DESAFIOS NA COMUNICAÇÃO DE ESTIMATIVAS CRONOTANATOGNÓSTICAS NO ÂMBITO JUDICIAL: A IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM DA PROBABILIDADE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202505150937


Flávio José Teles de Morais1
Marco Silva Leles2


RESUMO

A transmissão eficaz de estimativas do intervalo post-mortem (IPM) no contexto judicial representa desafio significativo para a medicina legal contemporânea, exigindo equilíbrio entre precisão científica e clareza comunicacional. Este estudo analisa os desafios específicos na comunicação de estimativas cronotanatognósticas em procedimentos judiciais, com ênfase na implementação sistemática da linguagem probabilística como ferramenta para representação adequada das incertezas inerentes. A metodologia empregou revisão crítica da literatura científica em comunicação forense, epistemologia jurídica e cronotanatognose, complementada por análise documental de laudos periciais e decisões judiciais em casos envolvendo determinação temporal da morte. Os resultados demonstram que a comunicação determinística de estimativas do IPM frequentemente induz interpretações judiciais incompatíveis com as limitações científicas inerentes, potencialmente resultando em conclusões processuais inadequadamente fundamentadas. Identificam-se como principais desafios: a discrepância entre os paradigmas epistemológicos da ciência e do direito, as dificuldades na tradução do conhecimento técnico para linguagem acessível, e a tendência à omissão das incertezas em busca de aparente precisão. A implementação sistemática da linguagem probabilística, caracterizada pela expressão explícita de intervalos de confiança, qualificação verbal padronizada e contextualização das limitações metodológicas, emerge como abordagem cientificamente honesta e juridicamente útil. Conclui-se que a adoção de estrutura comunicacional probabilística nas estimativas cronotanatognósticas representa imperativo ético-científico e necessidade prática para adequada interface entre medicina legal e sistema judicial, permitindo decisões jurídicas fundamentadas em compreensão realista das possibilidades e limitações da ciência forense.

Palavras-chave: Cronotanatognose; Comunicação Forense; Linguagem Probabilística; Intervalo Post-mortem; Interface Ciência-Direito.

1. INTRODUÇÃO

A determinação do intervalo post-mortem (IPM) – período transcorrido entre o momento da morte e o exame pericial do cadáver – constitui elemento frequentemente crucial para investigações criminais, questões sucessórias e outras demandas judiciais. Esta determinação, denominada cronotanatognose na terminologia médico-legal, fundamenta-se na análise sistemática de fenômenos cadavéricos consecutivos, incluindo transformações físico-químicas, alterações entomológicas e modificações tafonômicas, interpretadas à luz de conhecimento científico especializado (França, 2021).

Embora fundamentais para o sistema judicial, as estimativas cronotanatognósticas caracterizam-se intrinsecamente por natureza probabilística, não determinística. A multiplicidade de fatores influenciadores – temperatura, umidade, condições corporais individuais, circunstâncias específicas – torna virtualmente impossível a determinação pontual precisa do momento da morte em casos que ultrapassam o período inicial de algumas horas, onde fenômenos cadavéricos recentes (algor mortis, rigor mortis, livor mortis) apresentam progressão relativamente mais previsível (Hércules, 2014).

Esta natureza inerentemente probabilística das estimativas do IPM cria desafio comunicacional significativo na interface entre medicina legal e sistema judicial. Enquanto a medicina legal contemporânea reconhece explicitamente as limitações e incertezas associadas a tais estimativas, o sistema judicial frequentemente busca (e por vezes presume) determinações temporais precisas como fundamento para decisões categóricas sobre responsabilidades criminais, direitos sucessórios e outros aspectos jurídicos (Crespi et al., 2019).

A comunicação eficaz nesta interface ciência-direito exige reconhecimento explícito desta tensão epistemológica fundamental. Por um lado, o conhecimento científico sobre processos de decomposição caracteriza-se por compreensão probabilística, reconhecendo explicitamente variabilidades, fatores moduladores e limites metodológicos inerentes. Por outro, o sistema judicial tradicionalmente opera em paradigma binário, buscando determinações categóricas como “culpado/inocente”, “anterior/posterior” ou “causador/não-causador”, com limitada tolerância para zonas intermediárias de incerteza (Edmond et al., 2016).

Neste contexto, a linguagem empregada para comunicar estimativas cronotanatognósticas assume importância crítica, potencialmente influenciando significativamente interpretações jurídicas e, consequentemente, decisões judiciais. Terminologia excessivamente assertiva pode induzir confiança injustificada em estimativas inerentemente limitadas; inversamente, expressões excessivamente cautelosas podem resultar em subutilização de informações cientificamente válidas, ainda que probabilísticas (Cockle-Hearne & Di Maggio, 2021).

A linguagem da probabilidade emerge como ferramenta potencialmente valiosa para navegar este desafio comunicacional. Através de expressões sistemáticas e padronizadas de incerteza – seja quantitativa (intervalos estatísticos, percentuais de confiança, razões de verossimilhança) ou qualitativa (escalas verbais padronizadas) – esta abordagem linguística busca representar honestamente as limitações inerentes às estimativas cronotanatognósticas, enquanto mantém sua utilidade para o raciocínio jurídico (Mattijssen et al., 2020).

No Brasil, esta questão assume relevância particular considerando certas características específicas do sistema médico-legal e jurídico nacional. A estrutura predominantemente inquisitorial do processo penal brasileiro, a tradição de valorização significativa da prova pericial, e a escassez relativa de especialização judicial em interpretação científica criam contexto onde a comunicação inadequada de estimativas cronotanatognósticas pode ter consequências particularmente significativas (Leal da Costa & Figueiredo, 2021).

Adicionalmente, as particularidades climáticas do Brasil, onde condições tropicais prevalecem em grande parte do território, potencializam a complexidade das estimativas do IPM. A aceleração de decomposição característica destas condições, combinada com variações regionais significativas entre diferentes biomas, introduz camadas adicionais de incerteza que devem ser adequadamente comunicadas para interpretação judicial apropriada (Cardoso et al., 2021).

