CRIMES DOLOSOS CONTRA A VIDA: O PERFIL DAS VÍTIMAS DE FEMINICÍDIO NO BRASIL

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202410282232


Vania Lucindo Fraga
Orientadora: Profa. Gislene de Laparte Neves


RESUMO

Este artigo tem por objetivo investigar em que medida a edição da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) contribuiu para reduzir no Brasil os índices de violência contra a mulher. Pretende-se ainda relatar breve histórico da proteção da mulher no Brasil, abordando especificamente disposições inseridas na Constituição Federal de 1988, na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e na Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015); apresentar as medidas protetivas como sanções previstas na Lei Maria da Penha para aplicação aos que cometerem os delitos ali tipificados, destacando conceito e seu objeto, bem como os tipos de medidas protetivas previstos na referida legislação, e a possibilidade de sua concessão pelo Delegado de Polícia, nos termos do julgamento da ADI 6138; apresentar dados estatísticos sobre a violência contra a mulher no Brasil (2006-2021), analisando-os comparativamente ao longo dos anos de aplicação das medidas previstas na Lei Maria da Penha. Os esforços teóricos e de análise dos dados foram para responder o seguinte questionamento, que representa o problema de pesquisa: em que medida a edição da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) contribuiu para reduzir no Brasil os índices de violência contra a mulher? A metodologia adotada no processo de investigação permite classificar a pesquisa como exploratória, com uso de levantamento bibliográfico para coleta dos dados. A abordagem do problema é quali-quantitativa, e a análise dos dados é crítica de conteúdo. Os principais resultados obtidos foram no sentido de que a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) contribuiu positivamente para a redução no Brasil dos índices de violência contra a mulher, em razão das previsões contidas em seu âmbito, que visam inibir/punir a prática de atos violentos contra a mulher em seu próprio lar ou no ambiente familiar. Uma possibilidade recente que promete contribuir ainda mais para reduzir estes índices, sendo favorável à proteção constitucional da mulher, é a possibilidade recentemente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal – STF de o Delegado de Polícia conceder medida protetiva de urgência. De fato, esta previsão urgia ser inserida no direito brasileiro considerando-se que, ainda que tenham sido obtidos impactos positivos na redução dos índices de violência doméstica e familiar contra a mulher, é certo que eles estão longe de ser os ideais, e isto se devia justamente à demora na concessão da medida protetiva, que, não raras vezes, era entregue à mulher dias e, até, meses após o ocorrido.

Palavras-chave: Proteção da Mulher; Lei Maria da Penha; Violência contra a Mulher; Feminicídio.

ABSTRACT

This article aims to investigate to what extent the enactment of the Maria da Penha Law (Law nº 11.340/2006) contributed to reducing the rates of violence against women in Brazil. It is also intended to report a brief history of the protection of women in Brazil, specifically addressing provisions inserted in the Federal Constitution of 1988, in the Maria da Penha Law (Law nº 11.340/2006) and in the Femicide Law (Law nº 13.104/2015); present the protective measures as sanctions provided for in the Maria da Penha Law for application to those who commit the crimes typified therein, highlighting the concept and its object, as well as the types of protective measures provided for in said legislation, and the possibility of their granting by the Chief of Police , pursuant to the judgment of ADI 6138; present statistical data on violence against women in Brazil (2006-2021), analyzing them comparatively over the years of application of the measures provided for in the Maria da Penha Law. The theoretical efforts and data analysis were to answer the following question, which represents the research problem: to what extent the enactment of the Maria da Penha Law (Law No. women? The methodology adopted in the investigation process allows classifying the research as exploratory, with the use of a bibliographic survey for data collection. The approach to the problem is quali-quantitative, and data analysis is content critical. The main results obtained were in the sense that the Maria da Penha Law (Law nº 11.340/2006) contributed positively to the reduction in Brazil of the rates of violence against women, due to the predictions contained in its scope, which aim to inhibit/punish the practice of violent acts against women in their own home or in the family environment. A recent possibility that promises to contribute even more to reducing these rates, being favorable to the constitutional protection of women, is the possibility recently recognized by the Federal Supreme Court for the Chief of Police to grant an urgent protective measure. In fact, this provision urgently needs to be included in Brazilian law, considering that, although positive impacts have been achieved in reducing the rates of domestic and family violence against women, it is certain that they are far from ideal, and this is owed precisely to the delay in granting the protective measure, which, not infrequently, was delivered to the woman days and even months after the incident.

