REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7299286
Sinei Ferreira Sales1
Por ocasião do lançamento do livro Diversa prosa de quase verso (2012), de Filinto Elísio, Simone Caputo Gomes escreveu um belo ensaio intitulado “Poesia Cinética, Equação Estética: a arte de Filinto Elísio”, publicando-o inicialmente na Revista Diadorim, do Programa de Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ. No ensaio que, posteriormente, veio a prefaciar a obra de Elísio, Gomes explorou a potência contida na palavra poética do poeta cabo-verdiano, colocada em movimento por meio de uma enunciação lírica singular em que
As relações intra e intertextuais e as interações com o leitor tendem ao máximo de entropia, em função crescente face à quantidade de informação do sistema-texto e às mudanças flutuantes da matéria poética (GOMES, 2012, p. 248)
Chamou-nos a atenção a leitura transdisciplinar que Gomes realizou dos poemas de Elísio, iluminando a estética de um poeta em trânsito, que faz da linguagem poética experimento do qual emergem combinações não pretendidas pelo significado, ou melhor, só então criam o significado. Nesse sentido, destacamos a abordagem das equações da energia cinética, como equações do estado da arte do poeta cabo-verdiano.
A fim de contribuir para a discussão iniciada pela professora, almejamos, neste ensaio, deter-nos sobre os aspectos da energia potencial contida em cada signo posto em movimento pelo poeta, uma energia que vem da fissão das unidades significativas da língua. Para tanto, leremos os poemas “intradoxos”, “são nicolau” e “fogo”, contidos no livro Mexendo no Baú Vasculhando o U (2011), empregando como arcabouço teórico as funções de existência da linguagem de Deleuze e Guattari, bem como os estudos de Hugo Friedrich acerca da lírica moderna.
Chamou-nos a atenção a leitura transdisciplinar que Gomes realizou dos poemas de Elísio, iluminando a estética de um poeta em trânsito, que faz da linguagem poética experimento do qual emergem combinações não pretendidas pelo significado, ou melhor, só então criam o significado. Nesse sentido, destacamos a abordagem das equações da energia cinética, como equações do estado da arte do poeta cabo-verdiano.
A fim de contribuir para a discussão iniciada pela professora, almejamos, neste ensaio, deter-nos sobre os aspectos da energia potencial contida em cada signo posto em movimento pelo poeta, uma energia que vem da fissão das unidades significativas da língua. Para tanto, leremos os poemas “intradoxos”, “são nicolau” e “fogo”, contidos no livro Mexendo no Baú Vasculhando o U (2011), empregando como arcabouço teórico as funções de existência da linguagem de Deleuze e Guattari, bem como os estudos de Hugo Friedrich acerca da lírica moderna.
O poeta e seu contexto
Filinto Elísio nasceu em 1961, na cidade da Praia, Ilha de Santiago. Permaneceu lá até concluir sua educação básica. Ao finalizá-la, seguiu o destino da grande maioria dos cabo-verdianos: a emigração. Aportou no Brasil, primeiro em Minas Gerais, onde se graduou em Biblioteconomia, depois, seguiu rumo ao Ceará, defendendo lá uma dissertação de mestrado na área de Administração de empresas.
Concretizando essa etapa, retornou a Cabo Verde e passou a atuar ativamente na vida cultural do país. Uma das suas mais marcantes atuações, ainda no final da década de 1980, deu-se junto à Folha de Artes e Letras Sopinha de Alfabeto, publicação um tanto audaciosa, mas de vida breve, contando apenas com dois números. Ainda assim, a atuação do grupo que contava com Elísio, Mito Elias, Eurico Barros e Arnaldo Silva deixou suas marcas na história da cultura local.
