CRIMINOLOGIA, ESCOLA DE CHICAGO E PÓS-MODERNIDADE: ASPECTOS E CONTRIBUIÇÕES NA COMPREENSÃO DA CRIMINALIDADE NO ESTADO DE ALAGOAS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202412171502


João Vitor Ferreira da Silva1


Resumo: O presente artigo tem por objeto as implicações que a pós-modernidade e os problemas urbanos tiveram nos crimes de mando (pistolagem ou crimes por encomenda). Com um estudo baseado no grau de flexibilização das relações sociais, buscou-se compreender toda a nova roupagem que o homicídio mediante paga recebeu com o passar dos tempos. Dessa forma, a pós-modernidade e os problemas inerentes ao modo de vida urbano, como por exemplo, o individualismo, anonimato, impessoalidade e a violência, são essenciais para a modificação de todo esse panorama delitivo. Em outras palavras, a pesquisa ronda sobre o poder que o ambiente e o tempo têm na dinamicidade dos delitos, ou seja, é um verdadeiro estudo acerca da ecologia criminal. 

Palavras-chave: pós-modernidade, problemas urbanos, flexibilização das relações sociais, ecologia criminal. Criminologia. Escola de Chicago.

Sumário: Introdução. 1. A sociedade e suas ramificações: comunidades. 1.1 Formação da heterogeneidade social: dissolução das comunidades. 2. História dos estudos urbanos. 2.1. George Simmel e Max Weber. 2.2. Escola de Chicago. 3. O problema das pesquisas relacionadas com o desvio e a ecologia criminal. 4. Repercussão dos crimes de mando em Alagoas. 5. Mudanças de personagens: justiceiros ou bandidos?. 6. Pós-modernidade: seria uma nova roupagem dos crimes de mando?. 6.1. A redução dos crimes de mando derivados da traição amorosa: uma perspectiva através da flexibilização das relações sociais. 6.1. A redução dos crimes de mando derivados da traição amorosa: uma perspectiva através da flexibilização das relações sociais. 6.2. A vigência de conflitos políticos e interesses econômicos: realidades que ainda existem. 6.3. A violência advinda do meio urbano e os reflexos nos crimes de mando. 7. Conclusão

Introdução

As discussões acerca da pós-modernidade e o advento de novas modalidades de análise do meio social permitiram forjar diferentes conceitos de comunidade. A sociologia enquanto ciência surgiu no Brasil como um método sistemático apenas nos anos 30, a evolução do pensamento em ciência sociológica foi extremamente tortuoso, em comparação com outros países. A análise do perfil de identidade do brasileiro é extremamente complexa, as raízes de nossas peculiaridades sociais e culturais tem uma gênese que reconstrói nossa condição de colônia de povoamento, os traços que compõem nosso perfil comportamental enquanto nação necessita de novos pontos de vista. A compreensão do que é o crime adquire relevância em toda e qualquer comunidade, os meios de julgamento e controle são tão diferentes quanto à visão de cada pessoa pertencente ao mesmo grupo social.

Diferentes ciências permitiram solucionar grandes problemas provenientes da vida humana, mas foi apenas a Sociologia que se destina a definir a realidade social e os problemas oriundos do meio que vivemos, e o delito é um produto do meio, bem como os comportamentos desviantes. Diferentes problemas levaram a configuração de diferentes soluções baseadas em métodos de análise específicos. 

Nossa pesquisa está inserida na esfera da criminologia, e tem como objeto os crimes de mando em Alagoas e os comportamentos desviantes. Sendo assim, uma brusca alteração do espaço aconteceu com o advento da pós-modernidade. E como nada pode escapar das influências do espaço e do tempo, com os crimes não é diferente. A inserção e o desaparecimento de fatores sociais podem causar uma dinamicidade nos crimes. Por exemplo, uma determinada rua pode propiciar um conforto maior para o uso de drogas ilícitas pelo fato de ser escura e pouco acessível. Não existindo mais problemas relacionados à rua, resta aos viciados procurarem outro lugar para obterem prazer sem nenhum incômodo, caso contrário, o uso de entorpecentes tende a cessar. De tal forma, a constância de determinado crime dependerá do meio em que os indivíduos vivem, se esse último proporciona situações facilitadoras para a prática de atividades desviantes, ou se existem circunstâncias atenuantes para a prática de tais atos.

Os fatores que mais chamam atenção são os que se relacionam com os crimes de mando (pistolagem). A modernidade deu uma nova roupagem a esses crimes e ao mesmo tempo, tem tirado algumas peculiaridades que normalmente eram encontradas em tal infração. A exploração dos vínculos sociais na cidade e nas pequenas comunidades só mostra as influências positivas e negativas que esse tipo de crime vem sofrendo. No Brasil, o estado que possui uma das maiores ocorrências da pistolagem é Alagoas, sendo afetado drasticamente por esse problema.

O entendimento dessas questões permite uma maior reflexão sobre as modificações que essa modalidade de crime passou. O que vem a influenciar a prática da pistolgem? Ou melhor, quais os fatores sociais que vem contribuindo e impossibilitando a consumação desse tipo de prática?

Torna-se relevante refletir sobre tais ideias. A existência de pesquisas que tratam sobre a gênese das atividades desviantes, embora exijam grande empenho e apresentem grande dificuldade na busca de relatos confiáveis, são bastante recorrentes entre os pesquisadores.

