REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10775298
Ezir Leite de Moura Júnior1
RESUMO
Este estudo busca analisar criticamente o projeto colonial moderno, com foco na região da Amazônia na América Latina. O objetivo é evidenciar a intrínseca ligação entre a modernidade e a colonialidade, especialmente no que diz respeito à produção do saber e do poder baseada em noções etnocêntricas e eurocêntricas que moldaram espaços e povos de forma predefinida e bloqueada. A metodologia adotada baseia-se em análises bibliográficas, que exploram as problemáticas relacionadas às ações da modernidade na produção da colonialidade. O caminho teórico-metodológico escolhido visa expor a face oculta da modernidade como um projeto colonial. Ao dialogar com autores como Aníbal Quijano (2005; 2013) e Mignolo (2017; 2005), busca-se evidenciar que o projeto colonial moderno persiste apesar das mudanças históricas e sociológicas. Os teóricos “decoloniais” sugerem repensar a ciência como verdade determinante da realidade. A proposta é revelar a violência epistêmica e humana da modernidade, destacando a dominação, exploração e colonização que moldaram noções de civilização e progresso na América Latina. Espera-se que este estudo contribua para uma compreensão mais profunda da colonialidade e suas implicações na região amazônica, ampliando o debate sobre o “Amazonialismo” como uma ação contínua da colonialidade presente. Além disso, espera-se elucidar as concepções de história, identidade e espaço por meio de análises críticas dos discursos de poder, contradições e narrativas que sustentaram a lógica modernista.
PALAVRAS-CHAVE: Colonialidade, Amazônias, Acre, decolonialidade.
ABSTRACT
This study critically analyzes the modern colonial project, focusing on the Amazon region in Latin America. The aim is to highlight the intrinsic connection between modernity and coloniality, especially regarding the production of knowledge and power based on ethnocentric and Eurocentric notions that shaped spaces and peoples in a predetermined and blocked manner. The methodology relies on bibliographical analyses exploring the issues related to modernity’s actions in producing coloniality. The chosen theoretical and methodological path aims to expose the hidden face of modernity as a colonial project. Through dialogue with authors such as Aníbal Quijano (2005; 2013) and Mignolo (2017; 2005), it seeks to demonstrate that the modern colonial project persists despite historical and sociological changes. Decolonial theorists suggest reconsidering science as the determining truth of reality. The proposal is to reveal the epistemic and human violence of modernity, highlighting the domination, exploitation, and colonization that shaped notions of civilization and progress in Latin America. This study is expected to contribute to a deeper understanding of coloniality and its implications in the Amazon region, broadening the discussion about “Amazonialismo” as a continuous action of present coloniality. Furthermore, it aims to elucidate conceptions of history, identity, and space through critical analyses of power discourses, contradictions, and narratives that sustained the modernist logic.
KEYWORDS: Coloniality, Amazonia, Acre, decoloniality.
INTRODUÇÃO
O artigo proposto busca articular análises críticas ao projeto colonial moderno, especialmente no contexto da América Latina, com destaque para a região denominada Amazônia. O objetivo é evidenciar que a lógica da modernidade é intrinsecamente ligada à ação da colonialidade. Direcionamos nossa atenção ao papel da modernidade na produção do saber e do poder, fundamentada em noções etnocêntricas e eurocêntricas que moldaram espaços e povos de maneira predefinida e bloqueada.
A metodologia desenvolvida ancorou-se em análises bibliográficas, que levantaram problemáticas relativas às ações da modernidade na produção da colonialidade. Destaca-se o papel do etnocentrismo e eurocentrismo, que se vinculam à colonialidade do saber e do poder. O caminho teórico-metodológico escolhido tem a intenção de expor a face oculta da modernidade como um projeto colonial.
Ao dialogarmos com Aníbal Quijano (2005; 2013) e Mignolo (2017; 2005), torna-se evidente que o projeto colonial moderno não se desfez com as mudanças históricas e sociológicas. Os teóricos “decoloniais” sugerem que repensar a noção de ciência como verdade determinante da realidade é o primeiro passo. Propomos expor a modernidade revelando sua violência epistêmica e humana, destacando a dominação, exploração e colonização que determinam noções de civilização e progresso na América Latina.