O reconhecimento crescente destas questões de comunicação tem estimulado desenvolvimento de recomendações e diretrizes internacionais para expressão de conclusões forenses, incluindo estimativas do IPM. Organizações como a European Network of Forensic Science Institutes (ENFSI) e a American Academy of Forensic Sciences (AAFS) têm promovido padronizações terminológicas e estruturas comunicacionais específicas, buscando maior clareza e consistência na transmissão de conclusões probabilísticas (ENFSI, 2015).

O presente estudo tem como objetivo principal analisar os desafios específicos na comunicação de estimativas cronotanatognósticas em procedimentos judiciais brasileiros, com ênfase na implementação sistemática da linguagem probabilística como ferramenta para representação adequada das incertezas inerentes. Busca-se compreender as dificuldades particulares na transmissão deste conhecimento especializado no contexto judicial nacional, identificando potenciais fontes de má interpretação e suas consequências processuais.

Adicionalmente, pretende-se propor estrutura comunicacional específica para expressão de estimativas do IPM em laudos periciais e depoimentos técnicos, incorporando princípios da linguagem probabilística de forma adaptada ao contexto brasileiro. Esta estrutura busca equilibrar precisão científica e clareza comunicacional, fornecendo ferramenta prática para médicos legistas e outros profissionais envolvidos na comunicação judicial de estimativas temporais da morte.

A relevância deste estudo fundamenta-se na crescente necessidade de aprimoramento na interface comunicacional entre medicina legal e sistema judicial, particularmente considerando o aumento da complexidade metodológica das estimativas contemporâneas do IPM e o escrutínio crescente da fundamentação científica em procedimentos judiciais. Em perspectiva mais ampla, contribui para o desenvolvimento de uma medicina legal mais transparente em suas limitações e, paradoxalmente, mais útil precisamente por sua honestidade epistemológica.

2. MÉTODOS

O presente trabalho constitui estudo analítico da comunicação de estimativas cronotanatognósticas no âmbito judicial, empregando metodologia qualitativa para identificação e análise dos desafios comunicacionais específicos e desenvolvimento de estrutura probabilística aplicável. Por sua natureza analítica sem envolvimento direto de participantes humanos, este estudo está dispensado de avaliação pelo sistema CEP/CONEP, conforme estabelecido no Art. 1º, Parágrafo Único, inciso VII da Resolução CNS 510/16.

2.1 Revisão da Literatura

Foi realizada revisão sistemática da literatura científica em três áreas complementares: comunicação forense, epistemologia jurídica e cronotanatognose, buscando identificar desafios comunicacionais específicos e estratégias para sua mitigação. A busca foi conduzida nas principais bases de dados científicas, incluindo PubMed/MEDLINE, Scopus, Web of Science, SciELO, LILACS e bases jurídicas específicas como LexisNexis e HeinOnline, abrangendo o período de 1990 a 2023.

Os descritores utilizados, em diferentes combinações, incluíram: “comunicação forense”, “linguagem        probabilística”, “cronotanatognose”, “intervalo post-mortem”, “estimativa temporal”, “perícia judicial”, “epistemologia jurídica”, “prova científica” e seus correspondentes em inglês (“forensic communication”, “probabilistic language”, “post-mortem interval estimation”, “temporal estimation”, “judicial expertise”, “legal epistemology”, “scientific evidence”).

Os critérios de inclusão abrangeram: (1) artigos originais, revisões sistemáticas, metanálises e capítulos de livros que abordassem aspectos comunicacionais da perícia médico-legal; (2) publicações com foco específico na expressão de incertezas em estimativas forenses; (3) estudos sobre interpretação judicial de provas científicas; (4) trabalhos sobre metodologias cronotanatognósticas que discutissem aspectos comunicacionais.

Foram excluídos: (1) estudos exclusivamente técnicos sobre métodos cronotanatognósticos sem discussão de aspectos comunicacionais; (2) publicações com foco exclusivo em outras áreas forenses sem aplicabilidade à cronotanatognose; (3) trabalhos sem relevância direta para o contexto judicial brasileiro.

2.2 Análise Documental

Complementarmente à revisão da literatura, foi realizada análise documental de laudos periciais e decisões judiciais em casos envolvendo determinação temporal da morte. Esta análise buscou identificar padrões comunicacionais específicos e suas potenciais consequências interpretativas no contexto judicial prático.

Foram analisados 25 laudos periciais tanatológicos produzidos por diferentes instituições médico-legais brasileiras no período de 2010 a 2022, selecionados por conveniência a partir de arquivos públicos e processos com tramitação encerrada. A análise focou especificamente nos segmentos dedicados à estimativa do IPM, identificando terminologia empregada, estrutura argumentativa, expressão de incertezas e qualificações metodológicas.

Adicionalmente, foram analisadas 18 decisões judiciais (incluindo sentenças, acórdãos e votos individuais) que discutiam explicitamente estimativas temporais da morte como elemento probatório significativo. Esta análise focou na interpretação judicial da linguagem pericial, identificando potenciais distorções, simplificações ou supervalorização de elementos probabilísticos.

Para ambos os conjuntos documentais, foi empregada metodologia de análise de conteúdo, com codificação temática focada em padrões comunicacionais específicos, incluindo: (1) expressões de certeza/incerteza; (2) qualificações metodológicas; (3) contextualização de limitações; (4) uso de terminologia probabilística; (5) representação de intervalos temporais.

2.3 Framework Analítico

Para sistematização da análise, foi desenvolvido framework analítico específico, incorporando três dimensões complementares:

Dimensão Epistemológica: Análise das diferenças fundamentais entre paradigmas de conhecimento científico (probabilístico, contextual, falseável) e jurídico (categórico, normativo, resolutivo), identificando pontos específicos de tensão na comunicação de estimativas temporais.

Dimensão Linguística: Análise dos padrões terminológicos e estruturas discursivas empregados para expressão de estimativas cronotanatognósticas, incluindo identificação de expressões potencialmente problemáticas, ambiguidades recorrentes e estruturas facilitadoras da comunicação adequada.