1. A sociedade e suas ramificações: comunidades

Com uma análise profunda, as relações sociais são responsáveis por uma vasta produção sociológica, principalmente quando tratamos de suas formações e influências. Toda sociedade é um troca, ou seja, é dado algo de precioso valor para receber uma retribuição de valor igual ou superior. Dessa mesma maneira, as pessoas, quando agrupadas, tendem a interagir. As primeiras necessitam de bens para viver, de coisas que se acham no mundo. Assim, na tentativa de promover situações que proporcionem o seu bem-estar, as pessoas podem vir a se submeter a outras. Abrindo mão de suas liberdades pessoais e individuais, o homem passa a interagir de forma mais acentuada e restrita, na busca por um objetivo principal, a ampliação de seus bens e a realização de seus desejos futuros. 

Georg Simmel afirma que, com todas as inúmeras relações sociais que os indivíduos têm, seria impossível estabelecer um objeto único para o estudo da sociologia. Assim, todo o mérito e estudo são dados e levados aos indivíduos — não a estes precisamente —, entretanto, as suas relações, necessidades e vivências uns com os outros. Simmel fala que tal prestígio deve ser dado a estes processos, cujo nome ele define de “sociação”: 

Tudo que os seres humanos são e fazem, afirma essa crítica, ocorre dentro da sociedade, é por ela determinado e constitui parte de sua vida. […] seria preciso introduzir uma ciência da sociedade que, em sua unidade, trouxesse à tona a convergência de todos os interesses, conteúdos e processos humanos, por meio da sociação unidades concretas (SIMMEL, 2006, p. 9, grifo nosso)

Essa sociação não diz respeito a uma faixa restrita de relações, mas a todas as maneiras e formas pelas quais os indivíduos sociais relacionam-se e mantém uma interdependência. Cabendo somente a sociologia a função fundamental de nos fornecer importantes instrumentos para ajudar na compreensão desses fenômenos. Por não ser o objeto final da sociologia, a sociedade é sem via de dúvidas a exemplificação e a simbologia de tais relações sociais, uma roupagem que investe milhares de relações sociais.

Assim, quando um indivíduo se desvia de um grupo, logo ele é rotulado de infrator, se esse indivíduo vive oprimido ou sem oportunidades socialmente dignas, automaticamente a culpa é reencaminhada para a sociedade e nos livramos do fardo de culpa (BAUMAN, 2003). Com áreas mais definidas e específicas, a sociedade possui como extensões diversos grupos de pessoas que visam um objetivo em comum, esses são as comunidades. 

Como assim diria Eric Voegelin (1982), o surgimento das presentes sociedades é dado devido à conexão entre o político e o histórico. E desta história sempre é herdado algo de bom: uma tradição jurídica, uma ordem social, uma cultura, entre outros aparelhos, ou seja, o conviver humano. Tendo a capacidade de discernir sobre as questões do cotidiano, — ou seja, sendo racional —, o homem coopera com seus indivíduos e ao mesmo tempo busca a superação de todas as adversidades que ele mesmo não alcançaria sozinho. Fala Voegelin: 

Sendo racional e, portanto, livre, o homem coopera livremente com os seus semelhantes, constituindo assim as diversas sociedades que faz parte. Cabe à razão ordenar as coisas e as ações para um fim, e quando reunidos os indivíduos racionais, isto é, as pessoas, eles têm conhecimento do fim ou bem comum a atingir, determinando eles mesmos os meios adequados (VOEGELIN, 1982, p.6). 

Antes de tudo, as pessoas já fazem divisões em suas mentes. Começam com a dicotomia do “nós” e “eles”. O primeiro grupo diz respeito a uma determinada comunidade a qual pertencemos, conhecemos ou buscamos cada vez mais conhecer. No “nós”, é oferecido o que se tem de melhor a compartilhar num convívio social: habilidades, pensamentos e objetivos. Em relação a “eles”, tais pessoas não têm sequer um entrosamento superficial, antes, possuem uma visão deturpada, longínqua e fragmentada, e que de uma maneira clara e precisa, preferem manter relativa distância.

São nos respectivos “nós” que as pessoas interagem de forma mais fixa, estabelecem uma relação mais próxima. Por ser um lugar seguro e aconchegante, é na comunidade (“nós”) que as pessoas se sentem à vontade para expressar suas opiniões, se desenvolverem intelectualmente, espiritualmente ou economicamente (dependendo da comunidade, é claro), e caso isso não aconteça, ou então, se acontecer de um dos seus integrantes se desviar ou errar, provavelmente receberá uma segunda chance e prosseguirá em frente. 

Mesmo quando ainda são pequenas ou pouco desenvolvidas, as comunidades já são possuidoras de comportamentos, visões e objetivos em comum. Por questões de segurança e identidade, elas desenvolvem uma comunicação própria e por serem restritas aos seus membros, dificultam a entrada e permanência de intrusos. Howard S. Becker, em um dos seus mais famosos estudos: “Outsiders: estudos de sociologia do desvio”, analisa com precisão a cultura, linguagem e a comunicação dos músicos de jazz quando em comunidade. Fala Becker (2008, p. 94, grifo nosso): 

O sistema de crenças sobre o que são os músicos e o que são os públicos é resumido em uma palavra empregada pelos primeiros para se referir aos outsiders — “quadrados” [square]. Ela é utilizada como substantivo e adjetivo, denotando tanto um tipo de pessoa quanto uma qualidade de comportamento e objetos. Refere-se ao tipo de pessoa que é o oposto do que todo músico é, ou deveria ser; e uma maneira de pensar, sentir e se comportar (com sua expressão em objetos materiais) oposta àquilo que os músicos apreciam. 

Por terem dádivas e características únicas na sociedade, tais pessoas vêm-se no direito de desenvolver uma determinada visão de si mesmo e ao mesmo tempo, construírem uma visão — mesmo que deturpada — dos outros que estão fora do alcance de suas comunidades. Por serem tidos como pessoas que receberam um dom, tais músicos fazem o máximo de esforço para se manterem longe do que eles mesmos adjetivam de “quadrados”, sendo vistos da maneira mais pejorativa possível, como caricaturas dos já estabelecidos no grupo.

