THE (IN)CONSTITUTIONALITY OF CRIMINAL INVESTIGATION PROCEDURES PRESIDED BY A JUDICIAL AUTHORITY, TO THE DETRIMENT OF THE ACCUSATORY SYSTEM.
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10068068
Randelei Mateus Costa1;
Luiz Carlos Ferreira Moreira2
RESUMO
O presente artigo tem a finalidade de trazer reflexão no que tange ao inquérito conduzido por magistrados, tendo em vista que tal procedimento é em regra de natureza inquisitória, o que torna o tema bastante polêmico, no instante em que apresenta certos conceitos anômalos, no que se refere a disposições normativas em regimento interno, acerca da possibilidade de o magistrado conduzir procedimentos de investigação, haja vista que a atividade judicial está atrelada ao princípio da inércia. A discussão está voltada sobre a compatibilidade ou não deste procedimento com a atividade judicial, bem como a sistemática penal de segregação de funções (Sistema Acusatório).
Palavras chaves: Imparcialidade. Magistrado. Sistema Acusatório. Investigação.
ABSTRACT
This article aims to bring reflection regarding the investigation conducted by magistrates, considering that such a procedure is generally inquisitorial in nature, which makes the topic quite controversial, as it presents certain anomalous concepts, in which refers to normative provisions in internal regulations, regarding the possibility of the magistrate conducting investigation procedures, given that judicial activity is linked to the principle of inertia. The discussion is focused on whether or not this procedure is compatible with judicial activity, as well as the criminal system of segregation of functions (Accusatory System).
Keywords: Impartiality. Magistrate. Accusatory System. Investigation.
1 INTRODUÇÃO
No ordenamento jurídico brasileiro é possível observar que a Constituição Federal de 1988 (CF88), é o pilar de sustentação do universo jurídico. Silva (2014, p. 48), afirma que a CF88 é: “a Lei fundamental e suprema do Estado brasileiro. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere poderes e competências governamentais”.
A carta republicana determina o devido processo legal para a resolução de litígios na sociedade, bem como a resposta para esta, quando se trata de violação de bens jurídicos, aos quais a lei penal prevê sanções. Desse modo, o Estado-juiz tem a incumbência de processar e julgar tais demandas, para garantir o exercício dos direitos.
Sobre o sistema inquisitório, Capez (2012, p. 76) afirma que:
O juiz que participar da colheita da prova, atuando como verdadeiro
inquisidor, não estará atuando na função típica de magistrado, ficando,
destarte, sujeito ao comprometimento psicológico com a tese acusatória, tão
comum às partes.
A condução da investigação pelo magistrado, seja por meio de requisição ou mesmo pela efetiva presidência do inquérito, tem poder para influir na convicção do próprio julgador.
O tema tem relevância não apenas no viés jurídico, mas também no âmbito social e antropológico, na medida em que atinge os cidadãos, como também as entidades públicas e privadas na manutenção de suas finalidades institucionais. O respeito aos direitos humanos do investigado é condição sine qua non, para a regularidade do procedimento.
Diante dessa realidade, o magistrado tem a nobre missão de zelar pela garantia do devido processo legal e pela paridade de armas entre as partes. Lima (2020, p. 55), sustenta que:
Há de se assegurar, pois, o equilíbrio entre a acusação e defesa, que devem
estar munidas de forças similares. O contraditório pressupõe, assim, a
paridade de armas: somente pode ser eficaz se os contendentes possuem a
mesma força, ou ao menos, os mesmos poderes.
Esse mecanismo é exceção no sistema processual penal, uma vez que é concebido em uma perspectiva de natureza inquisitória. De acordo com Badaró (2015, p.88), a figura do juiz inquisidor é incompatível com o Estado Democrático de Direito. Na sistemática penal, o inquérito é presidido por uma autoridade policial ou por um membro do ministério público, de modo que é possível perceber a razoabilidade nessa perspectiva, tendo vista que tanto a Autoridade Policial quanto o membro do Ministério Público, têm a missão de apurarem infrações penais.
Em razão desta conjuntura, nota-se que a Polícia Judiciária e o Ministério Público inevitavelmente agem de forma parcial, em razão da natureza de suas atividades, as quais efetivamente necessitam de atos de ofício por parte de seus agentes, uma vez que buscam dar uma resposta à sociedade, motivo pelo qual a condução dos trabalhos é feita pelas respectivas instituições.