Dimensão Pragmática: Análise das consequências práticas de diferentes abordagens comunicacionais, incluindo influência sobre decisões judiciais, interpretações por diferentes atores processuais e potenciais impactos em casos específicos.

Este framework permitiu análise integrada dos desafios comunicacionais, considerando simultaneamente suas raízes epistemológicas, manifestações linguísticas específicas e consequências práticas no sistema judicial.

2.4 Desenvolvimento de Estrutura Comunicacional

Com base nos resultados da revisão da literatura e análise documental, foi desenvolvida estrutura comunicacional específica para expressão de estimativas cronotanatognósticas em contexto judicial. Este desenvolvimento seguiu abordagem sistemática incluindo:

Identificação de Melhores Práticas: Revisão de diretrizes internacionais e recomendações de associações científicas para comunicação de estimativas forenses, incluindo documentos da ENFSI, AAFS, National Institute of Standards and Technology (NIST) e President’s Council of Advisors on Science and Technology (PCAST).

Adaptação ao Contexto Brasileiro: Consideração das particularidades do sistema judicial e médico-legal brasileiro, incluindo tradições processuais específicas, expectativas comunicacionais predominantes e características linguísticas relevantes.

Validação Preliminar: Consulta informal a especialistas em medicina legal e direito processual para avaliação da aplicabilidade e clareza da estrutura proposta, com posterior refinamento baseado nas contribuições recebidas.

A estrutura resultante foi organizada em componentes específicos, incluindo recomendações para expressão quantitativa de intervalos, qualificação verbal padronizada, contextualização de limitações metodológicas e estruturação global do discurso pericial sobre estimativas temporais.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 Desafios Epistemológicos na Comunicação Cronotanatognóstica

A análise integrada da literatura científica e documentos periciais/judiciais revela desafios fundamentais na comunicação de estimativas do IPM, muitos dos quais derivam de discrepâncias epistemológicas básicas entre os campos científico e jurídico.

3.1.1 Confronto Entre Paradigmas Probabilístico e Determinístico

Um desafio epistemológico fundamental na comunicação cronotanatognóstica reside no confronto entre a natureza inerentemente probabilística das estimativas do IPM e a expectativa frequentemente determinística do sistema judicial.

A literatura científica contemporânea em tanatologia reconhece explicitamente que a determinação precisa do momento da morte torna-se progressivamente mais difícil com o passar do tempo, sendo virtualmente impossível estabelecer pontos temporais exatos para casos que ultrapassam o período inicial de algumas horas. Como enfatiza Hércules (2014), os fenômenos cadavéricos – sejam precoces (algor mortis, rigor mortis, livor mortis), intermediários (autólise, putrefação) ou tardios (esqueletização, adipocera) – apresentam variabilidade biológica intrínseca modulada por múltiplos fatores ambientais e individuais, resultando inevitavelmente em estimativas intervalares, não pontuais.

Contudo, a análise de decisões judiciais revela persistente expectativa de determinações temporais precisas, frequentemente expressa em questionamentos como “a que horas ocorreu a morte?” ou “em que dia faleceu a vítima?”. Esta expectativa determinística não representa mera preferência comunicacional, mas reflete paradigma epistemológico específico do campo jurídico, onde determinações categóricas tradicionalmente fundamentam conclusões normativas binárias (Edmond et al., 2016).

A manifestação prática deste confronto epistemológico pode ser observada em vários dos laudos periciais analisados, onde peritos frequentemente respondem à pressão determinística através de estratégias comunicacionais problemáticas, incluindo:

Simplificação Excessiva: Apresentação de intervalos excessivamente estreitos sem fundamentação metodológica adequada, aparentemente buscando satisfazer expectativas de precisão.

Falsa Precisão: Utilização de expressões aparentemente precisas (“a morte ocorreu há 36 horas”) sem as necessárias qualificações probabilísticas, potencialmente induzindo interpretação determinística de estimativa fundamentalmente probabilística.

Refugo na Imprecisão: Inversamente, apresentação de intervalos excessivamente amplos (“entre 12 horas e 7 dias”) que, embora tecnicamente corretos, oferecem limitada utilidade prática para o raciocínio jurídico.

Esta discrepância epistemológica fundamental foi identificada como uma das principais raízes de mal-entendidos na comunicação cronotanatognóstica, exigindo abordagem comunicacional específica que reconheça explicitamente a tensão entre paradigmas científico e jurídico.

3.1.2 Diferentes Concepções de Incerteza e Erro

A análise revela concepções fundamentalmente distintas de incerteza e erro nos campos científico e jurídico, criando desafio comunicacional adicional.

Na perspectiva científica contemporânea, incerteza representa componente inerente e honestamente reconhecido do conhecimento, não necessariamente indicando inadequação metodológica ou limitação técnica específica. Como destacam Mattijssen et al. (2020), a expressão explícita de incertezas em conclusões científicas frequentemente reflete maior rigor metodológico, não menor confiabilidade. Esta perspectiva valoriza a “incerteza qualificada” como epistemologicamente superior à “certeza não fundamentada”.

Contrastantemente, a análise de documentos judiciais revela que, no contexto jurídico, incertezas frequentemente são interpretadas como indicativas de inadequação técnica ou limitação pericial específica. Expressões de dúvida ou apresentação de intervalos amplos são frequentemente caracterizadas como “inconclusivas” ou “insuficientes”, por vezes resultando em desvalorização completa da evidência científica disponível (Edmond et al., 2016).

Esta discrepância conceptual específica manifesta-se em padrão observado em vários laudos analisados: a aparente relutância pericial em expressar abertamente incertezas inerentes, possivelmente buscando evitar percepção de inadequação técnica. Como consequência, observam-se estratégias comunicacionais como:

Omissão de Limitações: Não-menção a fatores moduladores significativos que ampliariam os intervalos estimados, apresentando conclusões aparentemente mais precisas que o metodologicamente justificável.