Na perspectiva proposta, os reflexos da colonialidade através das construções do saber foram desenhados por uma narrativa moderna pautada no etnocentrismo e eurocentrismo, produzindo um modelo taxinômico e racismo epistêmico. O deslocamento teórico busca reduzir o debate em torno do “Amazonialismo” como uma ação contínua da colonialidade presente.
O historiador Gerson Alburquerque Rodrigues (2017) destaca o papel do Amazonialismo como continuação do projeto colonial moderno. Para o pesquisador, o conceito de “progresso” ou “civilidade” como produtos da modernidade são invenções que silenciam e encapsulam sujeitos e saberes em signos epistemológicos e práticos.
Os termos Amazônia, Amazônia Legal e Pan-Amazônia entram na disputa discursiva por Gerson (2017), que os vê como vestígios das ações da colonialidade contemporânea. A intervenção decolonial amplia o papel da colonialidade nas Amazônias para além das literaturas de viajantes.
Para elucidar as concepções de história, identidade e espaço, acionamos autores como Sérgio Gomes de Sousa (2022), Durval Muniz Albuquerque Jr (2013) e Francisco Bento da Silva (2020). Buscamos tecer análises sobre os discursos de poder, discrepâncias, contradições e narrativas que serviram de referência para as construções da lógica modernista, evidenciando sua relação com os discursos que defendiam o imaginário de civilidade, modernidade e progresso.
A PAUTA “OCULTA” DA MODERNIDADE: DESVELANDO A COLONIALIDADE DO SABER E DO PODER
A tese de que a colonialidade não existe sem a modernidade é apresentada pelo pesquisador peruano Anibal Quijano no estudo “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, publicado em 2005. De acordo com o pesquisador peruano, a complexidade simbólica e material da modernidade gera uma “pauta oculta” que permeia diversos processos históricos. Essa característica problemática está relacionada à construção da colonialidade por meio de duas frentes: o etnocentrismo e o eurocentrismo que invadiram a América Latina.
Aníbal Quijano (2005), parte da premissa de que os espaços e agentes históricos foram inventados a partir da colonialidade do saber e do poder” nos movimentos coloniais. O teórico sugere que as barreiras epistemológicas, mediadas pela modernidade, foram cruciais para estabelecer controles percebidos na sociedade denominada como “pós-moderna”.
No contexto abordado, a questão da “evolução” ou “progresso” civilizacional, conduzida por narrativas da ciência moderna, configura-se como a própria formação da colonialidade do saber e do poder. Walter D. Mignolo, no texto “Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade” (2017), em concordância com Quijano (2005), destaca que a chave das análises decoloniais consiste em expor criticamente o processo de modernidade como um modelo contínuo da colonialidade.
Para ambos os teóricos, o fim do colonialismo como um sistema de dominação social, cultural e político não cessou a produção de engrenagens institucionalizadas por práticas coloniais. Nesse sentido, propomos problematizar o conceito de modernidade com base na seguinte definição: “a modernidade é, assim, também uma questão de conflito de interesses sociais. (…) nesse sentido, todo conceito de modernidade é necessariamente ambíguo e contraditório” (Quijano, 2005, p.125).
A ambiguidade apresentada pelo teórico Quijano (2005) está vinculada à noção da ciência empírica eurocêntrica. A compreensão de progresso estabelecida pela ciência europeia foi defendida pela razão como processos “necessários” na promoção da dominação continental. O tripé modernidade, eurocentrismo e colonialidade fundamenta construtos sociais, culturais e políticos que buscam definir espaço e povo por marcações físicas e simbólicas, estabelecendo relações antagônicas em relação à invenção do “eu” e do “outro”.
Para Aníbal Quijano (2005), a modernidade validada pelo conhecimento científico resultou, por exemplo, na racialização dos corpos como um modelo taxinômico. A colonialidade, enquanto método classificador, normalizou a exploração por meio de construções de superioridade racional, fenotípica e existencial. Essa colonialidade legitimada produz e reforça signos fixos como índios, negros e mestiços.
Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros”. (Quijano,2005, p.117)
A proposta de debate apresentada pelos autores Quijano (2005) e Mignolo (2017) coloca a problemática da “pauta oculta” no centro da discussão. Para os pensadores decoloniais, a problematização da noção de ciência moderna é crucial, pois as transformações da colonialidade ao longo de diferentes períodos e contextos históricos são apontadas como fundamentais na construção de dicotomias epistêmicas.
A racionalidade etnocêntrica buscou e busca, de certa forma, consolidar dualidades existenciais, como colonizadores versus colonizados, civilizados versus incivilizados, superior versus inferior, centro versus margem. À medida que se desenvolve, essa racionalidade estabelece encapsulamentos de diversas visões epistemológicas de sujeitos e saberes, que são atravessados e atravessam a colonialidade.
A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos. A formação de relações sociais fundadas nessa ideia, produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população. Quijano,1992, p.117
No cerne da violência epistêmica e humana estão as retóricas que moldaram as marcações na produção do saber e do poder. O processo da colonialidade, em sua forma mais violenta, não sofreu alterações significativas ou enfraquecimento diante das mudanças históricas, econômicas, sociais e políticas. A constante demarcação de signos, padrões e hierarquizações, ainda “respeitados” ou minimizados por muitos, representa o maior desafio na elaboração de estudos decoloniais.
A proposta de Mignolo (2017), por exemplo, destaca a necessidade de desobedecer a epistemes fixas, questionando enunciados dados como certos e compreendidos sem uma abordagem crítica que escape à matriz colonial. Essa abordagem desafiadora busca romper com as limitações impostas pela colonialidade, incentivando uma análise mais ampla e questionadora da produção de conhecimento e poder.
Assim foi configurada a enunciação da epistemologia ocidental, e assim era a estrutura da enunciação que sustentava a matriz colonial. Por isso, o pensamento e a ação descoloniais focam na enunciação, se engajando na desobediência epistêmica e se desvinculando da matriz colonial para possibilitar opções descoloniais – uma visão da vida e da sociedade que requer sujeitos descoloniais, conhecimentos descoloniais e instituições descoloniais.(Mignolo,2017, P.2).
Nesse contexto, para promover rupturas epistemológicas no conhecimento, é essencial questionarmos nossas próprias certezas, reconhecendo que estas fundamentam “verdades” absolutas moldadas pela ciência moderna. A discussão proposta por Walter D. Mignolo (2017) destaca a retórica da modernidade como um elemento ativo na colonização europeia no Ocidente.
Segundo Mignolo, a colonialidade do poder está intimamente ligada à organização epistêmica de sujeitos, instituições e sociabilidades civilizacionais. Os controles simbólicos e materiais sobre corpos e saberes, ancorados na busca por identidades fixas e hegemônicas, refletem-se em retóricas constituintes do modelo estado-nação.
A estratégia de construção de dicotomias sociais, culturais e políticas serve para impor fixações de princípios e valores baseados no triângulo modernidade, eurocentrismo e colonialidade. Para Mignolo (2017), a interligação desses conceitos molda a noção ocidental do “outro” e de si mesmo. É por meio da colonialidade do saber e do poder que surge a naturalização das instituições em relação à desumanização, evidenciando a violência epistêmica que exclui indígenas, negros e outros agentes históricos do passado e do presente.
A narrativa mostra um cenário dramático, atrás do qual uma estrutura duradoura de administração e controle foi sendo colocada, enquanto esses tipos de eventos se desdobram nos séculos XVI e XVII. Controle e administração aqui significam que os atores e as instituições que construíam o jogo também estabeleciam suas regras, sobre as quais as lutas para o poder decisório se desdobraram. Os africanos e os indígenas estavam excluídos desse processo. Mignolo,2017, P.5).
Nesse cenário, os significados institucionalizados exercem efeitos significativos nas práticas sociais, políticas e culturais. Portanto, a identidade moldada pela colonialidade é o que define o que é, enquanto a diferença é caracterizada pelo que não é, em uma dinâmica em que quem nomeia e quem é nomeado desempenha papéis fundamentais.