Em um meio hostil e exposto, com poucas pessoas com possuam uma determinada habilidade, elas se esforçam para encontrar um lugar mais confortável e apropriado, onde possam ser recebidas e tratadas com de acordo com seus méritos. Assim, as “pequenas comunidades” possuem as mesmas características: a homogeneidade e a mesmice dos indivíduos (BAUMAN, 2003).

1.1 Formação da heterogeneidade social: dissolução das comunidades

As diversificadas relações sociais têm como pressupostos os mais variados personagens que ocupam os pólos dessas primeiras: pessoas de diferentes pensamentos, classes econômico-sociais e culturas. 

A clássica idéia de comutatividade que é trabalhada nas ciências exatas, diz que a ordem dos fatores não altera o resultado, apesar de ser uma idéia lógica e universal, ela se torna questionável quando tratada nas ciências sociais. Fala Simmel: 

Sociedade, é assim, somente o nome para um círculo de indivíduos que estão, de uma maneira determinada, ligados uns aos outros por efeito das relações mútuas […] não é, sobretudo, uma substância, algo que seja concreto para si mesmo. Ela é um acontecer que tem uma função pela qual cada um recebe de outrem ou comunica a outrem um destino a uma forma (SIMMEL, 2006, p. 18, grifo nosso).

Os indivíduos, suas vivências e relações formam a sociedade. Mas, o que ocorre não é uma inércia desses pré-requisitos, antes, dia após dia, eles estão sobre total dinamicidade, questão que tem implicância direita nesses pilares societários. Os inúmeros indivíduos formam um continuum, de tal maneira, em meio de um emaranhado de integrantes com tanta subjetividade em jogo, torna-se impossível a aplicação da idéia de comutatividade. Tal aplicação implicaria na idéia fantasiosa de neutralidade do indivíduo.

Sabendo que a permutação desse continuum gera a possibilidade de um indivíduo se coadunar de maneira diferente com outro, de gerar uma nova situação ou fenômeno, os resultados tornam-se totalmente variantes com qualquer pequena alteração nos pólos das relações. A troca dos pólos das relações sociais acarreta em uma modificação de todo o cenário social. Assim, toda e qualquer inclusão ou troca de personagens formam cada vez mais um panorama complexo, denso, heterogêneo e com distinções constantes, características essas do fenômeno urbano.

A dinamicidade das massas faz com que a inclusão de novos indivíduos a um meio específico dê origem a resultados diferentes, fenômeno estrutural do mundo globalizado. O nomadismo moderno rompe com as chamadas “fronteiras naturais”. Assim, a distância, o longo caminho a ser percorrido e a saída da zona de conforto saem de cena e dão lugar à vontade individual de conhecer novos horizontes. Retrata o sociólogo Zygmunt Bauman: 

No mundo que habitamos, a distância não parece importar muito. Às vezes parece que só existe para ser anulada, como se o espaço não passasse de um convite contínuo a ser desrespeitado, refutado, negado. O espaço deixou de ser um obstáculo — basta uma fração de segundo para conquistá-lo.

É fácil de perceber o contraste que é estabelecido entre as pequenas comunidades e aldeias, um lugar seguro e calmo, onde todos se conhecem e as grandes metrópoles que, sendo saturadas e diversificadas, tornam à vida insegura e vulnerável. É uma comparação que diverge em peso, ou seja, “a cidade é a antítese da comunidade” (CINELLI, 2002).

2. História dos estudos urbanos

2.1 George Simmel e Max Weber

Desde cedo, cientistas sociais como Marx Weber e George Simmel já se posicionavam em relação ao fenômeno urbano. O crescimento assustador das cidades, o aparecimento de espaços necrosados e precários, a marginalidade, a delinquência, o choque de culturas, o individualismo, o anonimato entre outros, são acontecimentos que, ao mesmo tempo frutos dessa nova forma de organização, também merecem um lugar nos estudos sociológicos. Não só por serem qualificados como novos fenômenos, mas por implicarem em conseqüências que se mantém de pé até os dias atuais, e por fim, ocasionarem um novo ajuste do indivíduo em relação ao meio social.

2.2 Escola de Chicago

Por sua vez, a clássica escola de Chicago teve sua importância no exaustivo estudo sobre o urbanismo. A explosão urbana e o crescimento irregular da cidade de Chicago trouxeram inúmeros problemas resultantes de tal episódio e como não poderia ser diferente, acabou despertando o interesse de inúmeros estudiosos da região.

Tais problemas incidiram sobre a densidade da população, foi o surgimento de novas modalidades de agrupamentos: os guetos e as chamadas tenement house1. Fora isso, problemas com um maior grau de abstração também foram apreciados, entre eles, as imensas modificações nas instituições responsáveis pelo exercício do controle social, estudadas por Robert Erza Park.

Os cansativos estudos e trabalhos da escola de Chicago acarretaram para a cidade uma notoriedade espetacular, foi que Chicago ficou conhecida como a cidade mais estudada do mundo, “parece ser esquisito que uma cidade tenha sido tão estudada assim”2. Como disse o próprio Howard Becker: “Por um bom tempo, estudar sociologia nos Estados Unidos era estudar a cidade de Chicago” (BECKER, 1996, p. 183).

A atuação dessa escola foi notada de toda a maneira, tanto na área intelectual quanto na campestre. O termo escola é basicamente empregado no meio intelectual, sendo dividido em dois grupos: as escolas de pensamento e as escolas de atividade. O primeiro é designado para se referir aos laços intelectuais, teorias e pensamentos semelhantemente elaborados por determinadas pessoas. Mesmo vivendo em épocas diferentes, elas compartilharam algo em comum. A tamanha atuação da escola de Chicago impossibilita que ela seja enquadrada somente nessa termologia. 

