DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS E A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO  MARCO TEMPORAL: UMA ANÁLISE A PARTIR DA AÇÃO POPULAR N. 3.388/RR

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10038803


Gustavo Araújo Salazar1;
Hugo de Oliveira Silva Filho2;
Maria Antônia Oliveira Martins3;
Heichon Cordeiro de Araújo4


RESUMO 

O trabalho em epígrafe tem como objetivo analisar e demonstrar como se deu o  julgamento da Ação Popular n° 3.388/RR (Terra Indígena Raposa Serra do Sol), a  qual teve como intuito impugnar o modelo de demarcação em área contínua daquelas  terras, tendo em vista ser considerado o ponto de partida para os debates a respeito  do marco temporal. Tal análise será realizada sempre à luz da Constituição Federal  de 1988, não deixando de levar em consideração, ainda, a Constituição Federal de  1934. Além disso, será exposto os principais aspectos dos votos proferidos pelos  Ministros do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso  Extraordinário n° 1017365, para que haja uma compreensão ampla a respeito do  marco temporal, bem como da atual posição adotada pela Suprema Corte brasileira. 

Palavras-chave: Povos indígenas. Demarcação de terras. Marco Temporal. 

ABSTRACT 

The aforementioned work aims to analyze and demonstrate how the judgment of  Popular Action No. 3.388/RR (Raposa Serra do Sol Indigenous Land) took place,  which aimed to challenge the model of demarcation in a continuous area of those  lands, taking into account in order to be considered the starting point for debates  regarding the time frame. Such analysis will always be carried out in light of the Federal  Constitution of 1988, while also taking into account the Federal Constitution of 1934.  Furthermore, the main aspects of the votes cast by the Ministers of the Federal  Supreme Court when judging the Appeal will be exposed. Extraordinary No. 1017365,  so that there is a broad understanding of the time frame, as well as the current position  adopted by the Brazilian Supreme Court. 

Keywords: Indian people. Land demarcation. Timeframe. 

1 INTRODUÇÃO 

Antes de efetivamente adentrar nas questões constitucionais relacionadas às  demarcações de terras indígenas e o marco temporal, é necessário que se conheça,  ainda que brevemente, o histórico dos povos originários no território brasileiro. É  importante destacar que desde o início do processo de colonização realizada pelos  portugueses, os povos originários das terras brasileiras e da América espanhola,  eram considerados seres inferiores, que viviam no passado.  

Partindo dessa premissa, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2016),  afirma que sobre os povos originários caiu-lhes o encargo de uma “pátria” que não  pediram, e que só lhes trouxe morte, doença, humilhação, escravidão e despossessão.  

Dentre as hipóteses aceitas a respeito da origem dos povos indígenas, pelo  Instituto Socioambiental – ISA e corroboradas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e  Estatística – IBGE, afirma-se que tais povos são provenientes da Ásia, entre 14 mil e  12 mil anos atrás, advindos por meio de um “subcontinente” chamado Beríngia, na  região do estreito de Bering, no extremo norte da Ásia.  

Observa-se ainda que, as informações que existem sobre o território brasileiro  antes da chegada dos portugueses se embasam em pesquisas arqueológicas, bem  como em relatos dos primeiros portugueses que chegaram ao país. Entretanto, pode se afirmar que já existiam povos que se organizavam e ocupavam o território brasileiro  desde antes de 1.500 e até hoje permanecem.  

Sabe-se ainda que em 1.500 os portugueses desembarcaram pela América,  com o objetivo de descobrir o que se denominou de “Novo Mundo”, tendo, assim, os  primeiros contatos com os nativos, designados pelos portugueses como “selvagens” e, posteriormente, indígenas.  

O historiador e professor brasileiro, Ronaldo Vainfas5 afirma que a história do  povoamento indígena no Brasil é, antes de tudo, uma história de despovoamento,  uma vez que a população nativa era estimada em cerca de milhões de pessoas em  meados do século XVI e hoje mal ultrapassam os 300 indivíduos.  

Diante disso, busca-se, na presente pesquisa, compreender e apresentar os  contornos constitucionais ou inconstitucionais das questões indígenas no Brasil,  sobretudo, relacionados às demarcações de terras à luz do julgamento do Marco  Temporal em curso no Supremo Tribunal Federal, que tem como ponto de partida o  julgamento da Petição/STF n° 3.388, a qual trata da demarcação da Terra Indígena  Raposa Serra do Sol. 

2 CONCEITO DE DEMARCAÇÃO E PROCESSO DEMARCATÓRIO DE TERRAS  INDÍGENAS NO BRASIL 

Antes de mais nada, é necessário entender que a concepção de território, em  seu aspecto amplo, é definido por Levon Boligian e pela Doutora Rosângela Doin6,  como um espaço das experiências vividas, onde as relações entre os atores, e destes  com a natureza, são relações baseadas pelo sentimentos, bem como pelo simbolismo  atribuídos àquele lugar. 

Ademais, as atividades desenvolvidas nesses espaços, isto é, no território,  garante identidade social/cultural aos habitantes destes. Essa conceituação é  necessária para que se entenda melhor como se dá o processo demarcatório das  terras indígenas, uma vez que permite compreender as relações, dinâmicas e  organização espacial dos povos originários com suas terras.  

O historiador Luís Fernando Laroque e a Doutora Fabiane Prestes, explicam  que:

O reconhecimento dos direitos originários aos tradicionais territórios  
pressupõe o direito de retomada de terras que façam sentido à cultura de  
determinado coletivo indígena e contenham traços de ancestralidade, por  
serem locais repletos de simbolismos (LAROQUE; PRESTES, 2021, p. 344) 

A partir disso, a demarcação de terras refere-se unicamente em delimitar o  espaço físico das terras pertencentes aos povos originários, com o intuito de garantir  seus direitos constitucionalmente previstos, bem como, sua autonomia, definindo a  real extensão da posse indígena e, como consequência imediata, garantir a  preservação desses territórios.  

