DELIRIUM DA PESSOA COM DOENÇA ONCOLÓGICA EM SITUAÇÃO PALIATIVA: REFLEXÃO SOBRE A TOMADA DE DECISÃO EM ENFERMAGEM

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11185300


Ana Beatriz Gomes Dias*;
Patrícia Vinheiras Alves**.


Resumo

Introdução

Os avanços no tratamento do cancro levaram a que a pessoa com doença oncológica pudesse viver mais tempo. Contudo, esta, no decurso da sua trajetória de doença, poderá experienciar diversos problemas. O delirium é uma das síndromes que frequentemente a pessoa com doença oncológica em situação paliativa apresenta. Este é clinicamente importante e gerador de sofrimento e angústia para clientes, familiares e profissionais de saúde. Porém, ainda é pouco reconhecido e subdiagnosticado pelos profissionais de saúde, o que põe em causa o julgamento clínico feito pelos enfermeiros e o seu processo de tomada de decisão.

Objetivo

Refletir, com base na evidência científica, sobre a prevenção e controlo do delirium da pessoa com doença oncológica em situação paliativa na perspetiva da tomada de decisão em enfermagem.

Métodos

Trata-se de uma reflexão teórica sobre a revisão bibliográfica efetuada, que engloba a análise e a discussão concetual da tomada de decisão em enfermagem no que se refere ao delirium da pessoa com doença oncológica em situação paliativa.

Desenvolvimento

Ao longo do tempo foram surgindo modelos que refletem o modo como os enfermeiros pensam na prática. Um deles foi o modelo de julgamento clínico em enfermagem de Tanner, que apresenta semelhanças com o processo de enfermagem. A falta de reconhecimento do delirium e o seu subdiagnóstico por parte dos enfermeiros deve-se à dificuldade que estes têm em concretizar as duas primeiras etapas deste modelo.

Conclusão

Para que o enfermeiro previna, detete precocemente e controle o delirium é necessário que este adquira competências para a tomada de decisão.

Palavras-chave

Delírio; Cuidados Paliativos; Enfermagem Oncológica; Tomada de Decisão Clínica

Introdução

As doenças oncológicas representam um dos maiores desafios da sociedade moderna. Segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde, realizadas pela International Agency for Research on Cancer, uma em cada cinco pessoas em todo mundo terá uma doença oncológica.1 Os avanços no tratamento do cancro levaram a que a trajetória da doença e o seu prognóstico mudassem e que as pessoas diagnosticadas com cancro avançado pudessem viver por um período relativamente longo.2 Estas, no decurso desse tempo, irão experienciar diversos problemas de natureza física, psicológica, emocional e de ordem prática, pelo que a manutenção da qualidade de vida constituirá um dos principais objetivos do cuidado.2-3

O delirium é uma das síndromes que frequentemente a pessoa com doença oncológica em situação paliativa apresenta. A sua prevalência varia de 28% a 85% nesta população.4 O delirium também é clinicamente importante e gerador de sofrimento e angústia para clientes, familiares e profissionais de saúde.5 Está associado a um aumento da morbimortalidade, do tempo de internamento e dos custos globais em saúde.6

Esta síndrome neuropsiquiátrica resulta de uma disfunção cerebral orgânica global e a sua etiologia habitualmente é multifatorial.7 Esta caracteriza-se por:

uma alteração da consciência e da atenção basal, que se desenvolve em dias ou horas, com flutuações de intensidade no próprio dia, podendo ainda ocorrer outras alterações na cognição, distúrbios do ciclo do sono-vigília, delírios, disgrafia, labilidade emocional e atividade psicomotora anormal (hipo ou hiperatividade).7

O enfermeiro pela proximidade que tem dos clientes e famílias ocupa uma posição singular para prevenir, detetar precocemente e controlar o delirium.8 Porém, vários são os autores que referem que o delirium é pouco reconhecido e subdiagnosticado pelos profissionais de saúde.9-10 Este aspeto remete para o julgamento clínico que é feito pelos enfermeiros e para o seu processo de tomada de decisão. Assim, o objetivo deste estudo é refletir, com base na evidência científica, sobre a prevenção e controlo do delirium da pessoa com doença oncológica em situação paliativa na perspetiva da tomada de decisão em enfermagem.