Diante disso, cabe ao Poder Judiciário a análise dos pedidos com cláusula de reserva de jurisdição. Significa dizer que o Juiz deve apenas atuar mediante provocação, em razão do princípio da Inércia, nas hipóteses previstas em lei, para garantir a sua imparcialidade e a proteção de direitos fundamentais.
Nesta senda, o presente artigo visa analisar se a previsão legal ou regimental da competência do magistrado para a condução de procedimentos de investigação criminal possui natureza inquisitória, sendo incompatível com a Constituição Federal, violando o Sistema Acusatório.
2 MATERIAL E MÉTODOS
A presente artigo tem como método, o de pesquisa exploratória, para verificar as hipóteses para a solução do problema, de modo que se possa chegar em uma ou mais conclusões.
Para Lakatos (2017, p. 195), os métodos exploratórios são: “investigações de questões ou de um problema, com tripla finalidade: (1 desenvolver hipóteses; (2) aumentar a familiaridade do pesquisador com um ambiente, fato ou fenômeno, para a realização de uma pesquisa futura mais precisa; (3) modificar e clarificar conceitos”.
Será pelo raciocínio indutivo, uma vez que será analisado disposições legais ou regimentais acerca de procedimentos de investigação criminal conduzidos por juízes, mais precisamente nos Tribunais Superiores, os quais possuem ritos e procedimentos diferenciados dos demais tribunais.
Por meio da análise de tais normas em face da CF88, poderá se chegar a constitucionalidade ou não de tais normas.
3 ASPECTOS HISTÓRICOS
A investigação criminal surge como mecanismo de repressão do Estado com a finalidade de proteger um bem maior, o que demonstra uma visão totalmente inquisitória, em que predomina o desrespeito a direitos fundamentais como: contraditório e ampla defesa.
Essa visão está relacionada a aplicação da vingança como forma de punição, o que segundo a doutrina penalista, significa o Direito Penal do Inimigo, desenvolvida por Gunther Jakobs, no qual os direitos básicos do acusado são desrespeitados, conforme Masson (2020, p. 93) o qual explica que:
Inimigo, para ele, é o indivíduo que afronta a estrutura do Estado,
pretendendo desestabilizar a ordem nele reinante ou, quiçá, destruí-lo. É a
pessoa que revela um modo de vida contrário às normas jurídicas, não
aceitando as regras impostas pelo Direito para manutenção da coletividade.
Agindo assim, demonstra não ser um cidadão e, por consequência, todas as garantias inerentes às pessoas de bem não podem ser a ele aplicadas.
Essa retirada de garantias fundamentais tinha como objetivo garantir o cumprimento das normas editadas pelo Estado, por meio da repressão sobre pessoas que de alguma forma descumprissem os seus deveres como cidadãos, bem como a aplicação de penas desumanas, conforme disserta Greco (2019, p.18):
A vingança pública surge, nessa fase da evolução histórica do Direito Penal, e fundamentada na melhor organização social, como forma de proteção, de
segurança do Estado e do soberano, mediante, ainda, a imposição de penas
cruéis, desumanas, como nítida finalidade intimidatória.
Nesse cenário era muito difícil haver a separação de funções, entre o órgão de acusação e órgão julgador, uma vez que o Estado agia precipuamente pelo viés inquisitório.
Na época do Brasil Império vigorou o Código Criminal, o qual foi elaborado em 1830, essa norma previa distinção entre escravos e livres, penas de banimento, morte, açoites, entre outras.
Com a evolução do direito, principalmente no que tange aos direitos humanos, essa perspectiva de buscar a repressão do infrator de qualquer modo, foi sendo substituída pelo devido processo legal, de acordo com Rangel (2023, p.3), salienta que:
A Constituição da República Federativa do Brasil proclama, em seu art. 5º, LIV, que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal”.
O princípio significa dizer que se devem respeitar todas as formalidades
previstas em lei para que haja cerceamento da liberdade (seja ela qual for)
ou para que alguém seja privado de seus bens.
O princípio acima citado é o que prevalece atualmente no ordenamento jurídico brasileiro, de modo que todos tem o direito ao devido processo legal. No entanto, nem sempre tal princípio é cumprido na íntegra, pois é possível perceber desvios na sua aplicação, em que pese ter o instituto patamar constitucional.