Diante disso, a Constituição Federal de 1988 reconheceu quanto aos povos  indígenas, precisamente em seu artigo 231, o direito às terras tradicionalmente  ocupadas, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus  bens.  

É interessante rememorar que os direitos às terras tradicionalmente ocupadas  pelos povos indígenas já eram previstos na Constituição Federal de 1967, tratando se de bens da União, ao passo que a Emenda Constitucional 1969 garantiu aos  indígenas a sua posse permanente, bem como reconhecendo o direito ao usufruto  exclusivo sobre essas terras (BRASIL, 1969).  

Portanto, não se trata apenas de uma inovação da Assembleia Constituinte de  1988, reservando aos povos indígenas o Capítulo VIII da Carta Magna, trata-se de  um direito já constituído, possuindo, o ato de demarcação, natureza declaratória de  um direito adquirido.  

A responsabilidade pela demarcação de terras recai sobre a Fundação  Nacional do Índio (FUNAI), Órgão Federal indigenista oficial do Brasil, criado em  1967, cujo objetivo principal é a proteção e promoção dos direitos dos povos  indígenas.  

Com isso, o processo de demarcação a ser seguido pela FUNAI é  regulamentado pelo Decreto n° 1775/96, o qual apresenta as diretrizes do meio  administrativo para identificar e sinalizar os limites do território tradicionalmente  ocupado.  

Assim, as fases do procedimento consistem em: a) Estudos de identificação e  delimitação, a cargo da Funai; b) Contraditório administrativo; c) Declaração dos  limites, a cargo do Ministro da Justiça; d) Demarcação física, a cargo da Funai; e)  Levantamento fundiário de avaliação de benfeitorias implementadas pelos ocupantes  não índios, a cargo da Funai, realizado em conjunto com o cadastro dos ocupantes  não índios, a cargo do Incra; f) Homologação da demarcação, a cargo da Presidência  da República; g) Retirada de ocupantes não índios, com pagamento de benfeitorias  consideradas de boa-fé, a cargo da Funai, e reassentamento dos ocupantes não  índios que atendem ao perfil da reforma, a cargo do Incra; h) Registro das terras  indígenas na Secretaria de Patrimônio da União, a cargo da Funai; e i) Interdição de  áreas para a proteção de povos indígenas isolados, a cargo da FUNAI. 

Desse modo, observa-se que o processo de demarcação é burocrático e  moroso, demandando uma atenção especial da FUNAI, sobretudo aspectos relativos  a estudos técnicos a rigor de todas as determinações legais. 

Outrossim, durante esse lapso temporal entre o início dos estudos técnicos até  a homologação da demarcação, com a respectiva retirada de eventuais invasores, é  possível que surjam ações judiciais interpostas por aqueles que se consideram  prejudicados.  

Foi a partir de tais ações judiciais, em processos demarcatórios, que o  Supremo Tribunal Federal utilizou, pela primeira vez, no ano de 2009, a tese do Marco  Temporal para determinar a criação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no  estado de Roraima.  

3 DIREITO À DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS 

Realizada a conceituação de demarcação de terras indígenas e apresentado,  ainda que brevemente, as fases do procedimento de demarcação, é interessante  destacar que tal procedimento se desenvolve no âmbito administrativo e, em razão  disso, este tópico destina-se exclusivamente para analisar e explanar os direitos  indígenas postos como norma jurídica a luz da Constituição Federal, ou seja, uma  compreensão pelo viés constitucional a respeito do tema.  

Além disso, é interessante trazer para a presente pesquisa como o Brasil tem  se portado internacionalmente com relação aos direitos indígenas, sobretudo  mediante a compreensão da Convenção n° 169 da Organização Internacional do  Trabalho (OIT) que trata sobre os Povos Indígenas e Tribais, a qual foi aprovada no  Brasil pelo Decreto Legislativo n° 143, de junho de 2002. 

A Constituição Federal estabelece que as terras tradicionalmente ocupadas  pelos povos indígenas constituem bens da UNIÃO e só a ela compete legislar sobre  populações indígenas, conforme estabelecido no artigo 20, inciso XI e artigo 22, inciso  XIV (BRASIL, 1988).  

Além disso, a Carga Magna também preocupou-se com as manifestações  culturais dos povos originários, reconhecendo, em seu artigo 215, §1°, sua  organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos  originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.  

Assim é que a Lei Fundamental destina o capítulo VIII exclusivamente aos  índios, prevendo em seu artigo 231, caput e parágrafos que compete à União o  poder-dever de demarcar e proteger as terras tradicionalmente ocupadas pelos  indígenas, conforme transcrição literal, vejamos:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,  
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que  
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e  fazer respeitar todos os seus bens

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles  
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades  
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais  
necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e  
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. 

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua  
posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo,  
dos rios e dos lagos nelas existentes. (BRASIL, 1988) 

Desse modo, é possível extrair três fatores essenciais relativos às terras  indígenas, quais sejam: i) as terras indígenas pertencem à União; ii) aos povos  originários é reconhecido o direito de ocupá-las em caráter permanente; e, além disso,  iii) aos indígenas é reconhecido o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e  dos lagos nelas existentes.  

É necessário que se entenda que ao reconhecer o usufruto exclusivo aos  índios, a União ocupa a posição de nua proprietária, isto é, os indígenas detém o  domínio útil da coisa, detém o uso e gozo sobre suas terras, conforme estabelecido  Constitucionalmente, todavia, não poderão dispor de tais terras, uma vez que aos  povos originários é reconhecido apenas o direito a posse, permanecendo a  propriedade com a União.  

Em razão disso, relativamente ao domínio das terras indígenas, a Constituição  Federal asseverou a sua inalienabilidade e indisponibilidade, determinando,  ademais, a imprescritibilidade dos direitos que sobre elas recaem (artigo 231,  §4°).  