Por outro lado, a escola de atividade, como fala o próprio Becker (1996, p.179): “consiste em um grupo de pessoas que trabalham em conjunto, não sendo necessário que os membros da escola de atividade compartilhem a mesma teoria; eles apenas têm de estar dispostos a trabalhar juntos”. Levando em consideração as divisões de tarefas, especializações, hierarquia de cargos, é perceptível que, com um pouco de esforço mental, é possível enquadrar a escola de Chicago nessas duas categorias escolares. 

As contribuições dessa escola foram notórias: a preocupação com a dinamicidade, migração, o crescimento urbano e o controle social foram discorridos com um empenho magistral. Fala Gilberto Velho:

Esse estabelecimento de fronteiras internas à cidade, com forte dimensão segregativa, é um dos focos de atenção dos pesquisadores de Chicago. A dimensão da organização social do espaço será um dos temas fundamentais dos estudos urbanos, bastante marcados pela experiência de Chicago (VELHO, 2000, p. 15).

Totalmente relacionada com o atual estado da cidade de Chicago, os grandes índices de marginalidade acabaram desencadeando inovações nas pesquisas sobre o meio criminal e sua gênese. A que chama mais a atenção e serve de parâmetro para as pesquisas jurídicas é o da ecologia criminal (estudo do relacionamento dos crimes com a organização do ambiente).

3. O problema das pesquisas relacionadas com o desvio e a ecologia criminal.

Na biologia, a área do conhecimento responsável pela interação dos seres vivos com o meio ambiente é a ecologia. Suas abordagens são de grande importância para a compreensão dos fatores biológicos que contribuem para o equilíbrio do ambiente em que as espécies estão inseridas. Para essa área do conhecimento, é possível identificar problemas causados pela ausência ou excesso de espécies vivas, consistindo de uma análise de dependência, onde a existência de alguns depende ou não da existência de outros. Por exemplo, um ser herbívoro só estará presente em um determinado espaço que tenha a presença das plantas que tornam possível a sua alimentação.

Foi com essa mesma lógica que a escola de Chicago cunhou o conceito de ecologia criminal, “é o próprio princípio ecológico que, aplicado aos problemas humanos e sociais, postula a sua equacionação na perspectiva do equilíbrio duma comunidade humana com o seu ambiente concreto” (MELHEN, 2013 apud DIAS;ANDRADE, 1997, p. 270, grifo nosso). De tal forma, o ambiente não deve ser entendido somente no puro e estrito sentido biológico ou geográfico, mas também no sentido sociológico e social. 

Uma brusca alteração do espaço aconteceu com o advento da modernidade. E como nada pode escapar das influências do espaço e do tempo, com os crimes não é diferente. A constância dos crimes e a dinamicidade dos já existentes acontecem de uma forma natural e espontânea, o indivíduo se adéqua às mudanças do meio para que possa continuar com as práticas de tais infrações. Por exemplo, uma determinada rua pode propiciar o uso de drogas ilícitas pelo fato de ser escura e pouco acessível. Não existindo mais problemas relacionados à rua, resta aos viciados procurarem outro lugar para obter prazer sem nenhum incômodo, caso contrário, é bem provável que o uso de entorpecentes cesse. 

A prática de determinado crime só é possível quando determinados bens passam a ser alvo de disputa entre os homens. De tal forma, a constância do crime dependerá do meio em que os indivíduos vivem, se esse último proporciona situações facilitadoras para a prática de atividade desviante. Sendo um fato social, tais crimes passam a ser alvo de pesquisas e estudos dos sociólogos e interessados pela área.

Entretanto, seus estudos apresentam uma série de problemas relacionados à pesquisa e ao método. Normalmente, a coleta de dados se dá através de entrevistas e participação ocular, ou seja, observando as características que fazem tais atividades desviantes e fazendo perguntas cuja resposta mostrara o histórico criminoso do indivíduo. A dificuldade de buscar relatos confiáveis e verídicos é exposta por Becker, fala o autor: 

O traço que torna o desvio de interesse para nós (ou pelo menos um dos traços) é precisamente o que faz o trabalho ser tão difícil. […] Podemos ter problemas para localizar praticantes dos delitos em que estamos interessados, ou em localizá-los de modo tal que nos permita obter alguma informação sobre seu desvio, porque eles não o praticaram em nossa presença, ou porque eles não admitirão para nós que o praticam. Ainda assim, têm sido realizados estudos do desvio, portanto a tarefa não é impossível.

É primordial se habituar a indisponibilidade que todos os grupos sociais oferecem ao serem pesquisados, uns mais e outros menos. A indisponibilidade aumenta se o grupo for ou não desviante. É preciso encontrar pessoas que tenham tais práticas que condizem com as pesquisas propostas pelo pesquisador. O trabalho é difícil, todos os desviantes fazem o possível para esconder suas atividades da parte convencional da sociedade (BECKER, 1997).

4. Repercussão dos crimes de mando em Alagoas

No Brasil, um número considerável de processos tramita pelos tribunais. Mesmo com problemas relacionados à sua dinamicidade, o poder judiciário acaba não só por ter que lidar com a grande demanda de processos diários, mas ao mesmo tempo, saber como lidar com a crítica e a recusa de suas decisões. Com uma parcela de insatisfação com o resultado dos julgamentos, a possibilidade de recorrer é um direito de todos.

A contestação é baseada no princípio processual conhecido como “duplo grau de jurisdição”, ele garante uma reanálise da sentença por outro juiz de uma instância superior. Dessa forma, o processo é revisado de uma maneira hierárquica, do menor para o maior, seguindo os graus necessários até chegar a uma última decisão, onde a possibilidade de recurso é inexistente. Muitas vezes, o Supremo Tribunal Federal (STF) é o responsável por julgar uma parte desses recursos.

