DEFENSORIA PÚBLICA NA QUALIDADE DE CUSTOS VULNERABILIS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8105050


Ligia Padovani Nascimento


1.INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda a atuação da Defensoria Pública como custos vulnerabilis (fiscal dos vulneráveis), bem como a natureza jurídica dessa intervenção.

Analisa ainda, as funções institucionais da Defensoria Pública e as espécies de vulnerabilidades que podem ser atribuídas aos seus assistidos.

Sob a perspectiva do Código de Processo Civil de 2015, a atuação da Defensoria Pública é esmiuçada nas ações coletivas, bem como seus poderes processuais na atuação como fiscal dos vulneráveis.

Por fim, verifica-se como a jurisprudência tem se posicionado quanto à admissão da Defensoria Pública na qualidade de custos vulnerabilis.

2. MODELOS DE PRESTAÇÃO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA E ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA

Dentre os vários modelos de assistência jurídica gratuita aos necessitados, a Defensoria Pública se enquadra no salaried staff model, consagrado na Constituição Federal de 1988.

O art. 134, caput, da CF estabelece que: 

“A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.”

Portanto, verifica-se que a Defensoria Pública é uma instituição de caráter nacional a que a Constituição Federal atribuiu, com exclusividade, a prestação de assistência jurídica gratuita aos necessitados.

De acordo com esse modelo (salaried staff model), a prestação jurisdicional aos necessitados ocorre por meio de advogados que integram carreira pública, recebendo remuneração fixa, independentemente da quantidade de casos que assumem. 

Esse modelo de prestação jurisdicional, embora seja criticado pelo fato de o assistido pelo órgão da Defensoria Pública não poder escolher livremente o advogado que irá atuar em seu benefício, destaca-se pela elevada autonomia institucional e independência funcional, com a estruturação de um órgão específico para a defesa dos interesses dos necessitados. 

Nesse sentido, conforme lições de Caio Paiva e Tiago Fensterseifer: 

“Embora o salaried staff model seja criticado por não garantir liberdade de escolha à pessoa necessitada quanto ao profissional que irá atuar em sua causa, a nosso ver as suas vantagens em relação ao modelo judicare são inúmeras – e evidentes -, entre as quais destacamos: a) a especialização do serviço de assistência jurídica gratuita, com profissionais atuando com exclusivamente na defesa dos necessitados, sem uma concorrência com seis escritórios particulares; b) a estruturação da assistência jurídica gratuita por meio de uma instituição, respaldando a independência dos profissionais contra árbitros de qualquer natureza; e c) a concepção dos destinatários do serviço como classe – e não somente como indivíduos -, a demandar, quando oportuno, uma atuação estratégica no sentido de se promover ações coletivas para enfrentar problemas estruturais” 1.

O modelo judicial, citado pelos autores em comparação com modelo salaried staff model, caracteriza-se pela prestação de assistência gratuita por advogados particulares mediante pagamento pelo Estado para cada caso concreto.

E de acordo com Caio Paiva e Tiago Fensterseifer: 

“Costuma-se apontar como vantagem desse modelo a possibilidade de a pessoa necessitada escolher o advogado particular que irá patrocinar a sua causa, garantindo-se um vínculo de confiança que supostamente inexistiria na indicação compulsória do profissional pelo Estado. Por outro lado, o entusiasmo com o modelo judicare diminui quando se verifica que a remuneração paga aos advogados pelo Estado – naturalmente- fica muito aquém dos valores praticados no mercado, o que contribuiu para que a prestação de assistência jurídica gratuita aos necessitados não alcance um nível adequado de eficiência. Além disso, como o advogado habilitado junto ao Estado no modelo judicare em regra mantém seu escritório particular, a assistência jurídica gratuita por ele prestada inevitavelmente assume uma natureza subsidiária ou acessória no seu cotidiano, servindo como mera complementação de renda.”.2

Por fim, importante esclarecer que, nada obstante, como visto, o sistema adotado pelo constituinte foi o modelo salaried staff model, ainda convivemos com excepcionais incidência do modelo judicare.  Isso porque a Defensoria Pública ainda não se encontra totalmente estruturada, atuando em todas as comarcas, situação que necessita da complementação do modelo público ao modelo judicare, de forma excepcional e temporária. 

2.2. DEFENSORIA PÚBLICA COMO INSTITUIÇÃO PERMANENTE, ESSENCIAL À FUNÇÃO JURISDICIONAL DO ESTADO E AS ESPÉCIES DE VULNERABILIDADES

A Constituição Federal de 1988 foi a primeira a mencionar expressamente a Defensoria Pública como instituição permanente na defesa dos interesses dos necessitados, sendo alçada como uma das Instituições essenciais à Justiça. 

Como missão institucional, a Defensoria Púbica possui como múnus a defesa e proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade, as quais não se limitam apenas à vulnerabilidade de natureza econômica.

Nesse sentido, afirmam Caio Paiva e Tiago Fensterseifer: 

“Convém esclarecer, entretanto, que o múnus da Defensoria Pública não se liga puramente à proteção daquele que se encontra em situação de vulnerabilidade econômica, mas, ao contrário, se justifica diante de outras situações, principalmente, relacionadas a direitos indisponíveis, como a vida e liberdade, seja em relação a sujeitos especialmente protegidos pelo direito, como idosos, doentes, mulheres vítimas de violência doméstica, população de rua, crianças e adolescentes, pessoas encarceradas seja em relação a pessoas em particular situação de vulnerabilidade, tais como óbices geográficos, debilidade e saúde, desinformação pessoal, desconhecimento sobre as leis, dificuldade de compreensão da técnica jurídica, ausência de defesa técnica, deficiência de atuação probatória e incapacidade de organização.” 3 

A respeito de a vulnerabilidade não se resumir a apenas ao aspecto econômico, o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre a noção ampliativa da condição jurídica de “necessitado”, de modo a possibilitar sua atuação em relação aos necessitados jurídicos em geral.