Veja-se então o conceito de posse indígena, em complemento das normas  constitucionais, apresentado pelo artigo 23, da Lei n° 6.001 de 1973 (Estatuto do  índio): 

art. 23. Considera-se posse do índio ou silvícola a ocupação efetiva da terra  
que, de acordo com os usos, costumes e tradições tribais, detém e onde 
habita ou exerce atividade indispensável à sua subsistência ou  
economicamente útil. (BRASIL, 1973) 

Diante disso, verifica-se que não se pode confundir a posse e o usufruto dos  índios sobre suas terras com os institutos civilistas, pois se está diante de posse e  usufruto tradicionais, institutos de Direito Constitucional (e não de Direito Civil). 

Nota-se que a terra indígena extrapola a esfera privada, não limitando seu uso  a simples exploração (mas também à sobrevivência física e cultural de um povo),  sendo possível concluir que o seu regramento fundiário não pode ser banalizado  pelos estritos ditames do Código Civil.  

Por essa razão, o conceito de “terras indígenas” deve ser interpretado de modo  a incluir o conceito de território indígena (abrangendo a totalidade das regiões que os  interessados ocupam/utilizam), é nesse sentido que estabelece os artigos 13 e 14, da  OIT n° 169.  

Assim sendo, o processo de demarcação de terras trata-se de um ato  declaratório da posse indígena, que serve para reconhecê-la e para garantir sua  proteção pelo Poder Público.  

Noutro giro, de modo semelhante ao estabelecido no artigo 67, dos Ato das  Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o Estatuto do Índio, em seu artigo  65, previu o prazo de 5 (cinco) anos, a contar de sua publicação, como o prazo  máximo para o Poder Executivo demarcar as terras indígenas ainda não demarcadas.  

Por fim, é preciso destacar que o Brasil já foi condenado em âmbito  internacional pela demora excessiva na demarcação de terras indígenas, nos termos  da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Povo  Xucuru e seus membros vs Brasil”7.  

Em decisão histórica para todos os indígenas do Brasil, foi reconhecido, pela  Corte Interamericana de Direitos Humanos, a responsabilidade internacional do  Estado brasileiro na violação aos Direitos de propriedade coletiva, garantia judicial de  um prazo razoável e proteção judicial em relação ao povo indígena Xukuru de  Ororubá.  

Portanto, em âmbito internacional, não seria visto com bons olhos, caso  sofresse outra condenação como a supramencionada, impondo ao Estado brasileiro  o dever de dar andamento e concluir, em prazo razoável, as demarcações ainda  pendentes.  

4 RAPOSA SERRA DO SOL  

Superado o entendimento jurídico a respeito das demarcações e seus  conceitos iniciais, é preciso que se entenda como se deu, ainda que brevemente, o  julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ponto essencial para a  compreensão do julgamento do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal, bem  como a posição adotada atualmente pela Suprema Corte. 

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol é uma área de terra indígena localizada  no estado de Roraima, no norte do Brasil, com área abrangente de aproximadamente  1,7 milhão de hectares e habitada por diversos grupos indígenas, incluindo os  Macuxi, Wapichana, Ingarikó, Patamona e Taurepang8.  

Outrossim, a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol foi um  processo longo e controverso que se iniciou com a Portaria n° 534/2005, do Ministério  da Justiça, a qual define os limites da terra indígena Raposa Serra do Sol. 

Diante disso, a Portaria em seu artigo 2°, determina a extensão da área de  reserva, bem como, em seu artigo 4°, as áreas e equipamentos excluídos da área  indígena protegida. Por fim, determina: 

Art. 5º É proibido o ingresso, o trânsito e a permanência de pessoas ou  
grupos de não índios dentro do perímetro ora especificado, ressalvadas a  
presença e a ação de autoridades federais, bem como a de particulares  
especialmente autorizados, desde que sua atividade não seja nociva,  
inconveniente ou danosa à vida, aos bens e ao processo de assistência aos  
índios.  

Parágrafo único. A extrusão dos ocupantes não-índios presentes na área  
da Terra Indígena Raposa Serra do Sol será realizada em prazo razoável,  
não superior a um ano, a partir da data de homologação da demarcação  
administrativa por decreto presidencial.  

Desse modo, a Portaria foi emitida em cumprimento à demarcação de terras  indígenas determinada pela Constituição Federal de 1988, que reconhece aos povos  indígenas o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam.  

Todavia, ante o surgimento deste ato normativo, Augusto Affonso Botelho, à  época Senador pelo estado de Roraima, no dia 20 de abril de 2005, ajuizou a Petição  3.388/RR. Objetivando que fosse reconhecida e decretada a inconstitucionalidade da  Portaria no 534/2005, o ex-senador elaborou a Ação Popular e a demandou em face  da União, em suma, alegando que: 

[…] o Decreto 534/05 contraria, às escâncaras, o princípio da razoabilidade,  
pois absolutiza o princípio da tutela do índio em detrimento de vários outros,  
como o da segurança jurídica, legalidade, do princípio federativo, do devido  
processo legal, do contraditório, dentre outros […](BRASIL, 2010, p. 21) 

No mérito, inicialmente, confrontou-se a demarcação contínua da Terra  Indígena Raposa do Sol, argumentando que a Portaria no 534 de 2005 possuía vícios  insanáveis advindos da Portaria nº 820/98, sendo eles contrários aos Decretos nº  22/91 e nº 1775/96.  

Ademais, expos que o processo de demarcação deixou de incluir, sem motivo,  determinadas pessoas e instituições ao procedimento demarcatório, como por  exemplo: os acadêmicos, os municípios com terras em área demarcada, os não índios agropecuários, os indígenas que não estava de acordo com a demarcação em  área contínua, entre outros. 