Por irem contra ao bem jurídico mais importante, ou seja, o direito a vida, o homicídio é um fenômeno que vem recebendo muita atenção. Sendo estudado por especialistas do direito e cientistas sociais. Esse fenômeno não é só um ato ocasional, mas um fato social, externo, geral e coercitivo. Com maior frequência na região do Nordeste Brasileiro, tais crimes apresentam-se das mais diversas maneiras. A mais comum é conhecida por crimes de mando, ou seja, quando um indivíduo, mediante paga ou promessa de recompensa, encomenda com um terceiro a morte de uma pessoa.

O posicionamento negativo e insatisfeito das autoridades em relação às regiões onde esse tipo de crime ocorre com mais freqüência incomodam as lideranças locais. O estado de Alagoas foi mencionado.  No dia 5 de outubro de 2016, o atual ministro do STF, Gilmar Mendes, se apresentou descontente com a atual situação do Estado, chegando a dizer que Alagoas é paraíso de crimes de mando. A seguinte matéria do portal regional de notícias rota do sertão demonstra bem as palavras que o ministro usou para se dirigir ao Estado: 

“Mas, fosse só isto, já seria preocupante. Nós temos homicídios sem inquérito aberto. Quando o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] chegou a Alagoas, na minha Presidência, havia cinco mil homicídios sem inquérito aberto. Portanto, é o paraíso do crime de mando. Infelizmente essa realidade não mudou muito”, declarou Gilmar Mendes. 

A situação do estado de Alagoas é realmente preocupante. Em meio aos inúmeros casos de homicídio ausentes de investigação, menos de 2% acabam sendo solucionados. Desde a última visita de Gilmar Mendes ao Estado, a Justiça e o Estado permanecem com dificuldades para apurar o grande número de inquéritos e o alto índice de homicídio.

5. Mudanças de personagens: justiceiros ou bandidos?  

O tempo passou, as mudanças aconteceram: os crimes de mando ganharam uma nova roupagem. O interesse de conhecer essa nova estruturação desses crimes permanece, mas, inicialmente, é essencial ter em mente a seguinte premissa: as relações sociais extraídas da relação mandante, mandado e vítima foram reconstruídas.

O pistoleiro, originário da região nordestina e produto da valentia do meio rural, nos dias de hoje, é apresentado como um personagem diferente do inconfundível homem lendário presente nos contos, romances e novelas brasileiras.  Tal ícone é apresentado de uma forma interessante, o pistoleiro é tido como um “justiceiro”, aquele que não recorre aos outros e não mede esforços na consecução de seus objetivos. O rótulo de “justiceiro” acaba sendo de uma importância imensa para o sujeito, não é só um nome dado pela sociedade, mas é uma justificativa da prática da pistolagem:

 “Os homens ricos, avarentos, egoístas e poderosos devem morrer, “os pobres, não”; a traição amorosa ou econômica deve ser punida. Tal punição, que é a morte, passa a ser explicada e justificada socialmente” (BARREIRA, 2002, p. 52)

O rótulo também ajuda na dissipação da culpabilidade. É razoável imaginar que o termo justiceiro, ou seja, aquele que faz e colabora para a consecução da justiça soe melhor do que termos como “bandido” ou “assassino pago”. É o que David Matza chamou de “técnicas de neutralização”, ou seja, métodos criados por pessoas praticantes de atividades desviantes que permitem a libertação de toda a culpa derivada de suas ações (BAUMAN, 2010).

Em algumas hipóteses, tratando-se de assassinatos justificados pela manutenção da honra, tais criminosos acabam podendo desfrutar de uma mão acolhedora da localidade onde vivem. Com isso, suas atitudes são mais do que meros desvios, são consequências de injustiças anteriores (MILNER, 2014). Assim, praticar um crime em nome da honra é uma justificativa plausível.

Os praticantes de tais atividades possuem algumas características que podem ser bem traçadas:

 “a proteção de “homens fora de lei” para prestarem serviços; o reforço à dependência e à submissão dos dominados; a violência como apanágio do grande proprietário de terra; e a valentia, a astúcia e a destreza como características diferenciadoras de iguais.” (BARREIRA, 1998, p.11-12)

Tais traços não são replicados com clareza quando falamos do meio urbano e das grandes metrópoles. A violência e a fragilidade dos laços pessoais só trazem uma maior insegurança às pessoas. “Este tipo lendário da sociedade brasileira, especificamente da nordestina, vem sendo, nos últimos 30 anos, nomeado e definido de maneiras diferentes, através de fontes diversas” (BARREIRA, 1998, p. 11). Assim, hoje, quem era visto como um herói ou justiceiro, passa a ser visto como um pequena engrenagem em um sistema de violência e medo sistêmico. 

O homem que tinha como atributos a valentia, a submissão e a lealdade ao patrão, acaba sendo substituído por outros que só contribuem para a marginalidade. No sentido mais popular da palavra, são os denominados “pirangueiros”4, aquelas pessoas destituídas de prestígio e de uma boa perspectiva de vida.

O pistoleiro é somente a mola propulsora para a materialização do crime, é a ponta do iciberg. Por trás dele, pode ser encontrada uma rede de relações sociais, ilícitas e com um único objetivo: ceifar a vida de mais uma pessoa. É o que BARREIRA (1998) chama de “sistema de pistolagem”, representando valores e objetivos característicos de um determinado momento histórico. Aqui, falamos no denominado autor intelectual.

Mais uma vez, a figura do mandante acaba tomando outros contornos. Os denominados “coronéis”, proprietários de grandes parcelas terras e poder era a representação da violência regional. É o tipo de personagem que faz uso da força (meios) para a obtenção dos fins.