Keywords: Protection of Women. Maria da Penha Law. Violence Against Women. Feminicide.

1  INTRODUÇÃO

A violência que é perpetrada contra a mulher vem sendo questão que tem suscitado a preocupação do Estado brasileiro, considerando-se que o Brasil, em 2015, no ranking mundial de países que têm maiores índices de crimes cometidos contra mulheres, se encontrava posicionado entre os cinco primeiros, segundo dados da Organização Mundial de Saúde – OMS (Nações Unidas Brasil, 2016). Tal contexto fático vem sendo acompanhado paradoxalmente por elevados níveis de tolerância à violência pela população, quer pela culpabilização da vítima, tendo-a como responsável pela ocorrência, quer por outras formas que, igualmente, revelam a prevalência do pensamento patriarcal no país e da relegação da mulher a segundo plano (Souza; Mendonça, 2021). 

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo tempo para a proteção da mulher no Brasil. Isto porque, aquela que historicamente conviveu com o vilipêndio de seus direitos, viu, no novo texto constitucional, ser assegurada a si a igualdade de direitos e deveres ao homem. Trata-se, pois, da igualdade de gênero.

Contudo, há que se ressaltar que, não obstante se reconheça a necessidade de se igualar homens e mulheres em direitos e obrigações, deve-se, também, reconhecer que as pessoas do sexo feminino necessitam de uma proteção diferenciada em relação às do sexo masculino, por serem consideradas vulneráveis. Assim, esta vulnerabilidade perante o homem, considerando-se exclusivamente a igualdade de gênero, fez com que elas, embora apregoando-se uma relação igualitária, fossem tratadas desigualmente pelo legislador, para promover o equilíbrio. Neste contexto é que surgiram legislações de caráter protetivo da mulher – dentre elas, a Lei Maria da Penha, que é o objeto do presente artigo.

A questão-problema que se pretende responder com o estudo é: em que medida a edição da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) contribuiu para reduzir no Brasil os índices de violência contra a mulher? O objetivo geral é investigar em que medida a edição da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) contribuiu para reduzir no Brasil os índices de violência contra a mulher. Já os objetivos específicos são: relatar breve histórico da proteção da mulher no Brasil, abordando especificamente disposições inseridas na Constituição Federal de 1988, na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e na Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015); apresentar as medidas protetivas como sanções previstas na Lei Maria da Penha para aplicação aos que cometerem os delitos ali tipificados, destacando conceito e seu objeto, bem como os tipos de medidas protetivas previstos na referida legislação, e a possibilidade de sua concessão pelo Delegado de Polícia, nos termos do julgamento da ADI 6138; apresentar dados estatísticos sobre a violência contra a mulher no Brasil (2006-2021), analisando-os comparativamente ao longo dos anos de aplicação das medidas previstas na Lei Maria da Penha.

 Por estar o estudo fincado na busca de dados estatísticos sobre a violência contra a mulher no Brasil, quando da edição da Lei Maria da Penha e nos dias atuais (em 2021), entende-se que a temática e abordagem propostas interessam não somente à comunidade acadêmico-científica. Isto porque se trata de importante questão social e de saúde pública, que extrapola os limites do conhecimento universitário para interessar, também, o Governo e a sociedade em geral.

