DESARMAMENTO: OS IMPACTOS DA FLEXIBILIZAÇÃO DA POSSE DE ARMAS NO BRASIL

DISARMAMENT:  THE IMPACTS OF THE FLEXIBILIZATION OF GUN OWNERSHIP IN BRAZIL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8395976


Lucas Schmoeller 
Marcelo Wordell Gubert2


Resumo

Essa pesquisa tem como objetivo analisar os efeitos potenciais que podem advir da flexibilização da posse de armas promovida pelo Decreto n. 9685, de 15 de janeiro de 2019. Deseja-se ainda discorrer a respeito dos principais pontos atinentes à estrutura e à finalidade da segurança pública no Brasil, além de estabelecer um vínculo teórico entre o aumento de armas em circulação no país e o consequente aumento criminalidade. A pergunta norteadora de pesquisa é: Quais são os efeitos advindos da flexibilização da posse de armas no Brasil? Em relação a metodologia de pesquisa, tem-se uma revisão bibliográfica nas bases de dados Portal de Periódicos da CAPES e SCIELO e análise de publicações acadêmicas realizadas nos últimos 15 anos. Inicialmente, foi abordada a estrutura da segurança pública no Brasil e, posteriormente, tratou-se da flexibilização da posse de armas no Brasil, evidenciando a existência de linhas de pesquisa ambíguas daqueles que defendem e daqueles que são contrários à essa questão. Por meio da literatura ficou evidente que o Estado brasileiro é falho na promoção de segurança pública, o que fortalece os debates sobre a questão da flexibilização do desarmamento da população.

Palavras-chave: Controle de armas. Flexibilização. Segurança. Legislação.

INTRODUÇÃO

O Decreto n° 9.685 de 15 de janeiro de 2019 (BRASIL, 2019) trouxe mudanças significativas no que tange ao porte de arma de fogo no Brasil. Isso se deve, principalmente, à alteração de dispositivos legais que relatam a respeito da aquisição e renovação do registro de arma de fogo para defesa pessoal.

Evidencia-se que o Estatuto do Desarmamento – Lei n. 10.826/2003, em conjunto com o Referendo do Desarmamento – Decreto Legislativo n. 780/2005 – não proibiram o comércio de armas de fogo e munições no país, todavia, previram exigências específicas para a aquisição e o registro de arma de fogo além de prever situações em que são inviabilizadas a autorização ao porte.

O controle de armas de fogo no Brasil é realizado por dois órgãos públicos: o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (SIGMA) e o Sistema Nacional de Armas (SINARM). O SIGMA está associado ao Exército do Brasil, enquanto o SINARM é de competência da Polícia Federal. O Decreto n. 5.123 de 2004, que regulamentou a Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) estabelece os procedimentos necessários para a aquisição, renovação de registro ou o porte de arma de fogo pelo cidadão. Tais procedimentos, sofreram alterações pelo Decreto n. 9.685, de 15 de janeiro de 2019.

A flexibilização trazida pelo Decreto n. 9.685 trouxe uma série de debates em cima dos impactos que dela adviriam. Os defensores da flexibilização enfatizam a necessidade dela principalmente para a autodefesa dos cidadãos, em razão da não capacidade do Estado em garantir integralmente a segurança pública e a inclolumidade dos cidadãos e do patrimônio. Já os detratores da flexibilização argumentam que ela é desfavorável, visto que aumentaria as taxas de homicídio, feminicídio, além de riscos para crianças e adolescentes.

A aquisição de arma de fogo de uso permitido está previsto no art. 17 do Decreto n. 3.665/2000. Assim, todo cidadão que possua interesse em adquirir uma arma, pode fazê-lo, desde que observe os requisitos previstos em lei, dentre os quais: ter no mínimo 25 anos; apresentar cópia de RG, CPF e comprovante de residência; apresentar uma declaração por escrito com argumentos que justifiquem a necessidade da aquisição de arma de fogo; comprovar a sua idoneidade por meio de certidões negativas criminais; ter ocupação lícita e residência certa; possuir aptidão psicológica atestada por psicólogo credenciado à Polícia Federal; possuir capacidade técnica atestada por instrutor da Polícia Federal; apresentar fotografia 3×4 recente; entregar requerimento preenchido para a autorização para a aquisição da arma de fogo e, caso o pedido seja deferido, recolher o valor da taxa de emissão de certificado para o registro de arma de fogo.

Frisa-se que, somente após a emissão da autorização por parte da Polícia Federal é que o solicitante poderá realizar a aquisição da arma de fogo, em estabelecimento comercial autorizado. Após a compra, o solicitante deve levar a nota fiscal para o registro da mesma no SINARM e obter a guia de trânsito para levá-la até a sua casa ou local de trabalho. Destaca-se que a arma de fogo deverá permanecer no local onde consta seu registro no SINARM, caso contrário, o possuidor responderá por crime previsto no art. 12 do “Estatuto do Desarmamento”. Em posse do registro e da guia de trânsito o requerente retorna a loja onde efetuou a compra e retira a arma.

No que diz respeito ao porte de arma, o cidadão que solicitar deverá já possuir previamente o registro da arma no SINARM e demonstrar a necessidade do porte, em razão de exercício em atividade de risco ou ameaça à sua integridade física. O Decreto n. 9.685, de 15 de janeiro de , promoveu a alteração de alguns dispositivos do Decreto n.5.123, de 2004, que regulamentou a Lei n. 10.826 de 2003 – Estatuto do Desarmamento. As alterações advindas, não dizem respeito ao porte de arma de fogo, mas sim atinentes à aquisição ou renovação de registro.

