DIREITO À CULTURA EM TEMPO DE INOVAÇÃO: TUTELA ESTATAL E RISCOS DE DESCARACTERIZAÇÃO

RIGHT TO CULTURE IN THE CONTEXT OF INNOVATION: STATE PROTECTION AND THE RISKS OF MISCHARACTERIZATION

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6665770


Autor:
Marco Antônio Chaves da Silva Filho
(Artigo de autoria exclusiva)


SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Breves noções sobre o termo cultura. 3. Amplitude do patrimônio cultural brasileiro. 4. Proteção constitucional às manifestações culturais. 5. Risco de erosão cultural em tempo de inovação. 6. Conclusão.

RESUMO

O presente artigo versa sobre os riscos de descaracterização do fenômeno cultural em tempos de inovação, sobretudo quando enquadrado no patrimônio cultural brasileiro, considerando especialmente os processos de retradicionalização e de espetacularização das manifestações populares. A partir de pesquisa cujo principal procedimento foi a análise de conteúdo, com referencial teórico destacado nos estudos de José Afonso da Silva a respeito da ordenação constitucional da cultura, busca-se compreender a dimensão do termo cultura e perlustrar o papel do Estado na preservação de tais práticas em face da (in)compatibilidade da inovação com a especial tutela constitucional conferida ao patrimônio cultural brasileiro. Sob esse viés, diante do caráter dinâmico peculiar à cultura, conclui-se que a introdução de aspectos secundários não tem o condão de, por si só, descaracterizar o fenômeno tradicional, notadamente quando verificada a conservação do núcleo da prática cultural.

Palavras-chave: Direito à cultura. Patrimônio cultural brasileiro. Inovação.

ABSTRACT

This article deals with the risks of mischaracterization of the cultural phenomenon, especially the brazilian cultural heritage, in the context of innovation, mainly considering the processes of retraditionalization and spectacularization of popular manifestations. Based on a research whose main procedure was content analysis, with a theoretical reference highlighted in the studies of José Afonso da Silva about the constitutional ordering of culture, it seeks to understand the dimension of the term culture and the State’s role in the preservation of changed cultural heritage. Thus, considering the dynamic character of the culture, it is concluded that the introduction of secondary aspects does not have the power to desnature the traditional cultural phenomenon, especially when it is possible to verified the conservation of the nucleus of the cultural practice.

Keywords: Right to culture. Brazilian cultural heritage. Innovation.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo busca investigar o possível risco de descaracterização das manifestações culturais integrantes do patrimônio cultural brasileiro notadamente diante do contexto marcado pela volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade, decorrentes sobretudo das constantes inovações no plano cultural, inerentes à modernidade e à economia de mercado.

Parte-se, em um primeiro momento, do estudo a respeito da amplitude do conceito de cultura, seguido da análise da respectiva proteção constitucional conferida às manifestações culturais, sobretudo integrantes do patrimônio cultural brasileiro, para, finalmente, correlacionar o possível risco de erosão cultural diante dos processos de espetacularização e retradicionalização, tecendo conclusões a respeito da (in)compatibilidade da prática cultural objeto de inovação com a especial tutela constitucional conferida ao patrimônio cultural brasileiro.

2 BREVES NOÇÕES SOBRE O TERMO CULTURA

Antes de adentrar no mérito da proteção constitucional às manifestações culturais, importante apresentar – em apertada síntese – o que se entende por “cultura” numa perspectiva interdisciplinar.

Enquanto conceito genérico e abstrato, a cultura pode ser compreendida a partir de variadas perspectivas teóricas, seja por um viés ético, religioso, antropológico, filosófico, etc. (BAHIA, 2006, p. 153). Tais acepções ainda podem variar conforme o contexto cultural e político da época (CHAUI, 2008, p. 53-76).

Weschenfelder (2012, p. 178), ao discorrer sobre o tema, pontua que:

a) há várias culturas;
b) não há hierarquia em se tratando de cultura, pois todas são culturas;
c) a cultura é uma construção humana;
d) os seres humanos não são infensos às influências de culturas;
e) a cultura varia no tempo e no espaço;
f) a cultura tem uma variedade de saberes, artes, religiões, moral, leis, ética, direito, tipos de família, usos e costumes;
g) é possível a mudança de uma cultura, assim como criar outra.