Nesse sentido: “O Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar os requisitos legais para a atuação coletiva da Defensoria Pública, adota exegese ampliativa da condição jurídica de “necessitado”, de modo a possibilitar sua atuação em relação aos necessitados jurídicos em geral, não apenas aos hipossuficientes sob o aspecto econômico (STJ. 1ª Turma. AgInt nos EDcl no REsp 1.529.933/CE, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 20/5/2019).

A expressão “necessitados” (art. 134, caput, da Constituição), que qualifica, orienta e enobrece a atuação da Defensoria Pública, deve ser entendida, no campo da Ação Civil Pública, em sentido amplo, de modo a incluir, ao lado dos estritamente carentes de recursos financeiros – os miseráveis e pobres -, os hipervulneráveis (isto é, os socialmente estigmatizados ou excluídos, as crianças, os idosos, as gerações futuras), enfim todos aqueles que, como indivíduo ou classe, por conta de sua real debilidade perante abusos ou arbítrio dos detentores de poder econômico ou político, ‘necessitem’ da mão benevolente e solidarista do Estado para sua proteção, mesmo que contra o próprio Estado. Vê-se, então, que a partir da ideia tradicional da instituição forma-se, no Welfare State, um novo e mais abrangente círculo de sujeitos salvaguardados processualmente, isto é, adota-se uma compreensão de minus habentes impregnada de significado social, organizacional e de dignificação da pessoa humana (STJ. 2ª Turma. REsp 1.264.116/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 18/10/2011).” 4

A vulnerabilidade, portanto, se reveste de variadas facetas, não sendo conceito de único sentido. 

Segundo Caio Paiva e Tiago Fensterseifer: 

“A missão constitucional da Instituição, assim, abrange a atuação em favor de pessoas submetidas a diversas formas de vulnerabilidade, com o escopo de garantir “o real acesso à promoção efetiva e concreta dos seus interesses, como responsável pela consecução do estado democrático de Direito, devendo o conceito de necessitado ser interpretado a partir da leitura da Constituição com as lentes de princípios hermenêuticos que traduzam sua plena força normativa e que garantam a aplicabilidade do Princípio da Máxima Efetividade das normas constitucionais, o que justifica e fundamenta, inclusive, a atuação como órgão interveniente na condição de custos vulnerabilis, para o fiel comprimento de sua missão constitucional, para o fiel cumprimento de sua missão constitucional, ou seja, não como procurador judicial da parte (que se encontre suficientemente representado no feito), mas em presentação da própria instituição Defensoria Pública, em nome próprio e no regular exercício da Procuratura Constitucional dos Necessitados” 5.

3.1. LEGITIMIDADE EXTRAORDINÁRIA E ATUAÇÃO COMO CUSTOS VULNERABILIS

A expressão custos vulnerabilis possui dois significados. Utilizada, primeiramente, como a atuação constitucional da Defensoria Pública na defesa dos direitos das pessoas vulneráveis, designadas na Constituição Federal como necessitados.

Nesse sentido, a expressão designa a atuação da Defensoria Pública na busca pela inclusão democrática dos grupos vulneráveis, visando garantir sua participação na vida política do país, na participação da elaboração de políticas públicas, bem como, na defesa dos direitos desse grupo de pessoas, em seu amplo conceito de vulnerabilidade.

Por outro lado, a expressão custos vulnerabilis, também, designa a intervenção da Defensoria Pública, na condição de terceiro interessado no processo, como uma espécie de fiscal dos direitos vulneráveis, à semelhança do que ocorre na atuação do Ministério Público na condição de fiscal da ordem jurídica quando o interesse público exige a intervenção do Parquet. 

Nesse sentido, esclarece Cassio Scarpinella Bueno que:

“A expressão ‘custos vulnerabilis’, cujo emprego vem sendo defendido pela própria Defensoria Pública, é pertinente para descrever o entendimento aqui robustecido. Seu emprego e difusão têm a especial vantagem de colocar lado a lado – como deve ser em se tratando de funções essenciais à administração da justiça – esta modalidade interventiva a cargo da Defensoria Pública e a tradicional do Ministério Público.

O ‘fiscal dos vulneráveis’, para empregar a locução no vernáculo, ou, o que parece ser mais correto diante do que corretamente vem sendo compreendido sobre a legitimidade ativa da Defensoria Pública no âmbito do ‘direito processual coletivo’, o ‘fiscal dos direitos vulneráveis’, deve atuar, destarte, sempre que os direitos e/ou interesses dos processos (ainda que individuais) justifiquem a oitiva (e a correlata consideração) do posicionamento institucional da Defensoria Pública, inclusive, mas não apenas, nos processos formadores ou modificadores dos indexadores jurisprudenciais, tão enaltecidos pelo Código de Processo Civil. Trata-se de fator de legitimação decisória indispensável e que não pode ser negada a qualquer título.” 6.

A intervenção da Defensoria Pública na qualidade de custos vulnerabilis se insere na sua missão institucional, dispondo de todos os poderes processuais para atuação de terceiro interveniente na fiscalização e defesa dos vulneráveis. 