Em ambos os casos, a geopolítica, a economia e as relações socioculturais passaram a ser categorizadas por raça, gênero, religião, etnia e classe social. Mignolo, ao analisar a proposta de Mignolo (2017), destaca que esse sistema ocultou outras epistemologias, desvinculando-as dos sujeitos. A colonialidade do saber e do poder, idealizada a partir da racionalidade ocidental, inventou categorias como “humanos” e “não-humanos”
Na sua formulação original por Quijano, o “patrón colonial de poder” (matriz colonial de poder) foi descrito como quatro domínios inter-relacionados: controle da economia, da autoridade, do gênero e da sexualidade, e do conhecimento e da subjetividade. Os eventos se desdobraram em duas direções paralelas. Uma foi a luta entre Estados imperiais europeus, e a outra foi entre esses Estados e os seus sujeitos coloniais africanos e indígenas, que foram escravizados e explorados. MIGNOLO,2017, p.5
O cerne da proposta do autor é evidenciar que o fenômeno “humano”, ao atravessar campos da sociologia, antropologia e psicologia, não pode ser definido unicamente como um resultado da modernidade, mas sim como uma produção da colonialidade. A busca pelo esvaziamento epistemológico da própria ideia de humanidade, por meio de retóricas modernas, sugere, em certa medida, uma segunda “morte do homem”.
A colonialidade só poderá ser esticada se não buscarmos evidenciar os diversos modos de ser e saberes subjetivadores, expressos em línguas e práticas diversas, que desarticulam a padronização do “ser” como um sujeito psicologicamente determinado pela racionalidade. Ao abordar o conceito do “saber” mediado pela lógica decolonial, a intenção é questionar as fenomenologias e dogmas da nossa consciência moldada pela ciência moderna.
Em ambos os casos, a geopolítica e a corpo- -política (entendidas como a configuração biográfica de gênero, religião, classe, etnia e língua) da configuração de conhecimento e dos desejos epistêmicos foram ocultadas, e a ênfase foi colocada na mente em relação ao Deus e em relação à razão. Assim foi configurada a enunciação da epistemologia ocidental, e assim era a estrutura da enunciação que sustentava a matriz colonial. Por isso, o pensamento e a ação descoloniais focam na enunciação, se engajando na desobediência epistêmica e se desvinculando da matriz colonial para possibilitar opções descoloniais – uma visão da vida e da sociedade que requer sujeitos descoloniais, conhecimentos descoloniais e instituições descoloniais. Mignolo,2017, p.6
A proposta de intervenção teórico-metodológica dos estudos decoloniais nos convida a lidar com os paradoxos da modernidade, que se revelam na própria psiquê do “ser”. Nessa abordagem, o fio condutor é o reducionismo de práticas múltiplas que foram, de alguma forma, silenciadas, ocultadas e desvalidadas pela colonialidade do saber e poder, como manifestado por instituições como família, estado e religião.
Refletir sobre a constituição de espaços como elementos inventados mentalmente, por meio de lógicas coloniais, e, posteriormente (mas inseparáveis), a produção de “margens” e “limites” por meio de nomeações, é sempre questionável. O problema central dessa lógica reside na arbitrariedade da engenharia mental e em como seu funcionamento determinou modos de ver e narrar os espaços colonizados.
A “Amazônia”, por exemplo, destaca-se nessa abordagem pela imagem que até hoje perpetua em busca da modernidade. Essa estratégia deslocou os indígenas, por exemplo, considerando-os como parte da natureza, enquanto símbolos exóticos a serem ora exterminados, ora “preservados”.
AMAZONIALISMO E COLONIALIDADE NAS AMAZÔNIAS: O ACRE ENTRE PASSADO E PRESENTE
O pesquisador Gerson Alburquerque Rodrigues (2017) propõe uma abordagem conceitual crítica denominada Amazonialismo, a fim de analisar a colonialidade do saber e do poder nas Amazônias. Em seu texto “Amazonialismo”, publicado no dicionário analítico wa’kürü em 2017, ele define o termo como um conjunto de “conhecimentos” que se baseiam em narrativas, cartográficas e descrições, destacando diferentes facetas da ação colonial.
Rodrigues (2017) busca estabelecer o Amazonialismo como um instrumento analítico para compreender as dinâmicas complexas e multifacetadas que permeiam as relações de poder e conhecimento na região amazônica. O Amazonialismo, segundo Alburquerque (2017), está ligado a práticas colonialistas que criaram a ideia de uma “Amazônia” no mundo da expansão dos impérios das explorações ao “novo mundo”.