Sob o prisma da antropologia, o conceito de cultura com a conotação que utilizamos hoje, surge da sintetização levada a cabo pelo antropólogo britânico Edward Tylor (1832-1917) entre o termo germânico Kultur, que simbolizava todos os aspectos espirituais de uma comunidade, e a palavra francesa Civilization, que se referia – principalmente – às realizações materiais de um povo. Nesse sentido, Tylor afirmou que cultura seria “todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (LARAIA, 2002, p. 25).

A partir de tal conceito surgem alguns desdobramentos relevantes. Merece referência, em particular, os apontamentos do antropólogo americano Albert Kroeber (1876-1960), dos quais se destaca a demonstração de que a “cultura é um processo acumulativo, resultante de toda experiência histórica das gerações anteriores” e que “o homem age de acordo com os seus padrões culturais” (LARAIA, 2002, p. 48-49).

Cultura – enquanto processo acumulativo – está em constante transformação, pois é notadamente dinâmica, impura e viva. Alguns traços se perdem, outros se adicionam, fazendo com que ocorram mudanças, mormente no cenário de globalização em que as culturas nacionais se tornam mais expostas a influências exógenas, sendo de todo suscetíveis ao bombardeamento e à infiltração cultural, sendo praticamente impossível conservar as identidades culturais intactas (HALL, 2006, p. 74).

Com o desenvolvimento histórico do conceito, foram afastados determinismos biológicos e geográficos, que sempre associaram o comportamento humano a padrões genéticos ou estágios de evolução civilizatórios (BAHIA, 2006, p. 156). Não há mais espaço para o chamado evolucionismo cultural unilinear, ancorado na suposta desigualdade de estágios existentes no processo de evolução cultural: a civilização europeia seria a mais desenvolvida e as tribos selvagens as menos desenvolvidas, enquanto o resto da humanidade se enquadraria entre os dois limites.

O multiculturalismo, entretanto, não obsta a existência de preconceitos sobre culturas diferentes. Inegavelmente o homem enxerga o mundo através da sua cultura, de modo que existe uma propensão em considerar o seu modo de vida como o mais adequado e o mais natural.

3 AMPLITUDE DO PATRIMÔNIO CULTURAL BRASILEIRO

A constituição de patrimônios culturais, históricos e artísticos é prática recorrente dos Estados Modernos, na qual se delimita um conjunto de bens culturais merecedores de especial tutela, com base no valor que lhes é atribuído enquanto manifestação cultural ou símbolo nacional, no sentido de assegurar sua transmissão às futuras gerações (FONSECA, 2005, p. 11).

Durante muito tempo se associou o patrimônio cultural exclusivamente aos bens de natureza material, fossem eles móveis ou imóveis, a exemplo de prédios históricos, esculturas, monumentos, livros raros, etc. Tanto é assim que sempre houve uma primazia do tombamento como instrumento de proteção dos bens integrantes do patrimônio cultural, tendo sido ele regulamentado já na década de 1930, pelo Decreto-Lei nº 25.

Houve, no entanto, um movimento, a nível internacional, no sentido de alargar o conceito de patrimônio cultural, o que também implicou na mudança de mecanismos de proteção e de valorização desse patrimônio. Como bem observa Mesnard os objetos da política cultural patrimonial “não cessam de diversificar-se em resposta ao interesse coletivo: dos monumentos passou-se aos sítios e paisagens, às máquinas e aos arquivos de empresas, da arquitetura à etnologia, dos museus aos ecomuseus e ao patrimônio fotográfico” (1990, p. 189).

Com efeito, na segunda metade do século XX, se reconheceu a necessidade de também tutelar o chamado patrimônio imaterial ou intangível, que abrange as tradições, o folclore, os saberes, as línguas, as festas e as manifestações populares (MIRANDA, 2006, p. 56). Essa nova concepção, que abraça os elementos intangíveis, conduziu a outra etapa na tratativa da matéria (SOARES, 2009, p. 30), conferindo uma proteção mais ampla aos bens culturais.