Nesse sentido ressaltou Márcio Cavalcante:

“Assim, segundo a tese da Instituição, em todo e qualquer processo onde se discuta interesses dos vulneráveis seria possível a intervenção da Defensoria Pública, independentemente de haver ou não advogado particular constituído. Quando a Defensoria Pública atua como custos vulnerabilis, a sua participação processual ocorre não como representante da parte em juízo, mas sim como protetor dos interesses dos necessitados em geral.7

Essa atuação, na visão do autor Maurílio Casas Maia não se confunde, por sua vez, com a legitimidade extraordinária da Defensoria Pública. 

De acordo com o art. 18 do Código de Processo Civil, ninguém pode pleitear direito alheio em nome próprio se não tiver sido autorizada essa atuação por lei. Dessa forma, havendo autorização, a Defensoria Pública atua como legitimada extraordinária na defesa de interesses individuais e coletivos de grupos vulneráveis, isto é, em nome próprio na defesa de interesses alheios como ocorre nos casos de ações coletivas, sendo a Defensoria Pública um dos legitimados para propositura de demandas coletivas.

Ressalta-se, ainda, decisões em que admite a atuação da Defensoria Pública como legitimado extraordinário em ações individuais. Cite-se, como exemplo, a decisão proferida pela 1ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, que aceitou a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul como parte legítima em uma ação de alimentos em favor de um menor que foi abandonado pelos pais, uma vez que o artigo  da Constituição Federal (garantia de acesso à Justiça) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) conferem legitimidade de representação à Defensoria quando o titular do direito for pessoa desassistida, caso do menor8.

A atuação da Defensoria Pública como terceiro interveniente, não se confundindo com legitimidade extraordinária, como visto, é defendida por Maurílio Casas Maia.

Para esse autor a Defensoria Pública atuará como terceira interveniente sui generis à semelhança da intervenção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica, razão pela qual receberia o nome de custos vulnerabilis, objetivando a promover sua finalidade institucional de tutela dos necessitados presentes no polo passivo.

Dessa maneira, em qualquer demanda que haja interesse de grupos vulneráveis envolvidos, caso a Defensoria Pública não esteja em nenhum dos polos da ação, deverá ser intimada para intervir no processo como guardiã dos vulnerabilis, com poderes para se manifestar em qualquer fase do processo, requerer a produção de provas e interpor recursos à semelhança da atuação do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica.

A atuação da Defensoria Pública como custos vulnerabilis também não se confunde com a intervenção como amicus curiae.

Isso porque, “a legitimidade de ingresso do amicus curiae na demanda depende de comprovação de relevância da matéria, sua relação com a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia”. Já para o ingresso da Defensoria Pública como custos vulnerabilis basta a demonstração, em tese, do interesse institucional da demanda, ou seja, que revele relação direta ou potencial com o plexo de direitos da pessoa em situação de vulnerabilidade” 9.  

Ainda nesse sentido da diferenciação quanto à atuação como amicus curiae, “dentro de sua missão institucional, a Defensoria Pública atua como custos vulnerabilis, detendo poderes e faculdades processuais similares, na lógica da paridade e simetria. Portanto, a intervenção institucional da Defensoria Pública como Custos Vulnerabilis é instrumento de efetivação da missão constitucional do Estado Defensor, concretizando um feixe de poderes mais amplos e consentâneos com seu papel do que a figura do amicus curiae, sendo muitas as razões para tal posição” 10.

No mais, o requerimento de ingresso do amicus curiae pode ser indeferido pelo magistrado, situação que não deve ocorrer com a intervenção da Defensoria Pública como custos vulnerabilis, pois basta a demonstração da missão institucional com o interesse dos vulneráveis na demanda para que o interesse de guardiã dos vulneráveis esteja presente como reforço do próprio regime democrático.

Nesse sentido, caso ocorra o indeferimento do ingresso do amicus curiae a decisão é irrecorrível, conforme art. 138 do Código de Processo Civil. Situação diversa deve ocorrer com a intervenção da Defensoria Pública como custos vulnerabilis no caso de indeferimento da sua intervenção, haja vista a Defensoria Pública, nessa atuação, ostentar todos os poderes processuais inclusive o de recorrer da decisão que indeferiu seu ingresso. 

Portanto, verifica-se a legitimidade da atuação da Defensoria Pública como custos vulnerabilis em prol dos direitos humanos, dos hipossuficientes e dos hipervulneráveis, tais como, vulneráveis etários, organizacionais, físicos, mentais e sensoriais, indígenas, por migração e por privação de liberdade.

Dessa maneira, em um processo em que há o interesse dos grupos vulneráveis citados acima, caso a Defensoria Pública não esteja no polo da demanda, o magistrado deverá intimar a Defensoria para intervir como terceiro interessado na fiscalização dos interesses dos vulneráveis, uma vez que, como prescreve o art. 134, caput, da CF/88, à Defensoria Pública cabe a nobre função de se exteriorizar como “expressão e instrumento do regime democrático”

Ressalta-se, por fim, o entendimento dos autores Franklyn Roger Alves Silva e Diogo Esteves no sentido de que a atuação da Defensoria Pública, na condição de custos vulnerabilis, não se dá na condição de terceiro interveniente, como defende os autores Edilson Santana Gonçalves Filhos, Jorge Bheron Rocha e Maurilio Casas Maia, mas sim como legitimado extraordinário11.

Isso porque na visão dos autores Franklyn Roger Alves Silva e Diogo Esteves, a Defensoria Pública atuará como legitimada extraordinária, na forma dos incisos V e X da Lei Complementar nº 80/94. O órgão defensorial estará, portanto, atuando em nome próprio, mas na defesa de interesse alheio: o dos ocupantes, sejam os pessoalmente citados, sejam os citados por edital. 