No Brasil, há um caso que ficou bastante conhecido, que foi o Inquérito nº 4.781 instaurado no dia 14 de março de 2019 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com a finalidade de investigar a propagação de notícias falsas contra os Ministros deste órgão, também denominadas de Fake News, tal procedimento teve como fundamento o Art. 43 e seguintes do Regimento Interno do STF (BRASIL, 2023):
Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal,
o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à
sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.
§ 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo
ou requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.
§ 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os
servidores do Tribunal.
Art. 44. A polícia das sessões e das audiências compete ao seu Presidente.
Art. 45. Os inquéritos administrativos serão realizados consoante as normas próprias.
No dia seguinte ao da instauração, a Procuradora-Geral da República à época, Raquel Dodge, pediu o arquivamento do inquérito por violar o sistema acusatório, conforme o trecho do Ofício nº 509/2019/ LJ/PGR (BRASIL, 2019) a seguir:
O sistema penal acusatório estabelece a intransponível separação de funções na persecução criminal: um órgão acusa, outro defende e outro julga. Não admite que o órgão que julgue seja o mesmo que investigue e acuse.
No entendimento da Procuradoria Geral da República (PGR), o referido inquérito era incompatível com a ordem constitucional brasileira, na medida em que o Ministro relator da investigação é o ofendido, como também este julga os investigados, de sorte que contamina a fase processual.
O pedido do parquet, foi indeferido pelo STF. Conforme trecho da Decisão (BRASIL, 2019), na qual relata que:
O sistema acusatório de 1988 concedeu ao Ministério Público a privatividade
da ação penal pública, porém não a estendeu às investigações penais,
mantendo a presidência dos inquéritos policiais junto aos delegados de
por instauração e determinação de sua Presidência, nos termos do 43 do
Regimento Interno.
O STF entendeu pela continuidade do inquérito, uma vez que a previsão do Regimento Interno da corte não feriu os princípios constitucionais. O inquérito está aberto até os dias atuais.
4 ASPECTOS SOCIOLÓGICOS
O tema em questão busca verificar se a condução de investigações criminais por juízes, pode violar ou não direitos fundamentais insculpidos na CF88, uma vez que não é razoável que o Poder Judiciário, a quem cabe dizer o direito no caso concreto, agir de forma a atingir de maneira negativa os direitos de outrem.
Cavalieri Filho (2007, p. 49) Informa que:
À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem
preservados (por exemplo, boa-fé) e dos fins a serem realizados (por
exemplo, fins econômicos ou sociais), o juiz deverá determinar o sentido da
norma, com vista à produção da solução adequada para o caso a ser
resolvido. Na cláusula geral o juiz aplica a lei que encontra no Direito e não o
direito que encontra na lei.
A sociedade espera que as instituições se comportem de forma exemplar, sem descumprir direitos, pelo contrário, devem viabilizar o acesso as garantias fundamentais. Quando as pessoas olham para a administração pública, geralmente os seus olhos se voltam para os mandatários de cargos políticos, e esquecem das demais instituições.
Esse desconhecimento tem como consequência, uma maior violação de direitos fundamentais, uma vez que o cidadão comum não tem como saber todos os seus direitos, tendo em vista a vasta legislação brasileira. Isso demanda que os agentes públicos tenham maior preparo para a prestação do serviço público, e entre estes agentes, está a figura do magistrado.
Silva (2019, n.p.) salienta que:
O problema que nos preocupa aqui, é importante dizer, só faz sentido em
contexto democrático. Pois, é perfeitamente possível pensar em uma ordem
jurídica em que a justificação das decisões judiciais seja desimportante ou supérflua; ou uma ordem em que o juiz possa decidir o que quiser, sem o controle de modelos raciocínio que sirvam de padrão para organizar suas
decisões.
O juiz, a quem o Estado dá poderes para dizer o direito, tem a competência para analisar os casos que lhe são apresentados, para que por meio do processo legal, possa garantir efetivamente o exercício de direitos legalmente previstos, para os seus legítimos detentores.
Pacelli (2020, p. 13) afirma que:
Não cabe ao juiz tutelar a qualidade da investigação, sobretudo porque sobre
ela, ressalvadas determinadas provas urgentes, não se exercerá jurisdição.