Visando ao combate à letargia que acometia o cenário cultural e literário em Cabo Verde, celebraram o cinquentenário da Revista Claridade, reivindicando modernização e liberdade estética para as Letras e as Artes cabo-verdianas em geral. Dessa forma, ao celebrarem a memória dos intelectuais que contribuíram para a Claridade entre os anos de 1936 e 1966, colocaram na ordem do dia o ideal telúrico na formação de uma literatura que tem fome de espaço e que se realiza na dispersão.
Diante desse aparente impasse, a poética de Elísio, uma das mais potentes de sua geração, aparece como uma equação que equilibra dispersão e senso de pertencimento. Após integrar inúmeras antologias poéticas, Elísio publica sua primeira obra em 1991. Desde então, experimenta os limites das artes, tendo publicado os seguintes livros: Do lado de cá da rosa (1995), O inferno do riso e Prato do dia (2001), Das Hespérides (2005), Das frutas serenadas (2007), Licores e ad vinhos (2009), Outros sais na beira mar (2010), Mexendo no baú, vasculhando o U (2011) e Zen Limites (2016).
Analisando as equações poéticas
Mexendo no baú é um livro de poemas composto por outros cinco, em uma estrutura de encaixe. Cada um deles de aspectos bastante distintos, mas convergindo para um mesmo centro: Cabo Verde. No primeiro, “Ó DE CEIA DAS I_LHAS”, o poeta faz um excurso pelas ilhas que compõem o arquipélago cabo-verdiano. O Segundo, “MAR SE A TUA & NU_A”, traz o erotismo presente no mar e os aspectos que o envolvem. O terceiro, “VALSA BRILHANTE, possui uma sonoridade que coloca em movimento corpos incertos. O quarto, QUEM TE TATUARIA?, é o que equaciona o corpo da poética de Elísio. O quinto, FANDANGo BoM, é o corpo da poesia posto em movimento em função dos sons tipicamente cabo-verdianos.
Assim, para entender a dinâmica da criativa de Elísio, abaixo, trazemos “Intradoxos”, poema contido na quarta parte e que traz a explicitação das equações poéticas que desnudam o exercício poético do poeta. Vejamos:
Intradoxos
a barco
b_arco
c cerco
…de circo meu bem
e_quações estéticas?
com feitoria novo confete da confraria
p_ética
a_berta p_orta
& o_utras a_rtérias
m_otricidades… (ELÍSIO, 2011, p.77)
Como apontou Gomes (2012, p. 248), “Intradoxo” é um diálogo com o poema homônimo do brasileiro Márcio-André. De acordo com o brasileiro, o neologismo consiste na expressão de uma realidade que se volta para dentro de si, criando sua própria Verdade. Ao observarmos o poema acima, a Verdade que nos traz é a de que, ao dobrar-se sobre suas unidades linguísticas, segmentando-as, cria suas equações estéticas, estas que não atendem à gramática normativa e se potencializam no choque pelo não usual.
Na primeira estrofe do poema, “a_barco/ b_arco/ c_erco / … de circo meu bem” dentre as vogais/ fonemas apartados do corpo da palavra/morfema, a única que atenderia à separação silábica tradicional seria a do primeiro verso. O poeta ilumina não apenas os aspectos da forma da expressão, mas também da forma do conteúdo.
A segmentação inusitada, separando os fonemas “a”, “b” e “c”, que não chegam a constituir unidades significativas, são elementos que se seguem no alfabeto e que, não aleatoriamente, são dispostas nos três primeiros versos do poema. Entretanto, as “coincidências” param por aqui, pois, nota-se que os fonemas não estão de fato desconectados, soltos em relação ao “corpo da palavra”. Elas estão conectadas por meio de um sinal gráfico chamado underline ou underscore, que marca a não descontinuidade dos segmentos. Com isso, direciona nosso olhar para a forma da expressão e para a forma do conteúdo dos signos que estruturam o poema. Poderíamos dizer que o uso desse sinal gráfico é um modo de trazer ao plano da enunciação as visibilidades que se ocultam normalmente na equação que compõe o signo linguístico.