Linguagem Pseudocientífica: Utilização de terminologia técnica densa sem correspondente ganho informacional, aparentemente buscando compensar incertezas inerentes com complexidade linguística.

Qualificações Obscuras: Inclusão de qualificações metodológicas em seções separadas do laudo, desconectadas das conclusões apresentadas, dificultando compreensão integrada das limitações por leitores não-especialistas.

Estas estratégias, embora potencialmente motivadas pelo desejo de manter credibilidade pericial no contexto judicial, frequentemente resultam em comunicação inadequada do conhecimento científico disponível, potencialmente induzindo interpretações judiciais injustificadamente confiantes nas estimativas temporais apresentadas.

3.1.3 Tensão Entre Conhecimento Contextual e Generalização

Um terceiro desafio epistemológico significativo envolve a tensão entre o conhecimento fundamentalmente contextual das estimativas cronotanatognósticas e a expectativa judicial de generalizações aplicáveis.

A literatura científica em tanatologia enfatiza consistentemente a natureza altamente contextual das estimativas do IPM. Como destacam Cockle-Hearne & Di Maggio (2021), a interpretação adequada de fenômenos cadavéricos exige consideração detalhada de múltiplos fatores específicos, incluindo condições ambientais precisas, características individuais do cadáver, circunstâncias particulares da morte e localização. Esta contextualidade significa que estimativas desenvolvidas para caso específico não são diretamente transferíveis para outros casos, mesmo aparentemente similares.

Contudo, a análise de documentos judiciais revela expectativa frequente de generalizações aplicáveis – princípios ou regras tanatológicas que poderiam ser uniformemente aplicados independentemente de contextos específicos. Esta expectativa manifesta-se em questionamentos periciais como “qual o tempo normal para desenvolvimento da mancha verde abdominal?” ou “quanto tempo normalmente leva para atingir a fase de esqueletização?”, buscando estabelecer parâmetros generalizáveis.

Esta tensão epistemológica específica manifesta-se em estratégias comunicacionais observadas em laudos analisados, incluindo:

Generalizações Inadequadas: Apresentação de princípios gerais sem adequada qualificação contextual, potencialmente induzindo aplicação inadequada a caso específico com condições moduladoras particulares.

Especificidade Excessiva: Inversamente, detalhamento tão minucioso de particularidades contextuais que obscurece princípios fundamentais subjacentes, dificultando compreensão global pelo sistema judicial.

Inconsistência Entre Teoria e Aplicação: Apresentação teórica adequadamente contextualizada seguida por conclusões que não incorporam adequadamente esta contextualização, criando desconexão interna no discurso pericial.

A navegação adequada desta tensão representa desafio comunicacional significativo, exigindo equilíbrio entre apresentação de princípios fundamentais compreensíveis e adequada contextualização para o caso específico.

3.2 Desafios Linguísticos na Expressão de Estimativas Temporais

Para além dos desafios epistemológicos fundamentais, a análise identifica desafios específicos na estruturação linguística da comunicação cronotanatognóstica, com implicações diretas para sua interpretação no contexto judicial.

3.2.1 Ambiguidade Terminológica e Interpretativa

A análise dos laudos periciais revela presença significativa de terminologia ambígua na expressão de estimativas temporais, potencializando interpretações divergentes pelos diferentes atores judiciais.

Expressões temporais como “recente”, “intermediário” e “tardio” aparecem frequentemente sem definição explícita de seus parâmetros, criando potencial para interpretações significativamente diferentes. Como destacam Crespi et al. (2019), termos como “recente” podem representar horas para alguns interpretes e dias para outros, dependendo de seu referencial experiencial e conhecimento técnico prévio.

Similarmente, qualificadores probabilísticos verbais como “provável”, “possível”, “compatível com” e “consistente com” são utilizados sem padronização explícita de seu significado pretendido, resultando em ampla variabilidade interpretativa. Estudos como os de Mattijssen et al. (2020) demonstram que estas expressões verbais são interpretadas com extrema variabilidade – “provável”, por exemplo, pode ser interpretado como representando probabilidade entre 50% e 95%, dependendo do interpretador.

Adicionalmente, a análise de decisões judiciais revela interpretações frequentemente divergentes de expressões intervalares utilizadas em laudos periciais. Frases como “entre 12 e 36 horas” são por vezes interpretadas como indicativas de distribuição uniforme de probabilidade ao longo do intervalo, embora frequentemente o perito pretenda comunicar distribuição não-uniforme com maior probabilidade em determinadas regiões do intervalo.

Esta ambiguidade terminológica não representa problema puramente semântico, mas tem consequências processuais significativas. Em várias das decisões analisadas, interpretações divergentes de terminologia temporal fundamentaram argumentações jurídicas opostas, evidenciando o impacto prático desta questão comunicacional.

3.2.2 Estruturas Discursivas e Clareza Comunicacional

A análise revela que a estrutura discursiva empregada na comunicação de estimativas cronotanatognósticas influencia significativamente sua interpretação pelos atores judiciais, independentemente de seu conteúdo técnico específico.

Estruturas discursivas identificadas como particularmente problemáticas incluem:

Separação Fragmentada: Apresentação dos elementos metodológicos, fatores moduladores e conclusões em seções completamente separadas do laudo, dificultando compreensão integrada da fundamentação científica e suas limitações inerentes.

Hierarquia Implícita: Apresentação estrutural que implicitamente privilegia determinados indicadores (frequentemente aqueles aparentemente mais precisos) sem adequada discussão das limitações específicas de cada metodologia.

Ocultamento de Assunções: Não-explicitação de premissas fundamentais que sustentam a análise, particularmente assunções sobre condições ambientais nos períodos nãodocumentados, potencialmente obscurecendo limitações significativas.

Inversamente, estruturas discursivas identificadas como facilitadoras de comunicação adequada incluem:

Estrutura Integrada: Apresentação que explicitamente conecta metodologias específicas, suas limitações inerentes, fatores moduladores relevantes e conclusões derivadas, permitindo avaliação holística da fundamentação científica.