Nada obstante ter-se mencionado o posicionamento dos autores Franklin Roger e , este trabalho se filia ao entendimento dos autores Edilson Santana Gonçalves Filhos, Jorge Bheron Rocha e Maurilio Casas Maia, ao se considerar a natureza jurídica da intervenção da Defensoria Pública como terceiro interveniente, não se confundindo com legitimidade extraordinária, uma vez que a Defensoria Pública, como visto, não atua em nome próprio no interesse de terceiros, mas sim, o faz na qualidade de efetivar sua missão institucional na defesa dos vulneráveis prevista na Constituição Federal.

Nesse sentido, cita-se os autores Edilson Santana Gonçalves Filhos, Jorge Bheron Rocha e Maurilio Casas Maia: 

“Exatamente, no referido contexto emancipatório do “defensorar”, surge a intervenção custos vulnerabilis como atribuição própria da Defensoria Pública, indelegável, que jamais pode se dar de maneira autoritária e meramente paternalista. Nunca, dentre os signatários do presente texto, defendeu-se atuação autoritária ou paternalista do custos vulnerabilis – afirmar o contrário denota superficialidade e desconhecimento dos respectivos estudos produzidos e das experiências vivenciadas.

Em suma, as especificidades do defensorar abrangem a intervenção do custos vulnerabilis como intervenção emancipatória e respeitosa à autonomia dos destinatários da atuação.” 12

3.2. O ART. 554, § 1° DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO CUSTOS VULNERABILIS

Dispõe o artigo 554 e § 1° que: 

“Art. 554. A propositura de uma ação possessória em vez de outra não obstará a que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela cujos pressupostos estejam provados.

§ 1º No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública.”.

Verifica-se que o mencionado artigo é exemplo da intervenção da Defensoria Pública como custos vulnerabilis prevista expressamente no ordenamento jurídico, situação em que a Defensoria Pública será intimada para intervenção no processo que figure pessoas hipossuficientes em demandas possessórias coletivas.

O dispositivo mencionado, por sua vez, não limita a atuação da Defensoria Pública como custos vulnerabilis apenas a ações possessórias coletivas, mas tão somente exemplifica um tipo de intervenção da Defensoria Pública como guardiã dos interesses dos vulneráveis, no caso, em demandas possessórias coletivas.

Nesse sentido afirmaram os autores Edilson Santana Gonçalves Filhos, Jorge Bheron Rocha e Maurilio Casas Maia: 

“A atuação interventiva inominada, como guardiã dos vulneráveis (intervenção custos vulnerabilis), não se resume aos casos do artigo 554, § 1° do Código de Processo Civil. Esta observação é válida, também, para se afastar possível equivoco no sentido de se apontar este dispositivo como fundamento único e último para a intervenção custos vulnerabilis.

Demais disso, a atuação da Defensoria Pública nestes casos (como interveniente), no mais das vezes, ocorre em defesa de parcela da população desassistida em seus interesses no campo processual. É comum, por exemplo, que o Ministério Público esteja em posição contrária aos interesses de grupo ou comunidade minoritária, como, por exemplo, nas inúmeras ações de reintegração de posse multitudinárias ajuizadas pelo órgão ministerial. Assim, o desempenho da função institucional pela Defensoria Pública, ao invés de sobrepor-se, vem a complementar a tutela de direitos, nada obstante existam pontos de atuação em comum dentre os diversos atores do sistema de justiça (inclusive e especialmente no tocante ao processo coletivo) Trata-se, assim, de uma mais valia.” 13

Dessa maneira, diante desse dispositivo do CPC e da nova feição da missão institucional da Defensoria Pública, houve o reconhecimento de sua atuação como custos vulnerabilis, para que haja a pronta intervenção do órgão defensorial quando este se deparar com concretas ou iminentes violações de direitos humanos de grupos ou pessoas vulneráveis, ainda que a princípio não atue como “representante processual” de nenhuma parte na ação.

Dessa forma, a atuação como guardião ou fiscal dos vulneráveis, a intervenção da Defensoria Pública deve ocorrer sempre que o órgão detecte efetiva ou provável violação a interesses de vulneráveis, postulando sua intervenção como terceiro interveniente na demanda. 

Ressalta-se, mais uma vez, que a Defensoria Pública ao atuar como custos vulnerabilis, a sua participação processual ocorre não como representante da parte em juízo, mas sim como protetor dos interesses dos necessitados em geral.

Dessa maneira, não apenas em ações possessórias coletivas, como nos termos do artigo 554, § 1° do Código de Processo Civil, mas sim, a Defensoria Pública pode ingressar como terceiro interveniente em qualquer demanda que envolve interesse de vulneráveis, como nos casos, por exemplo, de ações civis públicas em que se discute interesse de pessoas em situação de rua, pessoas presas, adolescente em conflito com a lei, não tendo a Defensoria Pública ajuizar a respectiva demanda coletiva.

A atuação da Defensoria Pública como custos vulnerabilis tem como escopo trazer para os processos argumentos, documentos e outras informações que reflitam o ponto de vista das pessoas vulneráveis, permitindo que o juiz ou tribunal tenha mais subsídios para decidir a demanda.

Portanto, assim como o Ministério Público, na condição de fiscal da ordem jurídica, a Defensoria Pública pode, igualmente, produzir provas, interpor recurso e influenciar em todos os aspectos o convencimento do Juízo em relação ao interesse do grupo vulnerável assistido.

E para que a voz dos vulneráveis seja amplificada na relação processual, a intervenção da Defensoria Pública, na condição de guardiã dos vulneráveis, não pode ser limitada a apenas a hipótese do art.  554, § 1° do Código de Processo Civil, o qual, como visto, deve ser interpretado como exemplificativo da intervenção da Defensoria Pública na qualidade de custos vulnerabilis.