Ao relacionar a construção do signo “povos amazônicos” como referência histórica “definidora”. Influenciado por diálogos com o escritor Valter Benjamin relacionar história, historiador e escrita sua escrita, o professor produz problemáticas epistêmicas em torno do processo da colonialidade dentro do Amazonialismo,
Ambos os teóricos buscam problematizar o historicismo, a ideia de progresso, a homogeneidade e linearidade da história como sintomas da colonialidade. A proposta de intervenção visa evidenciar outros pontos de vista, linguagens e saberes, trazendo a história como um campo em ruínas produzido no processo contínuo da colonialidade historiográfica.
Questionar a ideia de “universalização” e “periodização” da História é fundamental para compreender as dominações que potencializam discursos e narrativas presentes na consciência da população. A busca pela cristalização de um povo amazônico fundamenta o tripé da colonialidade diluído no Amazonialismo, perpetuando discursos que moldaram “seres”, “espaços” e “história canônicas”.
Os discursos e narrativas não são elementos abstratos; são formas de controle humano, organizado e manipulado por interesses políticos, econômicos e culturais. O autor questiona a colonialidade romantizada, amigável e harmônica, destacando sua presença em museus que reforçam imagens estrategicamente paralisadas, criando “heróis” e “vilões”.
Alburquerque (2017) convida a problematizar o significante “Amazônia” como parte da própria invenção do conceito, pois sua idealização impossibilitou a observação do “mundo real”. Ele destaca que a região foi produzida por uma lógica externa, definindo por muito tempo a imagem do espaço, do povo e dos modos de vida.
Um significante focado na designação de uma região do mundo que toma como dado em si, como se ali existisse desde sempre, pré-existindo às narrativas históricas que lhe teceram/tecem os fios dos sentidos ou os difundem na condição de “coisa da natureza”, um “dado natural”. Um todo abstrato, “Amazônia”, idealizado como objeto das faces do próprio discurso que lhe inventa e naturaliza, conferindo um paradoxal sentido lógico a habitar as mentes dos que vivem fora e dentro dessa invenção, funcionando como uma das marcas mais profundas da colonialidade do poder e do saber. Alburquerque,2017, p.72
O convite de Alburquerque (2017) para problematizar a violência da colonialidade nas Amazônias, que atravessa tanto o passado quanto o presente, é também endossado por Sérgio Gomes de Sousa em seu texto “O Não Dito sobre Violências, Silenciamentos e Resistências: Lacunas na Historiografia Acreana (1900-1920)”, publicado em 2022 na revista Jamaxi. Além do confronto no campo epistemológico da modernidade/colonialidade, Sousa destaca que sua abordagem serve como “uma forte denúncia das agruras produzidas na Amazônia acreana pelo colonialismo/colonialidade” (Sousa, 2022, p.76).
Para Sousa (2022), o deslocamento do sujeito que analisa a colonialidade não deve ocorrer apenas através da escrita, mas também em conjunto com a ideia de decolonialidade. O cerne da abordagem do pesquisador é o acoplamento da escrita aos processos de lutas e à reescrita da história, pois são desses movimentos que emergem vozes, especialmente as mais tímidas, que são percebidas como parte de um processo de emancipação social por meio da prática oralidade e da escrita decolonial.
Mas para escovarmos os pelos em uma outra direção, desmantelando o que parecia “ajustado”, foi necessário produzir não um “texto de prazer”, que se rendesse às normas, às regras, aos cânones presentes. Fomos por outro caminho, confrontando o passado, dessacralizando eventos e personagens inventados por uma historiografia que nos condena a pensar nosso próprio mundo de maneira achatada, reduzida. Os escritos que compõem este artigo devem ser vistos como uma forte denúncia das agruras produzidas na Amazônia acreana pelo colonialismo/colonialidade, nomeando algozes e expondo as acusações que receberam de genocídio, abuso sexual e escravidão de indígenas. Mas não apenas isto. Também tem a pretensão de contribuir para que seja devidamente restituída a humanidade das populações originárias, solapada pelo colonizador, expressando suas ações de resistências/(re)existências à morte física e cultural que lhes foram impostas. (Sousa,2022, p.76)
A proposta do professor Sérgio Roberto (2022) está centrada nos processos de racialização dos corpos, nos sentidos e na produção de signos fixos. O autor destaca observações por meio de projeções discursivas que tentam moldar formas de vida, alinhadas à lógica de uma Amazônia blocada, uniforme e hegemônica, conforme imaginada e inventada pelos europeus.