Métodos

Trata-se de uma reflexão teórica, que engloba a análise e a discussão concetual da prevenção e do controlo do delirium da pessoa com doença oncológica em situação paliativa relativamente à tomada de decisão em enfermagem.

A pesquisa bibliográfica foi realizada nas bases de dados CINHAL e MEDLINE (via EBSCOhost Integrated Search). As expressões de pesquisa utilizadas na CINHAL e na MEDLINE foram, respetivamente: (AB MM “Cancer Patients” OR AB MM “Hospice Patients” OR AB MM “Palliative Care”) AND (TX MM “Nursing Process” OR TX MM “Nursing Assessment” OR TX MM “Nursing Interventions”) AND (AB MM “Delirium” OR AB MM “Confusion” OR AB MM “Acute Confusion”); (AB Cancer Patient OR AB Oncology Patient OR Palliative Patient OR AB MM “Palliative Care”) AND (TX MM “Nursing Process” OR TX MM “Nursing Assessment”) AND (AB MM “Delirium” OR AB MM “Confusion”). Foi também efetuada pesquisa com os descritores “Delirium”, “Palliative Care”, “Oncology Nursing” e “Clinical Decision-Making” na Cochrane Database of Systematic Reviews, no Repositório científico de acesso aberto de Portugal, no Google Académico e em outras páginas da internet consideradas idóneas, fidedignas e reputadas. Para esta reflexão teórica foram considerados artigos científicos, dissertações e livros, nos idiomas português e inglês, publicados partir de 2006.

Com este artigo pretende-se uma reflexão teórica sobre a temática subjacente. A pesquisa bibliográfica realizada sustenta a fundamentação teórica, a argumentação e a confrontação crítica face ao estado da arte. A reflexão acerca deste tema permite equacionar os fatores que influenciam a tomada de decisão dos enfermeiros no âmbito da prevenção e controlo do delirium da pessoa com doença oncológica em situação paliativa.

Desenvolvimento

A tomada de decisão informada está na base do cuidado de enfermagem. Na literatura surgem frequentemente como sinónimos da expressão “tomada de decisão clínica” os termos  “julgamento clínico”, “resolução de problemas” e “pensamento crítico”, visto que todos designam processos de pensamento centrados no reconhecimento de um problema para uma tomada de decisão informada.11 Todavia, a compreensão entre as relações dos conceitos de “pensamento crítico”, “raciocínio clínico” e “julgamento clínico” estão bem estabelecidas.12 Para Standing13 a tomada de decisão é um processo complexo, que envolve observação, processamento da informação, pensamento crítico e julgamento clínico para decidir o curso da ação a tomar, de forma a promover ou a manter a saúde do cliente.O julgamento clínico é a aplicação do pensamento crítico na prática clínica baseado na evidência.14 É entendido como uma competência que todos os profissionais de saúde devem ter, dado tratar-se da interpretação das necessidades, preocupações ou problemas de saúde do cliente e a decisão de agir (ou não), tendo em conta a resposta deste.15 O raciocínio clínico é um processo complexo que usa a cognição, metacognição e o conhecimento específico da disciplina para reunir e analisar as informações de um cliente e ponderar ações alternativas.16 É usado perante a complexidade do contexto de cuidados e a possibilidade de resposta sem premeditação evidente.17 A maioria dos autores concordam que o pensamento crítico é o processo cognitivo utilizado para tomar uma decisão.18-19

Ao longo do tempo foram surgindo modelos de julgamento clínico em enfermagem, sendo um dos mais conhecidos o de Crhistine Tanner15 que preconiza quatro etapas: noticing (a compreensão percetual da situação), interpreting (desenvolvimento da compreensão necessária à situação), responding (decisão do curso da ação adequada ao contexto de cuidados)e reflecting (resposta dos clientes às intervenções de enfermagem).  Este modelo reflete o modo como os enfermeiros pensam na prática e baseia-se em cinco conclusões:

(1) Clinical judgments are more influenced by what the nurse brings to the situation than the objective data about the situation at hand; (2) Sound clinical judgment rests to some degree on knowing the patient and his or her typical pattern of responses, as well as engagement with the patient and his or her concerns; (3) Clinical judgments are influenced by the context in which the situation occurs and the culture of the nursing unit; (4) Nurses use a variety of reasoning patterns alone or in combination; (5) Reflection on practice is often triggered by breakdown in clinical judgment and is critical for the development of clinical knowledge and improvement in clinical reasoning.15