Sendo assim, justifica-se a escolha do tema e abordagem proposta pela relevância e importância que se entende que os mesmos possuem tanto para a comunidade acadêmico-científica, como para a sociedade de um modo geral e para o Governo, já que se buscará entregar um estudo pautado em dados estatísticos capazes de comprovar as contribuições positivas – ou não – da Lei Maria da Penha para o objeto de sua criação, qual seja, proteção da mulher contra a violência doméstica e familiar.

2  PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A metodologia adotada no processo de investigação permite classificar a pesquisa como exploratória, com uso de levantamento bibliográfico para coleta dos dados. A abordagem do problema é quali-quantitativa, e a análise dos dados é crítica de conteúdo.

3  REFERENCIAL TEÓRICO

As mortes de mulheres em razão do gênero, que acontecem nos mais diferentes contextos políticos e sociais, denominadas feminicídio, são ocorrências que se mostram presente em todas as sociedades, advindo de uma cultura de desequilíbrio de poder e dominação estabelecida historicamente entre homem e mulher, produzindo a inferiorização da condição feminina, resultando em violência fatal contra a vida de muitas mulheres. É esse o pensamento expresso por Estefam (2022), segundo quem feminicídio é todo e qualquer ato de agressão que derive da dominação de gênero, sendo cometido contra pessoas do sexo feminino, causando a sua morte. 

Contudo, ressalta o autor que não é qualquer homicídio em que a vítima for do sexo feminino que deve ser considerado feminicídio. Antes, ele somente decorre da violência doméstica ou familiar, abrangendo-se, portanto, aqueles que estão relacionados à vítima ou que têm com ela alguma ligação, ou, então, as situações em que a condição da mulher é determinante para o cometimento do crime (razões de gênero) (Estefam, 2022).

4    RESULTADOS E DISCUSSÃO

De acordo com o relatório divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça –CNJ, em 2022, contava-se em todo o país com apenas 134 Varas e Juizados Especializados em Violência Doméstica – muito mais do que as 66 contabilizadas em 2021, seis anos após a edição da Lei Maria da Penha. Revela-se, pois, um aumento de 49,25% do número de Varas e Juizados Especializados em Violência Doméstica comparando-se os dados registrados em 2012 e os informados em 2021 (Brasil, 2022). 

No entanto, esse quantitativo de Varas, muito embora contemple todos os Estados, que têm pelo menos 1 Vara especializada instalada, é ainda bastante inferior ao se considerar o número total de Varas e Juizados Especiais existentes no país, que é de 10.433. Tem-se, pois, 1,28% do total de Varas e Juizados Estaduais como sendo de Varas e Juizados Especializados em Violência Doméstica no país (Tabela 1) (Brasil, 2022).

Embora a Justiça Estadual seja o ramo de Justiça que mais têm unidades judiciárias de 1º grau (Figura 3), perceba-se que, dos 26 Estados e do Distrito Federal e Territórios, somente 8 Tribunais Estaduais (Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Rondônia, Roraima e Tocantins) não criaram e nem extinguiram Varas ou Juizados Especializados em Violência Doméstica desde 2012 (Brasil, 2022).

No ranking da distribuição por competência, percebe-se que o quantitativo de Varas Exclusivas de Violência Doméstica, que foi estabelecido no ano de 2021, no quantitativo de 109 unidades judiciárias de 1º grau, só perde para:

•          os Juizados Especiais Criminais, com 104 unidades judiciárias; 

•          as Varas de Infância e Juventude que acumulam idoso e/ou família, com 59 unidades; e 

•          os Juizados Especiais da Fazenda Pública, com 54 unidades (Brasil, 2022).

Na Figura 4 tem-se a representação gráfica desses números, revelando-se como estava, no Brasil, a distribuição de unidades judiciárias de 1º grau por competência, considerando-se as Varas com Juizado, o Juizado Especial e o Juízo Comum.