6. Pós-modernidade: seria uma nova roupagem dos crimes de mando?

Como visto no tópico anterior, os indivíduos que ocupam os pólos da relação do crime de mando acabaram tomando novas feições. A figura do autor intelectual – mandante – e do autor material acabam tendo uma face diferente quando analisadas em frente ao novo meio social: as grandes metrópoles.

As mudanças advêm do novo cenário oferecido pelas grandes cidades: um cenário onde quem reina é a impessoalidade, a fragilidade das relações sociais e consequentemente a violência. A chegada desse panorama é realmente avassaladora, sustentando-se a custa de fatos sociais necessários ao convívio social saudável: o conceito de dominação acaba sendo visto de maneira obscura, a forte influência familiar, religiosa e escolar são insustentáveis frente aos novos eventos introduzidos pelo meio urbano.

Igualmente como os personagens que sustentam esse sistema de pistolagem, o crime de mando propriamente dito não ficou imune às diversas mudanças no cenário moderno. Se por um lado, o mando acaba sendo um instrumento ultrapassado na resolução de determinadas controvérsias, por outro, nos dias de hoje, é uma opção viável na resolução de conflitos frutos dos problemas de convivência.

Dessa forma, é possível elencar um rápido esquema sobre os fatores que contribuem para a formação de novas demandas alvo da pistolagem e dessa forma, também mostrar outros que, por sua vez, possibilitam uma diminuição na prática de determinados crimes, uma vez que tal demanda tornou-se banal e fútil, sendo desnecessário se utilizar de serviços como a pistolagem. 

Sintetizado o raciocínio, o mando acaba sendo incentivado com o aparecimento de uma situação que propicia a sua elaboração e cometimento (questões essas trazidas pela modernidade e o desenvolvimento das grandes cidades) e outras que logicamente auxiliam na sua diminuição, pois afetam diretamente uma das vertentes do crime. Assim, na tabela abaixo, podem ser visualizados as vertentes que auxiliam nesse novo cenário que são os crimes de mando:

FATORES ULTRAPASSADOSFATORES PERMANENTESFATORES NOVOS
A redução dos crimes passionais derivados da traição: uma perspectiva através da flexibilização das relações sociais.Os conflitos políticos, que por sua vez, dizem respeito ao voto e as questões referentes aos interesses econômicos.A violência na cidade.

Tentar detalhar todas as hipóteses que cooperam para a prática de condutas violentas nos dias atuais é no mínimo uma tarefa exaustiva e inatingível. Assim, não será possível esgotar todos os casos, motivos e circunstâncias que somam forças para o alcance de um tão alto nível de violência como é no Brasil.

Dessa forma, nessa pesquisa, será objeto da pesquisa somente os fatores que sofreram brutais alterações decorrentes da chegada da pós-modernidade e do meio urbano, bem como os conflitos políticos e econômicos que ainda subsistem atualmente e que acabam sendo uma demanda interessante nos estudos dos crimes de mando.

6.1. A redução dos crimes de mando derivados da traição amorosa: uma perspectiva através da flexibilização das relações sociais

A pós-modernidade possui premissas básicas e que acabam sendo importe detalhar. Podemos remeter a primeira premissa às mudanças referentes aos relacionamentos. A sociedade de ontem não é a mesma de hoje. Sendo assim, dizeres bem característicos do romantismo como “até que a morte nos separe” são deixados para trás, a idéia é bem condizente com o atual momento. O amor, hoje fragilizado, acaba sendo desprendido dos ideais “à moda antiga”, o relacionamento direto, também chamado de “olho no olho” sai de cena e dá lugar a possibilidade de um indivíduo estar conectado com dezenas ou centenas de pessoas ao mesmo tempo.

Conexão é um conceito trabalhado por Bauman, tal sociólogo, pautado nas relações referentes às novas tecnologias e os sites de encontros, retrata bem o como as redes de relacionamentos acabam sendo frutos de duas únicas ações: conectar e desconectar. Essa é a essência de tal conceito: a sua fragilidade e instantaneidade, ou seja, a possibilidade de conhecer novas pessoas em um curto espaço de tempo e, não gostando, esquecer com um único aperto de tecla. Tais fenômenos são contrapostos aos ideais mais primitivos e diligentes, como por exemplo, os ditos laços humanos e as comunidades. Primitivos, pois, como dito anteriormente, acabaram por ser abandonados por quase todas as pessoas e diligentes por necessitar de um zelo especial para a manutenção da convivência. 

Está é a maior dificuldade nas relações sólidas: o alto grau de cuidado e zelo em um relacionamento, a dificuldade em romper laços e as inúmeras frustrações que vêem com os conflitos. Isso, comparado com o conceito de redes, acaba sendo de uma complexidade imensa. O que atrai as pessoas para a rede é a existência de um remédio para todos esses problemas das comunidades: a facilidade em se desconectar.

Tal raciocínio é compatível com as definições de amor. Romeo e Julieta, romance escrito Por William Shekspeare, consegue mostrar de uma maneira clara e sucinta os princípios referentes às relações amorosas daquele tempo. A literatura e a arte é o reflexo de uma época. Dois jovens que se conheceram prematuramente se disponibilizam a lutar pelo seu futuro, tudo isso com uma perspectiva de um relacionamento próspero, longínquo e feliz. A solidez dos laços é o que chama atenção, entretanto, tais traços não são replicados na contemporaneidade, como diria Bauman (2004): “a definição romântica do amor como “até que a morte nos separe” está decididamente fora de moda”.