Assim, a concessão da permissão para a compra de arma de fogo ou sua renovação de registro, de acordo com o artigo 12 do Decreto de 2004 alterado pelo Decreto de , passou a estabelecer a necessidade da Polícia Federal em levar em consideração a presunção da veracidade dos fatos e circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade do cidadão para a aquisição ou renovação de registro da arma de fogo.

Ademais, a efetiva necessidade será presumida quando o indivíduo for agente público, ativo ou inativo, da área de segurança pública, da Agência Brasileira de Inteligência, da administração penitenciária, do sistema socioeducativo, relacionado com o exercício de atividades de poder de polícia administrativa ou de correição em caráter permanente, militares ativos e inativos, colecionadores, atiradores e caçadores devidamente registrados no Comando do Exército.

Além de que, o Decreto n. 9.685 esclarece o que se configuraria como efetiva necessidade, além das hipóteses acima explanadas, ainda: os titulares ou responsáveis legais de estabelecimentos comerciais ou industriais; os domiciliados em área rural; os domiciliados em áreas urbanas que apresentam altos índices de violência, consideradas assim aquelas que possuem mais de dez homicídios por cem mil habitantes.

Diante do exposto, a legislação existente sobre o tema deixa bastante lacunas a respeito da flexibilização da aquisição de armas de fogo. Neste sentido, o que se verifica são as consequências que podem advir em razão do aumento da aquisição de armas de fogo, ou seja, a flexivilibização ao invés de aumentar a segurança pública tem um grande potencial de  aumentar ainda mais a insegurança em razão do aumento da taxa de criminalidade que dela pode advir.  

Sendo assim, diversos debates e discussões têm surgido em relação a tal flexibilização atinente à posse de arma de fogo e como tal medida pode contribuir para o aumento da criminalidade no Brasil. Portanto, a problemática deste trabalho se concentrará em responder a seguinte questão: Quais são os efeitos advindos da flexibilização da posse de armas no Brasil?

Diante do exposto, essa pesquisa tem como objetivo analisar os efeitos potenciais que podem advir da flexibilização da posse de armas promovida pelo Decreto n. 9685, de 15 de janeiro de 2019. Deseja-se ainda discorrer a respeito dos principais pontos atinentes à estrutura e à finalidade da segurança pública no Brasil, além de estabelecer um vínculo teórico entre o aumento de armas em circulação no país e o consequente aumento criminalidade.

Em relação a metodologia de pesquisa, o levantamento de informações para a construção de uma revisão bibliográfica se deu pela consulta de material nas bases de dados Portal de Periódicos da CAPES e SCIELO. Para tanto, foram utilizados os seguintes descritores: desarmamento, posse de armas, flexibilização de armas, segurança pública. Primou-se também pela análise de publicações acadêmicas realizadas nos últimos 15 anos.

A justificativa deste trabalho tem como objetivo promover o debate e a discussão sobre os impactos negativos que a flexibilização do porte de armas pode acarretar. Ao aumentar a circulação de armas no país, há uma tendência de elevação da criminalidade. Essa medida pode resultar em riscos à segurança pública, incluindo o aumento de crimes violentos, roubos, assaltos e tiroteios em massa. Além disso, a disponibilidade facilitada de armas de fogo está associada a um aumento de acidentes domésticos e casos de suicídio. Especial atenção também deve ser dada às mulheres e às vítimas de violência doméstica, considerando os impactos desproporcionais que a flexibilização do porte de armas pode ter nesses grupos. Ao analisar experiências internacionais, é possível fortalecer o argumento, demonstrando a relação entre o aumento da circulação de armas e o crescimento da criminalidade. Assim, ao abordar esses pontos, busca-se reforçar a necessidade de fomentar o debate e a discussão sobre os impactos negativos da flexibilização do porte de armas na sociedade.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA OU REVISÃO DA LITERATURA

O termo segurança pública teve sua gênese na Constituição Federal (CF) de 1937, visto que em outras Constituições, como a de 1934, tinha-se o termo segurança interna para tratar do controle da ordem. Na CF de 1937, era responsabilidade exclusiva da União regular a matéria e garantir “o bem-estar, a ordem, a tranquilidade e a segurança públicas, quando o exigir a necessidade de uma regulamentação uniforme”, conforme art. 16, inciso V (LIMA; BUENO; MINGARDI, 2016).

“A relação da Polícia com a sociedade manifesta-se na insegurança, no medo e na falta de confiança dos estratos de baixa renda, o que é paradoxal, dadas as funções de proteção social que são a competência dessa entidade” (COSTA, 2010, p.31). Essa percepção da autora converge com o que se espera das instituições de segurança pública e órgãos responsáveis pela preservação da ordem pública das pessoas e do patrimônio: Polícia Federal; Polícia Rodoviária Federal; Polícia Ferroviária Federal; Polícias Civis; Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares; Guardas Municipais.

A área de segurança pública do Brasil e os órgãos competentes precisam estar em constante interação e sinergia, com ações combinadas para manter a segurança do país e a integridade dos cidadãos e do patrimônio. Cabe ao Estado o papel de garantir o pleno funcionamento dessas instituições, com a articulação do Exército Brasileiro e da Polícia Federal, cumprindo as diretrizes relacionadas ao o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) (CARVALHO; SILVA, 2011).