O conhecimento judicial acerca do material probatório de ser reservado à fase
de prolação da sentença.
Esses poderes conferidos ao juiz, devem ser usados com responsabilidade, uma vez que o seu excesso ou abuso causam desequilíbrio no processo, todavia, isso não quer dizer o juiz não possa tomar atitudes enérgicas em determinadas situações, pois quando há grande desequilíbrio nas relações jurídicas que lhe são apresentas, o magistrado deve garantir o equilíbrio.
Nessa perspectiva, é possível verificar a relevância do tema, haja vista que se trata de direito constitucional, que tem o condão de atingir a todos, inclusive as autoridades públicas. O princípio da separação de poderes indica que estes devem se comportar de forma harmônica, no entanto todos devem respeito a CF88 de acordo com as atribuições de cada um.
Nesta toada, Mendes (2015, p. 546) ressalta que:
É provável que a garantia do devido processo legal configure uma das mais
amplas e relevantes garantias do direito constitucional, se considerarmos a
sua aplicação nas relações de caráter processual e nas relações de caráter
material (princípio da proporcionalidade/direito substantivo).
Desse modo, o Poder Judiciário, como também os demais, tem autonomia para criar normas internas para o seu funcionamento, o que é garantido pelo ordenamento jurídico, todavia, tais normas não devem contrariar dispositivos constitucionais que assegurem direitos fundamentais.
5 A ATUAÇÃO DO MAGISTRADO NA CONDUÇÃO DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
5.1 Corrente favorável ao procedimento
A necessidade de proteger as instituições democráticas, bem como garantir a responsabilização de indivíduos que utilizam das ferramentas digitais, para a propagação de notícias falsas, obrigou a suprema corte a tomar medidas mais enérgicas para tutelar a honra do tribunal e de seus membros, uma vez que as instituições não devem ser intimidadas.
Muito foi questionado acerca do sigilo das investigações no inquérito, no entanto, foi considerado o entendimento da Súmula Vinculante 14 (BRASIL, 2009), a qual dispõe que:
É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos
elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório
realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao
exercício do direito de defesa.
Motivo pelo qual, foi defendido que o procedimento não desrespeitou a ampla defesa e o contraditório dos investigados.
Cabe destacar, a responsabilidade do STF pela guarda da Constituição, conforme o Art. 23, I da (CF88), de sorte que se faz necessária o uso das medidas adequadas para resguardar a sua competência constitucional, bem como responsabilizar todos os que afrontam a sua atuação.
Outro ponto que merece destaque, é sobre o direito de liberdade de expressão, o qual, é um direito fundamental, previsto no Art. 5º, IX da (CF88), todavia, tal garantia não pode ser utilizada para blindar a prática de crimes, de modo que os responsáveis devem suportar as sanções decorrentes das respectivas condutas.
Em que pese o princípio da inércia reger a atuação do poder judiciário, muito se tem discutido sobre a possibilidade da ação das instituições de Estado na defesa do próprio Estado, uma vez que este tem a incumbência de zelar pelo pacto social. Essa ideia de Democracia Defensiva tem o condão de combater levantes contra o Estado democrático de direito, como explicam Rêgo e Oliveira (2023, p. 321), os quais dissertam que: “Democracia defensiva é um conceito utilizado para explicar os mecanismos de defesa empregados por Estados Democráticos em face de partidos e grupos não democráticos.”
A propagação de notícias falsas prejudica todas às áreas da sociedade, tendo em vista, a confusão de informações equivocadas que são amplamente difundidas. Bezerra e Agnoletto (2019, p. 26) enfatizam que:
Os reflexos negativos das notícias falsas se apresentam nos mais variados
espectros da vida cotidiana. Não nos damos conta da energia desprendida
com falsos paradigmas, capazes de induzirem a erro as mais simples
tomadas de decisão. Não bastasse o diagnóstico equivocado da realidade, o
clima turvo de verdades mescladas com falsidades torna as análises da vida
em sociedade sempre duvidosas e inseguras, tudo no mais indesejado clima
de incerteza e recalcitrância diante das necessidades do agir.
Como foi falado em linhas pretéritas, o STF entendeu pela continuidade do inquérito, por meio das disposições regimentais da corte, mas pela sua grande relevância, o tema voltou a ser discutido em sede de controle concentrado, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 572/DF (BRASIL, 2020), proposta pelo partido Rede Sustentabilidade, com a finalidade de verificar a constitucionalidade ou não do procedimento.