Filiando-se a essa corrente revolucionária, o legislador constituinte trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro a vanguarda dos conceitos internacionais de patrimônio cultural (MIRANDA, 2006, p. 49), o que restou cristalizado no art. 216 da CF, in verbis:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

A Constituição Federal, como se percebe, abarcou a imaterialidade na consideração dos bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro (SOARES, 2009, p. 30). No caput do artigo acima transcrito se define o que se entende por patrimônio cultural brasileiro, enquanto nos seus incisos, enumeram-se, a título meramente exemplificativo, as espécies de bens culturais que compõem esse patrimônio. Há, pois, possibilidade de inserção de outros bens culturais que não aqueles expressamente arrolados neste dispositivo, bastando para tal que se evidencie referência à ação, memória ou identidade dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (RODRIGUES, 2001, p. 17).

O conceito de patrimônio cultural sufragado pela Constituição Federal, portanto, é bastante amplo, abrangendo tanto bens imateriais, quanto bens materiais, como patrimônio cultural brasileiro. Entretanto, a definição constitucional de cultura constante no art. 216 da CF não coincide exatamente com o conceito antropológico de cultura, estudado no tópico supra. A Constituição delimita o âmbito de proteção aos bens e valores culturais com significação referencial (SOARES, 2009, p. 40-41) à civilização brasileira, mais especificamente aos seus grupos formadores, recaindo a tutela constitucional apenas sobre o patrimônio cultural afeito à formação da identidade nacional (SILVA, 2001, p. 114).

COSTA (2016) partilha de tal compreensão ao afirmar que se do ponto de vista antropológico “todos os utensílios, artefatos, enfim, todo construído, toda obra humana, é cultura, nem tudo isso entra na compreensão constitucional como formas culturais constituintes do patrimônio cultural brasileiro digno de ser especialmente protegido”. Não se trata, dessarte, de proteger igualmente todas as manifestações culturais, mas, ao revés, conferir especial relevância aqueles bens, materiais ou imateriais, que portem referência à identidade ou à ação ou à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (SILVA, 2001, p. 114).

Em outras palavras, todo bem cultural resulta de um processo de manifestação cultural, mas a recíproca não é verdadeira: nem toda manifestação cultural integra o patrimônio cultural brasileiro (SOARES, 2009, p. 84). Essa seletividade na atuação preservacionista do Estado é deveras necessária, sob pena de se imobilizar a cultura, que – como já visto – possui natureza extremamente mutável e dinâmica (MIRANDA, 2006, p. 52).

Dito isto, é fundamental saber como identificar se um bem é, ou não, regido pelo regime jurídico dos bens integrantes do patrimônio cultural. Recorre-se, nesse ponto, às lições da doutrina italiana, que traz a distinção entre uma conceituação formal e real dos bens culturais. Aquela (conceituação formal) restringe os bens culturais somente àqueles expressamente reconhecidos pela Administração Pública a partir de um ato formal. Esta (conceituação real) prescinde de qualquer ato formal, sendo suficiente o valor cultural intrínseco do bem (PALAZZO, 1996, p. 57).

Em raciocínio análogo, Fonseca (2005, p. 37) chama a atenção para a diferença entre bem cultural e bem patrimonial. O bem cultural possui um “valor simbólico, enquanto referência a significações da ordem da cultura”, ao passo que o bem patrimonial necessita da intermediação do Estado para lhe fixar sentidos e valores, priorizando uma determinada leitura, que pode ser a atribuição de valor histórico, valor artístico ou valor etnográfico.

Assim, pode-se associar o bem cultural a uma conceituação real e o bem patrimonial a uma conceituação formal.

Carlos Frederico Marés de Souza Filho (199, p. 42) entende que o ordenamento jurídico brasileiro exige a individuação do bem para fins de proteção e preservação como patrimônio cultural. Assim, apenas após um ato formal, o bem ganharia status de cultural, razão pela qual além do próprio conceito de bem cultural, este ato formal de “patrimonialização” também teria relevância jurídica. Tais atos de individuação e reconhecimento do bem cultural podem ter natureza administrativa (e.g. inventário, tombamento e registro), legal (e.g. tombamento legislativo, lei de zoneamento) ou judicial (e.g. ação civil pública de valor cultural).