Noutro giro, arguiu que o laudo antropológico disponibilizado pela FUNAI teria  sido apenas uma representação de um lado anteriormente utilizado para fundamentar  outro tipo de demarcação sobre a mesma área, estando assinado por apenas uma  antropólogo, o que, na sua visão, poderia ser entendido como parcialidade no  procedimento e, portanto, deflagrada a nulidade do documento.  

Liminarmente, foi requerido ao judiciário que os efeitos da Portaria fossem  suspensos, assim como os efeitos da homologação realizada via Decreto Presidencial  do dia 15 de outubro de 2005. Foi requerido ainda que, em eventuais Portarias que  viesse a intentar contra o andamento judicial das ações referentes a demarcação da  Terra Indígena Raposa Serra do Sol, essa fosse do mesmo modo suspensa em  caráter liminar. 

Todavia, no dia 02 de maio de 2005, por meio do Relator Ministro Carlos Ayres  Britto, foi proferida a decisão monocrática que indeferiu o pedido liminar, o que  resultou na interposição do Agravo regimental na Petição 3.388-4. O Plenário, no dia  06 de abril de 2006, assim como sustentado pelo Min. Relator, por unanimidade dos  votos, confirmou a decisão que indeferiu a liminar, negando provimento ao agravo  regimental. 

Ao defender os povos indígenas, o assessor jurídico do Conselho Indigenista  Missionário (CIMI) explica que a ação popular em confronto defende uma demarcação  de terra picotada, não contínua, com áreas urbanas e de fronteiras. Além disso,  explica que as demarcações de terras indígenas não podem ser feitas de forma a  restringir a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes  no solo, nos rios e nos lagos. Defendendo, por fim, que a concepção de demarcação  em “ilhas” é inconstitucional.  

Em análise pelo Supremo Tribunal Federal, decidiu que a terra indígena objeto  de discussão terá demarcação contínua e deverá ser deixada pelos produtores rurais  que a ocupam. Ainda, a Suprema Corte estabeleceu 19 condicionantes propostas  pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito para regular a situação dos territórios da  União.  

Todavia, é necessário pontuar que as 19 condicionantes impostas para que se  aprove a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol não se estendem, formal  e automaticamente, a outros processos demarcatórios de reservas indígenas,  conforme destaca o ex-Advogado Geral da União, ministro Luís Inácio Adams.  

De saída, é necessário esclarecer que o maior e mais impactante das  definições não está presente no estabelecimento de tais condicionantes para que haja  a demarcação de terras indígenas. O escopo da decisão está em definir, ou não, um  marco temporal para o reconhecimento das terras ocupadas pelos povos indígenas,  qual seja, o dia 05.10.1988, quando da promulgação da Constituição.  

5 MARCO TEMPORAL 

Até aqui, é possível observar que o caso da Terra Indígena Raposa Serra do  Sol, melhor destacado no tópico anterior, apresenta-se como o mais importante sobre  a temática na história constitucional recente. Isto porque o julgamento destaca  aspectos relevantes para a conformação constitucional do tema, tais como o reconhecimento da proteção dos povos originários, independentemente de processo  de aculturação, bem como o caráter originário dos direitos sobre a terra e a  legitimidade do modelo contínuo de demarcação. 

É interessante pontuar que no caso Raposa Serra do Sol, ao reconhecer a  delimitação e a demarcação contínua de uma terra indígena, não houve a aplicação  da tese do Marco Temporal pela Suprema Corte naquela ocasião, isto é, não se  considerou o critério temporal proposto pelo Marco Temporal.  

Nesse sentido, a decisão do Supremo, naquele caso, fora mais favorável aos  direitos indígenas e contrária a tese, fortalecendo os argumentos dos movimentos  indígenas em defesa de seus direitos territoriais. Todavia, em que pese seja  considerada precedente à proteção dos direitos indígenas, tal entendimento não é  automaticamente aplicado a todos os casos de demarcação, tendo em vista que cada  caso de demarcação é analisado individualmente, levando em consideração suas  particularidades e contexto específico.  

Para o professor José Afonso da Silva, o marco temporal de ocupação de  terras indígenas é um dos conceitos questionáveis estabelecidos pelo acórdão  proferido no processo da Pet. 3.388/RR sobre as Terras Indígenas Raposa Serra do  Sol, questionável em primeiro lugar porque fixado posteriormente de modo arbitrário  como sendo a data da promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988.  Questionável também por ter dado ao conceito uma dimensão normativa com  aplicação geral a todos os casos de ocupação de terras indigenas9.  

De acordo com o Supremo Tribunal Federal, o marco temporal é uma tese  jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras  que ocupavam ou já disputaram na data da promulgação da Constituição de 1988.  Ela contrapõe a teoria do indigenato, segundo a qual o direito dos povos indígenas  sobre as terras tradicionalmente ocupadas é anterior à criação do Estado brasileiro,  cabendo a este apenas demarcar e declarar os limites territoriais.10 

O Marco temporal contrapõe o indigenato na medida que este, em síntese,  defende que os povos originários têm direito às terras que tradicionalmente  ocuparam, independentemente de quando essa ocupação tenha ocorrido. Veja-se  que a teoria do indigenato tem por fundamento o reconhecimento da ancestralidade  e da relação histórica dos povos indígenas com as terras brasileiras.  

É interessante destacar que Caroline Barbosa Contente e Débora Silva  Massulo11 explicam que a teoria do indigenato considera o direito dos indígenas sobre  as terras tradicionalmente ocupadas como um direito inato, congênito, sendo anterior  à própria criação do Estado brasileiro, a quem caberia tão somente demarcar e  declarar os limites territoriais. Utiliza o conceito de posse permanente, sendo  declaratória. 