O autor convida a atentar para a colonialidade como uma proposta de modelo descritivo e inventivo, inicialmente estabelecida por exploradores e colonizadores e, no presente, vinculada a questões de busca por identidades regionais e nacionais.
Na mesma linha de ação, o texto “Histórias Locais/Projetos Globais: Colonialidade, Saberes Subalternos e Pensamento Liminar”, de Walter Mignolo (2020), traduzido por Solange de Oliveira, propõe analisar a colonialidade do poder dentro da noção colonial. Mignolo articula a partir de uma nova lógica para analisar a colonialidade do poder, destacando que o elemento principal que necessita de deslocamento teórico-conceitual fortaleceu a constituição do sistema moderno/colonial.
A diferença colonial é o espaço onde emerge a colonialidade do poder. A diferença colonial é o espaço onde as histórias locais que estão inventando e implementando os projetos globais encontram aquelas histórias locais que os recebem; é o espaço onde os projetos globais são forçados a adaptar-se, integrar-se ou onde são adotados, rejeitados ou ignorados. A diferença colonial é, finalmente, o local ao mesmo tempo físico e imaginário onde atua a colonialidade do poder, no confronto de duas espécies de histórias locais visíveis em diferentes espaços e tempos do planeta. Se a cosmologia ocidental é um ponto de referência historicamente inevitável, as múltiplas confrontações de dois tipos de histórias locais desafiam dicotomias. A cosmologia cristã e a dos índios norte-americanos; a cristã e a ameríndia; a cristã e a islâmica; a cristã e a confuciana, entre outras, apenas encenam dicotomias quando consideradas uma a uma, não quando comparadas dentro dos limites geoistóricos do sistema colonial/moderno. Mignolo, 2020, p.10
A proposta decolonial destacada anteriormente vai além de uma leitura descritiva positiva da modernidade, enfatizando a necessidade de denunciar práticas paradoxais. Autores como Luciana Ballestrin, em “América Latina e o giro decolonial” (2013), introduzem a ideia de relação antagônica por excelência, fundamental para compreender a dinâmica de ocupação, dominação e invenção de espaços, corpos e comportamentos nas Amazônias.
No texto “Amazônia: uma história de perdas e danos, um futuro a (re)construir” (2013), Violeta Refkalefsky Ballestrin ressalta a necessidade premente de examinar a “Amazônia” como uma encarnação da colonialidade. A autora destaca como essa vasta região tem sido historicamente moldada por dinâmicas coloniais, resultando em uma história de exploração e degradação ambiental que perdura até os dias atuais.
Ballestrin (2013) destaca a importância de uma abordagem crítica que reconheça as complexidades da Amazônia além de suas representações simplistas. Por outro lado, mas na mesma perspectiva, José Loureiro (2002) propõe rupturas epistemológicas em relação ao conceito de “Amazônia”, enfatizando a influência das narrativas mitológicas na formação de imaginários sobre a região.
O autor argumenta que é essencial desconstruir essas representações essencialistas e muitas vezes exotizadas da Amazônia, a fim de entender sua diversidade cultural, ecológica e histórica de maneira mais abrangente e precisa. Dessa forma, tanto Ballestrin quanto Loureiro contribuem para uma compreensão mais profunda das dinâmicas que permeiam a Amazônia, oferecendo perspectivas críticas e sugerindo novos caminhos para a reflexão e ação em relação a essa região vital e complexa.
A compreensão da Amazônia como uma região complexa e multifacetada tem sido objeto de estudo e reflexão por diversos pesquisadores ao longo dos anos. A diversidade de abordagens e perspectivas enriquece o debate sobre a Amazônia, revelando suas nuances históricas, culturais e ambientais. Nesse contexto, é fundamental destacar a contribuição de Francisco Bento da Silva, em “Acre, Formas de Olhar e de Narrar: Natureza e História nas Ausências” (2020), e de Durval Muniz (2013) sobre o termo “Nordestino”.
