CULTURA SURDA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202409191608


Ana Karolyna Sena Santos Silva
Deuzeli Guimarães Nolêta
Edaiane Sales de Sousa
Luziane Damasceno Silva Bezerra
Vanusia José Santana


RESUMO

O artigo explora a cultura surda como uma forma única de comunicação e expressão visual, centrada na LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). Ele destaca que a cultura surda não se limita à comunicação, mas abrange experiências visuais, literatura, artes, vida social e esportiva, além de aspectos familiares e políticos. A cultura surda constroi a identidade das pessoas com surdez, sendo um patrimônio que integra diferentes manifestações culturais e sociais. O artigo reforça que a inclusão e aceitação dessa cultura é essencial para a integração social dos surdos. A pessoa surda, em sua compreensão de mundo, desenvolve uma comunicação visual, substituindo a linguagem falada e ouvida, que vai além da simples comunicação, configurando-se como uma expressão cultural e social que possibilita a participação e interação no mundo de maneira única.

Palavras-chave: Cultura SurdaLIBRAS, Comunicação VisualInclusão, Identidade Surda.

Abstract:

The article explores Deaf culture as a unique form of visual communication and expression, centered on LIBRAS (Brazilian Sign Language). It emphasizes that Deaf culture extends beyond communication, encompassing visual experiences, literature, arts, social and sports life, as well as familial and political aspects. Deaf culture constructs the identity of deaf individuals, serving as a heritage that integrates diverse cultural and social manifestations. The article reinforces that inclusion and acceptance of this culture are essential for the social integration of the Deaf community.

Keywords: Deaf Culture, LIBRAS, Visual Communication, Inclusion, Deaf Identity.

INTRODUÇÃO

A pessoa surda, na compreensão do mundo desenvolveu uma comunicação espaço visual, em substituição à linguagem falada e ouvida. A sua língua, no Brasil, é a LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais. Em outros países existem outras formas de linguagem, mas todas, além de facilitar a comunicação, são ricas em cultura, uma estratégia social na participação no e sobre o mundo.

Tradicionalmente, Cultura pode ser definida como crenças, ideias, conceitos que permitem a integração entre grupos sociais. Pode ser expressa através da linguagem, das artes, das motivações, dos juízos de valor, de modo que pode ser recriada de acordo com os grupos que nela se inserem.

Para a comunidade surda, sua cultura é um vínculo linguístico, um patrimônio que expressa suas formas de organização, um estilo de vida, capaz de gerar ordem no grupo a partir de códigos próprios. Ela não tem significado apenas com a LIBRAS, podendo compor- se de literatura própria, sua história no tempo e todas as manifestações literárias e de arte que fazem parte do universo ouvinte. Em outras palavras, a cultura surda se exprime como a forma que o sujeito tem de viver o silêncio, o sentir e não ouvir as vibrações de uma música, é o sentir o mundo puramente no visual.

Neste contexto, o objetivo deste trabalho é aprender sobre a cultura surda e como ela deve ser entendida a partir de características próprias e não como fragmentos de uma cultura ouvinte consolidados.

CULTURA SURDA: Características e Definições

A pessoa surda é ser social, e como todos possuem características e gostos próprios, não podendo ser vinculado a um deficiente por, na visão estereotipada do ouvinte, não ter capacidade de expressão pela oralidade. Ele é um sujeito que pertence a uma cultura e língua diferente, com uma identidade que permeia toda a sua dinâmica de mundo, onde seus aspectos culturais são específicos e não podem ser rejeitados já que a cultura não é estática, mas varia no tempo e no espaço, dependente do grupo no qual está inserida.

Segundo Lorenço et al (2012, p.26), não se pode falar de uma cultura universal, mas de um multiculturalismo tendo como ponto de partida o homem social e suas produções coletivas que se modificam ao passar por gerações. Ou seja, cada grupo social irá aperfeiçoar seus conceitos culturais, integrando novas possibilidades a partir de mudanças naturais e tecnológicas, considerando a sua história e evolução no tempo.

Santana e Bergamo (2005, p. 552), aponta que, pela cultura, o sujeito afirma identidades individuais e coletivas, afirmando sua forma de ver e interpretar o mundo. Epistemologicamente, pode-se definir Cultura, do latim colere como um complexo que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a lei, a moral, os costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo homem no seu convívio familiar e social.

Miranda (2010, p.8), destaca a definição de cultura do antropólogo Ward Goodenough como tudo o que torna possível à pessoa se relacionar com os outros, criando modelos específicos de aprendizagem, relacionamento e interpretação social.