Figura 4 – Distribuição de unidades judiciárias de 1º grau por competência(2018)

Fonte: Brasil (2022), p. 31

A tendência verificada, comparando os dados de 2018 com os de 2012, é no sentido de aumento desse número de especializados, embora, repise-se, esteja este bem abaixo do necessário para se promover efetividade à proteção legal (Brasil, 2022).

Somente no Estado de Santa Catarina é que se evidenciou situação anômala, já que o número de Varas do período, embora tenha atingido um pico em 2017 com 4 especializados, voltou a regredir em 2018, apresentando, nesse ano, o mesmo quantitativo registrado em 2012. No que tange ao Estado de Santa Catarina, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública registrou, em 2017, 127 ocorrências de crimes violentos letais intencionais em casos nos quais a vítima é do sexo feminino. Em 2016, esse quantitativo era de 106 – ou seja, houve um aumento de 19,81% em apenas um ano, o que faz do Estado o quinto maior do país em mortes de mulheres (Brasil, 2022).

O total geral de mortes violentas intencionais registradas no Brasil, durante o ano de 2017, foi de 58.735. Destas, 57.549 correspondem a crimes contra a vida, sendo 54.053 de homicídio doloso, 2.666 de latrocínio e 830 de lesão corporal seguida de morte (Brasil, 2022). 

Em Santa Catarina, no mesmo período, foram registradas 976 ocorrências, sendo 894 de homicídio doloso, 62 de latrocínio e 20 de lesão corporal seguida de morte. Em nenhum dos 127 casos de homicídio doloso envolvendo mulheres, contudo, foi enquadrado com a qualificadora de femicídio (Brasil, 2022). Isso corrobora o que sustentado por Dias (2015), segundo quem as estatísticas, quando são apresentadas pelas instituições, não transparecem a realidade de violência vivenciada pela mulher.

De todo modo, pode-se afirmar que a disponibilização de estrutura judiciária especializada adequada para atender casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, tal como previsto no texto da Lei Maria da Penha, é de suma importância para a concretização da proteção à mulher idealizada pelo legislador no bojo do enfrentamento da violência baseada no gênero (Estefam, 2022).

Considerando-se ensinamentos pontuados por Dias (2015) em sua obra, tem-se que se trata de importante ação positiva engendrada pelo Legislativo, mas que necessita melhor se estruturar para atingir os seus objetivos e conferir, assim, efetividade ao acesso à justiça que se buscou promover com a determinação de criação de varas especializadas. 

O segundo aspecto a ser analisado pontualmente é a existência de setores psicossociais comuns e especializados no atendimento à vítima e gabinetes privativos.

Inicialmente, cumpre destacar que, conforme Greco (2023), a violência doméstica e familiar perpetrada contra a mulher produz efeitos negativos em sua psique, podendo, inclusive, desenvolver trauma e aversão ao convívio com o sexo oposto. Para Estefam (2022), contudo, existem determinados fatores que estão a ela associados, sendo o principal deles, contudo, o consumo de álcool.

Nesse contexto, a intervenção psicossocial é de grande relevância, encontrado a sua previsão no Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher, que foi lançado pela Presidência da República em 2007. Nele, concretiza-se a ideia de que se deve proporcionar às mulheres em situação de violência um conjunto de serviços especializados destinados ao seu atendimento (Estefam, 2022). Além disso, os Centros criados com essa finalidade atuam na capacitação dos agentes públicos, promovendo projetos e campanhas educativas sobre esse importante tema (Nucci, 2022).

No entanto, o que se percebe é uma desatenção, assim como em relação à existência de Varas e Juizados Especializados em Violência Doméstica, na medida em que os números de setores psicossociais gerais (que prestam o atendimento psicossocial à mulher, sem exclusividade), setores psicossociais especializados no atendimento à vítima (que prestam exclusivamente o atendimento psicossocial à mulher) e gabinetes privativos, em 2016, somou, respectivamente, 65, 49 e 135 (Brasil, 2022).