Assim, o poema se abre à interação com o leitor no processo de construção da significação, como diz o sujeito do poema “com feitoria novo confete da confraria/ p_ética/ a_berta p_orta/ & o_utras a_rtérias/ m_otricidades…”. Movimentam-se, portanto, elementos aparentemente estanques dentro das unidades, aparentemente, indivisíveis.
Evidenciar a falácia do pretenso isomorfismo dos signos, enfatizando uma série de diferenças é, nas palavras de Deleuze,
[...] como se uma matéria intensa se liberasse – um continuum de variação: aqui, nos tensores interiores da língua; ali, nas tensões interiores de conteúdo. A ideia do menor intervalo não se estabelece entre figuras da mesma natureza, mas implica pelo menos a curva e a reta, o círculo e a tangente. Assiste-se a uma transformação de substâncias e a uma dissolução das formas, passagem ao limite ou fuga dos contornos, em benefícios das forças fluidas, dos fluxos, do ar, da luz, da matéria, que fazem com que um corpo ou uma palavra não se detenham em qualquer ponto preciso. Potência incorpórea dessa matéria intensa, potência material dessa língua (DELEUZE e GUATTARI 1995, p. 60-61, grifos nossos).
O que os autores de Mil platôs nos apontam na expressão do continuum da variação é o “intradoxo” de Elísio. Os sinais gráficos e a aparente segmentação em unidades que não têm significado mostra a potência do material da língua que não se aprisiona por meio do significado, o leitor que comporá sua própria significação junto ao poema redimensionará os limites daquele corpo que se fricciona ao seu. Desse modo, evidencia-se que a potência material da poética elisiana está em oscilar entre valores máximos e mínimos na equação estética, não necessariamente coincidindo com as unidades significativas, mas abrindo-se à plurissignificação.
“Ó de ceia das i_lhas” ou a ode às ilhas
Essa potência se observa ainda na primeira parte do livro, quando o poeta extrai os limites da significação de Odisseia, propondo um périplo pelas ilhas que compõem o arquipélago cabo-verdiano, variando entre os máximos e mínimos de significação, potencializando a expressão estética das variáveis que constituem aquele o povo. “Variando em U”, o poeta segue seu excurso entre as unidades mínimas e máximas que constituem a linguagem e a própria nação.
Num determinado ponto da circum-navegação, o sujeito dos poemas, travestido de herói épico, atém-se à ilha de São Nicolau, ou “são ni_colau” como intitula o poema. A mesa com que nos brinda o poeta para cearmos de sua viagem é um tanto indigesta e compartilhada indiretamente com Baltasar Lopes – escritor natural da ilha em questão e um dos principais claridosos a difundir e cristalizar os ideais de vínculo à terra. Lopes, em sua obra, não só finca os pés na terra, mas também realça a dimensão trágica que a aridez do local desempenha na vida dos sujeitos.
Essa dimensão trágica é a que Elísio retoma ao nos brindar, na revolução de um sol, ou seja, o tempo de quem conta as horas por meio de uma clepsidra de areia e comunga da intermitência do conteúdo do medidor de tempo, matéria que constitui o sujeito tanto física, quanto metafisicamente.
são ni_colau
as horas invadem-me o espírito
e conto uma a uma as ondas
no espraiar dos teus pés
as horas entram-me nas veias
são a capilaridade que fervilha
das angústias às alegrias
tudo o que me lacri_meja
no corpo de Nut tantas estrelas
e da clepsidra esva_indo
a areia que me resta! (ELÍSIO, 2011, p.28)
A tensão que o tempo equaciona nesse poema é a existência do próprio sujeito, a variação de uma vida em relação ao tempo. As horas que toma o corpo do sujeito, mostra a vitória de Chronos sobre seu irmão mais novo, Kairós. Ambos filhos de Zeus e responsáveis por contabilizar o tempo. O primeiro, mitologicamente, é o “ladrão” de futuro. No momento em que a areia passa pela clepsidra e se esvai, é o presente do sujeito que deixa de ser e impossibilita a existência do futuro desse sujeito. Já o outro, seria a dimensão qualitativa de tempo.