A segurança é um direito do cidadão brasileiro, assegurado pela CF/88, muito embora os índices de homicídio no Brasil indiquem que essa funcionalidade do Estado não seja efetiva. No país, em determinados períodos houve uma elevação das taxas de homicídio, como ocorreu em 2003, quando foram registrados 48.909 homicídios, dando início a numerosas discussões para tentar encontrar soluções para esse cenário. Como medida, foi aprovada a Lei n.º10.826/2003 – Estatuto do Desarmamento, alimentando a crença de que a violência estava associada ao uso de armas (FERREIRA, 2021).

Martins Junior (2018) relata que, de acordo com registros do Sistema de Informações Sobre Mortalidade (SIM), houve um grande aumento na quantidade total de homicídios no Brasil entre os anos de 1996 a 2015. As armas de fogo foram as responsáveis por alavancar esses índices, sendo que em 1996 foram 38.929 homicídios e em 2015 houve 59.080, ou seja, 51,57 a mais. Quanto ao perfil das vitimas de homicídios por armas de fogo no país, verificou-se que a maoria sao homens negros, solteiro, entre 15 e 35 anos (a41,2% do total de homicídios por arma de fogo no mesmo período).

Muitos textos debatem sobre a questão de que mais armas significam menos crimes, mas ainda não houve um consenso sobre essa relação entre armas de fogo e aumento da criminalidade. Com a implantação de uma lei nacional, o Estatuto do Desarmamento (ED), torna-se possível tirar algumas conclusões, pois houve a restrição substancial da possibilidade de que os cidadãos tenham acesso a uma arma de fogo, além de aumentar custos de aquisição e registro. “A instituição do ED funcionou, portanto, como uma variação exógena na demanda por armas no Brasil e constitui a pedra angular da estratégia de identificação aqui formulada” (CERQUEIRA; MELLO, 2012, p.09).

2.1 A SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL

Costa e Grossi (2007) afirmam que segurança pública e federalismo são áreas de estudos que ganharam visibilidade a partir da década de 1990, embora ainda sejam escassas as pesquisas que tratam das estruturas político-institucionais existentes no Brasil e da implantação das políticas de segurança. Esses autores explicam que são necessárias duas condições para a existência de um sistema federativo: (1) subunidades políticas com um relativo grau de autonomia; (2) uma unidade globalizante que desfrute de um relativo grau de autonomia política.

Logo, compreende-se que, em um sistema federativo, determinadas matérias são de competência exclusiva das subunidades políticas, portanto, fora da competência do poder central, enquanto outras matérias são de exclusiva competência do poder central, na qual as subunidades políticas não possuem qualquer ingerência. Dessa forma, dentro de um regime democrático, cada uma das esferas políticas possui limites da competência claramente demarcados nas constituições, com arranjo institucional determinado por leis, normas e práticas políticas (COSTA; GROSSI, 2007).

A República Federativa do Brasil se organiza através da tripartição dos poderes, ou seja, os poderes do Estado Nacional formados pelo Executivo, Legislativo e Judiciário, os quais se configuram como poderes políticos da sociedade pátria. Essa estrutura permite que o homem, como animal político que é, esteja imerso em uma comunidade a qual se estrutura previamente a partir de igualdade e diferenças relativas onde o Estado, em tal conjuntura, exerce a sua função preponderante na garantia da liberdade de seus cidadãos em conjunto com a paz e a harmonia social (PELICIOLI, 2006).

Em um Estado Democrático de Direito no qual se constitui o Brasil, vigora a ideia da tripartição dos poderes, embora se perceba na atualidade uma atuação mais incidente do poder Judiciário, principalmente no que diz respeito ao controle da constitucionalidade da lei, bem como no que tange à legalidade da administração, o que faz com que o poder Judiciário se configure como o polo da separação dos poderes (PELICIOLI, 2006).

Pelicioli (2006) trata da questão da origem da separação dos poderes ao mencionar Aristóteles (funções exercidas na polis), na obra “Ética a Nicômaco”, onde explica que a política é responsável por estruturar as ações e produções do homem, ou seja, é responsável por legislar a respeito do que os indivíduos devem ou não fazer. Duguit, segundo o mesmo autor, considera a separação absoluta de poderes como sendo uma ilusão, devendo ser encarada como princípio, de moderação, racionalização e limitação do poder político, cujo interesse deve ser a paz e a liberdade.

Tal assunto Ferreira Filho (2015) também aborda, principalmente sobre a sua origem, onde alguns afirmam ter ocorrido já na antiguidade, enquanto outros consideram sua existência apenas na modernidade, mas foi em Montesquieu (Espírito das Leis) que efetivamente nasce a doutrina da separação dos poderes com a divisão funcional do Poder. Isso se dá no cap. VI da Constituição da Inglaterra, Livro XI chamado “Das leis que formam a liberdade política em sua relação com a constituição”, na qual se expõe a ideia de que são três as funções que se identificam no Estado (função de estabelecer leis, de executar e de julgar).

“O objetivo da separação dos poderes é o estabelecimento de um governo limitado, moderado, respeitoso dos direitos fundamentais e apto à realização do interesse geral” (FERREIRA FILHO, 2015, p.69), razão pela qual se faz presente no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Afirma-se ainda que a separação dos poderes é inerente à Constituição e, por essa razão, imprescindível ao constitucionalismo.

