número de matrícula 14.450, do livro 2-BH, fls. 050, em nome da COHAB – Companhia de Habitação Popular do Estado do Maranhão, registrado no dia 23 de agosto de 2021. Desta forma, para que todo o procedimento pudesse sair do plano, foi necessário firmar acordo de cooperação técnica entre a SECID e a empresa Maranhão parcerias – EMARHP, n. 06/2019, objetivando o pleno desenvolvimento do programa de regularização fundiária priorizando a permanência dos antigos moradores do núcleo urbano.

  Além disso, para que o morador seja beneficiário da legitimação de propriedade, deverá atender aos requisitos: “I – não ser o beneficiário concessionário, foreiro ou proprietário de imóvel urbano ou rural” (BRASIL, 2017), ou seja, ter outro imóvel já registrado no Cartório de Registro de Imóveis, podendo ter seu cadastro indeferido caso encontrem número de matrícula do imóvel registrado em seu nome.

O benefício só poderá contemplar uma única vez cada pessoa que seja considera hipossuficiente, nos termos da referida legislação, ainda que situado em núcleo urbano distinto. Desta forma, “II – Não ter sido o beneficiário contemplado por legitimação de posse ou fundiária de imóvel urbano com a mesma finalidade”. (BRASIL, 2017).

Nos casos em que o imóvel não atende à função social de propriedade, caberá ao poder público demonstrar interesse na legitimação devendo observar se este traz benefícios econômicos para o sustento da família do posseiro ou se atende às necessidades daquela população, conforme inciso “III – quanto a imóvel urbano com finalidade não residencial, ser reconhecido, pelo Poder Público, o interesse público de sua ocupação”. (BRASIL, 2017). 

Quanto a gratuidade dos registros, como o núcleo urbano informal consolidado atende aos requisitos para a regularização de interesse social, as custas e emolumentos referentes aos atos da REURBS serão isentas, bem como a assistência técnica e jurídica aos legitimados, nos termos do art. 5, § 1º do Decreto Federal, bem como previsão legal na Lei Federal, Estadual e Plano Diretor. Essa gratuidade abrange, também, o imóvel pertencente ao beneficiário que atendeu aos requisitos legais.

De acordo com as informações obtidas na CRF do bairro Vila Vitória, a área passa a ser classificada de interesse social, com base nos requisitos legais atendidos pelos moradores, como pressuposto da legitimação fundiária. Assim, partindo da previsão legal visando a efetividade das legislações anteriormente citadas, por meio da AGEMSUL em parceria com a SECID, o núcleo urbano informal consolidado que deu vida ao bairro Vila Vitória, regulamentado em 2021, passou a cadastrar os moradores na REURBS para que, depois de 4 décadas, pudessem ter total domínio de sua propriedade.

Para isso, a agência metropolitana contou com uma equipe da Secretaria de Estado para realizar os cadastros dos moradores que foram beneficiados, bem como fazer a correta identificação e metragem dos lotes. Desta forma, foram especificados 1.522 lotes distribuídos em 90 quadras, só na primeira etapa realizada na última semana de agosto de 2021.

7. Estudo de caso da regularização fundiária urbana de interesse social no bairro Vila Vitória.

A política de regularização fundiária de interesse social visa “transformar gradativamente a realidade desigual de nossas cidades, depende de um esforço articulado de todos os entes da federação. Mais do que isso, depende da compreensão do conjunto da sociedade de que todos ganham com a construção de cidades mais justas”. (BRASIL, 2013, p.5).

Para Carvalho (2007), a regularização fundiária plena, se feita adequadamente, atenderá tanto a população de baixa renda que habitam assentamentos precários, reconhecendo seus direitos à uma moradia digna, bem como o devido gerenciamento das áreas de risco, como medida de requalificação urbana, evitando a formação de novos assentamentos precários. Assim, a cartilha de regularização preceitua que:

Para que a regularização fundiária seja plena, a regularização patrimonial deve ser articulada à regularização urbanística, o que implica a execução de obras de urbanização e implantação de serviços públicos e equipamentos comunitários. Além disso, a regularização fundiária deve propiciar a compatibilização do direito à moradia com a recuperação de áreas degradadas e com a preservação ambiental (BRASIL, 2013, p.7). 