O processo teve como Relator o Ministro Edson Fachin, o qual o votou pela constitucionalidade do inquérito que vise investigar notícias falsas e ameaças contra o STF e seus membros, sendo vencido o Ministro Marco Aurélio. Segue o trecho do voto do Ministro Edson Fachin (BRASIL, 2020):
Também emerge mandatório, nesse horizonte de limites, o preceito
fundamental da separação dos poderes, insculpido no art. 60, §4º, III da
Constituição Federal, igualmente invocado pela parte requerente. As grades
de proteção que ponderam freios e contrapesos nas relações independentes
e harmônicas entre os Poderes são o agasalho dessa cláusula pétrea. No
entanto, o exercício do poder não é dependente de outro poder, e a regra
constitucional deve ser apreendida à luz da independência e de ações ou
omissões concretas e não apenas como enunciado hipotético.
Aquele que julga não deve investigar, menos ainda acusar, eis a premissa da
isenção, sinônimo de independência. Ao fazê-lo, como permite a norma
regimental, esse exercício infrequente e anômalo submete-se a um elevado
grau de justificação e a condições de possibilidade sem as quais não se
sustenta. Dentre tais condições, é inarredável a imparcialidade, a seu turno exposta na inicial como “elemento essencial no devido processo constitucional
acusatório”.
O nobre Relator considerou que a disposição regimental sobre a condução de inquérito pelo próprio STF se coaduna com a CF88, uma vez que tal procedimento não é frequente e tem caráter especial, tendo em vista que necessita de justificativa altamente relevante, para fins de proteção da instituição e do Estado democrático de direito.
Para o STF, o princípio da separação de poderes deve levar em consideração que nenhum dos poderes é absoluto, de sorte que na medida em que houver violação desse princípio, qualquer dos poderes pode agir para garantir a ordem do Estado de direito, bem como a preservação de suas competências constitucionais. O STF busca garantir a interpretação conforme a constituição, como é possível observar em trecho do voto do Ministro Celso de Melo (BRASIL, 2020).
A única – e fundamental – diferença que existe entre a atuação desta Corte
Suprema nos processos em que profere o seu julgamento e a possibilidade
democrática de ampla discussão social em torno da Constituição, passando,
inclusive, pelo “diálogo institucional” entre os órgãos e Poderes constituídos,
reside no fato, jurídica e processualmente relevante, de que a interpretação
dada pelo Supremo Tribunal Federal revestir-se-á de definitividade nas
causas que julgar, pondo termo ao litígio nelas instaurado, seja com efeito
“inter partes” (controle incidental ou difuso de constitucionalidade), seja com
efeito “erga omnes” e eficácia vinculante (controle normativo abstrato de
constitucionalidade).
O caráter excepcional do referido inquérito ficou demonstrado pelas constantes ameaças de determinados grupos aos Ministros da suprema corte, os quais buscavam mediante incitação de atos antidemocráticos, como: sugerir o fechamento do STF, decretar a prisão de Ministros do STF, propagação de notícias descontextualizadas e falsas, acerca da atuação dos membros da corte constitucional brasileira.
Importante também foi a ponderação acerca do sistema acusatório no trecho do voto do Ministro Ricardo Lewandowski (BRASIL, 2020):
Outrossim, não se registrou, no curso da investigação, qualquer impedimento
para a atuação do Parquet, como também não se verificou nenhuma
dificuldade de acesso aos autos pelos advogados dos investigados. Pelo
contrário, o Ministro Alexandre de Moraes, Relator do Inquérito 4.781/DF,
informa que garantiu amplo acesso aos autos à PGR e aos referidos defensores, nos exatos termos da Súmula Vinculante 14. Evidentemente, o
múnus acusatório e o direito ao contraditório e à ampla defesa somente serão
exercidos no momento processual apropriado.
Conforme o exposto, a suprema corte por maioria decidiu que o inquérito conduzido por Ministro do STF, não fere o sistema acusatório, e está em conformidade com a CF88, na medida em que não desrespeita os direitos fundamentais do investigado, e nem contamina a fase processual, devido a sua excepcionalidade.