Segundo Gonçales e Gussi (2006), a Constituição Republicana (1891) foi a primeira a prever o surgimento de três poderes harmônicos e independentes entre si, sendo mantido pelas demais Constituições que surgiram, mantendo-se a tripartição dos poderes. Somente a Constituição de 1937 seguiu um modelo autoritário em virtude do momento histórico vivido, concentrando a maior parte do poder nas mãos do Presidente, o que comprometeu a efetiva tripartição dos poderes.

Os mesmos autores salientam que essa adoção de tripartição dos poderes no Brasil não alcançou os mesmos resultados em relação aos Estados Unidos, o que se deve a forte economia daquele país, responsável por minimizar os impactos de uma má governança e má organização das instituições. Soma-se a isso o fato de a governabilidade norte-americana manter relação estreita com a iniciativa privada, o que requer uma necessidade infima de intervenção estatal (self government) (GONÇALES; GUSSI, 2006).

Para que haja a paz social, se faz necessário a intervenção das instituições constituídas para que estas cumpram e façam cumprir o que está previsto nos normativos jurídicos da nação, principalmente na Constituição Federal. Moraes (2010) assevera que foi a CF/88 a primeira a inserir um capítulo específico sobre Segurança Pública, visto que as Cartas Políticas anteriores apenas mencionavam que eram os estados federativos responsáveis pela manutenção da ordem interna, sendo os únicos órgãos de segurança pública com previsão constitucional a Polícia Federal e as polícias militares. Assim, eram os novos órgãos policiais previstos pela CF/88 a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal e as Polícias Civis.

O estudo sistemático das instituições formalmente constituídas permite que se compreenda os processos pelos quais o poder se estrutura e se fundamenta e, por essa razão, o próximo capítulo irá abordar a estrutura da Segurança Pública no Brasil.

2.1.1 Estrutura da Segurança Pública no Brasil

A segurança da sociedade vem de encontro com a solicitação de garantia de direitos e cumprimento de deveres, previamente estabelecidos nos ordenamentos jurídicos, pois se trata de uma demanda social. Tal demanda é organizada e estruturada por instituições ou órgãos estatais encarregados de adotar ações para garantir a segurança da sociedade, o que é chamado de sistema de segurança pública, cujo eixo político estratégico é a política de segurança pública, pautada em ações, planos e programas para garantir a segurança individual e coletiva (CARVALHO; SILVA, 2011).

A Constituição Federal de 1988 trata do exercício da segurança pública no Brasil, com vistas a realizar a manutenção da ordem pública nacional e preservar a não violabilidade das pessoas e do patrimônio. Os órgãos que cumprem e fazem cumprir a premissa constitucional mencionada são: Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícias Civis, Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares e Polícias Penais Federal, Estaduais e Distritais (BRASIL, 1988).

Barbosa (2010) pontua que, na Antiguidade, as funções da polícia podiam ser confundidas com a função da administração, pois a palavra grega polícia (politeia) significava governo sobre a cidade (polis), referenciando-se ao atual Estado. Sendo a característica mais atual da contemporaneidade a segurança e a paz social, é o Estado quem assume o uso exclusivo da força legitimada pelo Direito, de forma que a Polícia passa a representar o monopólio da força pública. Nesse contexto, a Polícia surge como uma organização profissional em virtude da demanda por segurança pública, como também pelo crescimento populacional, urbanização das cidades e processo de industrialização.

“A Polícia nasce juntamente com a prisão como práticas sociais de controle social e punição mais civilizadas, que lograram inserir no corpo social mais profundamente o poder punitivo do Estado” (BARBOSA, 2010, p.188). Historicamente, sobre a origem da Polícia Federal (PF), a Lei n° 4.483/64 conferiu ao Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP) atuação em todo o território nacional e atribuições específicas. Já na CF/67, art. 8°, inciso VII, evidenciou-se que competia à União organizar e manter a PF e, a nomenclatura Departamento de PF surgiu com a edição do Decreto-Lei nº 200/67, art. 210.

Tradicionalmente, como explica Santos (2018) a PF divide as funções em duas espécies: polícia administrativa, preventiva ou de segurança e polícia judiciária, repressiva ou criminal. A criação da organização está relacionado com o surgimento de conflitos que exigiam uma polícia de cunho nacional para designar funções de interesses da União e repressão à criminalidade organizada e transnacional. Logo, é função da PF investigar crimes penais de violação de bens, serviços e interesses da União, combater afronta a bens, serviços e interesses de entidades autárquicas e empresas públicas, executar atividades de polícia judiciária da União e cumprir funções relacionadas com a polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras.

Nas palavras de Valente (2012, p.206) “a evolução das polícias acompanhou um processo histórico de transformação da ordem pública em bem coletivo (…) as Polícias Militares (PM) brasileiras são o reflexo de uma herança autoritária”, mas é preciso compreender que a polícia exerce um serviço público de natureza civil, sendo um órgão destinado a prevenção da ocorrência de infração penal. Devendo prezar pela proteção à cidadania, é função da PM a realização do guarda da ordem pública e realização de policiamento ostensivo/preventivo (prevenção primária e secundária).

A partir da CF/88, a Polícia Civil (PC) instituição foi inscrita como instituição de segurança pública, onde cada unidade federativa dispõe de legislações próprias. De maneira geral, as PC são dirigidas por delegados de polícia e compostas por membros remunerados pelos cofres públicos, como investigadores, escrivãos, peritos criminais e médicos legistas. Enquanto a PM exerce o policiamento fardado e ostensivo nos locais públicos, a PC atua na investigação criminal, posteriormente ao crime ocorrido, com vistas a sua elucidação (ROCHA, 2021).