Com tal escopo, o Poder Público criou organismos especializados para exercer a função administrativa de atribuir valor cultural aos bens reputados como mais representativos da cultura brasileira, que passarão a integrar o patrimônio cultural brasileiro através do devido processo legal administrativo, aplicando-se um dos instrumentos constitucionais previstos para preservação e salvaguarda dos bens culturais (QUEIROZ, 2016, p. 65-66).

Todavia, tal distinção está adstrita ao campo do direito administrativo, pois os direitos fundamentais, caso do direito à cultura, não podem ser sobremaneira restringidos por legislação infraconstitucional. Preceitua o art. 5º, § 1º, da CF que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata. Assim, mesmo que verificada ausência de atuação estatal, seja legislativa, judiciária ou executiva, os bens culturais merecedores de tutela constitucional estão contemplados pelos princípios protetores da cultura, o que será aprofundado no tópico infra.

4 PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL ÀS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS

É cediço que a localização topográfica não é relevante para aferir o caráter fundamental de um direito constitucional, mas – de todo modo – os direitos culturais estão incluídos no plexo de direitos fundamentais, tendo em vista a sua inserção nos incisos IX, XXVII, XXVIII e LXXIII do art. 5º, além das disposições contidas em outras partes da Constituição, o que é autorizado pelo parágrafo segundo do mesmo dispositivo, que traz a cláusula de abertura material de direitos fundamentais.

São vários os direitos culturais que preenchem o significado da tutela cultural constitucional. Cite-se, a título exemplificativo, o direito de criação cultural; o direito de acesso às fontes da cultura nacional; o direito de difusão das manifestações culturais; o direito de proteção das manifestações das culturas populares; o direito-dever estatal de formação e proteção do patrimônio cultural brasileiro, dentre outros (SILVA, 2001, p. 51-52).

Para compreensão da importância na preservação do patrimônio cultural, mister compreender as funções que ele desempenha no Estado Democrático de Direito. A propósito, Soares (SOARES, 2009, p. 96 e segs.) realça a tríplice função dos bens culturais brasileiros, sendo elas: a função de ser elo entre o passado e o presente, contribuindo para o fortalecimento dos valores culturais dos grupos menos favorecidos; a função de contribuir para a educação em valores e sentimentos afetivos, expressando as referências culturais da comunidade e reduzindo a desigualdade material dos grupos formadores da sociedade brasileira; a função de sustentabilidade, proporcionando para a comunidade a fruição dos bens culturais e de outros bens da vida.

Interessa especialmente o estudo do direito fundamental insculpido no art. 215 da CF, que preceitua que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais, protegendo as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

Os direitos fundamentais têm sido tradicionalmente classificados em três gerações de direitos considerando a época histórica do seu surgimento. A primeira geração de direitos fundamentais surge com o constitucionalismo clássico (final do século XVIII), compreendendo os direitos individuais e políticos, de caráter eminentemente individualista, sendo garantias oponíveis ao Estado. A segunda geração, por sua vez, surge no constitucionalismo social (início do século XX), abrangendo os direitos sociais, culturais e econômicos (BONAVIDES, 2001, p. 564), que exigem atuação positiva do Estado. A terceira geração, tem início no período pós-guerra, e abarca os chamados direitos difusos, que transcendem a ideia de indivíduo.

Parte da doutrina, a exemplo de Leonardo Martins, Dimitri Dimoulis, Paulo Bonavides e Inês Virgínia Prado Soares, situa o direito à cultura como direito fundamental de segunda geração, tendo em vista o seu contexto histórico de surgimento e a necessidade de atuação positiva do Poder Público. Em contrapartida, há quem entenda se tratar de direito fundamental de terceira geração, que atine à ordem social, por conta do seu inconteste caráter difuso, vez que a tutela do patrimônio cultural, preservando a memória e os valores culturais juridicamente relevantes, bem como assegurando a sua transmissão para as futuras gerações, satisfaz a humanidade como um todo e não mais apenas o indivíduo ou a coletividade, evidenciando a sua transindividualidade (MIRANDA, 2006, p. 16).