A cultura surda é definida como o a capacidade que o surdo tem de integrar-se ao mundo por meio de hábitos, língua e crenças, contribuindo para a consolidação de sua identidade. Não obstante, a cultura surda também é local, em outras palavras, cada comunidade tem aspectos próprios de comunicação que o permite se organizar de acordo com interesses em comum, como a religião, por exemplo (LORENÇO et al, 2012, p. 30). Porém, só é possível falar de cultura surda quando os seus integrantes utilizam a LIBRAS ou outras denominações de línguas surdas como língua materna. Isso significa que os ouvintes ou intérpretes integrantes da comunidade surda não pertencem culturalmente a ela, já que utilizam a LIBRAS como uma segunda língua.

Para Lorenço et al (2008, p. 28), o povo surdo se interage por que são capazes de compartilhar costumes, aspectos e tradições históricos sociais, mesmo pertencendo a comunidades diferentes, porque estão ligados por um código independente do nível linguístico, a saber, uma formação visual independente.

  A existência de uma Cultura Surda ajuda a construir a identidade das pessoas com surdez. Nesse sentido, falar em Cultura Surda necessita também falar da questão identitária. Um surdo estará mais ou menos próximo da cultura surda a depender da identidade que assume dentro da sociedade (LORENÇO et al apud BRASIL, 2004)

Por essa razão, os autores utilizam-se dos estudos de Strobel (2008) para caracterizar a cultura surda a partir de artefatos culturais, definidos como representações materiais, de atitude, tradições, valores, normas, entre outros, permitindo a compreensão dessa diversidade cultura integrada à vivência cotidiana do ouvinte e por vezes ignorada, por falta de conhecimento ou preconceito. São elas: Experiências Visuais, Linguístico, Familiar, Literatura Surda, Vida Social e Esportiva, Artes Visuais, Político e Materiais.

1 – EXPERIÊNCIAS VISUAIS

Abrange expressões faciais e corporais durante a comunicação pela LIBRAS. Sua importância está relacionada com a conversação, permitindo a intensidade da comunicação, como expressão de sentimentos, ações e percepções.

Para constituir tipos de frases na oralidade usamos a entonação da voz, no caso da língua de sinais as expressões facial e corporal. Temos também aqui a percepção visual. Com a ausência da audição e do som, os Surdos percebem o mundo através de seus olhos, tudo o que ocorre ao redor dele: latidos de um cachorro, os objetos que caem, fumaça que surge (LORENÇO et al, 2008, p.33).

As Experiências Visuais na cultura surda são fundamentais para a comunicação e interação social. Os surdos utilizam a visão como seu principal meio de perceber e compreender o mundo ao redor. Isso inclui não apenas a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), mas também outras formas de expressão, como gestos, expressões faciais, e a percepção visual de eventos cotidianos. As experiências visuais são amplamente exploradas em narrativas, expressões artísticas e interações sociais, promovendo uma forma única de engajamento com o ambiente e com outras pessoas.

2 – LINGUÍSTICO

Neste artefato está incluso a Língua de Sinais que capta as experiências visuais dos sujeitos surdos. Essa língua varia de acordo com os países, e alguns gestos são distintos no interior de um mesmo estado, de acordo com particularidades regionais. Sua utilização facilita o entendimento da língua portuguesa que, mesmo podendo ser aprendida, nunca será de forma natural como no caso da língua de sinais.

Miranda apud Quadros (2010, p. 10), lembra que a Libras surgiu da necessidade natural de comunicação já que os surdos não conseguem utilizar o canal oral e auditivo, mas o visual e espacial. São mecanismos linguísticos legítimo e completo, com formatações próprias, um repositório cultural manifestando uma identidade cultural completa.

O aspecto linguístico da cultura surda é central para a construção da identidade e interação social dos surdos. A principal forma de comunicação na comunidade surda é por meio da língua de sinais, que utiliza gestos, expressões faciais e corporais para transmitir informações. No Brasil, a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) desempenha esse papel, sendo reconhecida legalmente como uma língua oficial. A língua de sinais não é apenas um meio de comunicação, mas também um elemento fundamental na formação cultural e social da comunidade surda.