É a fragilidade que toma conta das relações amorosas e consequentemente de suas decorrentes. Nos tempos passados, o respeito ao relacionamento amoroso era quase sagrado. O casamento, instituição essa muito influenciada pela religião, tinha por base a rigidez do relacionamento, a submissão da mulher ao marido e a existência de uma fidelidade mútua, em outras palavras, é a existência de uma honra arcaica. A de confiança por parte do parceiro ou parceira era a expectativa, caso houvesse a traição, todo o relacionamento tombava em blocos, caminhando para a ruína.

O desprestígio de uma pessoa traída configura um problema, e com isso, uma possibilidade de soluções, entre elas, a mais difundida era lavar a honra com sangue. Pesquisando em matérias jornalísticas, César Barreira trata sobre algumas causas que normalmente estão ligadas aos crimes de pistolagem, fala o sociólogo: “Encontra-se, também, a utilização de pistoleiros em “crimes passionais”.”. Tal pesquisador supracitado, em seu trabalho de campo denominado “Pistoleiro ou vingador: construção de trajetória”, relata uma entrevista que foi realizada com um pistoleiro, que por sua vez, aponta no mesmo sentido: 

“Nas traições, nos roubos e mesmo na resolução de conflitos entre partes litigantes, os pistoleiros ocupam o lugar de “justiceiros”. Esse lugar, que funciona para diminuir o sentimento de culpa, serve também para explicar socialmente o papel do pistoleiro, criando uma classificação social e também moral dos crimes: os homens ricos, avarentos, egoístas e poderosos devem morrer, “os pobres, não”; a traição amorosa ou econômica deve ser punida. Tal punição que é a morte, passa a ser explicada e justificada socialmente” (BARREIRA, 2002, p. 8, grifo nosso)

Nos tempo de hoje, tal idéia é de difícil sustentamento. Fazendo uma análise de algumas décadas atrás, é perceptível ver a forte pressão familiar e a influência religiosa adentrando nos relacionamentos pessoais. Nos dias atuais, com a expansão da tecnologia e o desenvolvimento do meio urbano, uma maior liberdade e fragilidade subsiste em face de tais fatos sociais.

“Especificamente no tocante ao casamento, entendemos que tal instituto ao longo do tempo vem cedendo espaço a outras configurações amorosas, algumas delas que caracterizam a união estável, momento em que os companheiros dispensam a formalização de sua parceria por meio do casamento civil ou religioso, passando a viver juntos. A nosso ver, a evolução tecnológica, em especial a internet, vem contribuindo para tal diversificação de relações.” (ESSER, p.12)

É de difícil imaginação que uma pessoa encomende a morte de outrem pelo fato de frustração de uma relação amorosa. A morte por meio de paga ou promessa de recompensa em razão da traição amorosa acaba sendo abalada, assim, a pistolagem perde uma demanda considerável.

6.2. A vigência de conflitos políticos e interesses econômicos: realidades que ainda existem

Embora já comentado, é necessário discorrer um pouco melhor sobre as questões políticas e econômicas que permeiam os crimes de mando. Tal cenário ainda existe, trata-se de questão muito comum entre o senso popular: a idéia de que o homem, ao conquistar o mundo político e econômico, deve fazer o que for preciso para a manutenção desse estado pessoal.

“[…] existe uma cultura de violência entre os alagoanos, expressa através de suas representações sociais, que produz e reproduz práticas de violência, vista por muitos como um recurso legítimo de resolução de conflitos nas relações sociais e políticas no Estado de Alagoas.” (RUTE, 2005, p.29)

Não só bastando toda a problemática da criminalidade trazida pela vida urbana, a manutenção dos interesses políticos e econômicos incrementa desconfortos a toda população alagoana. Rute Vasconselos, tratando sobre a violência que envolve a população pobre do meio urbano, diz que tal fator é relevante, mas não é o único a ser discutido quando o assunto é criminalidade. Fala a cientista social:

“A realidade de Alagoas põe em xeque esta tese da “criminalização da pobreza” quando revela, por exemplo, que os crimes de maior repercussão no Estado são protagonizados por sujeitos que não vivem situações de carência econômica nem em estado de exclusão social. São crimes políticos, envolvendo pessoas que têm representatividade no espaço do poder local e ocupam posições confortáveis em termos de suas posses e privilégios econômicos. No outro extremo, quando tomamos os crimes que envolvem pessoas carentes, observamos que suas práticas foram muito mais motivadas por questões que envolvem desafeto, vingança, sentimentos de traição e desonra, do que mesmo questões econômicas. (VASCONCELOS, 2005, p.30)”

Dessa forma, como disse a referida autora, é possível a delimitação de dois tipos de violência: de um lado, uma institucionalizada, decorrente do dinheiro e da busca incessante pelo poder, do outro, uma comum, derivada do próprio sistema urbano. Nesse momento, há de se falar da primeira.

A incapacidade de estabelecer uma distinção entre a coisa pública e os interesses pessoais privados demonstra a tamanha influência da política na vida das pessoas, presente desde o início da história Brasileira, dessa forma, “o voto de cabresto, o curral eleitoral, os mandos e desmandos, o loteamento de cargos públicos e a centralização política na figura do senhor de terras ou do coronel” (MILNER, 2014, p.60) são características de um sistema patrimonialista, figura essa que ainda persiste nos dias atuais.