O modelo supracitado destaca a importância do conhecimento do enfermeiro, do contexto situacional e da relação entre o enfermeiro e o cliente, centrando-se na observação e na interpretação dos resultados pelo enfermeiro, assim como na sua resposta e na reflexão que faz da mesma.17 Este modelo apresenta semelhanças com o processo de enfermagem, que é considerado um modelo de pensamento crítico utilizado para promover um nível competente de cuidados, que abrange as ações realizadas pelos enfermeiros e sustenta a sua tomada de decisão.14 É composto por cinco etapas: apreciação, diagnóstico, planeamento, implementação e avaliação. Neste modelo, o julgamento clínico dos enfermeiros é encarado como uma atividade de resolução de problemas, que começa com a apreciação e o diagnóstico de enfermagem, passando pelo planeamento e a implementação de intervenções direcionadas para a resolução dos problemas levantados e termina com a avaliação da eficácia dessas intervenções.15 Comparando as etapas do modelo de julgamento clínico de Tanner com as etapas do processo de enfermagem é possível identificar uma correspondência entre as mesmas (Tabela 1).

Tabela 1. Comparação entre o Modelo de Julgamento Clínico de Tanner e o Processo de Enfermagem.

Etapas do Modelo de Julgamento Clínico de TannerEtapas do Processo de Enfermagem
NoticingApreciação
InterpretingDiagnóstico
RespondingPlaneamento
RespondingImplementação
ReflectingAvaliação
Fonte: Ignatavicius, D.D; Silvestri, L. A. Preparing For The Next Generation NCLEX: A “How- To” Step-By-Step Faculty Resource Manual. Amsterdam: Elsevier, 2023.

No que concerne ao delirium da pessoa com doença oncológica em situação paliativa, a falta do seu reconhecimento e subdiagnóstico por parte dos profissionais de saúde deve-se à não identificação das manifestações clínicas do delirium, à sobreposição de sinais e sintomas com as síndromes depressivas e demencial, ao padrão flutuante dos sintomas com períodos de lucidez e à escassa ou inadequada avaliação da síndrome.20 Por outras palavras, os profissionais de saúde, nos quais se incluem os enfermeiros, têm dificuldade em reconhecer as manifestações clínicas do delirium, devido à complexidade da síndrome e ao seu desconhecimento das características definidoras, e em efetuar um julgamento clínico que lhes permita fazer uma correta avaliação.21 Estes fatores põem em causa a identificação precoce da síndrome e o seu controlo. À luz do modelo de julgamento clínico de Tanner e do processo de enfermagem, é possível dizer que os enfermeiros têm dificuldade em efetuar a primeira e a segunda etapas destes modelos. Estes têm dificuldade em realizar uma correta apreciação da situação, em compreender a situação clínica do cliente, em relacionar as manifestações clínicas que este apresenta com o seu contexto de doença, em identificar possíveis causas e em procurar dados adicionais que possam auxiliar na compreensão da situação (ao nível do estado físico e mental da pessoa, no ambiente em que esta está inserida, nos seus exames complementares de diagnóstico e na sua história psicossocial) e na elaboração de um diagnóstico de enfermagem. A apreciação que o enfermeiro faz da situação depende do conhecimento que este tem do cliente e dos seus padrões de resposta, do conhecimento que tem proveniente de outras situações semelhantes e do conhecimento teórico que possui acerca do delirium. De acordo com a perceção que o enfermeiro tem da situação são desencadeados um ou mais padrões de raciocínio (analítico, intuitivo ou narrativo) que o auxiliam na interpretação da informação colhida e na elaboração de um diagnóstico.15