5.2 Corrente contrária ao procedimento
Para esta corrente, no tocante a atuação do juiz, este sempre deve agir de forma imparcial consoante o disposto no Art. 2º do Código de Processo Civil (CPC). A inércia do juiz visa assegurar que este não tome partido na lide, de modo que tem apenas a incumbência de decidir acerca das proposições que lhe são feitas, muito embora haja exceções nas quais pode agir de ofício, mas sempre com o intuito de garantir a efetividade do processo sem violar direitos fundamentais.
Neste sentido, Prado (2005, s.p.) ressalta que:
Hoje, a volta a esse estado de coisas não pode ser compreendida como
evolução. A artificial designação de sistema adversarial, para definir o
acusatório em que a inércia probatória do juiz é regra, para distingui-lo de
outro sistema acusatório em que o juiz tem poderes instrutórios, só atende ao
propósito de tentar prolongar a vida do Código de Processo Penal de 1941,
da era autoritária, naquilo que nele é central, tal seja a filosofia de que se trata
de instrumento da política de segurança pública do Estado e não de previsão
das regras do devido processo legal, conforme a Constituição da República
de 1988.
Com relação ao processo legal, é este cenário que o sistema jurídico apresenta no tocante as ações da autoridade judiciária. Porém existem outros instrumentos jurídicos que gravitam no ordenamento jurídico, entre eles estão os procedimentos de investigação criminal, também chamados de Inquéritos, tais procedimentos visam subsidiar futuras ações penais.
Quando tratamos de investigação de criminal, necessariamente o agente inquisidor age com parcialidade, pois tal atuação é inerente ao seu mister, nessa perspectiva, o juiz só deve se manifestar nos momentos processuais, ou quando a medida tiver cláusula de reserva de jurisdição.
Nesta visão, o Ministério Público como fiscal da ordem jurídica, acertadamente, atuou de forma coerente com a Carta Republicana, quando requereu ao STF, o arquivamento do inquérito, uma vez que o titular da ação penal pública é o órgão ministerial, bem como este faz o controle externo da atividade policial, nos termos do Art. 129, incisos I e VII da (CF88).
Rangel (2015, p. 20) explica que:
A imparcialidade do juiz tem perfeita e íntima correlação com o sistema
acusatório adotado pela ordem constitucional vigente, pois, exatamente
visando retirar o juiz da persecução penal, mantendo-o imparcial, é que a Constituição Federal de exclusividade da ação penal ao Ministério Público,
separando, nitidamente, as funções dos sujeitos processuais.
A atuação de Ministro do STF na condução dos trabalhos do inquérito, não é razoável, uma vez que tal anomalia entra em choque com as bases do sistema acusatório, sistema este, utilizado nos países democráticos, tendo em vista a garantia dos direitos do acusado, bem como a segregação de funções entre defesa, acusação e órgão julgador.
Sendo o STF e seus membros as vítimas, em tese, a parcialidade é inevitável, na medida em que as convicções pessoais podem influir no fluxo decisório. Sobre essa ideia, Lopes Jr. (2023, p. 394) salienta que:
Como já explicamos, não existe parte imparcial, isso é uma construção
equivocada e que não encontra qualquer amparo lógico ou semântico. O MP
é, no processo penal, uma parte artificialmente criada e construída para ser
o contraditor natural do sujeito passivo, retirando poderes do juiz para, com
isso, criar condições de possibilidade para que se estabeleça uma estrutura
dialética e um processo penal acusatório.
A vítima naturalmente quer que seus ofensores respondam pelos seus atos, todavia, o julgador precisa necessariamente ter sua imparcialidade preservada, para que não se deixe contaminar. Sendo o julgador também a vítima, é no mínimo irrazoável que este conduza o inquérito, uma vez que o magistrado apenas se pronuncia quando provocado.
Ademais, os procedimentos de investigação têm natureza inquisitória, o que se mostra incompatível com atividade jurisdicional. No sistema acusatório há a possibilidade de o juiz agir de ofício, mas com o intuito de resguardar a integridade do processo, conforme Reis (2021, pg. 4), o qual informa que:
É preciso, entretanto, salientar que não se trata do sistema acusatório puro,
uma vez que, apesar de a regra ser a de que as partes devam produzir suas
provas, admitem-se exceções em que o próprio juiz pode determinar, de
ofício, sua produção de forma suplementar.