Sinônimo de poder, a propriedade privada é, por muitas vezes, o motivo do deflagramento dos conflitos entre famílias. Na maioria das vezes, as disputas começam pela má delimitação de terras. Recorrer ao poder judiciário é uma das possibilidades, entretanto, a imposição da sentença juntamente com o término do processo não quer dizer o fim do problema:

“É de notar-se, o que pode ser generalizado, que tanto no caso dos Montes e Feitosas como no dos Ferros e Aços39 houve o recurso à justiça. As famílias procuraram os tribunais para resolver suas querelas; entretanto, não satisfeitas com o veredito — que o poder público não tinha força para impor —, recorreram ao desforço pessoal como última solução. O recurso à lei significa a existência da justiça organizada; o emprego da força como última instância significa a fraqueza do poder público e a potência do poder privado.” (PINTO, 1980 apud MILNER, 2014, p. 67)

Assim, no senso popular, diante da ineficácia do poder judiciário, acaba sendo mais viável a contenda armada do que o apelo às autoridades. A ineficácia do judiciário em demonstrar imperatividade do direito sai de cena e dá lugar a autotutela, onde o juiz da causa é uma das partes. Sendo assim, só é possível dizer que a prática da pistolagem ainda é pautada em dois pilares: o primeiro é o voto e as questões políticas, enquanto o segundo é a terra como sinônimo de poder econômico.

6.3 A violência advinda do meio urbano e os reflexos nos crimes de mando

O ditado popular inglês “my house my castle” demonstra implacavelmente a agravante do medo frente à violência urbana. Os grandes muros das casas representam a segurança que o lar oferece frente às ruas das cidades, fronteiras que separam o conhecido (casa) do desconhecido e dos estranhos. Como diria Bauman (2009, p.2): “Poderíamos dizer que a insegurança moderna, em suas várias manifestações, é caracterizada pelo medo dos crimes e dos criminosos”.

São muitos os meios pelos quais a violência se exterioriza, e tratando-se dos dias atuais, é impossível detectar todas as formas que um determinado delito pode ser praticado. Dentre o rol, o homicídio mediante paga acaba tendo uma incidência maior quando somado a todos os problemas apresentados nas grandes metrópoles. Sendo assim, mais uma vez, como nos casos de conflito políticos apresentados anteriormente, torna-se recorrente o uso da autotutela para resolução de conflitos. 

É importante demonstrar algumas estatísticas: 

“Por exemplo, entre 2001 e 2011 o número de homicídios no Brasil cresceu 17%, no Nordeste 84% e em Alagoas 171%. De 2001 a 2006, a média anual de óbitos por homicídio no estado foi de 1.121, enquanto que entre 2007 e 2011 ela chegou a 1.990.” (GOMES, p.1)

Posteriormente, o autor da supracitada citação fala que a alto número de homicídios é dado por uma causa nova: “A curva da violência indicada pelo número de homicídios se altera de forma significativa a partir de 2006. Deduz-se, então, que a explosão da violência no estado é um fenômeno novo” (GOMES, p. 1). A ideia é interessante e convincente: com a elevação do número de homicídios em 2006, é complicado sustentar a tese de que todos os homicídios derivam de questões político-econômicas. Assim, é mais coerente assumir que uma boa parcela sob a égide de causas relacionadas com a violência urbana.

Crimes motivados por questões familiares, territoriais e financeiras são práticas derivadas da época colonial: “No Brasil, as lutas de famílias conhecidas remetem ao período colonial” (MILNER, 2014, p.56). Entretanto, com o avanço da urbanização e a gradativa dissipação do acúmulo de terras, existe uma forte tendência para diminuição dos crimes de mando relacionados com esses motivos, mas, mesmo assim, ainda são presentes nos dias atuais. 

A violência urbana adveio de uma explosão: o advento das grandes metrópoles, das favelas e de ambientes necrosados juntamente com o tráfico de drogas e a disseminação da violência, ou seja, fatores consideravelmente novos em relação às disputas por terras e poder. Tal ambiente demonstra constantemente tais problemas, ficando evidente a frequência da autotutela relacionada com esses fatores. Dessa forma, “pode ser verificada a transição entre o crime de mando restrito aos interesses de poderosos, para a pistolagem praticada a mando de chefes do tráfico” (SOARES, 2016).

7. CONCLUSÃO

Vendo tudo o que já foi exposto e principalmente a perpetuação dos fatores que contribuem para os crimes de mando, é possível concluir o estabelecimento de um dilema. Ou seja, são premissas que quando estudadas em uma mesma pesquisa, acabam sendo divergentes e auto-excludentes. 

De um lado, a flexibilização das relações sociais e um possível desapego (desprendimento) da pistolagem com as questões amorosas, do outro, os conflitos político-econômicos e a violência fruto do meio urbano, ou seja, um fator que contribui para a diminuição da prática de pistolagem e dois fatores que contribuem para continuação e o aumento de tais crimes. 

Vendo isso, esse trabalho fez o máximo para mostrar que os crimes de mando não são frutos de questões sociais isoladas e únicas, mas de um conjunto de fatores. O tempo e o ambiente em que vivemos podem modificar e introduzir novos fenômenos sociais, influenciando substancialmente na prática de crimes. Como foi dito anteriormente, a ecologia criminal é o próprio conceito de ecologia aplicado às ciências sociais.

Dessa forma, é evidente a importância do estudo dessas temáticas envolvendo a ecologia criminal, pois, influenciam substancialmente na elaboração de políticas criminais, impedindo que essas sejam aleatórias ou até mesmo arbitrárias.


1Como diz Cinelli (2002, p.24), “eram prédios cujos apartamentos eram locados aos recém-chegados à cidade […] estes apartamentos normalmente continham apenas um cômodo, muitos deles sem janela e ventilação, e não ofereciam água e nem esgoto. Caracterizam-se por condições totalmente insalubres.”
3Tal citação é retirada de um livro publicado no ano de 1998, ou seja, levando em consideração o ano de 2018, os últimos 30 anos ditos não condizem com o ano de 1988, mas com 1968, data essa mais condizente com os crimes de mando tratados nesse artigo.
4Tal termo é utilizado por Cézar Barreira em uma entrevista concedida à UNISINOS.


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1Graduado em Direito pela Faculdade Cesmac Sertão