3.3 DECISÕES QUE RECONHECERAM A LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA ATUAR NA QUALIDADE DE CUSTOS VULNERABILIS

O Tribunal de Justiça de São Paulo assegurou a intervenção da Defensoria Pública, na qualidade de custos vulnerabilis, em ação ajuizada pelo Ministério Público contra o Município de Guarulhos. 

A demanda coletiva, nesse caso, versava sobre a remoção liminar de cerca de 400 pessoas da área objeto da ação, com realojamento em até 120 dias para outro local, e a demolição de construções erguidas na área.

O TJSP, nos autos do processo da ação civil pública n°1029967-90.2017.8.26.0224, reconheceu que, embora a ação não seja de natureza possessória, envolve questão quanto à posse direta de imóvel exercida por pessoas hipossuficientes, considerando admissível a interpretação ampliativa do art. 554, § 1º, do CPC e a intervenção da Defensoria Pública como custos vulnerabilis

Nesse sentido foi o julgamento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: 

“A legitimidade da intervenção da Defensoria Pública no feito ainda é garantida por interpretação ampliativa do art. 554, §1º, do NCPC eis que, no caso, embora não se trate de ação possessória, envolve grande número de pessoas de baixa renda e, portanto, presente o interesse de uma coletividade de pessoas hipossuficientes, as quais podem ser removidas do local diante do risco à sua integridade física.

A Defensoria Pública atua como custos vulnerabilis a população hipossuficiente, a intenção do citado dispositivo reverbera na hipótese dos autos e, por isso, presente o interesse e a legitimidade da Defensoria, já que se insere no núcleo funcional de sua atuação.” 

Em tais condições, dá-se provimento ao recurso, para deferir a intervenção no feito da Defensoria Pública, inclusive com devolução dos prazos processuais para as manifestações cabíveis eventualmente decorridos desde o requerimento de ingresso na lide” 14

Em outro processo, decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido de que: 

Agravo de Instrumento. Decisão que, em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Estadual, (i) deferiu pedido de antecipação de tutela para determinar que a Municipalidade retire os moradores de área de alto grau de risco de deslizamento, com a demolição destes imóveis e o alojamento adequado dessas famílias; (ii) indeferiu o ingresso da Defensoria Pública Estadual para intervir no feito. Recurso da Defensoria Pública objetivando sua intervenção na lide, em nome próprio, bem assim a revogação da tutela de urgência e a citação de todos os ocupantes da área. Parcial admissibilidade. Hipótese em que a presente ação atinge a esfera jurídica de pessoas em situação de hipossuficiência econômica, a justificar a intervenção da Defensoria Pública, em nome próprio, na qualidade de “custos vulnerabilis et plebis”. Inacolhíveis os demais pedidos. ACP que busca a proteção do meio ambiente e da integridade física dos ocupantes da área, não se confundindo com tutela possessória. Presentes os requisitos necessários à concessão e manutenção da tutela de urgência. Recurso parcialmente provido.
(TJSP; Agravo de Instrumento 2007125-58.2018.8.26.0000; Relator (a): Aroldo Viotti; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Público; Foro de Guarulhos – 2ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 10/07/2018; Data de Registro: 10/07/2018).
15

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, da mesma forma, reconheceu a legitimidade recursal da Defensoria Pública, na condição de custos vulnerabilis, em ação civil pública envolvendo reintegração de áreas que repercutiam no direito de pessoas em condição de vulnerabilidade.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INVASÃO DE ÁREA LOCALIZADA EM PARQUE ESTADUAL. Indeferimento de medida liminar para verificação acerca das “famílias que efetivamente precisam de abrigo e inclusão em programas de assistência social prestado pelo Município”, após a determinação do Juízo de expedição do mandado demolitório para cumprimento em área de ocupação irregular em Parque Estadual. Recurso interposto pela Defensoria Pública na qualidade dos custos vulnerabilis, afirmando necessidade de notificação das autoridades competentes e a ausência de comprovação de que as famílias desalojadas terão abrigo. Mandado que restou cumprido na data de interposição do recurso, conforme certificado pelo Oficial de Justiça. Perda superveniente do objeto destes autos de Agravo de Instrumento que se verifica. RECURSO PREJUDICADO.16

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INVASÃO DE ÁREA LOCALIZADA EM PARQUE ESTADUAL. Deferimento de medida liminar para desocupação e demolição das construções irregulares. Recurso interposto pela Defensoria Pública na qualidade de custos vulnerabilis, requerendo alternativa habitacional. Matéria não apreciada em primeiro grau de jurisdição e que não pode, portanto, ser neste recurso. Fumus boni iuris está soberbamente comprovado por várias imagens da localização exata da área. Periculum in mora evidenciado por relatórios de servidores públicos de que as construções se multiplicam. Necessidade de manutenção da decisão mesmo sem oitiva dos Órgãos Públicos que integram o polo passivo. DESPROVIMENTO DO RECURSO.17

Observa-se, nesse sentido, que os Tribunais de Justiça estão reconhecendo a legitimidade da Defensoria Pública para intervir como custos vulnerabilis. Com isso, a atuação não ocorre como representante da parte em juízo, mas sim como fiscal dos vulneráveis.

A 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Rondônia, da mesma maneira, entendeu que a Defensoria Pública tem “legitimação para a defesa de direitos individuais homogêneos pertencentes a pessoas socialmente hipossuficientes”. Segundo o relator, desembargador Sansão Saldanha, a medida garante o contraditório da comunidade vulnerável em ações possessórias.