Como destacado nesse estudo, o feminicídio se enquadra como um crime de homicídio qualificado, com pena diferenciada e majorada em relação ao homicídio simples, que é de reclusão de seis a vinte anos (no homicídio qualificado, gênero do qual o feminicídio é espécie, a pena mínima é de doze anos, e a máxima de trinta anos). Trata-se de um crime de gênero, na medida em que se aponta expressamente na lei como condição essencial para a sua configuração da vítima ser mulher, bem como do crime se dar em razão da condição de sexo feminino (inciso VI do artigo 121 do Código Penal). Verifica-se ainda que, em se tratando de casos de violência doméstica e familiar cometidos contra a mulher, parte-se da presunção de que as razões do crime são afetas à condição de sexo feminino . 

Do mesmo modo se trata quando o crime envolve discriminação ou menosprezo à condição de mulher (§ 2º-A do artigo 121 do Código Penal). São três, pois, as situações consideradas como razões de condição do sexo feminino, consistindo, portanto, nos elementos caracterizadores do tipo penal feminicídio enquanto qualificadora do homicídio: violência familiar e doméstica, discriminação à condição de mulher ou desprezo à condição de mulher (§ 2º-A do artigo 121, do Código Penal) . 

Segundo Copello , o conceito de feminicídio foi inicialmente formulado para contemplar as diferentes modalidades de violência que dão a sua contribuição para a limitação do desenvolvimento saudável e livre de mulheres e meninas que, em casos extremos, têm como consequência a sua morte. Deste modo, na visão do autor, tratam-se de “[…] todas as mortes evitáveis de mulheres – violentas ou não, criminais ou não derivadas da discriminação por razão de gênero” . 

O principal argumento dos que defendem a Lei do Feminicídio como uma lei necessária à proteção da mulher o fazer com base na tentativa que se fez de externar a ocorrência de homicídios contra mulheres em razão do gênero. Isso porque ocorrem assassinatos de mulheres em circunstâncias nas quais os homens não costumam ser mortos, sendo necessário expô-las à sociedade para que se alcance uma sensibilização com a situação das mulheres, podendo, com isso, contribuir para que se tenha uma mudança de mentalidade social arraigada do patriarcalismo que predomina no contexto ibero-americano. Com isso, se obrigaria o Estado a agir para prevenir a morte de mulheres, por meio da elaboração de políticas públicas com maior adequação não apenas à prevenção, mas, também, quanto à erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher no país. Se, ao final, o crime fosse consumado, restariam formas eficazes de efetuar a persecução penal do agressor . 

Tem-se, de igual forma, o argumento de que, embora a persecução penal daquele que matou uma mulher em razão do gênero (ou seja, de sua condição do sexo feminino) possa vir a ser alcançada pela norma jurídica de característica neutra do homicídio já tipificado no Brasil, ainda assim não seria possível visualizar o contexto no qual as mortes ocorreram, nem identificar o caráter generalizado e social da violência que se baseia no gênero, tendo em vista que os registros são feitos apenas como homicídios, dada ser esta a tipificação penal com a qual se conta. Desse modo, estar-se-ia abrindo os olhos para uma realidade que expressa um caráter social e político, resultante das relações de poder que são travadas no seio social entre homens e mulheres . 

Nesse contexto, o tipo penal específico iria facilitar o acesso à justiça, com a introdução de novos conceitos, alinhados com o Estado Democrático de Direito instituído no país, contribuindo, com isso, para que se promovesse uma mudança de aplicação da lei pelos magistrados, que ainda se prenderiam à dogmática jurídica, apresentando resistência à aplicação de instrumentos internacionais, bem como das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), fundamentando tal postura no fato de que as decisões que são proferidas por esta Corte não têm caráter vinculante .