3 – FAMILIAR

O artefato familiar denota os conflitos na aceitação da família diante do diagnóstico médico da surdez. Muitos pais querem incentivar os filhos a aprender pela oralidade e demoram a compreender o direito que o filho tem de aprender LIBRAS, seja porque desconhecem ou porque desejam um filho “normal”, ansiando por colocar aparelhos auditivos que resolvam ou amenize o “problema”. Quando os pais são também surdos, torna-se mais fácil o diálogo e convivência social da criança. Caso contrário, a criança se exclui das conversas no interior do próprio lar, tornando-se marginalizadas do convívio familiar.

O conceito de “familiar” na cultura surda aborda como o ambiente doméstico influencia a formação da identidade e cultura dos surdos. Quando os pais também são surdos, a interação e participação nas atividades familiares ocorrem naturalmente, promovendo a aceitação e reforço da identidade surda. Por outro lado, em famílias ouvintes, as crianças surdas podem enfrentar desafios na comunicação e, muitas vezes, podem ser excluídas das conversas, levando a um distanciamento do convívio familiar. A aceitação e o aprendizado da Língua de Sinais por parte dos familiares ouvintes são essenciais para a inclusão dessas crianças no ambiente doméstico.

Diferentemente disso, crianças Surdas de família com outros Surdos participam das manifestações em família, conversam, interagem, e podem até não se achar diferente e à margem do resto do mundo! Quando a família ouvinte sabe da existência da Cultura Surda e procura se aprofundar e aprender LIBRAS, participar da comunidade surda, dá também à criança Surda, oportunidade de relação e efetiva troca de saberes durante os diálogos. Esse tipo de relação, em geral, resulta na aceitação de identidade surda e na transmissão natural da Cultura Surda (LORENÇO et al, 2012, p. 34).

3 – LITERATURA SURDA

Neste artefato está incluso toda a produção literária específica para o surdo ou interessados em aprender sobre sua cultura. Inclui literatura impressa, multimídia, sempre com o interesse de compartilhar vivências e expressões literárias da própria língua portuguesa como contos e histórias infantis clássicas (Cinderela, Rapunzel) ou outras denotações linguísticas.

Segundo Lorenço et al (2012, p. 34), esta literatura também abrange piadas e histórias engraçadas, exploradas pela expressão facial e corporal, domínio da língua ou estrutura própria de cada um contar.

A Literatura Surda pode ser definida como um conjunto de produções literárias criadas por pessoas surdas, que expressam suas vivências, cultura e identidade através da Língua de Sinais. Ela inclui narrativas, poesias, contos e histórias que utilizam a linguagem visual e corporal, valorizando a experiência sensorial dos surdos. Segundo Quadros e Karnopp (2004), a Literatura Surda não apenas narra histórias, mas também ressignifica o espaço cultural e social dos surdos, proporcionando uma forma de resistência e expressão cultural dentro e fora da comunidade surda.

5 – VIDA SOCIAL E ESPORTIVA

Assim como a sociedade ouvinte, a comunidade surda tem acontecimentos sociais e culturais próprios como eventos desportivos, casamentos e festas, apresentações musicais, lazeres diversos. Nestes espaços, a conversação é comum, porque os surdos sentem-se à vontade para trocar experiências, compartilhar novidades e fofocas. Além disso, é uma oportunidade de alertar que, como os ouvintes, eles naturalmente são capazes de participar do mundo. Um exemplo foi a participação dos atletas surdos Alex Borges e Alexandre Couto nas Olimpíadas de 2007, na Austrália, quando a dupla conseguiu um quinto lugar ou a conquista do atleta e nadador surdo Terence Parkin, medalha de prata nos 200 metros nado peito em Olimpíada Internacional de 2000, disputado com atletas ouvintes.

A comemoração é feita com o levantamento dos braços e o balançar de mãos, transpassando o alcance visual do surdo, com a possibilidade de sentir as mais variadas emoções.  

6 – ARTES VISUAIS

Esta categoria de artefato sintetiza as produções artísticas dos surdos como pinturas, desenhos, esculturas e manifestações artísticas diversas.

É no contato com a arte, na sua descoberta e na sua produção e expressão, que o surdo vai se constituindo sujeito da experiência visual, um sujeito que percebe o que está a sua volta por meio da visão, e que usa a arte como forma de descrição de sua história, de suas vivências, de seus medos, expectativas, do seu eu (BATAGLIN, 2012, p. 07).