Noutro giro, no bojo do julgamento da TI Raposa Serra do Sol (Pet. 3.388/RR),  é debatido a teoria do fato indígena, defendida pelo Ministro Relator Carlos Ayres  Brito que a Constituição trabalhou com data certa (sua promulgação) como referencial  insubstituível para o reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas pelos  indígenas, conforme sustenta o Relator: 

Marco objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma  
pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência  
temporal de ocupação de área indígena. Mesmo que essa referência  
estivesse grafada em Constituição anterior. É exprimir: a data de verificação  
do fato em si da ocupação fundiária é o dia 5 de outubro de 1988, e nenhum  
outro. Com o que se evita, a um só tempo: a) a fraude da subitânea  
proliferação de aldeias, inclusive mediante o recrutamento de índios de  
outras regiões do Brasil, quando não de outros países vizinhos, sob o único  
propósito de artificializar a expansão dos lindes da demarcação; b) a  
violência da expulsão de índios para descaracterizar a tradicionalidade da  
posse das suas terras, à data da vigente Constituição. Numa palavra, o entrar  
em vigor da nova Lei Fundamental Brasileira é a chapa radiográfica da  
questão indígena nesse delicado tema da ocupação das terras a demarcar  
pela União para a posse permanente e usufruto exclusivo dessa ou daquela  
etnia aborígine. Exclusivo uso e fruição (usufruto é isso, conforme Pontes de  
Miranda) quanto às “riquezas do solo, dos rios e dos lagos” existentes na  área objeto de precisa demarcação (§ 2o do art. 231), devido a que “os  
recursos minerais, inclusive os do subsolo”, já fazem parte de uma outra  
categoria de “bens da União” (inciso IX do art. 20 da CF); (BRASIL, 2010, p.  
137-138). 

Diante disso, o fato indígena partiria de duas premissas básicas: i) a ocupação  como um fato a ser verificado em 5 de outubro de 1988, em caráter permanente; ii) o  modo tradicional de ocupação a assegurar determinado modo de vida, quanto a  fatores econômicos, ecológicos, culturais e demográficos.  

Como lembra o jurista José Afonso da Silva, o objetivo do marco temporal não  é proteger os direitos dos índios, mas dar fim às disputas sobre terras não pelo  cumprimento de regra constitucional, mediante coibição e repressão aos  usurpadores, mas pela cassação dos direitos dos índios sobre elas.  

Dentre os principais defensores da tese em estudo estão os ruralistas,  empresários e membros do governo que consideram que a demarcação após o ano  de 1988 é prejudicial ao desenvolvimento econômico e a exploração de recursos  naturais no país. Além disso, defendem que o marco temporal tem como base a  segurança jurídica, sob o fundamento de que é preciso estabelecer critérios claros  para evitar conflitos e incertezas legais.  

Todavia, o argumento de que o marco temporal garante segurança jurídica e  evita conflitos sobre as terras não se sustenta, uma vez que, mesmo terras  homologadas, há intensos conflitos entre indígenas e não indígenas, em especial  invasores que utilizam das riquezas naturais das terras indígenas para explorar seus  recursos minerais, em especial, ouro, como ocorre nas terras indígenas Apyterewa  (homologada em 2007) e Trincheira Bacajá (homologada em 1996), localizadas entre  os municípios de São Félix do Xingu, Altamira, Anapú e Senador José Porfírio, no  Estado do Pará.  

Portanto, não basta que haja apenas a homologação das terras indígenas,  declarando-as como território de determinada tribo indigena, é necessário que haja  constante fiscalização e, se necessário, operações de desintrusão em terras já  homologadas, a fim de promover a retirada de não indígenas que ocupam  irregularmente parte destas terras.  

Com base nas explanações realizadas no tópico em epígrafe a respeito do  conceito e teorias a relativas ao marco temporal, passa-se a analisar os argumentos/votos explanados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, quando  do julgamento da tese no dia 21 de setembro de 2023 a luz da Constituição Federal  de 1988. 

Ademais, será objeto de análise o voto dos Ministros Nunes Marques e André  Mendonça, proferidos no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) n° 1017365, de  relatoria do Min. Edson Fachin (STF), de origem do estado de Santa Catarina, isto  porque foram os dois votos vencidos, quando do julgamento do Marco Temporal, os  quais tinham como objetivo validar o uso da tese como requisito objetivo para a  concessão das áreas ao uso indígena.  

Serão objeto de análise para uma compreensão ampla a respeito do tema,  considerando os aspectos constitucionais e inconstitucionais defendidos pelos  ministros da Suprema Corte.  

Por fim, registra-se que o recurso em análise tem repercussão geral (Tema  1.031) e servirá de parâmetro para a resolução de, pelo menos, 82 casos semelhantes  que estão sobrestados, como explica o Supremo Tribunal Federal12, o que ocasiona  uma análise mais detalhada sobre o feito.  

5.1 Constitucionalidade  

O julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal encontrava-se  suspenso desde o ano de 2021, com dois dos votos já proferidos, sendo eles do  Ministro Relator Edson Fachin e Ministro Nunes Marques, e foi retomado no dia 7 de  junho do ano de 2023. 

Destaca-se que este tópico destina-se a analisar os aspectos constitucionais  dos votos proferidos pelos ministros Nunes Marques e André Mendonça, tendo em  vistas que foram os únicos ministros que votaram a favor da tese. Além disso, serão  analisados de forma conjunta em razão da semelhança entre as teses defendidas  pelos ministros.  

Portanto, em que pese o Ministro Nunes Marques ter sido o segundo a proferir  seu voto, desde o início do julgamento, sucedendo o voto do Ministro Relator Edson,  ressalta-se que o voto do ministro relator será objeto de análise no tópico seguinte  para fins didáticos.  

Abrindo divergência com o voto do relator, o Min. Nunes Marques apresentou  seu voto no dia 15 de setembro de 2021, com entendimento favorável à tese do marco  temporal. Em síntese, o ministro em seu voto considerou que a data da promulgação  da Constituição Federal (5/10/1988) deve ser adotada como marco temporal para  definição da ocupação tradicional da terra por indígenas.  