A PC, além da função básica de investigar, dependendo das atribuições dadas pelas legislações de cada unidade federativa, também é responsável pela fiscalização/autorização de grandes eventos públicos ou particulares, funcionamento de certas atividades comerciais, emissão de identidade civil, registros de fatos/ocorrências criminais, necropsias e exames de corpo de delito, comunicação de crimes, dando início ao inquérito profissional (ROCHA, 2021).

Com a incumbência de exercer as funções de polícia judiciária e apurar as infrações penais que não competem à PM, estão subordinadas aos Governadores dos Estados, Distrito Federal e territórios a PC, a Polícia Penal (PP), estaduais e distrital, a PM e os Corpos de Bombeiros Militares. O poder de polícia é exercido tanto de forma preventiva, como repressiva, cuja finalidade é zelar pela ordem pública. Assim, ao ocorrer fato delituoso, o Estado exercerá o seu poder de polícia através do poder cautelar, entrando em ação a polícia que previamente prepara a ação penal, de forma a não perder os elementos que servirão de convicção a respeito do crime praticado (MARQUES, 1959).

2.2 A FLEXIBILIZAÇÃO DA POSSE DE ARMA DE FOGO NO BRASIL

Andrade (2019) aponta que o aumento da violência implicou em inúmeras discussões sobre legítima defesa e desarmamento populacional pois, quando o Estado não garante a segurança da população, esta passa a reivindicar meios de defesa, sendo o armamento um argumento para tal. Nesse contexto, o tema passa a considerar o direito a legítima defesa, visto que a não garantia da segurança dos civis é um assunto intimamente ligado ao desarmamento da população.

Ainda na década de 80, a crescente onda de violência em território brasileiro era alarmante e, além de gerar preocupação, chamava a atenção de órgãos e entidades, como a Organização das Nações Unidas (ONU) que, no ano de 1996, considerou o Jardim Ângela, em São Paulo, como o mais violento do mundo. Tal fato evidenciava a necessidade de que ações urgentes fossem tomadas a fim de conter os avanços de violência e de homicídios no Brasil (ALMEIDA, 2022).

Com a sanção do ED em dezembro de 2003, verificou-se uma grande restrição ao acesso as armas de fogo pela população, pois, anteriormente, nao havia no país uma política para dificultar o acesso a uma arma de fogo. Para pessoas acima de 21 anos, não havia um processo complexo para adquirir uma arma, sendo que a divulgação de venda de armamentos era comum em vários locais, como estabelecimentos comerciais. Nesse período, a miséria do país e as crises de violência, somados à possibilidade de portar uma arma, resultaram no aumento da ocorrência de crimes, especialmente do crime de homicídio (ALMEIDA, 2022).

Fazendo-se uma análise temporal, em relação às taxas de homicídios no Brasil (antes e depois do ED), o números de homicídios cometidos por armas de fogo entre os anos de 1980 a 2003, ano da promulgação do referido documento, foi alarmante. Enquanto no ano de 1980 houve 6.104 homicídios, em 1990 já alcançava 16.588 e em 2003 chegava a 36.115, uma alta bastante substancial em comparação com os anos anteriores. A partir do ano de 2004 até 2014, quando o ED completou 10 anos de vigência, houve uma queda no número de homicídios apenas nos dois primeiros anos (34.187 em 2004 e 33.419 em 2005), voltando a aumentar em 2006 (34.921). Apesar de passar por um período de estabilidade entre os anos de 2006 e 2012, verificou-se uma alta significativa em 2014, chegando a 42.291 homicídios naquele ano (LEÃO, 2022).

No que diz respeito à concessão das armas aos civis, posse e porte de arma de fogo possuem significados distintos, conforme Reis (2019), pois ambos configuram tipos penais distintos, de acordo com o local em que a arma se encontra. Posse de arma significa possuir ou guardar arma de fogo no interior da residência (quintal, garagem, edícula, etc.) ou em domicilio empresarial. o quintal, a edícula, a garagem, e outros compartimentos. No entanto, os locais fora da sede do domicílio ou da casa em si, como um celeiro ou galpão de fazenda, não configuram apenas a posse e, quando se trata do porte, ocorre no sentido de o indivíduo carregar, levar consigo para onde for o objeto.

Santos (2017) caracteriza ainda os tipos de arma como sendo: uso restrito ou uso proibido (produtos controlados pelo Exército somente utilizados pelas Forças Armadas com exceções); uso permitido (semelhante àqueles produtos controlados pelo Exército, mas com uso permitido conforme legislação normativa do Exército). No caso de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, conforme o ED, a pena é de reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos e multa.  

A posse e o porte ilegal de arma de fogo permitido estão previsos no ED, art. 12 e 14, como ilícito penal, quando não se observa a legislação vigente, conforme prevê (BRASIL, 2003):

Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente (BRASIL, 2003).

Ainda, o ED caracteriza posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, segundo o art. 16:

Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem: I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato; II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz; III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar; IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado; V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente; e VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo (BRASIL, 2003).

Lins (2019) faz um recorte temporal para o ano de 2004, um ano após a promulgação da lei 10.826/2003, quando o governo brasileiro realiza uma das campanhas desarmamentistas chamada buy-back, onde o Estado compra armas de fogo em posse dos cidadãos, que entregam voluntariamente e recebem um valor pré-definido. Nesse período, o Estado também investiu em propagandas usando o slogan “Proteja sua família, desarme-se”, buscando convencer a população de que as armas representam um risco para a sociedade e a família. Em vista da grande burocratização e controle estatal sobre as armas de fogo, emerge em 2012 através do Deputado Rogério Peninha Mendonça o o Projeto de Lei 3.722, conhecido como Estatuto do Controle de Armas, cuja finalidade era “disciplinar as normas para adquirir, possuir, portar e comercializar armas de fogo em todo o território nacional, bem como, regulamentar eventuais crimes para descumprimento dessas normas” (LINS, 2019, p.12).