O bairro Vila Vitória enfrenta problemas não só de habitação irregular, falta saneamento básico adequado, algumas ruas não possuem asfaltamento e iluminação, outras nem acesso possuem por estarem tomadas por matos e esgotos abertos. Dessa forma, para que esses problemas sejam sanados e os programas de desenvolvimento sejam realmente efetivos, é necessário que os entes da federação, em conjunto, dentro das suas competências e funções estabelecidas pela Constituição Federal, tal qual as leis especificas, tome iniciativa para o pleno desenvolvimento sustentável do município e da dignidade da pessoa humana. 

Nesse sentido, segundo Marcus Nunes e Carlos Júnior apud Alfonsin et. Al. (2018) “se os investimentos em urbanização nos assentamentos têm alto interesse político, os processos de titulação podem ter um efeito ainda mais intenso, já que se trata de uma formalização da segurança de permanência em contexto extremamente vulnerável”. 

A presente pesquisa é fruto da minha experiência na 1ª etapa do programa de regularização fundiária urbana de interesse social, obtida durante o estágio não obrigatório, realizado na Agência Executiva Metropolitana do Sudoeste Maranhense, nos meses de agosto até o presente momento. Desta forma, foi possível acompanhar todo o processo desde a emissão da CRF até a entrega dos primeiros títulos de propriedade.

Antes de entrar no procedimento cadastral, fez-se necessário entender como se deu o acesso e o parcelamento irregular que resultou o núcleo urbano informal consolidado. Para isso, foi realizado uma breve entrevista com um dos moradores mais antigos do bairro, o sr. José Cardoso, morador do bairro há mais de 40 anos, que em seu relato, explicou que a área era coberta por matos, ou seja, não possuía estrutura alguma para se constituir uma habitação adequada e digna, mas já era alvo de doação na época do governo da Roseana Sarney.

Desta forma, em relato dos outros 50 moradores entrevistados, na época muitas pessoas que ali habitam não possuíam condições suficiente para comprar um terreno ou uma casa em um bairro estruturado, alguns moradores vieram de pequenas cidades mais próximas à procura de trabalho e de uma condição de vida melhor. As pequenas parcelas de terras foram doadas para que pudessem construir suas moradias, mas, como a área não era demarcada, muitas pessoas invadiram e ali se estabeleceram, dando-lhe a devida função social. Nesse sentido, Tartuce dispõe que:

“A conclusão é que a ideia de função social serve para preencher o conceito de boa-fé. Confrontando-se a posse dos proprietários, que nunca deram qualquer destinação aos imóveis (posse antissocial, diante da inércia, do ato negativo), com a posse dos ocupantes, percebe-se que os últimos dotaram o bem de uma finalidade social (posse social, diante da atuação coletiva, do ato positivo)”. (TARTUCE, 2014, p. 123).

Como a situação estava fora de controle, a Empresa Maranhense de Administração de Recursos Humanos e Negócios – EMARHP (antiga COHAB – Companhia de Habitação Popular) precisou intervir com o intuito de fazer o parcelamento formal das terras. Para isso, foram firmados contratos de compra e venda de imóvel entre a sociedade e os moradores, por entender que aquela ocupação demonstrava elementos irreversíveis, com base no art. 11, inciso III, da Lei de REURB e art. 3º, inc. III, do Decreto Federal n. 9.310/2018.

Ato contínuo, percebe-se que somente a celebração de contrato de compra e venda dos imóveis não são suficientes, visto que muitos não conseguiram pagar as parcelas, e a eficiência jurídica encontrou-se inexistente, pois só passariam a ser proprietários após a devida quitação e o registro do imóvel no cartório de registro de imóveis. Assim, os ocupantes daquele núcleo urbano informal consolidado viveram durante anos em situação de insegurança jurídica, por não ter como comprovar ser proprietário.