Ao apresentar sua divergência, Nunes Marques considera que a adoção de um  marco temporal é a solução que melhor concilia os interesses do país e os dos  indígenas. De acordo com o ministro, o marco temporal já vem sendo aplicado em  diversos casos e uma revisão jurisprudencial causaria inseguranças jurídicas e,  consequentemente, o retorno de conflito fundiário.  

Dentre os argumentos apresentados pelo ministro para defender que caso não  aprovado ocasionaria uma insegurança jurídica, explica que a posse tradicional não  deve ser confundida com a posse imemorial, explanando que há necessidade de uma  comprovação de que a área já estava ocupada pelos povos originários na data da  promulgação da Constituição ou, ainda, que tenha sido objeto de esbulho, ou seja,  que os indígenas tenham sido expulsos em decorrência de conflito pela posse.  

Nesse ponto do voto, é interessante lembrar que o que constitui direito sobre  a terra indígena é o vínculo tradicional à ela. Significa dizer que a Constituição Federal  não estabeleceu limite temporal para o início da ocupação tradicional, mas  desvinculou o direito das comunidades indígenas da perspectiva arqueológica e da  linearidade temporal, não exigindo para o reconhecimento do direito territorial uma  posse imemorial ou datada, e sim a tradicionalidade do seu uso. A isso, em  Antropologia, chama-se “territorialização”. (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998). 

De modo semelhante, o indigenista especializado da Coordenação Regional  da FUNAI de Dourados, Crizantho Alves Fialho Neto13, explica que a posse da terra  indígena é diferente. Não é a mesma posse que o fazendeiro tem de sua propriedade  rural. Não é a posse definida pelo direito civil. Ela é uma posse constitucional. O  elemento central do argumento é que ela já existe e o Estado só reconhece.  

Outro ponto que merece destaque no voto do ministro é que, em seu  entendimento, o prazo de 5 (cinco) anos, estabelecido no Ato das Disposições  Constitucionais Transitórias (ADCT), para que a União efetuasse a demarcação das  terras, o poder constituinte originário demonstrou a intenção de estabelecer um marco  temporal preciso para definir os espaços físicos que ficariam sob exclusivo usufruto  indígena.  

Nesses termos, vota o ministro pelo desprovimento do RE 101365, em razão  de considerar não ter sido comprovada a ocupação tradicional em 5/10/1988, no caso  concreto, que diz respeito a reintegração de posse requerida pela Fundação do Meio  Ambiente do Estado de Santa Catarina (FATMA), localizada em parte da Reserva  Biológica do Sassafrás (SC).  

Por seu turno, em voto-vista, o Ministro André Mendonça segue as teses  defendidas pelo Min. Nunes Marques, com enfoque na insegurança jurídica  defendendo que o Supremo não pode, 14 anos depois, alterar o entendimento fixado  no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, ocasião em que se entendeu pelo marco  temporal.  

Em seu voto, André Mendonça destacou que os laudos antropológicos são  necessários para o reconhecimento da tradicionalidade das terras, no entanto,  conforme vota o ministro, é preciso ouvir especialistas de outras áreas, como  geógrafos, sociólogos e economistas.  

Assim, ao analisar os votos apresentados pelos ministros Nunes Marques e  André Mendonça, é possível concluir que suas análises se dão apenas com base na  Constituição Federal de 1988, sem considerar a Constituição de 1934, a qual inaugura  a proteção constitucional das terras indígenas.  

Além disso, é muito debatido pelos ministros a aplicação do entendimento no  caso da TI Raposa Serra do Sol, sustentando que, havendo mudança jurisprudencial  pela Suprema Corte ocasionaria em insegurança jurídica para o país, sob pena de  promover ainda mais conflitos entre indígenas e não indígenas.  

Todavia, para alguns Procuradores da República (MPF) a interpretação mais  detalhada do caso da TI Raposa Serra do Sol demonstra que o STF nem para aquele  caso aplicou um marco rigoroso e absoluto em 1988, isto porque, para os  procuradores, bastaria que os indígenas não estivessem naquela área em 1988 para  se desqualificar a tradicionalidade da área e sua própria demarcação teria sido  desconstituída (BIGONHA et al., 2018).  

De modo semelhante ao que foi exposto no presente tópico, passa-se a análise  dos principais aspectos inconstitucionais do marco temporal defendido pelos ministros do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Recurso Extraordinário (RE)  n° 1017365.  

5.2 Inconstitucionalidade 

O ministro relator do RE n° 1017365, Edson Fachin, abriu a sessão de  julgamento, no dia 9/09/2021 afirmando que a data da promulgação da Constituição  Federal não pode ser considerada como marco temporal para a aferição dos direitos  possessórios indígenas sobre a terra.  

Ao apresentar seu voto, o ministro relator argumentou que estabelecer um  marco temporal para a demarcação de terras indígenas é desconsiderar a  classificação dos direitos indígenas como fundamentais, ou seja, cláusulas pétreas  que não podem ser suprimidas por emendas à Constituição.  

Com relação a este ponto do voto, é interessante destacar que o direito às  terras indígenas assegurado pelo art. 231, da Constituição Federal de 1988, como  demonstrado no tópico 3 do presente artigo, garante aos povos originários além da  simples moradia, mas a dignidade de suas vidas. É por meio da posse sobre suas  terras que desenvolvem plenamente sua noção de bem viver, sua cosmologia e sua  organização social, que, por vezes, dá sentido ao mundo e à própria vida.  

Para o Procurador Regional da República Daniel Sarmento, essas  características que ligam os indígenas visceralmente às suas terras permitem  equiparar os direitos territoriais indígenas às garantias fundamentais. Explica ainda  que, por serem garantias fundamentais, permite com que os direitos territoriais desses  povos sejam protegidos pelos limites ao poder de reforma constitucional por  constituírem cláusulas pétreas (SARMENTO, 2013). 