Abaixo, no Quadro 1, são apresentadas as características que diferem a Lei 10.826/2003 e o PL 3.722/2012:

Quadro 1 – Principais divergências entre o Estatuto do Desarmamento e o Estatuto do Controle de Armas, proposto por meio do Projeto de Lei n° 3.722/2012:

Lei 10.826/2003PL 3.722/2012
Posse de arma condicionada à aprovação da Polícia Federal.Posse de arma é um direito assegurado a qualquer cidadão apto e sem antecedentes criminais.
Porte permitido apenas a políticos, forças armadas e outras classes.Porte permitido a qualquer cidadão que comprove aptidão técnica e psicológica.
Registro de arma não permite o seu transporte (guia de transporte deve ser emitida com antecedência).Registro de arma permitirá o seu transporte, desmontada, sem permitir seu emprego imediato.
Solicitação de autorização de compra ou transferência de arma deve ser expedida em até 30 dias.Autorização tem que ser expedida em até 72 horas úteis.
Registro de arma tem validade de 3 anos.Registro de arma não expira.
Licença para porte tem validade de 1 ano.Licença para porte tem validade mínima de 5 anos.
Porte é proibido para CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores), e eles devem transportar as armas de seu acervo desmontadas e sem munição, impedindo seu pronto uso.CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores) poderão portar uma das armas de seu acervo, pronta para uso, quando estiverem transportando suas armas de/para o clube de tiro.
Apenas maiores de 25 anos podem adquirir armas.Maiores de 21 anos podem adquirir armas.
Taxa de registro ou renovação de registro de arma de fogo é de R$ 60,00.Taxa de registro é de R$ 50 quando a arma é nova e R$ 20 quando é usada.
Taxa de expedição ou renovação de licença de porte de arma de fogo é de R$ 1.000,00.Taxa de expedição ou renovação de licença de porte de arma de fogo é de R$ 100,00.
Cidadão pode ter até 2 armas curtas, 2 armas longas de alma raiada e 2 armas longas de alma lisa.Cidadão poderá possuir até 3 armas curtas, 3 armas longas de alma raiada e 3 armas longas de alma lisa.
Publicidade de armas de fogo pode ser feita, apenas em publicações especializadas.Não há restrições de nenhum tipo de publicidade.

Fonte: Lins (2019, p.13)

Rocha (2019) reflete que, promulgado em 2003, o ED visava a redução da circulação e comercialização de armas de fogo, minimizando os altos índices de violência. Contudo, na atualidade, o país ainda apresenta índices alarmantes de crimes violentos mesmo com as restrições legais e proibição do porte de armas, de forma que o então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, assinou o decreto 9.785/2019 com vistas a regulamentar a Lei nº10.826/2003 e, assim, dispor sobre a aquisição, cadastro, registro, posse, porte e a comercialização de armas de fogo e de munição e sobre o SIGMA e SINARM.

Almejava-se com o mencionado decreto a autorização para que novas categorias pudessem transportar armas, dentre os quais advogados, caminhoneiros, agentes de trânsito, conselheiros tutelares, entre outros, sem comprovar a necessidade. Contudo, logo se iniciaram os questionamentos sobre a constitucionalidade e legalidade do documento devido a possibilidade de ampliar e facilitar a posse e o porte de armas de fogo, incluindo aqueles de uso restrito, tendo sido revogado em seguida (ROCHA, 2019).

Nos dizeres de Melo (2022, p.21) “o ED se configura como um planejamento Estatal com finalidade de combate as armas e aos crimes violentos, por meio da redução da quantidade de armas de fogo em circulação no território nacional”. Para o autor, não resta dúvidas de que a aplicação do ED cumpriu com a sua proposta, pois, se não fosse possível acabar com a criminalidade resultante do uso de armas de fogo, ao menos atenuou os índices de homicídios no país.

Pinto (2021) pondera sobre aqueles que são favoráveis e aqueles que são contrários flexibilização do porte e a posse de armas, de forma que as opiniões podem ser observadas no quadro abaixo:

Quadro 2 – Pontos a favor e contra ao Decreto nº 9685 de 2019

OPINIÕES FAVORÁVEISOPINIÕES CONTRÁRIAS
O Decreto considera o critério objetivo que identifica locais com elevada violência.Aumentar a circulação de armas de fogo, aumenta também o número de homicídios.
No referendo de 2005, a maior parte da população foi favorável ao direito de compra da arma de fogoO referendo de 2005 mencionou o comércio de armas e não a posse de arma
O então presidente foi eleito pela população já defendendo amplamente as transformações no Estatuto do Desarmamento.Outras pesquisas revelam que a maior parte da população é contra a posse de arma.
O Decreto reduz os entraves para compra e posse de armas de fogo.O Decreto considera estudo passados para posse e porte de armas, não considerando dados recentes e realidades distintas entre unidades federativas brasileiras
Há uma ruptura do vínculo da posse de arma com a subjetividade do Delegado de Polícia Federal que autoriza a compra de água quando o cidadão solicitava tal direito com a alegação de necessidades pessoais.Estudos evidenciam que a maior parte das armas empregadas em ocorrências criminosas foram vendidas de forma lícita a cidadãos autorizados que tiveram suas armas desviadas ou subtraído.
Diante da ampliação da validade do registro de posse depara-se com a facilidade de manter os armamentos legalizados.O Decreto fere a competência prevista para o poder executivo e não trabalha o assunto no congresso e na sociedade.
A arma registrada deve ficar na residência do cidadão que a registrou.O poder público se omite, deixando o cidadão com sua proteção à deriva.