Nesse mesmo sentido, cite-se Copello , que sustenta que a criação da categoria do feminicídio no direito penal brasileiro possibilitaria considerar que muitos casos de mortes não naturais com vítimas do sexo feminino não são fatos neutros, nos quais o fato do sujeito passivo ser uma mulher é indiferente, na medida em que eles ocorrem justamente por que são mulheres, em decorrência, segundo ele, de uma posição de discriminação estrutural atribuída pela sociedade patriarcal aos papéis femininos ao longo dos anos. 

Segundo o autor, o conceito de feminicídio tornou-se uma importante categoria de análise, tendo em vista que serviu para identificar e descrever os fatores discriminatórios que se fazem presentes nessas mortes, bem como circunscrever suas características, descrevendo-as como fenômeno social, além de possibilitar um dimensionamento de sua presença na sociedade partindo de estudos de natureza quantitativa, tarefa esta que ainda está pendente na maioria dos países .

Destacam ainda em defesa da necessária proteção à mulher por meio da criação de tipo penal específico para o crime cometido contra a vida da mulher, em contraponto ao argumento da intervenção mínima do Direito Penal, que não se mostra admissível tal invocação ao se tratar de delito grave, cometido contra a vida de uma mulher justamente por causa de seu gênero . 

Desse modo, é possível verificar que os argumentos que não consideram a Lei do Feminicídio como lei penal simbólica giram em torno de sua necessária elaboração, como forma de proteção da mulher, bem como servindo como forma de se para forçar o Estado à elaboração de políticas públicas que possam contribuir para prevenir e erradicar a violência contra a mulher em razão do gênero no Brasil.

Contudo, consoante destacam Doroteu e Andrade , a questão da violência contra a mulher exige um tratamento mais realista, não de um que busque tão apenas atender ao clamor social, determinando aumento de pena ao tipo penal de homicídio simples, colocando o feminicídio como espécie de homicídio qualificado. 

A contradição, de acordo com os autores, estaria na não efetiva aplicabilidade da sanção, por razões operacionais, já que, conforme destacam, existem municípios que ainda sofrem com a falta de políticas públicas que se voltem à prevenção de tal delito, o que contribuiria para reduzir consideravelmente as taxas registradas de homicídio . 

Desse modo, vislumbram Doroteu e Andrade  a edição da Lei do Feminicídio como intencionalmente voltada para o social, já que não apresentou substanciais modificações no campo jurídico, tendo em vista que sancionar exclusivamente a conduta de matar uma mulher em razão de discriminação, por sua única condição de pertencer ao sexo feminino, é dispensável, já que, no contexto da violência familiar e doméstica, bem como pelos outros meios mais expressivos que eram empregados para a consumação deste delito, já se tinha norma com capacidade para agravar a pena ou qualificar o crime. Desse modo, a seu ver, verifica-se a desnecessidade da Lei do Feminicídio no campo jurídico, pois se trata de algo que já possui previsão na legislação pátria. 

O total geral de mortes violentas intencionais registradas no Brasil, durante o ano de 2023, foi de 58.735. Destas, 57.549 correspondem a crimes contra a vida, sendo 54.053 de homicídio doloso, 2.666 de latrocínio e 830 de lesão corporal seguida de morte . 

Em Santa Catarina, no mesmo período, foram registradas 976 ocorrências, sendo 894 de homicídio doloso, 62 de latrocínio e 20 de lesão corporal seguida de morte. Em nenhum dos 127 casos de homicídio doloso envolvendo mulheres, contudo, foi enquadrado com a qualificadora de femicídio . Isso corrobora o que sustentado por Dias , segundo quem as estatísticas, quando são apresentadas pelas instituições, não transparecem a realidade de violência vivenciada pela mulher.

De todo modo, pode-se afirmar que a disponibilização de estrutura judiciária especializada adequada para atender casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, tal como previsto no texto da Lei Maria da Penha, é de suma importância para a concretização da proteção à mulher idealizada pelo legislador no bojo do enfrentamento da violência baseada no gênero .