Gradação Explícita de Confiança: Diferenciação clara entre elementos com diferentes níveis de fundamentação científica, explicitando quais aspectos apresentam maior confiabilidade e quais envolvem maior incerteza.

Transparência Metodológica: Explicitação das abordagens metodológicas empregadas e suas limitações específicas no contexto particular do caso, permitindo avaliação adequada do fundamento científico das conclusões.

A análise de decisões judiciais confirma a importância destas estruturas discursivas, revelando que laudos com estruturação mais integrada e transparente tipicamente resultam em interpretações judiciais mais alinhadas com as limitações científicas inerentes às estimativas cronotanatognósticas.

3.2.3 Desafios na Tradução do Conhecimento Técnico

Um desafio linguístico específico envolve a tradução adequada de conhecimento técnico especializado para linguagem acessível aos atores judiciais não-especialistas, sem perda significativa de precisão científica.

A análise dos laudos periciais revela dois padrões problemáticos opostos:

Tecnicismo Excessivo: Utilização de terminologia altamente especializada sem adequada explicação, criando barreira significativa à compreensão por atores judiciais não-especialistas. Termos como “período cromático”, “diagênese cadavérica” ou “fase coliquativa” frequentemente aparecem sem definição acessível, potencialmente resultando em interpretação superficial ou delegação interpretativa a terceiros.

Simplificação Distorcida: Inversamente, uso de simplificações excessivas que, embora aparentemente mais acessíveis, distorcem aspectos fundamentais do conhecimento científico. Expressões como “a rigidez indica morte ocorrida há menos de 24 horas” representam simplificações que potencialmente induzem interpretações determinísticas de fenômenos fundamentalmente variáveis.

A análise de decisões judiciais confirma as consequências destes padrões: laudos caracterizados por tecnicismo excessivo frequentemente resultam em citações judiciais meramente formais sem engajamento substantivo com seu conteúdo, enquanto simplificações distorcidas são frequentemente incorporadas acriticamente, potencialmente propagando interpretações cientificamente inadequadas.

Este desafio tradutório é particularmente significativo considerando a relevância frequente das estimativas cronotanatognósticas para questões jurídicas fundamentais, incluindo álibis, ordenação de eventos e nexos causais – elementos que exigem compreensão substantiva, não meramente formal, pelos atores decisórios.

3.3 A Linguagem da Probabilidade como Estrutura Comunicacional

Considerando os desafios epistemológicos e linguísticos identificados, a análise aponta a linguagem probabilística estruturada como abordagem potencialmente valiosa para comunicação mais adequada de estimativas cronotanatognósticas no contexto judicial.

3.3.1 Fundamentos da Linguagem Probabilística em Contexto Forense

A linguagem probabilística forense representa abordagem comunicacional específica desenvolvida para expressar adequadamente conclusões científicas em contexto judicial, explicitamente reconhecendo suas incertezas inerentes enquanto mantém utilidade para o raciocínio jurídico.

Conforme sintetizado por Aitken, Roberts & Jackson (2010), esta abordagem fundamenta-se em princípios específicos:

Honestidade Epistemológica: Reconhecimento explícito das limitações inerentes ao conhecimento científico disponível, apresentando incertezas como componente integral da conclusão, não como admissão de inadequação.

Calibração Expressiva: Utilização de terminologia padronizada com significado probabilístico explicitamente definido, reduzindo ambiguidades interpretativas e permitindo comunicação mais precisa de níveis de certeza.

Proporcionalidade Fundamentada: Apresentação de conclusões cujo grau de assertividade é diretamente proporcional à robustez da fundamentação científica disponível, evitando tanto o exagero quanto a subestimação da evidência.

Transparência Metodológica: Explicitação dos métodos empregados, assunções realizadas e limitações específicas, permitindo avaliação independente da fundamentação científica das conclusões apresentadas.

A implementação desta abordagem em estimativas cronotanatognósticas representa resposta potencialmente valiosa aos desafios comunicacionais identificados, fornecendo estrutura que explicitamente reconhece a natureza probabilística destas estimativas enquanto mantém sua utilidade prática para o sistema judicial.

3.3.2 Expressão Quantitativa de Intervalos Temporais

Um componente fundamental da linguagem probabilística aplicada à cronotanatognose envolve a expressão adequada de intervalos temporais, representando honestamente a distribuição de probabilidades ao longo do intervalo estimado.

A análise dos laudos periciais revela predominância de intervalos simples (“entre X e Y horas/dias”) sem qualificação adicional, potencialmente induzindo interpretação de distribuição uniforme de probabilidade ao longo de todo o intervalo, quando frequentemente a distribuição real é significativamente não-uniforme.

Abordagens mais adequadas, identificadas na literatura científica e em laudos exemplares analisados, incluem:

Intervalos com Centralidade Indicada: Apresentação de intervalo temporal acompanhado de indicação explícita do período de maior probabilidade. Por exemplo: “intervalo post-mortem estimado entre 2 e 5 dias, mais provavelmente em torno de 3-4 dias”, comunicando explicitamente a não-uniformidade da distribuição de probabilidade.

Intervalos de Confiança Explícitos: Apresentação de múltiplos intervalos com seus respectivos níveis de confiança estatística. Por exemplo: “intervalo post-mortem estimado entre 36-48 horas (95% de confiança) ou entre 38-46 horas (80% de confiança)”, explicitando a relação entre amplitude do intervalo e nível de certeza.

Representação Gráfica Complementar: Utilização de representações visuais da distribuição de probabilidade ao longo do intervalo temporal, particularmente valiosa para comunicar distribuições complexas como bimodais ou assimetricamente concentradas.

Estas abordagens permitem comunicação significativamente mais precisa da natureza probabilística das estimativas temporais, explicitando que diferentes momentos dentro do intervalo apresentam diferentes níveis de probabilidade, conceito frequentemente crucial para adequada interpretação judicial.

A análise de decisões judiciais confirma o valor desta especificidade: quando presentes, qualificações probabilísticas explícitas dos intervalos temporais são frequentemente incorporadas substantivamente no raciocínio judicial, resultando em interpretações mais alinhadas com as limitações científicas reais.