A banda Surdodum, criada em 1994, é um exemplo dessa produção artística surda. Ela reúne surdos e ouvintes em um projeto de inclusão musical em Brasília, coordenado pela alfabetizadora Ana Lúcia Soares. Para o grupo, o objetivo é oferecer uma integração musical através da percussão, num processo sócio – pedagógico e cultural. No teatro, o autor surdo mais conhecido é Nelson Pimenta, formado em cinema e mestre em Estudos de Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina. Além de Pimenta, pode-se citar a atriz norte-americana Marlee Matlin (Oscar de melhor atriz em 1987 no filme “Filhos do Silêncio”) e a francesa Emanualle Laborit (escritora do livro “O voo da Gaivota”). As artes visuais na cultura surda desempenham um papel crucial na expressão e representação das vivências e identidade dos surdos. Essas produções incluem pinturas, desenhos, esculturas e outras manifestações artísticas que enfatizam a percepção visual como forma de comunicação. Através da arte, os surdos podem explorar e expressar sua visão de mundo, experiências pessoais e culturais, medos e expectativas. 

7 – POLÍTICO

Uma democracia sem a participação do povo é uma democracia autoritária. Neste sentido, o artefato político corresponde às lutas e manifestações pelo direito do povo surdo. Ela inclui desde manifestações para criação de leis, programas governamentais de apoio e criação de associações e assembleias visando os direitos judiciais e de cidadania dos surdos.

Dessas lutas surge o decreto-lei que regulamenta a Língua Brasileira de Sinais, Lei n° 10.436, de 24 de abril de 2002 e o artigo 18 da Lei n° 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Tais leis definem o que seja a pessoa surda – aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da LIBRAS e a inclusão da Libras como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, Distrito Federal e Municípios.

8 –  MATERIAIS

Possibilitam a acessibilidade do surdo ao mundo ouvinte. Engloba o telefone para surdos, softwares, aparelhos tecnológicos, legendas e intérpretes de LIBRAS em programas locais e filmes brasileiros, entre outros. Pode ser considerado artefato inclusive o uso de celulares e computadores para envio de mensagens. Os materiais que facilitam a acessibilidade dos surdos ao mundo ouvinte são essenciais para garantir sua inclusão plena na sociedade. Além de telefones para surdos, softwares e tecnologias assistivas, outros recursos como legendas em tempo real, intérpretes de LIBRAS em diversas plataformas e programas televisivos são cruciais. Ferramentas como celulares e computadores possibilitam o envio de mensagens de texto e vídeo, ampliando a comunicação e promovendo autonomia. Esses artefatos tornam as interações mais acessíveis, permitindo a participação dos surdos em diversos contextos sociais, educacionais e culturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Língua Brasileira de Sinais não pode ser interpretada como um conjunto de sinais e gestos, mas como uma linguagem que permite a integração entre o concreto e o abstrato, pois inclui além de símbolos e gestos, várias percepções numa linguagem manual, corporal e facial integradas. Ela possibilita discussões acerca de todos os âmbitos sociais – cultura, filosofia, política, religião, práticas desportivas, podendo ser utilizada como estética na produção dos vários gêneros literários como poema, música, teatro ou dança.

Acerca da cultura surda trata-se de uma expressão decorrente da necessidade que o homem tem de se comunicar e interagir socialmente. Isso explica porque a questão da surdez não é fator relevante na aquisição de práticas cognitivas que irão definir o futuro do sujeito.

Devemos aceitar o surdo, sua cultura e inclusive o direito de ser surdo como uma manifestação cultural própria, cujo sentimento de pertencer a um grupo dá motivação e interesse para que a pessoa surda sinta-se parte integrante dessa cultura.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Diário Oficial da União, Decreto n°5.626 de 23 de dezembro de 2005.

LOURENÇO, Kátia Regina Conrad; MEIRELES, Antônio Rauf Alves Di Carli; MENDONÇA, Suelene Regina Donola. Identidade, Cultura e Língua de Sinais: O Mundo do Surdo. In: Libras – Língua Brasileira de Sinais. Taubaté: UNITAU, 2012. Unidade 02, p. 25-46.

MIRANDA, Viviane Marques. Surdez e identidade: existe uma cultura surda? São Paulo, 2010, 37p. (Trabalho de Conclusão de Curso apresentado às Faculdades Metropolitanas Unidas para obtenção de título de especialista em Educação da Pessoa com Deficiência em Audiocomunicação).

SANTANA, Ana Paula, BERGAMO, Alexandre. Cultura e Identidades Surdas: encruzilhada de lutas sociais e teóricas. Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 565-582, Maio/Ago. 2005.

BATAGLIN, Mayara. Experiência Visual e Arte: elementos constituidores de subjetividades surdas. IX Seminário ANPED Sul, 2012: Seminário em Pesquisa da Educação da Região Sul. Universidade de Santa Catarina.