Fonte: Pinto (2021, p.14)

Diante do exposto, no que diz respeito à flexibilização da posse de arma de fogo, o objetivo é sanar uma deficiência do Estado em promover a segurança pública, especialmente em razão da precariedade da execução de políticas públicas existentes na própria gestão de tal departamento estatal. Contudo, mais armas em circulação no país acaba por promover um aumento da criminalidade como já demonstrado em cenários anteriores, principalmente no que tange aos casos de homicídios provocados pelo uso de arma.  

2.3 IMPACTOS DA FLEXIBILIZAÇÃO DE ARMAS

Cabreira (2023) aponta alguns riscos da flexibilização do porte e posse de armas de fogo no Brasil, dentre os quais o aumento de fatalidades envolvendo crianças. Um estudo realizado no ano de 2019 no país, apontou que, a cada 60 minutos, uma criança ou adolescente morre em razão de ferimentos acidentais ocasionados por arma de fogo. Ainda, entre os anos de 1997 e 2016, mais de 145 mil jovens até 19 morreram com disparos de arma de fogo, seja por razões intencionais ou acidentais.

Nessa mesma linha de pensamento segue Bernardino (2020) ao dizer que “armas são potencializadores de tragédias” pois, quando se fala em flexibilização de armas, é preciso pensar em saúde mental. Um exemplo disso é o aumento no número de casos de suicídio entre jovens com menos de 25 anos que, mesmo com acompanhamento psicológico, ao passar por problemas emocionais, poderiam ter acesso facilitado a uma arma de fogo para tirar a sua vida. O autor alerta que não é possível saber o que acontece no íntimo das pessoas que convivemos, mas que é possível protegê-las de si mesmas, primeiro buscando ajuda profissional, mas também não expondo essas pessoas a um objeto mortal.

Cabreira (2023) também chama a atenção para a questão do aumento de conflitos, uma vez que muitas situações são resolvidas com maior violência e agressividade quando o cidadão possui uma arma de fogo para sua defesa, pois se sente mais corajoso e poderoso. Não se pode deixar de mencionar as situações de feminicídio, onde mulheres sofrem diariamente com a violência e ameaça promovida por armas de fogo. Uma outra ameaça que se faz presente no dia a dia de cidadãos que portam armas é o risco de suicídio, tendo em vista que a arma de fogo se configura como uma solução acessível e rápida para aquele que possui tendências suicidas.

Case e Camelo (2023) tratam dos argumentos contrários à posse e porte de armas, mencionando a questão da grande taxa de homicídios e criminalidade observada no Brasil que, por se tratar de um país com grandes desigualdades sociais, o acesso às armas de fogo promoveriam o aumento da violência e, ainda mais, das taxas de feminicídio. Os autores não deixam de mencionar o problema da fiscalização falha, cujo número de profissionais seria insuficiente e, além disso, o fato de que uma maior restrição resultaria em benefícios para a sociedade, visto que seriam reduzidos os homicídios entre cidadãos comuns. Ainda, os autores apresentam os argumentos favoráveis à posse e porte de armas, uma vez que o governo não garante a segurança pública, devendo o próprio cidadão fazê-lo através do uso de armas de fogo, pois “pessoas que não são criminosas só procuram obter armas com o objetivo de se autodefender” (CASE; CAMELO, 2023, p.11).

Gomes e Silva (2022) acrescentam que existem muitos mitos em torno da flexibilização de armas de fogo, como a velha afirmativa de que as armas não matam pessoas, mas que as pessoas é que puxam o gatilho. Além disso, afirma-se que os países mais armados são aqueles considerados mais violentos e ainda que o povo brasileiro não tem educação, de forma que o país facilmente se tornará um faroeste. É importante afirmar que esse tipo de desinformação não deve ser replicada, de forma que essa temática não pode se esgotar, devendo ser cada vez mais debatida.

Conforme Santos (2021), dados analisados entre o 2019 e 2020, período em que entraram em vigor os Decretos nº 9685 e n°9785 de 2019, houve um aumento significativo de venda de armas no Brasil (200% em relação ao mesmo período de anos anteriores). Em termos reais, as vendas passaram de 24.663 armas para 73.985, sem levar em conta as armas destinadas às forças armadas e PM, cuja regulação se dá pelo Exército.

Somente no ano de 2020, um total de 179.771 novas armas de fogo foram registradas na PF, enquanto no ano anterior foram 94.064, aumento de 91%, considerado o maior patamar da série desde 2009. Esses dados apontam, portanto, que nos 2 primeiros anos do governo de Jair Bolsonaro, houve um aumento de 183% (273.385) quando comparado aos dados de novos registros de armas de fogo nos anos de 2018 a 2017 (96.512) (SCHREIBER, 2021).