3.3.3 Qualificadores Verbais Padronizados

Complementando a expressão quantitativa, a linguagem probabilística incorpora qualificadores verbais padronizados, com significado probabilístico explicitamente definido, reduzindo ambiguidades interpretativas frequentemente associadas a expressões como “provável”, “possível” ou “compatível”.

Baseando-se em recomendações de organizações como a European Network of Forensic Science Institutes (ENFSI, 2015) e adaptando-as ao contexto cronotanatognóstico, a análise identifica escala padronizada potencialmente valiosa:

“Altamente provável” (>90%): Utilizado quando a evidência científica indica fortemente determinada estimativa temporal, com apenas pequena probabilidade de intervalos alternativos.

“Provável” (75-90%): Indica estimativa temporal bem fundamentada, embora com margem significativa para intervalos alternativos.

“Possível” (25-75%): Indica estimativa com fundamentação científica moderada, representando cenário mais provável que suas alternativas, mas com incerteza substancial.

“Improvável” (10-25%): Indica estimativa com fundamentação científica limitada, representando possibilidade que não pode ser descartada, mas com evidência predominantemente contrária.

“Altamente improvável” (<10%): Indica possibilidade remota, mantida apenas para reconhecer limitações metodológicas inerentes que impedem exclusão absoluta.

Há que ressaltar que esta escala deve ser explicitamente definida no laudo, estabelecendo correspondência clara entre terminologia verbal e significado probabilístico pretendido, eliminando ambiguidades interpretativas identificadas como problemáticas na análise.

A incorporação desta terminologia padronizada permite comunicação mais precisamente calibrada do nível de certeza associado às estimativas, facilitando interpretação judicial adequadamente alinhada com a fundamentação científica disponível.

3.3.4 Estrutura Comunicacional Integrada

A implementação efetiva da linguagem probabilística em estimativas cronotanatognósticas requer estrutura comunicacional integrada, conectando explicitamente metodologias, limitações e conclusões em apresentação coerente.

Com base na análise realizada e nas recomendações da literatura científica, identificamos estrutura comunicacional potencialmente valiosa, incorporando sequencialmente:

Exposição Metodológica Transparente: Apresentação das metodologias específicas empregadas para estimativa temporal, incluindo fenômenos cadavéricos analisados, técnicas aplicadas e procedimentos de integração, em linguagem acessível complementada por terminologia técnica quando necessário.

Identificação Explícita de Fatores Moduladores: Discussão específica dos fatores relevantes que podem ampliar ou restringir os intervalos temporais estimados, incluindo condições ambientais, particularidades individuais do cadáver e circunstâncias específicas documentadas.

Declaração de Limitações Específicas: Exposição transparente das limitações metodológicas inerentes ao caso particular, incluindo fatores como intervalo entre morte e descoberta, condições de preservação da cena, disponibilidade de dados ambientais e outras circunstâncias potencialmente limitantes.

Apresentação Estratificada das Conclusões: Expressão das estimativas temporais em formato probabilístico estratificado, potencialmente incluindo:

Intervalo mínimo/máximo compatível com evidências disponíveis

Intervalo de maior probabilidade dentro do intervalo geral

Qualificação verbal padronizada do nível de confiança

Explicitação de cenários alternativos quando relevantes

Contextualização Jurídica Apropriada: Quando pertinente, discussão específica das implicações e limitações da estimativa temporal para questões jurídicas específicas, como compatibilidade com álibis ou sequenciamento de eventos, sem extrapolar competência técnica para determinações jurídicas.

Esta estrutura comunicacional integrada aborda simultaneamente múltiplos desafios identificados na análise, facilitando compreensão holística das estimativas cronotanatognósticas por atores judiciais não-especialistas, enquanto preserva rigorosamente sua fundamentação científica e limitações inerentes.

3.4 Implementação da Linguagem Probabilística no Contexto Brasileiro

A implementação da linguagem probabilística para estimativas cronotanatognósticas no contexto judicial brasileiro exige consideração de particularidades específicas do sistema médico-legal e jurídico nacional, adaptando princípios gerais às realidades institucionais e culturais locais.

3.4.1 Desafios Específicos do Contexto Brasileiro

A análise identifica desafios específicos para implementação da linguagem probabilística no contexto brasileiro:

Tradição Determinística: Forte tradição histórica de comunicação determinística em laudos médico-legais brasileiros, frequentemente apresentando estimativas temporais com aparente precisão superior à cientificamente justificável, criando resistência cultural a abordagens explicitamente probabilísticas.

Limitações Infraestruturais: Disparidades significativas na infraestrutura médico-legal entre diferentes regiões e instituições, resultando em variabilidade metodológica que complica padronização terminológica nacionalmente uniforme.

Formação Heterogênea: Variabilidade na formação específica dos profissionais médico-legais em aspectos comunicacionais e probabilísticos, resultando em compreensão e aplicação inconsistentes de princípios probabilísticos.

Expectativas Judiciais Tradicionais: Expectativa histórica no sistema judicial brasileiro de respostas categoricamente definitivas de peritos oficiais, potencialmente criando resistência inicial a comunicações explicitamente qualificadas em termos probabilísticos.

Esses desafios precisam de uma maneira especial de serem colocados em prática, que leve em conta as características próprias do Brasil. Ao mesmo tempo, essa maneira de agir deve seguir as ideias básicas de como comunicar informações sobre probabilidades. 

3.4.2 Estratégias para Implementação Gradual

Considerando os desafios identificados, a análise sugere estratégias para implementação gradual da linguagem probabilística no contexto brasileiro:

Padronização Institucional Progressiva: Desenvolvimento e implementação de diretrizes comunicacionais específicas no âmbito de instituições médico-legais individuais, progressivamente expandindo para padronizações regionais e eventualmente nacionais, respeitando variabilidades infra estruturais enquanto estabelece padrões comunicacionais comuns.

Capacitação Direcionada: Programas de capacitação específica para profissionais médico-legais em comunicação probabilística, focando tanto aspectos técnicos quanto habilidades específicas para transmissão eficaz em ambiente judicial.