Enquanto há a tentativa de fixar o presente, segurar Kairos pelos cabelos, o sujeito mensura o tempo pela visualização de seu interlocutor na interação com a água do mar que se espraia entre os pés de seu interlocutor. No entanto, Chronos rouba-lhe a oportunidade da fixação eterna da satisfação. Oscila entre angústias e alegrias de quando as areias lhe preenchem a existência. Chronos rouba do sujeito a possibilidade da alegrias, pois aquilo que “lacri_meja”, é também o elemento que “da clepsidra esva_indo/ a areia que me resta!”. Observando a forma desses versos, na expressão das diferenças estabelecida por Elísio, o que temos é o limite das ações de verbos que se distendem para além do significado, denotando sua expressão também no plano da expressão.
O desalento telúrico de Elísio, que se dá por meio de sua clepsidra de areia, não se difere do desalento de Camilo Pessanha, em Clepsidra. Ambos sofrem com a passagem do tempo. No entanto, o que diferencia é a forma como o elemento que mensura o tempo constitui a subjetividade de cada um dos poetas. Numa doutrina de semelhanças (BENJAMIN, 1994), a areia que escoa na clepsidra é a mesma que constitui o sujeito do poema. Já a água para a Clepsidra de Pessanha é algo externo, apenas uma imagem de algo que se esvai, que escoa, lembrando-lhe de sua finitude. Uma reminiscência de um signo externo ao sujeito “Meus olhos, afogai-vos/ Na vã tristeza ambiente./ Caí e derramai-vos/ Como a água morrente” (PESSANHA, 2009, p. 69) ou “Imagens que passais pela retina/ Dos meus olhos, por que não vos fixais?/ Que passais como a água cristalina/ Por uma fonte para nunca mais!…” (idem, p. 80).
Uma noção de tempo diferente voltará nos versos da Ode à ilha de São Vicente, em “são vi_cente” (ELÍSIO, 2011, p. 33). O sujeito do poema diz “versejo-te como um vagabundo/ que ronda a cidade e mata a fome;” e segue “em qualquer esquina e canta/ (na boca da noite) esse hino/ que faz relinchar mulheres/ donas de um cio de chicotes/ vibra_dores & de_cotes:”. A fome a ser saciada neste poema é a do corpo do malandro, dos sujeitos que se apropriam da urbanidade a ilha mais plural para existir à margem da sociedade estabelecida. A passagem do tempo já não é a do desalento de quem se constitui pela areia, mas de quem se constitui pelo instante do gozo: “ó sedosa lua efémera/ ó la_pso de tempo/ ó la_pso de tento tentações…”
Se na clepsidra de areia o que vemos é o prolongamento do elemento que escoa, medindo a passagem do tempo, assim como escoa a vida do sujeito do poema, aqui, na ode a São Vicente, a rapidez típica das urbes é demonstrada pelo recorte de “lapso”. O tempo já não é mais escorregadio, é constituído por intermitências, lapso apreendido subjetivamente pelo sujeito do poema. Kairós é agarrado pelos cabelos e circunscrito ao poema.
Do confronto entre os dois poemas, percebe-se como o tempo varia em função do espaço. Um e outro se condicionam mutuamente, mas quem é o responsável pelo movimento inicial é o poeta, cujo olhar atento fixa os pontos que quer comunicar. Nos dois casos, o foco é a variação do tempo.