Considerando-se ensinamentos pontuados por Dias  em sua obra, tem-se que se trata de importante ação positiva engendrada pelo Legislativo, mas que necessita melhor se estruturar para atingir os seus objetivos e conferir, assim, efetividade ao acesso à justiça que se buscou promover com a determinação de criação de varas especializadas. 

O segundo aspecto a ser analisado pontualmente é a existência de setores psicossociais comuns e especializados no atendimento à vítima e gabinetes privativos.

Inicialmente, cumpre destacar que, conforme Teles , a violência doméstica e familiar perpetrada contra a mulher produz efeitos negativos em sua psique, podendo, inclusive, desenvolver trauma e aversão ao convívio com o sexo oposto.

Para Garcia et al , contudo, existem determinados fatores que estão a ela associados, sendo o principal deles, contudo, o consumo de álcool.

Nesse contexto, a intervenção psicossocial é de grande relevância, encontrado a sua previsão no Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher, que foi lançado pela Presidência da República em 2007 . Nele, concretiza-se a ideia de que se deve proporcionar às mulheres em situação de violência um conjunto de serviços especializados destinados ao seu atendimento . Além disso, os Centros criados com essa finalidade atuam na capacitação dos agentes públicos, promovendo projetos e campanhas educativas sobre esse importante tema .

No entanto, o que se percebe é uma desatenção, assim como em relação à existência de Varas e Juizados Especializados em Violência Doméstica, na medida em que os números de setores psicossociais gerais (que prestam o atendimento psicossocial à mulher, sem exclusividade), setores psicossociais especializados no atendimento à vítima (que prestam exclusivamente o atendimento psicossocial à mulher) e gabinetes privativos, em 2016, somou, respectivamente, 65, 49 e 135.  

5      CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao concluir esta pesquisa, reafirma-se o objetivo geral de investigar até que ponto a edição da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) contribuiu para a redução dos índices de violência contra a mulher no Brasil. A análise de dados e a revisão bibliográfica indicaram que, de fato, a lei trouxe avanços significativos ao proporcionar mecanismos protetivos e punitivos mais eficazes, especialmente no âmbito doméstico e familiar. Esses avanços foram observados em números que, embora distantes do ideal, revelam uma tendência de diminuição nas estatísticas de violência, conforme destacado ao longo do estudo.

Além disso, os objetivos específicos também foram atendidos. O histórico da proteção à mulher foi abordado de maneira clara, ressaltando marcos legais importantes, como a Constituição Federal de 1988 e a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015). Foi demonstrada a relevância das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, que têm se mostrado essenciais na prevenção de agressões mais graves. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que permite a concessão de medidas protetivas de urgência pelo Delegado de Polícia reforça a eficácia dessa legislação ao tornar mais ágeis as respostas contra a violência, contribuindo para a proteção imediata das vítimas.

A apresentação e análise de dados estatísticos (2006-2021) permitiram uma visão crítica e comparativa dos impactos da Lei Maria da Penha ao longo dos anos, evidenciando que, embora os índices de violência ainda sejam preocupantes, a legislação teve papel decisivo na contenção e redução de tais crimes.

Como sugestão para estudos futuros, recomenda-se uma investigação mais aprofundada sobre a implementação prática das medidas protetivas, especialmente em áreas rurais e regiões periféricas, onde a estrutura para atendimento a vítimas de violência doméstica pode ser insuficiente. Também seria relevante explorar o impacto de programas de educação e conscientização sobre a Lei Maria da Penha, a fim de avaliar como a disseminação de informações pode influenciar na prevenção da violência de gênero. Por fim, sugere-se a ampliação de pesquisas que examinem o papel das políticas públicas voltadas à reabilitação de agressores, visando compreender se, e como, tais programas podem contribuir para uma diminuição duradoura nos índices de violência.

REFERÊNCIAS

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