Educação Judicial Complementar: Iniciativas educacionais direcionadas a atores judiciais (juízes, promotores, advogados) sobre interpretação adequada de comunicações probabilísticas em contexto forense, potencialmente em formato de workshops conjuntos com peritos.

Implementação Setorial Prioritária: Introdução inicial da comunicação probabilística em setores específicos com particular necessidade (como casos envolvendo decomposição avançada ou condições complexas), progressivamente expandindo para todas as estimativas cronotanatognósticas.

Documentação de Casos Exemplares: Identificação e documentação sistemática de casos onde a comunicação probabilística resultou em interpretação judicial particularmente adequada, criando repositório de exemplos positivos para orientação prática.

Estas estratégias reconhecem explicitamente a necessidade de transição gradual, permitindo adaptação cultural e institucional enquanto progressivamente implementam princípios comunicacionais mais adequados às realidades científicas das estimativas cronotanatognósticas.

3.4.3 Modelo Adaptado para Laudos Brasileiros

A análise permite desenvolvimento de modelo comunicacional especificamente adaptado para laudos médico-legais brasileiros, incorporando princípios da linguagem probabilística em formato compatível com práticas institucionais estabelecidas.

Este modelo incorpora seção específica para estimativas temporais, estruturada em subsegmentos sequenciais:

Metodologia Aplicada: Descrição das metodologias empregadas em linguagem dual – técnica para preservar precisão científica, seguida por explicação em termos acessíveis para compreensão por não-especialistas:

“A estimativa do intervalo post-mortem baseou-se na análise dos seguintes fenômenos cadavéricos: rigidez muscular generalizada (rigor mortis) em fase de resolução parcial nas articulações proximais; livores fixados não modificáveis à digitopressão; mancha verde abdominal em região inguinal com início de progressão para face lateral do abdômen. Em termos práticos, estes achados representam modificações características que o corpo apresenta em fases iniciais e intermediárias da decomposição.”

Fatores Moduladores Específicos: Discussão explícita dos fatores que potencialmente influenciam a estimativa no caso particular:

“A interpretação destes achados considerou os seguintes fatores relevantes documentados: temperatura ambiente média estimada de 24°C nas 48 horas anteriores à descoberta (baseada em registros meteorológicos locais); corpo totalmente vestido; ambiente interno com ventilação limitada. Estas condições tendem a produzir progressão relativamente típica dos fenômenos cadavéricos iniciais, sem aceleração ou retardo significativos.”

Limitações Específicas: Declaração transparente das limitações particulares do caso:

“A estimativa apresenta as seguintes limitações específicas: ausência de informações sobre temperatura corporal na descoberta; intervalo desconhecido entre morte e refrigeração cadavérica; ausência de documentação fotográfica sequencial dos fenômenos cadavéricos. Estas limitações introduzem incerteza adicional, particularmente para o limite superior do intervalo estimado.”

Conclusão Probabilística Estruturada: Expressão da estimativa temporal em formato explicitamente probabilístico:

“Com base nos achados documentados e condições específicas, estima-se intervalo postmortem entre 18 e 36 horas anteriores ao exame pericial (realizado em 10/04/2023 às 09:30h), correspondendo ao período entre 08/04/2023 21:30h e 09/04/2023 15:30h. Dentro deste intervalo, o período entre 24 e 30 horas (09/04/2023 03:30h e 09:04/2023 09:30h) apresenta maior probabilidade baseado na constelação de achados.

O nível de confiança nesta estimativa é classificado como PROVÁVEL (correspondendo a probabilidade entre 75% e 90%), considerando a consistência dos múltiplos indicadores analisados, parcialmente limitada pelas condições específicas documentadas acima.”

Contextualização Jurídica Apropriada: Quando pertinente, discussão das implicações específicas para questões jurídicas relevantes:

“Em relação à alegação específica de álibi para o período de 09/04/2023 entre 12:00h e 14:00h, os achados periciais são COMPATÍVEIS com morte ocorrida neste intervalo, embora também sejam compatíveis com períodos anteriores ou posteriores dentro do intervalo geral estimado. A evidência médico-legal não permite, isoladamente, confirmar ou excluir categoricamente este período específico.”

Este modelo comunicacional, adaptado às práticas institucionais brasileiras enquanto incorpora princípios fundamentais da linguagem probabilística, permite expressão significativamente mais precisa e honesta das estimativas cronotanatognósticas, potencialmente resultando em interpretação judicial mais adequadamente alinhada com suas limitações científicas inerentes.

3.5 Implicações para a Interface Ciência-Direito

A implementação sistemática da linguagem probabilística em estimativas cronotanatognósticas tem implicações potencialmente significativas para a interface mais ampla entre ciência forense e sistema judicial, transcendendo aspectos puramente comunicacionais.

3.5.1 Realinhamento Epistemológico

A adoção explícita da linguagem probabilística para estimativas temporais potencialmente contribui para realinhamento epistemológico mais amplo na interface ciência-direito, promovendo reconhecimento mais adequado das diferentes naturezas do conhecimento científico e jurídico.

Como destacam Edmond et al. (2016), a tensão fundamental entre a natureza probabilística do conhecimento científico e as expectativas determinísticas do sistema judicial frequentemente resulta em mal-entendidos significativos. A linguagem probabilística, ao tornar explícita esta diferença epistemológica fundamental, potencialmente facilita maior compreensão mútua.

Particularmente significativa é a possibilidade de modificação gradual das expectativas judiciais, reconhecendo progressivamente que a expressão explícita de incertezas não representa fraqueza ou inadequação metodológica, mas precisamente o oposto – honestidade científica e rigor metodológico. Este realinhamento potencialmente beneficia não apenas a cronotanatognose, mas todas as interfaces entre ciência forense e sistema judicial.

3.5.2 Valoração Probatória Apropriada

A comunicação mais precisa das limitações inerentes às estimativas temporais potencialmente facilita valoração probatória mais apropriada pelo sistema judicial, evitando tanto super quanto subvalorização da evidência médico-legal.