No que tange à flexibilzação de armas de fogo, um dos  argumentos é de que as pessoas teriam o direito prioritário de possuir uma arma de fogo para autodefesa, sendo um direito amplamente reconhecido na literatura técnica, pois o direito à legítima defesa é inquestionável. Todas as pessoas tem o direito de usar meios moderados e necessários para repelir uma agressão injusta, que coloque em risco sua própria vida ou a vida de terceiros. Entretanto, existem divergências doutrinárias e sociais acerca dos argumentos da lei de armas (BANDEIRA, 2019).

Um dos argumentos contra a lei de armas é que ela “desarma os homens de bem e deixa os bandidos armados”. A simples leitura da lei, pelos que a criticam sem ler, comprova que ela apenas fiscaliza a compra e o uso de armas e munições, procura evitar que caiam nas mãos da criminalidade ou de quem não as sabe manejar, permite que aqueles que desejam se desfazer delas o façam em segurança e sejam indenizados, e facilita o trabalho da polícia na apreensão de armas ilegais e na elucidação de crimes, reduzindo os homicídios. As medidas previstas no Estatuto visam dar meios e obrigações para a polícia combater o tráfico de armas e desarmar os criminosos, e não deixar indefeso o cidadão (BANDEIRA, 2019, p.188).

Embora se considere o dever do Estado em proporcionar segurança ao cidadão, à sua família e ao patrimônio, é sabido que esse serviço não alcança toda a população, da mesma forma como não ocorre um controle efetivo do acesso às armas pelos criminosos, razão pela qual muitos cidadãos optam pela posse de arma, alegando a necessidade de autodefesa (OLIVEIRA; AMORIM, 2021).

Rocha (2019) menciona que, mesmo às vésperas de completar duas décadas da aprovação do Estatuto do Desarmamento, os índices de crimes violentos associados ao uso de armas de fogo no Brasil seguem em alta, mesmo em face das restrições legais previstas no estatuto. Segundo o autor, o que se observa são as constantes discussões com vistas a reaver a proibição do porte e posse de armas e, ainda que não consensuais, tais discussões se prendem muito mais ao meio político. Assim, considerando tanto o meio rural quanto o meio urbano, é fato que a posse e o porte generalizado de armas de foco tenderão a agravar o problema latente de segurança pública no Brasil, ainda mais em caso de afrouxamento das permissões, o que não sevirá para solucionar tal problemática.

Nesse mesmo enquadramento, os autores Nascimento e Oliveira (2023) acreditam que a política de liberação do porte de armas está entrelaçada entre dois grupos distintos. O primeiro grupo é aquele que defende a liberação com base na crença de que armar a população resultaria na diminuição da criminalidade, devendo o cidadão de bem optar por possuir ou portar uma arma de fogo para sua defesa. O segundo grupo enxerga a legalização de armas como algo ineficaz, o que resultaria no aumento da violência no Brasil, além de tornar as pessoas mais propensas a cometer crimes.

Observam Carvalho e Carrasco (2022) que um ponto bastante comum nas discussões sobre políticas de liberação de armas é o argumento de que o indivíduo tem direito à autodefesa, de forma a garantir sua sobrevivência em situações de necessidade e/ou ameaça. Esses autores argumentam que, desde o ano de 2016, houve um aumento significativo no número de armas de posse da população, o que se deve, principalmente, pelas políticas de flexibilização dos governos recentes. Diante dessa situação, o que se percebe é um tipo de comportamento de rebanho, ou seja, uma congruência de pensamentos semelhantes por parte dos cidadãos de que é preciso possuir uma arma para se defender.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme a questão inicialmente levantada nessa pesquisa sobre os efeitos advindos da flexibilização da posse de armas no Brasil, foram observadas linhas de pesquisa ambíguas: de um lado, há pesquisadores que acreditam que um dos efeitos principais seria a redução da violência e da criminalidade, uma vez que o cidadão deve ter o direito de se defender, uma vez que o Estado não o faz. Por outro lado, há pesquisadores que creem que legislações mais permissivas sobre porte e posse de armas de fogo poderá acarretar um aumento no número de mortes, sejam elas acidentais, suicídios, homicídios ou feminicídios, bem como o aumento do número de armas nas mãos de criminosos.

Os questionamentos acerca da eficácia do Estatuto do Desarmamento revelam insatisfação no que diz respeito a alcançar os propósitos de proteção dos cidadãos e desarmamento dos criminosos. Dessa forma, ficou evidente por meio do levantamento bibliográfico realizado nessa pesquisa que, de fato, o Estado brasileiro é falho na promoção de segurança pública, o que fortalece os debates sobre a questão da flexibilização do desarmamento da população.

Por fim, sobre analisar os efeitos potenciais que podem advir da flexibilização da posse de armas promovida pelo Decreto n. 9685, de 15 de janeiro de 2019, pode-se afirmar que os impactos e/ou os efeitos são complexos e multifacetados, impossibilitando um crivo sobre essa questão, de forma que os debates devem ser mantidos e avaliados com cautela por meio de estudos futuros.      

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Discente do Curso Superior de Direito da Faculdade Educacional UDC Campus de Medianeira/PR.e-mail: schmoellerlucas@hotmail.com.

2 Docente do Curso Superior de Direito da da Faculdade Educacional UDC Campus de Medianeira/PR. Doutor em Direito pela Universidade de Marília – UNIMAR, Mestre em Direito Processual e Cidadania na Universidade Paranaense – UNIPAR, Especialização Latu Sensu pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná, Especialização em Docência no Ensino Superior, Especialização em Gestão Pública e Graduação em Direito pela Universidade Paranaense. e-mail: marcelo@gubertepaz.com.