Agora, em relação ao espaço, nota-se como “f_ogo”, a ode à Ilha do Fogo, exalta as corporificações dos sujeitos, bem como da ilha:
f_ogo
unta-me nas partes ínfimas
& sejas a estação das frutas todas
en_sopado de ervas
e deixa que o meu corpo te responda
— à lenta carícia dessa outra mão —
ao unguento quente
ao sustento demorado
das lacres
no afã dos gemidos
o visco des_medido das nossas águas
o teres seios de vul_cânicos esteios
teus beijos
são o c_aos querendo o c_osmo
só podes ser floresta es_condida
só podes ser feitiço a estas horas
eu te per_corro a cada duna
— és só geo_grafia… (ELÍSIO, 2011, p.19)
O sujeito do poema explora a ilha como quem explora o corpo da amante. As mãos que percorrem as páginas do livro recebem as carícias de um corpo em convulsão, quente, na iminência da erupção do gozo. As formas eróticas que a ilha toma são apropriadas pelo sujeito do poema a fim de constituir a topologia dos corpos, descoberto pela avidez das mãos que partem do c_aos e almejam o c_osmo.
A ênfase, tanto na substância da palavra quanto na expressão, traz uma tentativa de (des)organizar os platôs da enunciação e do enunciado, recortando-os, inserindo fendas profundas, legando ao sujeito que lê o papel de (re)construir o mapa das sensações, já que “— és só geo_grafia…”, isto é, terra e escrita, aquilo que se sente, a partir dos pés fincados na areia e da escrita que a fixa na eternidade.
O que se fixa também é a sensualidade dos contornos. O mapa das sensações adquire nuances eróticas: “o teres seios de vul_cânicos esteios/ teus beijos” e o eu do poema, assim, convidam-nos, implicitamente, a percorrer com olhos e mãos a sensualidade do “f_ogo”, já que assim ele o faz: “eu te per_corro a cada duna”.
Como dizia Barthes, o prazer que decorre do texto é irredutível a seu funcionamento gramatical (fenotextual), como o prazer do corpo é irredutível à necessidade fisiológica. O prazer do texto é esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as mesmas ideias que eu” (BARTHES, p. 25). Assim, a cada corte e a cada ruptura proposta pelo poeta nas palavras nos detemos na sensualidade da palavra que se abre para nós e deixa entrever suas intimidades e nos permite brincar com a intimidade da linguagem que não se constrói na completude do poeta vate que constrói e organiza o mundo da totalidade.
Um fato curioso na organização dos poemas de Me_xendo no baú é o percurso do sujeito, que, desamparado pelas musas clássicas, busca experimentar o mundo a sua volta. Sempre que recorta os espaços, faz de modo erótico, como em “Ma_luada” e “ em_luada”. Nestes, os espaços a serem percorridos são o do corpo do próprio poema, revelando o erotismo presente na intermitência de planos da expressão e de planos do conteúdo que se amalgamam num sistema semiótico maior, o poema.
Os corpos que interagem no processo de leitura distendem-se e desdobram-se no gozo que flui das espacialidades, já que, na temporalidade, o que se observa é a uma tendência à melancolia e ao desalento. Isso fica bastante evidente na figura da clepsidra de areia. A imagem dos corpos de areia que resvalam e se friccionam às paredes do marcador temporal perde potência, perde vida, diferente da fixação de momentos bem específicos, como a noite de “são vi_cente”, ou o eterno presente de “f_ogo”.
O que se esconde sob o “U”
Ao mexer no baú de poemas, o poeta ao fim e ao cabo, encontra o U, u da utopia poética, de resistência, de variação de potência, bem como de variação do tempo em função do espaço. Esta variável, que muitas vezes é escolhida para descrever fenômenos físicos, evidencia o esforço do poeta em abrir sua criação à plurissignificação, em rachar as palavras e as coisas da mera representatividade. Não lhe interessa a relação direta e imediata entre o real e as palavras, bem como entre significados e significantes. Apresenta-nos, então, uma ruptura com as normatizações entre os elementos mínimos, dotados de significação e capazes de conter significados, relativizando, portanto, a noção de máximos e de mínimos, quando se trata da linguagem poética.