Nesse sentido, transcreve-se parte dessa decisão:

“A Defensoria Pública possui legitimação para a defesa de direitos individuais homogêneos pertencentes a pessoas socialmente hipossuficientes, bem como para defesa dos vulneráveis, com vista a garantir o contraditório da comunidade vulnerável em demandas judiciais possessórias, na forma do que dispõe o art. 554, §1º, do CPC/15 – “custus vulnerabilis”. O CPC, ao determinar a necessidade de intimação do Ministério Público e da Defensoria Pública nas ações que envolvem grande número de pessoas, não exige tal providência como pressuposto para exame do pedido liminar.” 18

No Amazonas, da mesma maneira, em discussão de ação possessória com muitos envolvidos, a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça considerou que o CPC prevê a intimação do Ministério Público e da Defensoria Pública:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. LIMINAR. MANDADO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE RECOLHIDO PELO JUÍZO A QUO. AUSÊNCIA DE CONHECIMENTO ACERCA DO NÚMERO DE PESSOAS EXISTENTES NO TERRENO. SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE. MEDIDA IRREVERSÍVEL DIANTE DA POSSÍVEL REMOÇÃO DE INÚMERAS FAMÍLIAS E DEMOLIÇÃO DE RESIDÊNCIAS. NECESSIDADE DE PRÉVIA MANIFESTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA DEFENSORIA PÚBLICA NA CONDIÇÃO DE CUSTUS VULNERABILLIS. NECESSIDADE DE DESIGNAÇÃO DE AUDIÊNCIA DE MEDIAÇÃO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA CONCESSÃO DA LIMINAR. EXISTÊNCIA DE PERICULUM IN MORA INVERSO. DECISÃO DE RECOLHIMENTO DO MANDADO DE REINTEGRAÇÃO E INDEFERIMENTO DE LIMINAR MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO EM CONSONÂNCIA COM O PARECER MINISTERIAL.

De acordo com o relator: 

“Da análise dos autos, verifica-se que o Juízo a quo, considerando o disposto no artigo 554, §1.º, do CPC, assim como a necessidade de participação da Defensoria Pública como custos vulnerabillis e do Ministério Público como custos legis na demanda, em razão de figurarem no polo passivo grande número de pessoas, cuja moradia demonstra que também são hipossuficientes, além da necessidade de observância da regra cogente de citação pessoal, revogou a reintegração de posse anteriormente concedida. 

– Pois bem. Nos termos do art. 554, §1º, CPC, na ação possessória com o polo passivo formado por grande número de pessoas, o Ministério Público será intimado para participar do processo, bem como a Defensoria Pública, caso haja réus em situação de hipossuficiência econômica. Enquanto o Ministério Público atuará como fiscal da ordem jurídica, a Defensoria Pública defenderá o interesse dos hipossuficientes econômicos que não constituam advogado para sua defesa.” 19

No Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a 5ª Câmara de Direito Civil também considerou que não intimar a Defensoria conduziria à “nulidade de todos os atos processuais”, uma vez que após a vigência do Código de Processo Civil de 2015, a participação da Defensoria Pública é obrigatória, como terceiro interveniente, em ações possessórias multitudinárias que envolvam interesses de pessoas em situação de vulnerabilidade.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCEDIMENTO ESPECIAL. AÇÃO POSSESSÓRIA MULTITUDINÁRIA. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. TUTELA DE URGÊNCIA DEFERIDA À ORIGEM. RECURSO DA DEFENSORIA PÚBLICA. ILEGITIMIDADE ATIVA. ROL DO ART. 1.015 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. TAXATIVIDADE MITIGADA. REQUISITO. URGÊNCIA DECORRENTE DA INUTILIDADE DO JULGAMENTO DA QUESTÃO NO RECURSO DE APELAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. NÃO CONHECIMENTO.
INOVAÇÃO PROCESSUAL INTRODUZIDA PELO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. ARTS. 14 E 1.046 DA NOVEL LEGISLAÇÃO ADJETIVA. TEMPUS REGIT ACTUM. SISTEMA DE ISOLAMENTO DOS ATOS PROCESSUAIS. REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA COM PARTICIPAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, DA DEFENSORIA PÚBLICA E DE ENTES PÚBLICOS. NECESSÁRIA INTEGRAÇÃO DO CUSTOS VULNERABILIS À LIDE. NÃO OBSERVÂNCIA. EFETIVO PREJUÍZO À COLETIVIDADE. NULIDADE DE TODOS OS ATOS PROCESSUAIS PRATICADOS APÓS A ENTRADA EM VIGOR DA NOVA LEGISLAÇÃO PROCESSUAL.
NULIDADE DA AUDIÊNCIA DE JUSTIFICAÇÃO PRÉVIA, DA DETERMINADA CITAÇÃO POR EDITAL E AUSÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS NECESSÁRIOS À CONCESSÃO DE TUTELA DE URGÊNCIA. TESES PREJUDICADAS. NÃO CONHECIMENTO.
RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E PROVIDO.
20

Em outro conflito possessório, no Rio Grande do Sul, a 19ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça detém legitimidade recursal reconhecida como custos vulnerabilis diante do prejuízo às pessoas em situação de vulnerabilidade.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. INVASÃO COLETIVA. ÁREA PÚBLICA. TERRENO DO MUNICÍPIO DE CANDIOTA. LIMINAR DEFERIDA NA ORIGEM. DECISÃO AGRAVADA MODIFICADA. É caso de reconhecimento da legitimidade da Defensoria Pública à defesa dos ocupantes da área objeto do litígio na forma do que dispõe o artigo 554, §1º, do CPC/15. Não é possível a manutenção do deferimento da liminar reintegratória, quando demonstrado que os imóveis são ocupados há mais de ano e dia. Ausente preenchimento dos requisitos para concessão da liminar. A posse exercida pelos ocupantes é superior a ano e dia, em análise sumária, e não presentes os requisitos para concessão da antecipação de tutela, nos termos do art. 300 do novo CPC, merece provimento o agravo de instrumento, a fim de revogar a liminar de reintegração de posse deferida. DERAM PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO.21