Sobre o dever de imparcialidade do juiz, Nucci (2020, p. 103) enfatiza que:
Em processo penal, tais regras são absolutas: o juiz não atua de ofício para
inaugurar a ação penal e a conduz sob impulso oficial, mesmo diante do des
dém de qualquer das partes. Cabe ao titular da ação penal, que é o Ministério
Público (art. 129, I, CF), como regra, essa providência.
Os atos no procedimento de investigação indubitavelmente terão um viés inquisitório, como é o caso dos inquéritos policiais, os quais são conduzidos por delegados de polícia, conforme o Art. 1º da Lei nº 12.830/2023, bem como os procedimentos investigatórios criminais, que são de atribuição de membros do ministério público, e tem a mesma finalidade do inquérito policial, que é a de apurar a materialidade e autoria de crimes.
Sobre a natureza do inquérito policial, Lima (2020, p. 175) explica que:
Trata-se de procedimento de natureza administrativa. Não se trata, pois, de
processo judicial, nem tampouco de processo administrativo, porquanto dele
não resulta a imposição direta de nenhuma sanção. Nesse momento, ainda
não há o exercício de pretensão acusatória. Logo, não se pode falar em
partes stricto sensu, já que não existe uma estrutura processual dialética, sob
a garantia do contraditório e da ampla defesa.
O Ministério Público adquiriu a atribuição de investigar por decisão do STF no Recurso Extraordinário 593727, em sede de repercussão geral: Tema 184 – Poder de investigação do Ministério Público (BRASIL, 2015):
Tese:
O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade
própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que
respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a
qualquer pessoa sob investigação de Estado, observadas, sempre, por seus
agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as
prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso país, os
advogados (Lei 8.906/1994, art. 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII,
XIV, e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos,
necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos
membros dessa Instituição.
Tanto a Polícia Judiciária quanto o Ministério Público são órgãos que tem função investigativa, de modo que é natural que seus membros tenham certa parcialidade na condução de seus trabalhos, tendo em vista que visam resguardar os interesses da sociedade, no entanto, devem seguir os parâmetros legais, e seus atos podem ser objeto de controle no âmbito judicial.
Tais órgãos necessariamente promovem esforços de maneira bastante ativa, quando requisitam informações por meio de oitivas, visita ao local do crime, entre outras ações correlatas, ou seja, tais agentes públicos agem conforme suas convicções, indícios, suspeitas, e possibilidades, o que é natural para órgãos dessa natureza.
Nesse ambiente investigativo, o poder judiciário se pronuncia quando há necessidade de análise judicial, como pedidos de interceptação telefônica, busca e apreensão, entre outras matérias que necessitam de autorização da autoridade judiciária, logo, a condução da investigação pelo magistrado pode influir na análise da fase processual, uma vez que o julgador participou ativamente do procedimento, de sorte que a sua imparcialidade estaria comprometida.
A imparcialidade do juiz decorre do princípio da inércia. Segundo Lopes Jr. (2022, p. 301), o juiz só deve agir mediante invocação dos legitimados para propor a ação penal, uma vez que a CF88 veda que o juiz proceda de ofício nas ações penais.
A temática gera muita polêmica no Brasil, haja vista a sua extensa dimensão territorial, bem como as suas peculiaridades regionais, e tal complexidade atinge também as instituições, as quais estabelecem regras específicas para o exercício de suas atividades, de modo que é assegurado aos órgãos do poder judiciário a elaboração dos seus regimentos internos, conforme o dispõe o Art. 96, caput, I, a), da CF88, (BRASIL, 1988):
Art. 96. Compete privativamente:
I – aos tribunais:
a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com
observância das normas de processo e das garantias processuais das partes,
dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos
jurisdicionais e administrativos;
Como foi citado em linhas anteriores, o inquérito 4781 tem previsão regimental, muito embora o regimento interno tenha eficácia de lei no âmbito dos tribunais, tal norma não pode trazer inovações para além do que está assentado em lei.
Nessa perspectiva, não poderia o regimento interno prever que a condução de inquérito fosse feita por Ministro do STF, por uma questão de razoabilidade, tendo em vista a natureza de atuação precipuamente decisória que tem um magistrado desta envergadura.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Carta republicana assegura a proteção dos direitos fundamentais, uma vez que todos são iguais perante a lei, conforme o caput de seu Art. 5º, esse postulado deve ser reverberado por todos os rincões desse Brasil, pois ninguém está acima da lei, e todos devemos respeito a constituição, do menor ao maior, do pequeno ao grande, do mais pobre ao mais abastado, do mais humilde ao mais poderoso.