A conclusão a que se chega desse exercício criativo é a de que os contornos das palavras nãos são estanques, nem o valor. Toda a significação é dada pelo trânsito e com fronteiras formais fluidas. Algo típico do povo cabo-verdiano, enfatizado por Elísio por meio do underline / underscore. O elemento gráfico mostra a variação dos elementos que preenchem o vazio ou a determinação dos valores que estabilizam os sistemas dinâmicos da significação. A variação de potência de energia que os signos contêm e que se equilibra no movimento, na dinâmica.
O choque, pertinente à poesia moderna e contemporânea, aparentemente, poderia sugerir a criação de novas palavras. No entanto, o que se evidencia são os limites da significação. São as palavras dentro de palavras, são os signos dentro de signos, as significações dentro de significações que fazem um signo tornar-se um palimpsesto da história. Disso decorre a dinâmica do potencial criativo. É a energia-poética posta em movimento. “A segmentação (in)adequada” é o potencial criativo, por exemplo, que reelabora a Odisseia, em terras fragmentárias, evidenciando, assim, caminhos e (des)caminhos possíveis para sua produção. Elísio se alinha, portanto, ao que Friedrich lia em Rimbaud e em Mallarmé e vaticina acerca da poesia posterior:
Os dois caminhos da lírica futura constituem ainda uma unidade. A tensão insolvida. A tensão insolvida intensificar-se-á em Rimbaud, tornando-se uma dissonância absoluta, mas destruirá, com isso, toda ordem e coerência. Também Mallarmé aguçará a tensão e a transferirá, porém a outros temas, criando de novo uma ordem semelhante à de Baudelaire, referindo-a, porém, a uma nova linguagem, de sentido obscuro (FRIEDRICH, 1978, p. 39).
Restam nos interstícios das palavras, nos limites, as bordas que nos levam a perceber o mundo da criação de forma distinta, variação de potencial, como chamou a atenção Gomes. A matemática, a exatidão das metáforas, como chamaram a atenção os poetas malditos franceses e como ressaltou Friedrich, é percebida na precisão matemática da poesia de Elísio. Poesia que atua nos máximos e nos mínimos da significação.
Essas variações ocorrem também na função que o poeta baliza entre o espaço e o tempo. No primeiro eixo, há a fruição e o prazer. No segundo, há a oscilação entre a angústia e o desconcerto. A parábola do gráfico tangencia mais ou menos o desconcerto presente no texto, mas o espaço compensa.
O leitor-viajante que se lança pelos espaços cobertos e descobertos discursivamente pelo poema tem sua fonte de prazer descortinada pela viagem e pelo encontro, pela sobreposição de tempos e de espaços que involucram o fazer poético do cabo-verdiano. A poesia revela, assim, suas entranhas pensadas matematicamente. O encontro com histórias de outros viajantes que motivam a criação de Elísio, incluindo aí o grande Corsino Fortes, denota a equação derivada do fazer poético que consiste na expressão dos corpos que se cruzam por espaços conhecidos e desconhecidos. Já no eixo do tempo, resta o desalento, a U_topia do poema.
Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.
DELEUZE, Gilles. & GUATTARRI, Felix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. V. 2.
ELÍSIO, Filinto. Me_xendo no baú. Vasculhando o U. Lisboa: Letras Várias, 2011.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
GOMES, Simone Caputo. “A Poesia de Cabo-Verde: um trajeto identitário”. In: Cabo Verde – Literatura em Chão de Cultura. São Paulo: Ateliê editorial, 2008.
__________. Poesia cinética, Equação estética: a arte de Filinto Elísio. In: Diadorim, Rio de Janeiro, Volume 11, p. 247-259, Julho, 2012.
PESSANHA, Camilo. Clepsidra. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
1Doutor em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) na Universidade de São Paulo