Outrossim, para a advogada mestre em Teoria do Estado e Direito  Constitucional Carolina Ribeiro Santana: 

A mutação constitucional trazida pela tese do marco temporal desnatura o  
direito fundamental previsto no artigo 231 da Constituição, impedindo o gozo  
pelos povos indígenas do usufruto exclusivo de suas terras tradicionais e, por  
consequência, nega-lhes a uma vida digna. A jurisdição constitucional deve  
fiscalizar os limites impostos às maiorias, posto que é núcleo basal da nossa  
lei maior a construção de uma sociedade justa e igualitária (SANTANA, p.  
465, 466, 2018).

Noutro giro, o Min. Relator Edson Fachin afastou a tese de que as  condicionantes fixadas, quando do julgamento da TI Raposa Serra do Sol, deveriam  ser aplicadas às demais controvérsias sobre o tema. Destacou em seu voto que, ao  apreciar os embargos de declaração daquele caso, o Plenário do STF assentou a  impossibilidade de atribuição de efeitos vinculantes ao entendimento firmado. A  análise dos embargos coube ao ministro Roberto Barroso14, que assim se pronunciou:

A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se  
estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta  
matéria similar. Sem prejuízo disso, o acórdão embargado ostenta a força  
moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que  
decorre de um elevado ônus argumentativo nos casos em que se cogite da  
superação de suas razões. (BRASIL, STF, 2013). 

Desse modo, é preciso observar que os dois votos proferidos, favoráveis à tese  do marco temporal, isto é, os votos dos Min. Nunes Marques e Min. André Mendonça,  já objeto de análise por esta pesquisa, baseiam-se nas condicionantes fixadas no  caso da TI Raposa Serra do Sol, sob o argumento de que, caso haja mudança de  entendimento pela Suprema Corte, ocasione em inseguranças jurídicas. Todavia,  conforme fixado por meio de Embargos de Declaração, aquelas condicionantes não  possuem força vinculante e não ensejam aplicação automática em todos os  processos de demarcação.  

Entendemos, na presente pesquisa, que, se fixadas com força vinculante,  processos demarcatórios já homologados seriam objetos de ações judiciais para  revisão, o que de fato ocasionaria em insegurança jurídica e, pior, desencadearia  possíveis conflitos entre não indígenas e indígenas por disputas territoriais. 

Por seu turno, com a retomada do julgamento em junho de 2023, sendo o  terceiro ministro a proferir seu voto, o Min. Alexandre de Moraes seguiu o voto do  relator do recurso e afirmou ainda que não se pode fechar os olhos para os  agricultores que têm suas terras, sugerindo que, em havendo disputa por terras  ocupadas por indígenas, os não-indígenas devem ser indenizado por benfeitorias  realizadas de boa-fé, como previsto na Carta Magna. 

Com relação a eventuais indenizações de não-indígenas ocupantes de boa-fé  em terras indígenas não é o objeto da presente pesquisa, no entanto, há de se  observar que a discussão apresentada pelo Min. Alexandre de Moraes abre margem  para novos julgamentos a serem enfrentados pelo Supremo Tribunal Federal, tendo  em vista que, no mundo das possibilidades, agricultores e empresários acionaram a  justiça para que se reconheça sua boa-fé em ocupar aquelas terras e requerer  indenizações para o Estado brasileiro.  

Diante disso, em decisão acertada, a Suprema Corte brasileira, no dia 21 de  setembro de 2023 derrubou a tese do marco temporal para a demarcação de terras  indígenas. Por 9 votos a 2, o Plenário decidiu que a data da promulgação da  Constituição Federal (5/10/1988) não pode ser utilizada para definir a ocupação  tradicional da terra por suas comunidades.  

Votaram a favor do marco temporal, os ministros: Nunes Marques e André  Mendonça e, contrários a tese, seguindo o voto do relator do RE n°1017365, Edson  Fachin, votam Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux,  Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber.  

A decisão do julgado possui repercussão geral (Tema 1.031) e passará a servir  de parâmetro para a resolução de, pelo menos, 226 casos semelhantes que estão  suspensos à espera dessa definição, conforme explica o Supremo Tribunal Federal15.  

De saída, entendemos trata-se de decisão acertada enfrentada pela Suprema  Corte, tendo em vista que, conforme demonstrado ao longo de toda a pesquisa, o  marco temporal priva, claramente, os indígenas de seus direitos territoriais, uma vez  que são direitos adquiridos e vem sendo assegurados pelo Estado com base em  estritas normativas previstas na Constituição Federal, além de atos normativos  complementares que regulam a matéria, tais como o Decreto n. 1.775/1996 e  Portaria/MJ n.14/1996, brevemente mencionados ao longo do estudo.  

Portanto, qualquer inovação apresentada pelo Supremo Tribunal Federal,  nesse momento, significa nada mais do que violar a segurança jurídica garantida aos  povos indígenas, a qual vem sendo frequentemente afrontada, desde suas  conquistas.  

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Por todo o exposto e pela conclusão do julgamento do Recurso Extraordinário  n° 1017365, concluí-se que não basta apenas reafirmar e declarar o direitos indígenas  previstos na Constituição Federal 1988, é necessário que os órgãos de fiscalização  estejam empenhados para que esses direitos não sejam suprimidos ou relativizados.  

Ademais, há de se concluir que o Brasil está em mora na concretização dos  direitos indígenas, não por falta de norma para que seja cumprida, pois há, como  demonstrado, mas por omissão do poder estatal para que faça valer esses direitos. É  honroso para o Brasil que a Constituição Federal vigente tenha destinado um capítulo  especial para os direitos indígenas, demonstrando ser uma República democrática,  com o cuidado multicultural para com o seu povo.  

Todavia, conforme demonstrado ao longo de toda a pesquisa, é preciso que  haja um avanço substancial com relação aos direitos indígenas, considerando o  histórico de violações de seus direitos, somente dessa forma poderemos falar em  segurança jurídica. 