Os instrumentos utilizados pelo Estado devem respeitar os direitos básicos dos indivíduos que estão na condição de investigados ou processados. Independentemente da interpretação acerca da viabilidade ou não do inquérito conduzido por magistrado, o poder judiciário na condução de procedimentos de investigação criminal tem a árdua missão de exercer o controle dos atos com responsabilidade, uma vez que o poder conferido aos seus membros tem grande impacto na sociedade.
REFERÊNCIAS
Bezerra, Clayton da Silva; Agnoletto, Giovani Celso. Combate às Fake News. 1 ed. – São Paulo: Editora Posteridade. 2019
Silva, Felipe Gonçalves. Manual de sociologia jurídica/Felipe Gonçalves, José Rodrigo Rodrigues. – 3.ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019. 1. Sociologia jurídica I. Título II. Rodriguez, José Rodrigo. Livro Digital (E-pub).
Cavalieri Filho, Sergio. Programa de Sociologia Jurídica/Sergio Cavalieri Filho. – Rio de Janeiro: Forense, 2007.
Silva, José Afonso da. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO. 25. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2014.
Capez, Fernando. Curso de processo penal/Fernando Capez. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. rev. ampl. e atual. – Salvador: JusPodivm, 2020.
Pacelli, Eugênio. Curso de Processo Penal/Eugênio Pacelli. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2020.
Mendes, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional/Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015.
Prado, Geraldo. Sistema Acusatório – A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. Editora: Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2005
Lakatos, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica/Marina de Andrade Marconi, Eva Maria Lakatos. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2017.
Masson, Cleber. Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120) – v. 1/ Cleber Masson. – 14. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020.
Greco, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 21. ed., rev. ampl. e atual. 2019
Rangel, Paulo. Direito processual penal/Paulo Rangel. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
Rangel, Paulo. Direito processual penal/Paulo Rangel. 30. ed. São Paulo: Atlas, 2023.
Reis, Alexandre Cebrian Araújo. Direito processual penal/ Alexandre Cebrian Araújo Reis, Victor Eduardo Rios Gonçalves./coord. Pedro Lenza. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
Lopes Jr, Aury. Direito Processual Penal / Aury Lopes Jr. – 19. Ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2022.
Nucci, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal/Guilherme de Souza Nucci. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
Badaró, Gustavo Henrique. Processo penal/Gustavo Henrique Badaró. 3. ed. rev.
atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013.
BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Regimento Interno. 2023. Disponível em: https://www.stf.jus.br/ARQUIVO/NORMA/REGIMENTOINTERNO-C-1980.PDF Acesso em: 23 de setembro de 2023
BRASIL. Ministério Público Federal. Ofício da Procuradoria-Geral da República. 2019. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/INQ4781.pdf. Acesso em: 23 de setembro de 2023
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão do Ministro Alexandre de Moraes. 2019. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/publicacoes/abrirDocumento.asp?tipo=documentoGeral&nume ro=85A52A63B78F8B42986C770AEF229B92. Acesso em: 19 de outubro de 2023
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão. Arguição De Descumprimento de Preceito Fundamental 572 Distrito Federal. 2020. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15346358281&ext=.pdf. Acesso em: 26 de outubro de 2023
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 14. 2009. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=26&sumula=1230. Acesso em: 26 de outubro de 2023
Rêgo, Eduardo de Carvalho; Oliveira, Gustavo Henrique Justino de. Democracia defensiva no Supremo Tribunal Federal: o inquérito das fake news como estímulo para a construção de uma jurisprudência constitucional em defesa da democracia. Revista Digital De Direito Administrativo. 2023. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rdda/article/view/201661. Acesso em: 26 de outubro de 2023
BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tema 184 – Poder de investigação do Ministério Público. 2015. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incid ente=2641697&numeroProcesso=593727&classeProcesso=RE&numeroTema=184. Acesso em: 29 de outubro de 2023.
1Acadêmico do curso de Bacharelado em Direito. E-mail: randeleimateuscosta@gmail.com.
2Professor Orientador. Professor do curso de Bacharelado em Direito. E-mail: luizigor3000@gmail.com.