Insta salientar que essa insegurança jurídica é alvo de estelionatários, vez que não possuem como comprovar o verdadeiro proprietário do imóvel. A exemplo disso, durante o cadastro dos moradores do bairro Vila Vitória, a agência recebeu algumas pessoas se passando por dono dos lotes a serem registrados que, durante a análise dos documentos, foram identificadas as fraudes. Assim, é nessa insegurança que muitas pessoas socioeconomicamente vulneráveis permaneceram durante anos, visto que 70% dos moradores entrevistados possuem mais de 60 anos.

Durante o cadastro foram designadas algumas pessoas para realizar a notificação dos moradores do bairro, informando o procedimento que seria realizado, contendo a data de início e as devidas descrições georreferenciadas, identificando a área confrontante e dando-lhes o prazo de 30 dias para se manifestar, caso contrário, implicaria em perda do direito do notificado titular o imóvel objeto da regularização fundiária urbana.

Ao realizar esse trabalho pelo bairro foi possível observar a precariedade das vias e a realidade das habitações, com o total descaso da prefeitura e da secretaria de urbanização do município, visto que a competência para dar a população o mínimo existencial também recai sobre ela. Nesse sentido, é perceptível a falha no saneamento básico, um dos principais para conferir às pessoas vulneráveis o acesso à uma moradia digna, sendo que nos termos da Constituição Federal, em seu art. 23, é de competência dos entes federativos a promoção de melhorias habitacionais e de saneamento;

O que se percebe, durante a aplicação dos questionários com 50 moradores, é que o bairro não possui saneamento básico que lhe traz conforto. Nesse sentido, 72% dos moradores não possuem acesso a ruas asfaltadas, o que dificulta a locomoção, visto que o bairro possui muitos idosos. Ao andar pelo bairro foi possível verificar a inacessibilidade de algumas vias que são cortadas por esgoto à céu aberto.

Ao perguntar sobre a segurança local, 40% dos moradores disseram que não possuem policiamento adequado, visto que o posto policial mais próximo fica no bairro vizinho. Quanto a água, 100% dos moradores já possuem acesso, mas todos disseram que é necessário comprar água mineral para consumo; 70% possuem iluminação pública adequada; 86% dos moradores possuem acesso ao transporte coletivo, mas ainda encontram dificuldade pois nem sempre estão disponíveis.

Além disso, o bairro não possui sistema de esgotamento adequado, sendo possível observar córregos no meio das ruas, prejudiciais à saúde daquela população, apresentando grandes riscos em períodos de chuva, visto que não há para onde escoar sem alagar as casas.

Por fim, 100% da população não possui unidade básica de saúde, sendo necessário o deslocamento até o postinho do bairro mais próximo, ou até a UPA que fica à 9km de distância. Além disso, quanto aos instrumentos públicos de uso coletivo, o bairro não possui nenhuma praça pública e somente uma escola pública.

Diante do exposto, é notório que as ações de saneamento básico e de infraestrutura do bairro inexistem e representam um risco à saúde daquela população. Nesse sentido, cabe mencionar que no Plano Diretor município:

“Art.40. O eixo estratégico moradia digna e infraestrutura compreende a política habitacional priorizando o acesso da população de baixa renda à terra regularizada e à moradia digna, dotada de infraestrutura, entendida com sistema viário de qualidade, transporte, saneamento ambiental, entendido pelo sistema de abastecimento de água, rede coletora e tratamento do esgoto, drenagem e coleta de resíduos, segurança territorial, acesso a equipamentos de lazer e recreação e esportes e serviços públicos”. (BRASIL, 2018).