A observação é um instrumento básico de enfermagem essencial para a realização de um julgamento clínico centrado no cliente e para uma tomada de decisão baseada na evidência da prática clínica.13 A pessoa com doença oncológica em situação paliativa pode apresentar sintomas prodrómicos, indicativos de que um quadro de delirium se instalará em breve, tais como alterações do sono, irritabilidade, ansiedade e inquietação psicomotora.7 Se o enfermeiro não estiver atento e não observar as manifestações clínicas da pessoa, não irá fazer um julgamento clínico correto, que conduza ao diagnóstico de “risco de delirium” e consequentemente não irá tomar a decisão de implementar estratégias não farmacológicas dirigidas à pessoa, ao ambiente e à família para a prevenção do delirium. Como por exemplo, favorecer o contacto com a realidade, facilitando a reconstituição do tempo, espaço e pessoa; proporcionar um ambiente confortável, estável e seguro, gerindo estímulos externos; e explicar à família o que está a acontecer para que esta possa detetar eventuais sintomas e saiba reagir adequadamente.5 Da mesma maneira que um enfermeiro só irá identificar no cliente alterações recentes ou flutuações no estado mental e/ou na atividade psicomotora sugestivas de delirium se utilizar a observação. Dado o padrão flutuante dos sintomas de delirium, a partilha de informação entre os profissionais de saúde torna-se fundamental para a deteção da síndrome. Esta pode ser mais eficaz se existir uma tomada de decisão colaborativa entre profissionais de saúde, clientes e familiares. Uma tomada de decisão colaborativa implica: (1) consultar os elementos da equipa, comunicar-lhes as suas preocupações e discutir o curso da ação a tomar; (2) negociar para definir um plano de ação com que todos concordem e se envolvam na sua implementação; (3) cooperar para eliminar potenciais diferenças e para trabalhar em equipa de forma alcançar os objetivos definidos.13 Para isso, é necessário existir  uma  comunicação eficaz entre a equipa de saúde e a família (essencial à obtenção de uma história de saúde colateral), uma avaliação combinada entre enfermeiros e médicos e a discussão em equipa da situação de saúde da pessoa.22 Desta forma, a intervenção do enfermeiro na prevenção e controlo do delirium da pessoa com doença oncológica em situação paliativa também será mais eficaz.

Para melhorar a deteção do delirium podem ser utilizados instrumentos de medida fiáveis, como escalas de avaliação cognitiva e escalas diagnósticas de delirium.7,21 Embora existam vários instrumentos nem todos estão validados para a população oncológica paliativa e para a língua portuguesa. No processo de tomada de decisão relativo ao instrumento a utilizar devem ser considerados diversos aspetos: o objetivo terapêutico  definido com o cliente e família; o potencial nível de distress a que o cliente, família e profissionais de saúde serão sujeitos; a validade do instrumento; o treino da equipa de enfermagem na sua aplicação; a facilidade de uso; o contexto em que será feita a avaliação.20,23 Para fazer face ao subdiagnóstico do delirium é essencial investir também na educação e formação dos profissionais de saúde, abordando estes conteúdos na formação graduada, pós-graduada e contínua.21,24 Na literatura é igualmente sugerido o desenvolvimento de protocolos6, como por exemplo algoritmos, que através de uma sequência de etapas auxiliam na tomada de decisão clínica.

Conclusão

Para a concretização da Enfermagem enquanto ciência é fundamental que os enfermeiros demonstrem capacidade de tomar decisões. A prevenção e controlo do delirium da pessoa com doença oncológica em situação paliativa implica uma tomada de decisão informada por parte do enfermeiro. Para isso, é necessário que este tenha desenvolvido competências para a tomada de decisão, desde o raciocínio clínico, ao pensamento crítico e ao julgamento clínico. Para que o enfermeiro realize uma apreciação dirigida ao delirium e diagnostique a síndrome tem de ser capaz de reconhecer as suas manifestações clínicas e de as inter-relacionar com o diagnóstico. Para tal, necessita de utilizar a observação, de possuir conhecimento científico acerca do delirium e conhecimento proveniente da prática clínica, adquirido por meio da relação com o cliente, de estabelecer parcerias de cuidados com o cliente e família e de trabalhar em equipa. 

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*Enfermeira Especialista e Professora Convidada, Mestre em Enfermagem Médico-Cirúrgica, Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, Lisboa, Portugal. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7406-1613. Email: abeatrizgd@hotmail.com Autor de correspondência
**Professora Coordenador, Doutora em Enfermagem, Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, Lisboa, Portugal. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4705-1721. Email: palves@esel.pt