As análises de Silva e Muniz representam um desafio às identidades estereotipadas e essencializadas que frequentemente moldam as representações regionais. Alinhadas às propostas decoloniais, suas abordagens buscam desconstruir narrativas repetitivas que sustentam construções identitárias, revelando como essas ideias são forjadas por relações de poder e colonialidade. Ao questionar os discursos dominantes, suas reflexões abrem caminho para uma compreensão mais profunda das dinâmicas sociais, culturais e políticas que permeiam não apenas a Amazônia, mas também outras regiões afetadas pela colonialidade.
O diálogo entre essas diferentes perspectivas enriquece o entendimento das complexidades que envolvem a Amazônia e suas interações com as demais regiões. A abordagem decolonial emerge como uma metodologia crítica e transformadora, capaz de desafiar as narrativas hegemônicas e promover uma visão mais plural e inclusiva das identidades e realidades regionais. Essa intersecção de vozes e análises representa um importante passo em direção a uma compreensão mais holística e justa das complexidades da Amazônia e de suas comunidades.
Em resumo, a proposta decolonial visa desvelar narrativas repetitivas sustentando construções identitárias, revelando como essas ideias derivam de relações de força, pensamentos econômicos, políticos e culturais enraizados na colonialidade. Entrar nessas disputas de linguagens possibilita novas perspectivas analíticas, desafiando a linearidade e originalidade presentes nas representações coloniais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho “Decolonizando o Saber: Contribuições Críticas para a Compreensão da Modernidade na Amazônia” articulou relações importantes da colonialidade do saber na região amazônica. A análise realizada proporcionou evidências claras sobre a estreita relação entre modernidade e colonialidade, destacando a face oculta da modernidade como um projeto colonial, influenciado pela invasão europeia, e ressaltando a importância da matriz colonial do poder na compreensão das dinâmicas contemporâneas (REFKALEFSKY BALLESTRIN, 2013; LOUREIRO, 2002).
É crucial compreender que a Amazônia transcende sua geografia, sendo intrinsecamente ligada a narrativas coloniais e processos de conhecimento que perpetuam desigualdades. Nesse sentido, a descolonização do saber emerge como uma necessidade premente para desvendar as complexidades históricas e culturais da região, promovendo uma visão mais justa e inclusiva (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2017).
A contribuição crítica de autores como Gerson Alburquerque Rodrigues, Sérgio Gomes de Sousa, Durval Muniz Albuquerque Jr e Francisco Bento da Silva enriquece significativamente a compreensão decolonial. Ao questionarem a genealogia do Amazonialismo e explorarem seus desdobramentos epistemológicos, esses autores estabelecem uma base sólida para perspectivas decoloniais futuras, incentivando uma abordagem mais plural e contextualizada na produção de conhecimento sobre a Amazônia (RODRIGUES, 2017; SOUSA, 2022; ALBUQUERQUE JR, 2013; SILVA, 2020).
Em síntese, o presente trabalho reforça a necessidade contínua de descolonizar o saber na Amazônia, reconhecendo vozes historicamente marginalizadas e promovendo um diálogo equitativo entre diversas formas de conhecimento. Essa abordagem visa não apenas uma compreensão mais holística e justa da modernidade na região, mas também a consolidação de contribuições críticas para um futuro mais inclusivo e consciente (ALMEIDA, 2020; FERREIRA, 2018).
REFERÊNCIAS
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1Desenvolve pesquisas sobre alimentação no Acre; Grupos de Pesquisa: Pontos de estudos dos saberes e sabores: sociabilidades e cultura alimentar na Amazônia Ocidental – PESCA (Coordenador: Prof. Dr. Francisco Bento da Silva); Narrativa, Literatura e Jornalismo – NALIJOR, (Coordenador: Prof. Dr. Francisco Aquinei Timoteo Queirós). Mestrando no Programa de Pós-graduação em Letras: Linguagem e Identidade (PPGLI), da UFAC. Graduado em Licenciatura em História, pela Faculdade Estácio de Sá (2021). Email: junior.469@hotmail.com