Nesse mesmo sentido, há outro julgado proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. LIMINAR. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. 1. Em se tratando de invasão coletiva, não é inepta a petição inicial que deixa de individualizar cada um dos ocupantes do imóvel objeto da reintegratória. 2. O CPC, ao determinar a necessidade de intimação do Ministério Público e da Defensoria Pública, nas ações que envolvem grande número de pessoas, não exige tal providência como pressuposto para exame do pedido liminar. 3. Desnecessidade de realização de audiência de justificação prévia no caso de deferimento do mandado liminar de reintegração. 4. Demonstrados os requisitos do artigo 561 do CPC, quais sejam, posse anterior, prática de esbulho, perda da posse em razão do ato ilícito, e data de sua ocorrência, inafastável a concessão da liminar. Na espécie, não se questiona a posse anterior, porquanto se trata de posse jurídica, exercida pelo Município. A ocupação da área pelos réus, em data recente, restou incontroversa. Interlocutória confirmada. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME.22

Em outra ocasião, o desembargador Rogerio Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, igualmente admitiu a Defensoria em processo cujo objeto se tratava de reintegração de posse de terra indígena da comunidade Ponta do Arado, em Porto Alegre (RS).

Nesse julgado, foram acolhidos os argumentos de que havia risco na remoção de indígenas adultos e crianças, que estão em situação de vulnerabilidade.23

3.3.1. DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA E SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ACERCA DA ATUAÇÃO DA DEFENSORIA COMO CUSTOS VULNERABILIS

O Superior Tribunal de Justiça, em 2018, embora não tenha mencionado o termo “custos vulnerabilis”, admitiu a intervenção da Defensoria Pública na defesa dos interesses de pessoas vulneráveis, sob fundamento no art. 4º, XI, da Lei Complementar 80/1994. Ou seja, reconheceu a missão institucional da Defensoria Pública na qualidade de fiscal dos vulneráveis.

Nesse sentido, transcreve-se a ementa desse julgado:

“PROCESSUAL CIVIL. INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA DEFENSORIA PÚBLICA. NECESSIDADE. REVISÃO. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. Conforme consignado no decisum agravado, o Tribunal regional concluiu pela necessidade de intimação do Ministério Público e da Defensoria Pública para intervenção no feito, em razão de serem os recorridos pessoas hipossuficientes e muitos deles idosos em situação de risco, (…) 3. Em que pese a inaplicabilidade do dispositivo ao feito, trazemos à reflexão importante questão envolvendo a normativa prevista no artigo 554, § 1º, CPC/2015, (…). Conclusão inafastável é que esse dispositivo busca concretizar a dignidade da pessoa humana, democratizando o processo, ao permitir a intervenção defensorial. O artigo almeja garantir e efetivar os princípios do contraditório e da ampla defesa de forma efetiva. 4. Importante destacar que a possibilidade de defesa dos vulneráveis, utilizando-se de meios judiciais e extrajudiciais, está prevista no art. 4º, XI, da LC 80/1994: “Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (…) XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado”. (…).” 24

Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça admitiu, em Recurso Repetitivo (REsp n° 1.712.163), de forma expressa, admitiu a intervenção da Defensoria Pública da União na qualidade de “custos vulnerabilis”.

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. RITO DOS RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS. PLANO DE SAÚDE. CONTROVÉRSIA ACERCA DA OBRIGATORIEDADE DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO NÃO REGISTRADO PELA ANVISA. OMISSÃO. EXISTÊNCIA. CONTRADIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. INTEGRATIVO ACOLHIDO EM PARTE. 1. O presente recurso integrativo foi interposto contra acórdão publicado na vigência do NCPC, razão pela qual devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma nele prevista, nos termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de marçode 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC. 2. Na espécie, após análise acurada dos autos, verificou-se que o acórdão embargado deixou de analisar a possibilidade de admissão da Defensoria Pública da União como custos vulnerabilis. 3. Em virtude de esta Corte buscar a essência da discussão, tendo em conta que a tese proposta neste recurso especial repetitivo irá, possivelmente, afetar outros recorrentes que não participaram diretamente da discussão da questão de direito, bem como em razão da vulnerabilidade do grupo de consumidores potencialmente lesado e da necessidade da defesa do direito fundamental à saúde, a DPU está legitimada para atuar como quer no feito. 4. O acórdão embargado não foi contraditório e, com clareza e coerência, concluiu fundamentadamente que i) é exigência legal ao fornecimento de medicamento a prévia existência de registro ou autorização pela ANVISA; e ii) não há como o Poder Judiciário, a pretexto de ver uma possível mora da ANVISA, criar norma sancionadora para a hipótese, onde o legislador não a previu. 5. A contradição que autoriza os aclaratórios é a inerente ao próprio acórdão. 6. O recurso integrativo não se presta à manifestação de inconformismo ou à rediscussão do julgado. 7. Embargos de declaração acolhidos, em parte, apenas para admitir a DPU como custos vulnerabilis”.

O tema da atuação da Defensoria Pública, na qualidade de “custos vulnerablis”, como corolário de sua missão institucional na defesa democrática dos interesses dos vulneráveis, alcançou enorme relevância com o reconhecimento pelo STJ em sede de recurso repetitivo.