Tem como eixo estratégico o acesso a todos esses direitos para ressignificar a moradia digna daquela população, na sua maioria, de baixa renda. Contudo, somente a regularização da situação de informalidade dos imóveis não é suficiente para a redução das desigualdades sociais conforme enunciado no art. 3º da Constituição Federal de 88.

Ao questionar os moradores sobre políticas de habitação como redução de irregularidades, bem como políticas de inclusão social como meio de dignificar as famílias socioeconomicamente vulneráveis, 70% não soube responder ou não tinham conhecimento. Diante dessa situação, é possível confirmar que a implementação da política de regularização não atendeu na sua totalidade as diretrizes do Plano Diretor municipal. Ademais, a autoconstrução dos imóveis foi um meio que os moradores buscaram para se estabelecerem ali, sem o devido acompanhamento ou gestão do responsável do executivo, visto que o núcleo urbano só passou a ter cadastro de regularização fundiária recentemente, demonstrando a falta de interesse do próprio município em reverter esta situação. 

Quanto ao direito à legitimação de propriedade, durante a 1ª etapa foram cadastrados 1522 lotes, perfazendo 50,73% das ocupações do bairro, sendo beneficiados 770 moradores, dos quais somente 397 (51,55%) receberam seu título de propriedade. A primeira entrega dos títulos ocorreu no bairro Vila Vitória no mês de novembro de 2021, mas até o presente momento, um ano após, ainda tem morador que não foi retirar o documento na AGEMSUL. Dentre os outros que não foram beneficiados, alguns moradores tiveram seu cadastro indeferido, seja por falta de documentos necessários ou por possuírem outro imóvel registrado no nome, do qual o próprio cartório localizou.

É importante lembrar que a área do bairro Vila Vitoria, além das famílias de baixa renda, possui moradores com poder aquisitivo capaz de custear a regularização do próprio imóvel. Ocorre que, por ser área demarcada como zona especial de interesse social, quem não se enquadra na categoria social deverá regularizar o imóvel por meio da regularização fundiária urbana de interesse específico, devendo o Município “proceder à elaboração e ao custeio do projeto de regularização fundiária e da implantação da infraestrutura essencial, com posterior cobrança dos seus beneficiários”. (BRASIL, 2020).

8. CONCLUSÃO 

A regularização fundiária procede da expansão ilegítima que resultou em núcleos urbanos informais consolidados, predominantemente composto por pessoas socioeconomicamente vulneráveis que vieram de outros municípios e Estados em busca de uma condição de vida melhor, ocasionado o grande déficit habitacional sem a execução de infraestrutura essencial apropriada.

 Esse problema vai além do desenvolvimento ou adequação urbana, por se tratar de um bem fundamental assegurando pela Constituição Federal de 1988 e pela Declaração dos Direitos Humanos de 1948, que é a dignidade da pessoa humana. É necessário assegurar aos mais vulneráveis uma qualidade de vida melhor além do mínimo existencial, sendo capaz de reduzir as irregularidades habitacionais como um meio de inseri-las no ordenamento urbano.

Para que se tenha uma vida digna, pautada em conforto, é necessário como por exemplo, a implantação dos serviços públicos de interesse comum, tais como a iluminação pública, fornecimento de água tratada, estação de tratamento de esgoto sanitário, sistemas viários de drenagem pluvial, infraestrutura escolar e hospitalar, implementação de espaços de equipamento público urbanos e comunitários, destinados ao lazer e desporto, arborização, planejamento ambiental e ocupação do solo, dentre outros serviços públicos indispensáveis ao uso adequado do solo urbano, instituídos pelos princípios e diretrizes das legislações comentadas no decorrer do artigo que objetivam, também, o pleno desenvolvimento das funções sociais do município e da sociedade. 