A análise de decisões judiciais revela padrões problemáticos recorrentes:

Supervalorização Determinística: Interpretação de estimativas temporais como determinações precisas, resultando em conclusões judiciais injustificadamente assertivas baseadas em evidência inerentemente limitada.

Desvalorização por Incerteza: Inversamente, rejeição completa de estimativas temporais por sua natureza não-determinística, resultando em desconsideração de evidência cientificamente válida, ainda que probabilística.

A linguagem probabilística, ao expressar precisamente o nível de certeza associado às estimativas, potencialmente facilita valoração intermediária mais apropriada – reconhecendo o valor probatório real da evidência médico-legal enquanto compreende adequadamente suas limitações inerentes.

3.5.3 Ética na Comunicação Pericial

A implementação da linguagem probabilística em estimativas cronotanatognósticas representa não apenas avanço técnico-comunicacional, mas também compromisso ético fundamental com a honestidade científica na interface com o sistema judicial.

Como enfatizam Crespi et al. (2019), a comunicação inadequada de limitações científicas em contexto judicial potencialmente resulta em consequências significativas para direitos individuais e funcionamento adequado do sistema judicial. A linguagem probabilística, ao representar mais honestamente as limitações inerentes às estimativas temporais, alinha-se fundamentalmente com responsabilidades éticas dos profissionais médico-legais.

Particularmente relevante é o princípio da transparência como imperativo ético – o reconhecimento explícito de que a honestidade sobre limitações metodológicas, incertezas inerentes e confiabilidade variável representa obrigação ética fundamental do perito, mesmo quando contraria expectativas institucionais ou culturais de assertividade categórica.

4. CONCLUSÃO

A análise sistemática dos desafios na comunicação de estimativas cronotanatognósticas no âmbito judicial demonstra a importância fundamental da linguagem probabilística como ferramenta para representação adequada das incertezas inerentes. As estimativas do intervalo post-mortem, por sua natureza intrinsecamente probabilística, exigem estrutura comunicacional específica que honestamente reconheça suas limitações enquanto mantém utilidade para o raciocínio jurídico.

Os desafios epistemológicos identificados – particularmente a tensão entre paradigmas científicos e jurídicos, os comprometimentos determinísticos implícitos e a contextualidade do conhecimento tanatológico – criam cenário comunicacional complexo que requer abordagem metodologicamente sofisticada. A análise de laudos periciais e decisões judiciais confirma que a comunicação inadequada destas complexidades frequentemente resulta em interpretações judiciais incompatíveis com as realidades científicas das estimativas temporais.

Similarmente, os desafios linguísticos analisados – incluindo ambiguidades terminológicas, estruturas discursivas problemáticas e dificuldades na tradução do conhecimento técnico – demonstram que escolhas específicas de expressão podem significativamente influenciar a

interpretação judicial, independentemente do conteúdo técnico subjacente. A variabilidade interpretativa de expressões aparentemente claras como “provável” ou “recente” ilustra convincentemente a necessidade de abordagem comunicacional mais rigorosamente calibrada.

A linguagem da probabilidade emerge como estrutura comunicacional particularmente valiosa para navegação destes desafios, incorporando princípios fundamentais como honestidade epistemológica, calibração expressiva, proporcionalidade fundamentada e transparência metodológica. Sua implementação através de elementos como expressão quantitativa adequada de intervalos temporais, qualificadores verbais padronizados e estrutura comunicacional integrada permite representação significativamente mais precisa e honesta das complexidades inerentes às estimativas cronotanatognósticas.

No contexto brasileiro específico, a implementação desta abordagem comunicacional exige consideração de desafios particulares, incluindo tradições determinísticas estabelecidas, limitações infraestruturais e expectativas judiciais tradicionais. A análise sugere implementação gradual através de estratégias como padronização institucional progressiva, capacitação direcionada, educação judicial complementar e documentação sistemática de casos exemplares, potencialmente facilitando transição cultural e institucional para práticas comunicacionais mais adequadas.

O modelo comunicacional específico desenvolvido para laudos brasileiros, incorporando seções estruturadas para metodologia aplicada, fatores moduladores, limitações específicas, conclusão probabilística e contextualização jurídica, representa ferramenta prática potencialmente valiosa para implementação imediata. Este modelo busca equilibrar compatibilidade com práticas institucionais estabelecidas e incorporação de princípios fundamentais da linguagem probabilística, facilitando transição gradual para comunicação mais cientificamente honesta.

As implicações desta implementação transcendem aspectos puramente comunicacionais, potencialmente contribuindo para realinhamento epistemológico mais amplo na interface ciência-direito, valoração probatória mais apropriada pelo sistema judicial e alinhamento com imperativos éticos fundamentais da prática pericial. A transparência comunicacional emerge não apenas como ferramenta técnica, mas como compromisso ético com a honestidade científica em contexto judicial.

Em conclusão, a adoção sistemática da linguagem probabilística na comunicação de estimativas cronotanatognósticas representa imperativo simultaneamente científico, prático e ético. Cientificamente, alinha a comunicação forense com a natureza fundamentalmente probabilística do conhecimento tanatológico; praticamente, facilita interpretação judicial mais adequada e potencialmente mais útil para o sistema de justiça; eticamente, honra o compromisso fundamental com a transparência e honestidade na interface entre medicina legal e sistema judicial.

O desenvolvimento de uma medicina legal simultaneamente mais honesta em suas limitações e mais útil precisamente por esta honestidade representa avanço fundamental na interface ciência-direito, potencialmente contribuindo para sistema judicial mais adequadamente fundamentado nas possibilidades e limitações reais do conhecimento científico contemporâneo.

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1Professor de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), Médico Legista do quadro da Polícia Técnico-Científica de Goiás, Mestre em Ciências Ambientais e Saúde pela PUC Goiás.
2Perito Criminal do quadro da Polícia Técnico-Científica de Goiás e Chefe do Posto de Atendimento de Polícia Técnico-Científica em Morrinhos, Goiás.