5 Ronaldo Vainfas. 500 anos de despovoamento. Rio de Janeiro, 2007;
6Levon Boligian. A transposição didática do conceito de território no ensino de Geografia.  Disponível em:<https://repositorio.unesp.br/server/api/core/bitstreams/6c457d28-c3c2-4269-a84e 1e3a3f160d4f/content>. Acesso em: 7 out. 2023;
7Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_346_por.pdf>. Acesso em 8  out.2023;
8 Portaria n°. 534, de 13 de Abril de 2005;
9Manifestação do professor José Afonso da Silva feita em parecer que responde a consulta formulada  por Manuela Carneiro da Cunha, Samuel Rodrigues Barbosa, Associação Juízes pela Democracia,  Centro de Trabalho Indigenista, Instituto Socioambiental, Organização Índio É Nós e Centro de Estudos  Ameríndios da USP. Disponível em:  <https://mobilizacaonacionalindigena.files.wordpress.com/2016/05/parecer-jusc3a9-afonso-marcotemporal_.pdf>. Acesso em: 4 out. 2023;
10Supremo Tribunal Federal. Marco Temporal das terras indígenas: quatro ministros são contra a tese  e dois a favor. 31 ago.2023. Disponível em:  <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=513247&ori=1>. Acesso em: 4  out. 2023.
11A teoria do indigenato vs. teoria do fato indígena (marco temporal): breve análise desde a perspectiva  do colonialismo interno. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/a-teoria-do-indigenato vs-teoria-do-fato-indigena-marco-temporal-breve-analise-desde-a-perspectiva-do-colonialismo-interno > Acesso em: 06 out. 2023;
12 Supremo Tribunal Federal. Marco Temporal: para ministro Nunes Marques, data de promulgação da  Constituição define ocupação tradicional. Disponível em:  <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=473051&ori=1 > Acesso em: 07  out. 2023;
13 Disponível em: <https://terrasindigenas.org.br/pt-br/noticia/180113> Acesso em: 07 out. 2023;
14(Pet 3388 ED, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 23/10/2013,  ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-023 DIVULG 03-02-2014 PUBLIC 04-02-2014 RTJ VOL-00227-01 PP 00057);
15 Supremo Tribunal Federal. STF derruba tese do marco temporal para demarcação de terras  indígenas. Disponível  em:<https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=514552&ori=1>. Acesso em 9  outr. 2023.


REFERÊNCIAS: 

BOLIGIAN, Levon. A transposição didática do conceito de território no ensino de  Geografia. Rio Claro: [s.n], 2003. Disponível  em:<https://repositorio.unesp.br/server/api/core/bitstreams/6c457d28-c3c2-4269- a84e-1e3a3f160d4f/content>. Acesso em: 7 out. 2023. 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.  Brasília, DF. Disponível em:  <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em:  13 out. 2023. 

BRASIL. Decreto n° 1.775 de 8 de janeiro de 1996. Dispõe sobre o procedimento  administrativo de demarcação das terras indígenas e dá outras providências. Brasília,  DF. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1775.htm>.  Acesso em 13 out. 2023. 

BRASIL. Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do índio.  Brasília, DF. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm>.  Acesso em: 10 out. 2023. 

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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Caso Raposa Serra do Sol. Buscador Dizer o  Direito, Manaus. Disponível em: <  https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/7a614fd06c32549 9f1680b9896beedeb>. Acesso em 9 out. 2023. 

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Cunha, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania/Manuela  Carneiro da Cunha. – 1ª ed. – São Paulo: Claro Enigma, 2012.

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Laroque, Luís Fernado da Silva.; Prestes, Fabiane da Silva. Demarcação de terras  indígenas no Brasil: avanços, desafios e retrocessos. Ebook: América Latina em  perspectiva [recurso eletrônico]: análise da escalada do autoritarismo e  neoliberalismo sobre o agrário no século XXI / Émerson Neves da Silva (Org.). – Passo  Fundo: Acervus Editora, 2021.  

Marco Temporal: para ministro Nunes Marques, data de promulgação da  Constituição define ocupação tradicional. Supremo Tribunal Federal, 2021.  Disponível em:  <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=473051&ori=1> Acesso em: 7 out. 2023. 

Nogueira, Caroline Barbosa Contente.; Massulo, Débora Silva. A Teoria do  Indigenato vs Teoria do Fato Indígena (Marco Temporal): Breve análise desde a  perspectiva do colonialismo interno. Empório do direito, 2019. Disponível  em:<https://emporiododireito.com.br/leitura/a-teoria-do-indigenato-vs-teoria-do-fatoindigena-marco-temporal-breve-analise-desde-a-perspectiva-do-colonialismo interno>. Acesso em: 10 out. 2023. 

PACHECO DE OLIVEIRA, João. Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e  saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contracapa, 1998. Petição n. 3.388/RR. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Brasília, 19 de março de  2009. Diário da Justiça Eletrônico, 1° jul. 2010. 

SARMENTO, Daniel. A PEC 215/00 e as cláusulas pétreas. Rio de Janeiro, 2013. SILVA, José Afonso da. Parecer. Disponível  em:<https://www.conjur.com.br/dl/parecer-oab-jose-afonso-silva.pdf>. Acesso em: 11  set. 2023.


1Graduando em Direito pela Faculdade de Ensino Superior da Amazônia Reunida – FESAR/AFYA.  E-mail: Salazar.adv@outlook.com.br; 
2Graduando em Direito pela Faculdade de Ensino Superior da Amazônia Reunida – FESAR/AFYA.  E-mail: hugof0001@hotmail.com; 
3Graduanda em Direito pela Faculdade de Ensino Superior da Amazônia Reunida – FESAR/AFYA.  E-mail: mariahmartins.300@hotmail.com; 
4Graduado em Direito pela Universidade de Gurupi, pós-graduado em Direito Processual Penal pela  Faculdade Damásio de Jesus. Mestrando em Criminologia pela Universidade Lusíada, Porto – Portugal. E-mail: heichon@hotmail.com