Acerca da natureza difusa do direito fundamental à proteção do patrimônio cultural, vale trazer a observação de Jorge Miranda (1996, p. 270):

Não pode dizer-se que quem quer que seja possua um único, genérico e indeterminado direito à proteção do patrimônio cultural; ou um direito das inscrições de Foz-COA, um direito à salvaguarda da Torre de Belém, ou um direito à valorização dos contos tradicionais de Natal.

Trata-se tão-somente de interesses difusos, interesses dispersos por toda a comunidade e que apenas a comunidade, enquanto tal, pode prosseguir, independentemente de determinação de sujeitos. Nem são meros interesses públicos, nem puros interesses individuais; são realidades algo diversas.

O direito a cultura, de fato, está contextualizado à época de nascimento dos direitos fundamentais de segunda geração, mormente pela titularidade coletiva e pela natureza positiva (prestacional). Todavia, a partir da ampliação da tutela ao patrimônio cultural, o que refletiu no acesso, divulgação e fruição dos bens culturais, além do caráter intergeracional, os direitos culturais passaram a considerar – também – os interesses difusos e, por conseguinte, o exercício desses direitos pode ocorrer numa amplitude de difícil delimitação, sendo possível, portanto, classificá-lo na terceira geração de direitos fundamentais.

O próprio art. 215 da CF denota essa dupla dimensão dos direitos culturais. De um lado, o direito cultural enquanto norma agendi ao estabelecer que o Estado garantirá a todos o acesso aos direitos culturais. De outro, o direito cultural como facultas agendi, isto é, propiciando ao indivíduo a faculdade de agir com base na previsão constitucional. Tal conjunto de normas jurídicas que disciplinam as relações culturais forma o que se chama de ordem jurídica da cultura ou direito objetivo da cultura. Pois bem, tais normas geram situações jurídicas em favor dos interessados, o que lhes permite agir, auferindo vantagens ou bens jurídicos que são produzidos pela sua situação concreta ao se proceder à subsunção deste fato à norma. Conclui-se que cumpre ao Estado garantir o pleno exercício dos direitos culturais, ao passo que o indivíduo tem o direito subjetivo de reivindicar este exercício (SILVA, 2001, p. 47-48).

O direito à cultura é, pois, um direito fundamental que exige uma conduta positiva do Estado de proteção, formação e promoção cultural, cuja efetivação requer uma política nacional oficial (PONTIER, 1990, P. 60), tal qual o Plano Nacional de Cultura instituído pela EC nº 48/2005, que será estabelecido nos termos da lei (MORAES, 2014, P. 863). Nada obstante, o indivíduo e a comunidade têm o direito em exigirem a preservação do patrimônio cultural brasileiro para a fruição presente e transmissão às futuras gerações (SOARES, 2009, p. 74 e segs.).

Oportuno esclarecer que a necessidade de ação positiva por parte do Estado suscita diversos problemas atinentes aos limites dessa interferência (SILVA, 2001, p. 48). O papel do Poder Público não é impor uma cultura reputada oficial, mas sim o de fornecer os meios de atingir a cultura, respeitando a livre manifestação cultural. Dentro de uma perspectiva liberal, o papel de produzir cultura é da sociedade. Ao Estado, cumpre apenas garantir as condições necessárias ao pleno exercício deste direito fundamental por todos os cidadãos (FONSECA, 2005, p. 43), o que perpassa pela preservação do bem cultural. A ação estatal deve, portanto, respeitar a diversidade e as variadas formas de manifestação cultural que brotam da sociedade, proporcionando os meios necessários para a livre expressão e o igual acesso aos bens culturais (SOARES, 2009, p. 80).

É nesse cenário que se questiona a necessidade de atuação estatal diante do risco de erosão cultural, decorrente das constantes inovações, em detrimento do caráter tradicional, tema objeto do tópico infra.