Quanto ao acesso ilegal das terras, é um assunto polêmico que gera muitas divergências que, se não for analisado os mínimos detalhes, dará entendimentos diversos tais como “se aquela terra está desocupada e o dono nada faz – seja plantação, moradias, entre outros, eu posso simplesmente ocupar e construir minha casa ali”. Contudo, é necessário dar maior atenção às legislações e políticas habitacionais, como um meio de redução dos conflitos gerados em decorrência do acesso e parcelamento ilegal das terras de domínio da união, bem como das terras privadas. Nesse sentido, trazendo o entendimento do Min. do STF Celso de Mello para a realidade urbana, a solução desses conflitos sociais constitui elemento para a função social da propriedade.

Nesse contexto, antes de ser denominado como núcleo urbano informal consolidado, o bairro Vila Vitória era de domínio da União e não cumpria a função social, ocasionando os parcelamentos e as autoconstruções irregulares. Assim, a partir desse problema, entra o importante papel dos entes federados para o devido tratamento dessa situação, dando efetividade ao programa de regularização fundiária urbana de interesse social como instrumento que legitima o direito real de propriedade.

Quanto à problemática do presente artigo, o processo de regularização fundiária urbana de interesse social não é recente, mas precisou ser readequado para que pudesse atender às necessidades da atualidade. Perceba-se que o instituto se reveste de caráter curativo, visando atender aos direitos subjetivos, objetivando a redução da informalidade habitacional. Desta forma, o instrumento de regularização é, de fato, efetivo, por ter efeito definitivo quanto ao direito à moradia, atendendo a um dos elementos inerentes a dignidade da pessoa humana, se tornado um meio mais rápido e eficaz para a legitimação fundiária. 

Na realidade do bairro Vila Vitória, de acordo com os dados obtidos em pesquisa de campo, demonstra a necessidade de prosseguir com o programa devido a quantidade de moradores que ainda não foram beneficiados. O marco da regularização fundiária nessa localização serviu de experiência para melhorar as pequenas falhas no procedimento, além disso, serviu como parâmetro para a regularização de outros núcleos urbanos informais consolidados do município de Imperatriz.  Em contrapartida, foi possível observar que o bairro não possui saneamento básico de qualidade para a população, o que fere o princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à moradia digna, por falta de interesse do próprio município.

Portanto, diante do exposto, é necessário dar visibilidade às políticas de urbanização que visam o desenvolvimento, para que seja reconhecido o direito à moradia digna às pessoas socioeconomicamente vulneráveis como uma das soluções para a redução das desigualdades sociais. Ademais, resta consagrado na Constituição de 1988, bem como nas legislações apresentadas, a tutela da dignidade da pessoa humana através do acesso a moradia digna, ao saneamento básico adequado e a efetiva legitimação da propriedade. Desta forma, faz-se necessário quebrar a inercia do poder público para que esse direito seja realmente efetivo.


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TARTUCE, Flavio. Direito Civil, v. 4: Direito das Coisas. 9. ed. rev., atual. E ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017. 


1Acadêmica do 10º período do curso de Direito da Faculdade de Imperatriz – FACIMP.
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Direito da Faculdade Facimp Wyden, como requisito parcial para obtenção do título de bacharel.

2Orientadora, Mestre em Desenvolvimento Regional pela Faculdade Alves Faria – ALFA, Especialista em Direito Público pela Universidade José do Rosário Vellano-UNIFENAS, Graduada em Direito pela Universidade José do Rosário Vellano-UNIFENAS. Advogada e Professora universitária – FACIMP/WYDEN, nas disciplinas de Direito Constitucional, Direito do Consumidor, Direito das Cidades, professora orientadora do Núcleo de Práticas Jurídicas – NPJ.

3Coorientadora, Doutora e mestra em geografia pelo instituto de Geociências – Universidade Estadual de Campinas – IGE/Unicamp. Bacharel em Engenharia Agronômica pela Universidade Estadual do Maranhão. Especialização em Metodologia do Ensino Superior Aplicada a Geografia e ao Planejamento Ambiental pelo Centro de Estudos Superiores de Imperatriz, campus da Universidade Estadual do Maranhão.