Por fim, registra-se que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do emblemático Habeas Corpus Coletivo 143.641, impetrado pelo Coletivo de Advogados de Direitos Humanos (CADHu), no qual foi concedida a substituição da prisão preventiva das mulheres gestantes, puérperas ou mães de crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, admitiu a intervenção das Defensorias Públicas do Ceará e Paraná, embora a tenha enquadrado em uma das formas de intervenção de terceiros, como assistente, fundamentou a decisão na atuação do órgão como “custos vulnerabilis”, nada obstante não tenha sido expressamente citada essa expressão no julgado. 

4. CONCLUSÃO

Portanto, a atuação da Defensoria Pública como custos vulnerabilis tem como escopo trazer para os processos argumentos, documentos e outras informações que reflitam o ponto de vista das pessoas vulneráveis, permitindo que o juiz ou tribunal tenha mais subsídios para decidir a demanda.

Portanto, assim como o Ministério Público, na condição de fiscal da ordem jurídica, a Defensoria Pública pode, igualmente, produzir provas, interpor recurso e influenciar em todos os aspectos o convencimento do Juízo em relação ao interesse do grupo vulnerável assistido.

E para que a voz dos vulneráveis seja amplificada na relação processual, a intervenção da Defensoria Pública, na condição de guardiã dos vulneráveis, não pode ser limitada a apenas a hipótese do art.  554, § 1° do Código de Processo Civil, o qual, como visto, deve ser interpretado como exemplificativo da intervenção da Defensoria Pública na qualidade de custos vulnerabilis.


1PAIVA, Caio; FENSTERSEIFER, Tiago. Comentários à lei nacional da defensoria pública. Belo Horizonte: Editora CEI, 2019, p. 41.
2PAIVA, Caio; FENSTERSEIFER, Tiago. Comentários à lei nacional da defensoria pública. Belo Horizonte: Editora CEI, 2019, p. 40.
3PAIVA, Caio; FENSTERSEIFER, Tiago. Comentários à lei nacional da defensoria pública. Belo Horizonte: Editora CEI, 2019, p. 38.
4https://www.dizerodireito.com.br/2019/11/stj-admite-intervencao-da-defensoria.html acesso em 12.01.2020.
5PAIVA, Caio; FENSTERSEIFER, Tiago. Comentários à lei nacional da defensoria pública. Belo Horizonte: Editora CEI, 2019, p. 38.
6Curso sistematizado de direito processual civil, vol. 1: teoria geral do direito processual civil: parte geral do código de processo civil. 9ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 219.
7https://www.dizerodireito.com.br/2019/11/stj-admite-intervencao-da-defensoria.html. Acesso em 05.12.2019
9GONÇALVES FILHO, Edilson Santana; ROCHA, Jorge Bheron; MAIA, Maurilio Casas. Custos Vulnerabilis. A Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: Editora CEI. 2019. p.  92.
10GONÇALVES FILHO, Edilson Santana; ROCHA, Jorge Bheron; MAIA, Maurilio Casas. Custos Vulnerabilis. A Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: Editora CEI. 2019. p.  91.
11Esteves, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves Silva. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 3ed. Rio de Janeiro: Forense. 2019.
12GONÇALVES FILHO, Edilson Santana; ROCHA, Jorge Bheron; MAIA, Maurilio Casas. Custos Vulnerabilis. A Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: Editora CEI. 2019. p.  76.
13GONÇALVES FILHO, Edilson Santana; ROCHA, Jorge Bheron; MAIA, Maurilio Casas. Custos Vulnerabilis. A Defensoria Pública e o equilíbrio nas relações político-jurídicas dos vulneráveis. Belo Horizonte: Editora CEI. 2019. p.  80.
14TJSP, Agravo de Instrumento 2086149-38.2018.8.26.0000, Rel. Ricardo Feitosa; 4ª Câmara de Direito Público, j. 30.07.2018; Registro: 03.08.2018.
15TJSP, Agravo de Instrumento 2007125-58.2018.8.26.0000, Rel. Aroldo Viotti; 11ª Câmara de Direito Público, j. 10.07.2018; Registro: 10.07.2018.
16TJRJ, Agravo de Instrumento 0054474-52.2019.8.19.0000, Rel. Leila Maria Rodrigues Pinto de Carvalho e Albuquerque; 25ª Câmara Cível, j. 06.09.2019.
17TJRJ, Agravo de Instrumento 0024750-03.2019.8.19.0000, Rel. Leila Maria Rodrigues Pinto de Carvalho e Albuquerque; 25ª Câmara Cível, j. 17.07.2019.
18TJRO, Agravo de Instrumento 0802684-46.2018.822.0000, Rel. Sansão Saldanha; 1ª Câmara Cível, j. 11/09/2019.
19TJAM, Agravo de Instrumento 4004330-57.2018.8.04.0000, Relator: Ernesto Anselmo Queiroz Chíxaro; 1ª Câmara Cível, j. 20/08/2019.
20TJSC, Agravo de Instrumento 4006990-32.2019.8.04.0000, Relator: Ricardo Fontes; 5ª Câmara Cível, j. 03/09/2019.
21TJRS Agravo de Instrumento Nº 70077771384, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo João Lima Costa, Julgado em 26/07/2018.
22TJRS Agravo de Instrumento Nº 70075171165, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marlene Marlei de Souza, Julgado em 27/02/2018.
23TJPR Agravo de Instrumento Nº 5037448-06.2019.4.04.0000, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Rogério Favreto, Julgado em 03/09/2019.
24STJ, AgInt no REsp 1729246/AM, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, T2, j. 04/09/2018, DJe 20/11/2018).

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