5 RISCO DE EROSÃO CULTURAL EM TEMPO DE INOVAÇÃO

É inegável que manifestações da cultura popular vêm sofrendo acentuada erosão por conta do fortalecimento de uma cultura de massa e pelo desenvolvimento da chamada indústria cultural (BAHIA, 2006, p. 161), o que perpassa pela compreensão dos processos de “espetacularização e retradicionalização” (SERPA, 2007, p. 79-96), os quais promovem a transformação daquelas em verdadeiros produtos para o consumo de massa.

Segundo Hannah Arendt (2007, p. 257 e segs.) a “cultura de massa” só passa a existir quando a “sociedade de massa” se apodera dos objetos culturais, transformando-os em material de consumo através de uma “indústria do entretenimento”. David Harvey (2005, p. 221) chega à conclusão semelhante ao constatar que as manifestações culturais parecem ter se transformado em um gênero de mercadoria a ser comercializada.

Pode-se afirmar que todo esse processo é fruto da ação da chamada “indústria cultural”, que na definição de José Afonso da Silva seria “a indústria que tem por objeto produzir e difundir bens da cultura à massa do povo: imprensa, cinema, rádio, televisão” (2001, p. 87). Cumpre advertir, contudo, que o termo indústria cultural não se restringe, apenas, aos veículos midiáticos, mas também ao uso das tecnologias nas mãos da classe dominante (BOSI, 2007), daí porque a estreita relação entre cultura e o poder (CHAUI, 2001, p. 45).

A partir desses processos de “retradicionalização” e de “espetacularização” das manifestações populares, há uma transferência da esfera da tradição para a esfera do consumo, alterando-se traços culturais a fim de potencializar os ganhos econômicos. As manifestações culturais são lapidadas e aperfeiçoadas como verdadeiras mercadorias, “tornando-se lazer, diversão e espetáculo para o consumo imediato” (SERPA, 2007). A prática cultural, a priori, deixa de ser uma finalidade em si mesma e a preocupação principal passa a consistir na ampliação dos lucros, deixando a preservação da identidade em segundo plano.

Sobre a conversão da cultura em mercadoria, os sociólogos, membros da Escola de Franckfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985) ressaltam o processo de padronização e produção em série levado a cabo pela indústria cultural, nos quais dois eventos totalmente distintos sofrem intervenções semelhantes, conduzindo à homogeneização e à perda da identidade cultural. Cita-se, a título ilustrativo, a vaquejada, que tradicionalmente era campesina e acontecia de forma lúdica, sem prêmios, sem cavalos de raça, sem parques ou demais estruturas que integram as práticas atuais, a exemplo de arquibancadas, bares, lanchonetes, casas de shows, e outras coisas afins (MAIA, 2007).

Tais inovações, no entanto, são esperadas e, mais que isso, são inerentes ao fenômeno cultural, tendo em vista o caráter transformador no decurso do tempo. A cultura é dinâmica e está em constante transformação (WESCHENFELDER, 2012, p. 178).

A questão principal consiste na conservação da identidade cultural. Interessa investigar se – a despeito das diversas mudanças ocorridas – o núcleo da prática cultural permanece íntegro. A incorporação de características secundárias, e até mesmo a finalidade lucrativa, não desnatura a manifestação cultural senão, a rigor, permite a subsistência da prática ao longo do tempo.

6. CONCLUSÃO

A partir da delimitação do conceito antropológico de cultura e da abrangência do patrimônio cultural brasileiro, com a respectiva proteção constitucional, passou-se à problematização do fenômeno cultural diante do possível risco de descaracterização decorrente de constantes inovações.

O processo de “retradicionalização” é notado em inúmeras práticas culturais, pois no mundo globalizado as influências são diversas e constantes, fazendo com que mudanças aconteçam, mas isto não implica, necessariamente, na descaracterização da manifestação cultural.

Com efeito, a conservação do núcleo essencial da prática cultural mantém, a toda evidência, a pertinência ao patrimônio cultural imaterial brasileiro, fazendo jus, portanto, à proteção constitucional correlata, sobretudo quando integrante do patrimônio cultural brasileiro, cuja tutela exige maior cautela.

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